segunda-feira, 29 de abril de 2019

OBSERVA MAGAZINE 2 ENTREVISTA


 OBSERVA MAGAZINE Grande entrevista com Maria Manuela Aguiar

Quem é Manuela Aguiar? Uma Senhora ainda recordada como exemplo de vida na notoriedade que conferiu à Diáspora portuguesa. Assumiu a Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas, no VII Governo Constitucional liderado por Pinto Balsemão, em 1981. Encontrava-se a assumir a pasta do Ministério dos negócios estrangeiros, André Gonçalves Pereira.
OM:  Muito agradecidos por nos conceder a honra desta entrevista

M A: Eu é que tenho de agradecer a possibilidade de partilhar com todos os leitores de Observa Magazine recordações de tempos e acontecimentos que vivi, há tantos anos!.

Assumi a SEECP, a convite do Dr Francisco Sá Carneiro, nos primeiros dias de janeiro de 1980. Era Ministro dos Negócios Estrangeiros o Prof Freitas do Amaral. Não os conhecia pessoalmente até esse dia, em que que reuni com eles, na Rua Gomes Teixeira, na altura em que preparavam a formação do VI Governo Constitucional. Conversámos como amigos de longa data, de um modo informal e descontraído. Foi o início de uma caminhada vertiginosa, em que Sá Carneiro impunha o ritmo e todos dávamos o máximo, num ambiente de coesão e de solidariedade, que nunca mais reencontrei na vida pública. Até 4 de dezembro, 1980 seria o meu melhor ano de sempre, até hoje!
 Intervir na política, não estava no meu horizonte. Sentia-me bem em trabalho de gabinete, como assessora do Provedor de Justiça. Antes tinha sido assistente de um Centro de Estudo Sociais e de várias Universidades. E fizera, em 1978/79, uma passagem por um breve governo de independentes presidido pelo Prof Mota Pinto - na pasta do Trabalho. Tinha quadrante ideológico - era "social-democrata à sueca" - mas não filiação partidária. Não fui pressionada a inscrever-me no partido, mas fi-lo, impulsivamente, devido à minha perfeita sintonia com as posições de Sá Carneiro . E com isso, me tornei a primeira mulher do PSD a ocupar um cargo governamental. Depois, acabei por perfazer o total de 5 governos, e por ficar na Assembleia da República quase duas décadas e na Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa por cerca de 14 anos.

OM: Estando interessados em tentar escrever a história e as histórias desta importante e nobre função de quem assume uma secretaria que permite e fomenta o contacto com as comunidades portuguesas espalhadas pela Diáspora portuguesa, conte-nos qual o primeiro impacto com essa realidade.

M A - Foi, antes de mais, a verdadeira descoberta de um "outro Portugal", que os portugueses recriam no estrangeiro e que é largamente ignorado, dentro do País. Tive, a preocupação de fazer viagens em que circulava, de cidade em cidade, entre comunidades, com o objetivo de conseguir, mais depressa e melhor, uma perspetiva ampla do universo da emigração, estabelecendo comparações, e podendo transmitir experiências de umas para as outras. Queria estabelecer as singularidades e as constantes, no que respeitava a realizações, problemas  carências, para definição de prioridades, e procura de formas de articulação e parcerias viáveis,  .

 Na primeira visita, em 20 dias, corri os EUA e o Canadá, de costa a costa. Na segunda, o Brasil - da Amazónia, do Pará e de Pernambuco ao Rio Grande do Sul. E, depois, os muitos países onde está a nossa emigração. Como os programa de visitas se centravam nas associações, igrejas, escolas portuguesas, clubes, no pujante movimento associativo, quase não via as cidades, as paisagens circundantes, e voltava com a espantosa sensação de não ter saído da minha terra, apesar de ter feito tantos milhares de quilómetros. Era como se Portugal fosse imenso! E, de facto, é,  se olharmos a sua gente para al+em do seu território..

O M : o que mais a comoveu nesse contacto direto?

