sábado, 15 de dezembro de 2018

LICEU RAINHA SANTA ISABEL - O VELEIRO

PERGUNTAS


- Indique-nos os anos de frequência do Liceu Rainha Santa Isabel.


- O que representou para si ter frequentado esse estabelecimento de ensino?


- O Liceu Rainha Santa Isabel marcou, de alguma forma, a sua vida?


- Quais as recordações mais significativas que retém dos anos de frequência do Liceu?


Nota:
(As respostas ocuparão duas páginas A4 do Jornal)

CV  FOTOS


 - Frequentei o Liceu RSI em 1958/59 e 1959/60, nos meus últimos anos do ensino secundário,, o 6º e o 7º,  - o então chamado "curso complementar do liceu", que dava acesso direto à universidade .

 - Para mim, a mudança de um internato católico, o Colégio do Sardão, onde passara sete anos, (da 3ª classe ao antigo 5º ano) para o ensino público teve um significado muito especial, porque se tratou de uma escolha pessoal contra a vontade da família inteira. Um grande desafio, porque era uma boa aluna num colégio prestigiado pela qualidade pedagógica, pelo acompanhamento dado a cada uma das meninas e pelas médias obtidas, que o colocavam no topo do "ranking", a nível nacional,  (como
 hoje se diz) e ninguém parecia acreditar que conseguiria manter o mesmo estatuto num liceu do Porto. Não acreditavam muito em mim, fora daquele mundo fechado, seguro e protegido, e ainda menos acreditavam que pudesse continuar a ter acesso qualidade de aprendizagem semelhante. 
Enganaram-se duplamente!
 Eu não tinha certezas, nem temores. Aos 16 anos, queria experimentar, saber do que era capaz. Com esperança, rumo ao desconhecido, sem quaisquer referências sobre a realidade de funcionamento do "Raínha Santa" (que englobava a área do Marquês de Pombal, onde os meus pais tinham arrendado um andar), sem o apoio de amizades ou contactos concretos. Partia de um meio onde era positivamente uma veterana, com uma imagem de dinâmica participante na sala de aulas e nos campos de jogos, 
 para outro onde iria principiar no mais completo anonimato. Deixava, na expressão que se popularizou, recentemente, a minha "zona de conforto", migrava, embora para perto. geograficamente.
 Acabei por ganhar em toda a linha. Ultrapassei largamente, as classificações que trazia no curriculum, por um lado, e por outro descobri, que aquele liceu dispunha de um excecional elenco de professoras, na Filosofia, na História, nas línguas, até numa disciplina, que se chamava "organização política"
Surpresa ainda maior terá sido ver-me numa comunidade humana tão coesa, tão harmoniosa. Estávamos em pleno Estado Novo, seria de esperar clivagens políticas, autoritarismo e outros tiques do regime. Não senti nada sido, o à vontade no relacionamento entre alunas e professores era a regra... 

O meu primeiro contacto com o Liceu foi através dos funcionários da secretaria. Estava muito indecisa entre matricular-me na alínea de Direito ou na de Letras (Germânicas). e mudei três vezes antes do início das aulas, cedendo a influências de dentro da família próxima e alargada,  dividida a meio quanto ao que seria melhor, em termos de oportunidades futuras. Ainda por cima, quando eu tomava uma decisão, na semana seguinte os apoiantes da opção contrária apareciam com os seus velhos argumentos e abalavam a minha pouco firma convicção. Problema meu, é claro. Numa normal repartição pública, aparecer repetidamente a obrigar a alterações da ficha de inscrição não me tornaria muito popular. Ali, sim!  A funcionária, mesmo antes de eu dizer ao que ia, com um enorme sorriso cúmplice, exclamava: Vem mudar de alínea, não?
Foi ela a primeira imagem da simpatia e da hospitalidade daquele estabelecimento de ensino. Muitas outras se seguiriam...do primeiro ao último dia. Dois anos felizes, um desafio ganho da forma mais concludente. Por mim no Liceu, pelo Liceu aos olhos da família e do círculo de amigos.
(do meu CV consta apenas uma licenciatura em Direito, pelo que é óbvio onde acabou a minha longa deambulação na procura do caminho a seguir, mas devo acrescentar que ainda fiz uma última e final mudança, muito saudada na secretaria - já com duas ou três semanas de aulas decorridas...).