 M A: O genuíno portuguesismo das pessoas! A paixão por manter tudo o que consideravam identitário, que lhes permitia unirem-se e criarem espaços culturais de presença nacional, com os seus modos de estar, as suas tradições de convivialidade. Encantou-me, desde esses primeiros contactos, a hospitalidade com que era recebida, tanto em salas modestas, como em grandiosos salões, que pareciam  transplantados das várias regiões de Portugal, com o seu ambiente de tertúlia, a sua gastronomia, dança, música, celebrações religiosas... Ver isto com os meus próprios olhos foi uma revelação poderosa, inspiradora. Afinal, o que eles faziam pelo país era infinitamente mais do que o que País jamais fizera por eles, como exigiaJF Ken nedy. Assim pensei e, décadas depois, continuo a pensar.
 OM:   Como definiria um traço ou uma característica inerente (de todas as comunidades espalhadas por todos os continentes) à vontade/ necessidade de emigrar no período em que exerceu funções?
 MA: Julgo que mais a necessidade do que a vontade. O êxodo migratório do século XX deveu-se, sobretudo, à pobreza, ao desemprego, aos baixos salários. Foi, em percentagens muito elevadas, clandestino - sobretudo na segunda metade do século, quando de dirigiu, sobretudo para a Europa (a emigração "ilegal" passou a média de um terço, que vinha de épocas recuadas e chegou a ultrapassar os 50%). A melhoria das condições de vida dos que haviam partido contribuía enormemente para familiares e vizinhos verem na fuga para o estrangeiro a única solução de futuro. Como hoje, os que atravessam o mediterrâneo, arriscando a vida! A situação não é tão diferente como poderá parecer. É apenas ainda pior, mais difícil, porque, no pós guerra mundial, o ciclo de desenvolvimento económico permitia uma rápida legalização e integração. Os Portugueses, depois de um início difícil, ganharam, quase todos, a aposta na aventura da emigração. Eduardo Lourenço disse dos protagonistas do "salto", nas décadas de 50 e 60, que foram "uma geração de triunfadores". É uma citação que uso, muitas vezes, porque é, globalmente, verdadeira e, além disso, expressa a homenagem, que o país se esquece, tantas vezes, de lhes prestar. .
OM: Qual a faixa etária que emigrava? Quais as suas qualificações académicas e profissionais?
M A: Jovens do sexo masculino, pouco qualificados. Era esse o perfil da nossa emigração tradicional. Mas não a dos governos a que pertenci. Quando, a partir de 1974, as leis e a Constituição Portuguesas vieram, por fim, consagrar plenamente o direito à emigrar, os outros países fecharam as fronteiras, após a crise petrolífera.... Na década de oitenta, registámos os mais baixos números de saídas de todo o século XX. (e deste começo de Século XXI). Os países desenvolvidos praticamente só permitiam a entrada para reunificação familiar às mulheres e filhos dos trabalhadores. Falava-se, e bem, de "feminização da emigração". Foi, por sinal, um movimento da maior importância, porque quase todas as portuguesas conseguiram aceder ao mercado de trabalho, ganharam uma autonomia profissional, que não tinham nos meios rurais de onde provinham, e deram um impulso fundamental aos projetos migratórios, do ponto de vista económico (pois contribuíam com um segundo salário) e social, (porque se converteram, de facto, com inesperado êxito, em mediadoras da inserção do núcleo familiar). Estavam, maioritariamente, inseridas no setor dos serviços, com contactos mais próximos na sociedade local e isso deu-lhes a compreensão das suas especificidades, tal como da necessidade de proporcionarem aos filhos as vantagens da educação e formação, que eles não tinham. A emigração feminina influenciou, assim, decisivamente,a reconversão cultural e o sucesso económico dos projetos migratórios de 50 e 60. Na altura, ninguém o podia prever. Hoje essa avaliação está cientificamente demonstrada (vejam-se os trabalhos pioneiros da Profª Engrácia Leandro, na década de noventa, na região de Paris).

OM :  quais eram os países eleitos pelos portugueses para se emigrar?