-  Na minha nostálgica recordação da adolescência distingo sempre os dois tempos, o do "Sardão" e o do "Rainha Santa". No colégio também vivi bons momentos, fiz amizades entre professoras e entre alunas, mais amizades do que o seu contrário. Mas envolvi-me, não raras vezes, em conflitos e contestação - do sistema, sobretudo. Não me dou bem em internatos, com a regulamentação de todos os minutos do dia - ou quase todos. Sempre fui apaixonada pelo desporto e aquele parecia um colégio inglês, com o seu enorme parque, os campos de jogos, "court de ténis, ringue de patinagem e, para os dias de chuva, um magnífico ginásio. Nesse aspeto, nota 20!
O Liceu significou a passagem a um patamar superior, a uma fase de crescimento em plena liberdade.Pude ser eu e ver do que era capaz num sistema mais aberto, mais competitivo, mais parecido com o que me esperava na universidade.
Os meus pais mudaram a residência para o Porto,( como as filhas tanto desejavam!), perto do Colégio da Paz, onde a minha irmã de bom grado se inscreveu. Eu obviamente não, muito embora tivesse de me levantar bem mais cedo e de fazer a pé uns quilómetros para ir até meu liceu e voltar.

 - Vinha, pois, de um colégio privado e elitista onde tinha tido excelentes professoras e feito muitas amigas e onde pude, diariamente, praticar desporto, que era a minha maior paixão. O Sardão tinha tudo quanto era preciso desde um grande ginásio a campos de jogos," court" de ténis, ringue de patinagem, um parque enorme... O Liceu era uma casa antiga, com uma bela traça, mas em mau estado de conservação. Havia falta de espaços, de salas de aulas, até o ginásio fora sacrificado e, com ele, as aulas de educação física. Mas tudo o resto era fantástico! Um caloroso ambiente humano, que compensava a falta de condições materiais. O que mais me surpreendeu, foi a superlativa qualidade do ensino, Ali, o ensino público era tão bom ou melhor do que o melhor do ensino privado! Que surpresa!
No plural: surpresas, Tudo excedeu as minhas expetativas, a amizade tão fácil de cimentar com as professoras - com todas elas, sem exceção -  a amizade com as colegas.Não me lembro de uma única disputa, de uma única zanga...E as notas, tão superiores às do colégio...
Passei dois anos no paraíso. Acho que nunca fui tão feliz. Acabei o curso com 18 valores e ganhei o "prémio nacional". Como estávamos em 1960, ano das Comemorações do Infante D Henrique, ao prémio veio acoplada uma viagem de grupo ao norte de África -  Ceuta, Tânger. e até a Alcácer Kibir, lugar da tragédia nacional e berço do mito sebastianista

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

COM NATÁLIA EM S. BENTO



COM NATÁLIA EM S. BENTO

Natália é uma de duas deputadas que tem busto de mármore no Parlamento Português. Esculpido por Cutileiro. A Assembleia conserva, nas páginas do Diário das Sessões, a magia da sua palavra, porventura a mais fulgurante, e, não raro, a mais agreste que algum dia se ouviu no hemiciclo. Contudo, não lhe ocorreu ainda reunir em coletânea as suas intervenções, ao contrário do que acontece com os notáveis tribunos masculinos, com ou sem lugar na estatuária do Palácio de S. Bento...
Foi nos "Passos Perdidos" que a conheci. Falámos, por sinal, só de leis - de uma em particular, já nem sei qual, que passara pelo meu gabinete de responsável pela emigração, e que ela defenderia, em sede parlamentar, no dia seguinte. Combinámos que, para análise de todos os detalhes, lhe enviaria a casa um distinto jurista. De lá voltou o especialista mais impressionado do que se tivesse privado com figuras históricas, como Catarina da Rússia, ou a Marquesa de Alorna. Ainda por cima, ela elogiara aquele modo de colaboração - que deveria ser a regra, mas não era - entre governo e bancada parlamentar. Talvez tenha visto nisso uma das diferenças que podem fazer as mulheres na república dos homens.
De longe a longe, nos reencontrámos no Botequim (que, não sendo eu notívaga, não podia frequentar assiduamente), e, depois, entre 81 e 83, no quotidiano da bancada da AD que, desaparecido Sá Carneiro, entrara no seu ocaso anunciado.
Como é lidar com o mito no quotidiano? É inevitável a sua "normalização"? Com Natália, de modo algum! Tinha as qualidades que "humanizavam" a sua grandeza, sem a diminuírem. Na convívio era amável, solidária, imensamente divertida e imprevisível - sempre formidável, não intimidava. Antes da minha primeira intervenção formal, sentindo-me nervosíssima e muito hesitante, não ousando improvisar, escrevi umas linhas, que submeti ao parecer crítico de Natália. Graças ao seu "nihil obstat" subi à tribuna com alma nova!
Porém, como opositora, num frente a frente, siderava qualquer um, sem exceção, com secos e contundentes argumentos ou com tiradas ribombantes e não menos contundentes - ordália a que, felizmente, nunca tive de me submeter. A sua diatribe mais mediática foi, sem dúvida, a que incendiou o debate sobre o aborto, fulminando, em prosa e verso, um fundamentalista religioso do CDS, que se atreveu a propugnar o sexo exclusivamente para procriação da espécie - o famoso "truca-truca" do procriador de uma pequena prole de dois descendentes. Assisti ao clamor que se seguiu, em lugar privilegiado, muito perto da Oradora.
Após integrar governos sucessivos e breves, (como foram todosaté ao surpreendente advento das maiorias de Cavaco Silva), regressei a São Bento e às conversas com Natália, então já no PRD. Nada que nos afastasse - afinal, partilhavao seu gosto pelo distanciamento dos aparelhos partidários e até a sua simpatia pelo general Ramalho Eanes - que, à época, não abundava entre  Sácarneiristas.
Estávamos em agosto de 87 e eu acabava de me tornar a primeira mulher eleita vice-presidente da Assembleia. Poucos dias depois, aconteceu a temida  inevitabilidade de ser chamada a dirigir a sessão - sem pompa nem anúncio prévio, a meio de um discurso de Basílio Horta, apenas para o Presidente Crespo fumar um cigarro nos bastidores. Tanto melhor para mim, que queria passar despercebida... Mas eis que Natália se levanta em aplausos, logo seguida por Helena Roseta e pelos demais deputados e, finalmente, por Basílio, que continuara a intervenção, sem saber o motivo por que a Câmara inteira aplaudia de pé. Um momento feminista para a história parlamentar!
Não menos feminista foi outro, que, igualmente, se lhe ficou a dever: a ideia de homenagear as pioneiras do movimento sufragista português, a 8 de março de 88. Precisamente oitenta anos depois da criação da Liga da Mulheres Republicanas, elas tiveram, enfim, o direito de serem ouvidas em longos e expressivos discursos, citados por deputadas da geração das suas netas. Ali, na casa-mãe da democracia, a que uma democracia imperfeita lhes vedara acesso.
Em 1991, o Partido Renovador perdeu representação parlamentar e, com isso, a Assembleia da República perdeu a Mulher que a ressuscitaria da hibernação na mediocridade em que estava caída. A Mulher capaz de transformar, por exemplo, um simples jantar de portistas em S. Bento em tertúlia erudita, discorrendo brilhantemente sobre desporto, deuses e mitos, para concluir que a serpente da antiga Lusitânia e os dragões da "cidade invicta" pertenciam a uma mesma matriz.
Inesquecível! Nesses tempos, quantas vezes, da terceira fila do hemiciclo, onde Natália também se sentava, olhei em redor, pensando: "Daqui a cem anos estamos todos mortos - todos, menos a Natália". E lembro-me de lho ter dito uma vez, perante um silêncio complacente e o esboço de um sorriso.
A profeta de futuros longínquos era ela, eu apenas ousava uma incursão em terreno proibido ao comum dos mortais. Sorte de principiante: a profecia vai a caminho de se cumprir.