MA: A Suiça foi, a partir de 80/81, uma exceção no panorama europeu. Nesses e nos anos seguintes, recrutou dezenas de milhares de trabalhadores portugueses ,maioritariamente, homens, para a agricultura, construção civil, a hotelaria... Novos destinos, que geraram expetativas, (depois não confirmadas), foram alguns países do sul do Mediterrâneo e do Médio Oriente. Os números nunca viriam a ser elevados e corresponderam a contratos bem remunerados, mas temporários.
Outra situação nova, com que me vi confrontada foi o enorme afluxo de regressos, em média 30.000 a 40.000 por ano. O retorno dramático dos portugueses de Angola e de outras colónias estava ainda bem presente na memória coletiva e este segundo retorno provocava nos "media",na opinião pública, e até na classe política uma inquietação indisfarçável. Vi-me muitas vezes isolada, e mal compreendida, ao explicar que se tratava de um processo radicalmente diferente, um movimento voluntário, planeado pelos próprios emigrantes, dirigido, sobretudo, para as regiões de origem e, por isso, desejável, essencial mesmo, para o repovoamento e progresso do interior (desertificado pelo êxodo migratório das décadas anteriores). Os apoios à reinserção, (medidas fiscais, isenções, empréstimos a juro bonificado). foram utilizados habilmente, e o País ganhou muito com os que vieram (mais de meio milhão só nessa década de que tratámos) sem perder os que se que fixaram lá fora, formando as comunidades extra-territoriais, que corporizam a nossa "Diáspora".
 O M:  No seu entender quais foram os países que mais se esforçaram por justamente atribuírem a lusodescendentes cargos decisores, nomeadamente de responsabilidade política
 MA: O Brasil, sem dúvida. É um país tão próximo, que os portugueses na sociedade brasileira tendem a ser tratados como nacionais. Desde 1971, o Tratado de Igualdade de Direitos e Deveres entre Portuguese e Brasileiros concedeu direitos políticos aos imigrantes do outro País. a nível nacional, enquanto, por exemplo, o estatuto de cidadania europeia, ainda hoje, limita a capacidade eleitora e ativa e passiva, ao nível local. Em 1989, os Constituintes brasileiros foram ainda mais longe, atribuindo aos portugueses, sob condição de reciprocidade, todos os direitos da nacionalidade brasileira, equiparando-os a brasileiros por naturalização. A luta pela dação da reciprocidade por parte de Portugal foi a minha " causa maior", enquanto deputada e prolongou-se por cerca de 13 anos. Foi conseguida numa revisão extraordinária da Constituição em 2001 - e graças ao apoio de Políticos sensíveis às particularidades do universo da lusofonia - caso  de Durão Barroso e de Mário Soares, que foi absolutamente decisivo. Desde essa data, o estatuto de cidadania luso-brasileira consolidou-se como o mais avançado nível universal, atualmentel! E, se, entre nós, ainda não vemos os imigrantes brasileiros em lugares de destaque, no Brasil são muitos os Portugueses que ocupam altos cargos na Magistratura judicial e na política, a todos os níveis, local, estadual e nacional. Uma ascensão que vem de trás e em que as mulheres fizeram história. No século XX, a médica Manuela Santos foi a primeira Secretária de Estado no Rio de Janeiro e a atriz Ruth Escobar a primeira mulher eleita à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo e a primeira representante do Brasil nas Nações Unidas para o acompanhamento de Convenção contra todas as formas de discriminação das Mulheres. Uma e outra, eleitas ou nomeadas ao abrigo do "Tratado", isto é, apenas com a nacionalidade portuguesa. Hoje , na Europa, com a França  em destaque, e também no Canadá, EUA e outros países, a participação política vem crescendo, gradualmente.
OM:  Que actividades económicas e que tipos de trabalho procuravam os portugueses que emigravam? Com o mesmo (baixo) nível de formação, os portugueses que emigravam para países economicamente desenvolvidos encontravam trabalho não qualificado nos setores que referi (construção civil, a agricultura, os serviços, nomeadamente, no caso das mulheres), enquanto nos países "em desenvolvimento" muitos se transformavam, rapidamente, em pequenos empresários, quando não, no fim do percurso, em investidores de topo. No século XX, são inúmeros os que atingiram esse estatuto- no Brasil, obviamente, mas também na Venezuela ou em diversos países de África.Um exemplo histórico: nos EUA, no começo do século passado, foi muito mais rápido o enriquecimento dos nossos imigrantes no Hawai ou na Califórnia do que na costa leste, então com índices de industrialização mais elevados. É um contexto em que a ascensão é sempre mais lenta, mas não impossível. Veja-se o que aconteceu na França, onde a partir da adesão de Portugal à CCE, com o direito de estabelecimento, se multiplicou, de forma impressionante, o acesso dos nossos compatriotas a segmento do pequeno comércio e da restauração. E, em casos mais invulgares, a grandes negócios e lendárias fortunas, semelhantes às do Brasil ou África..

 MA: eram defraudadas relativamente ao que esperavam do país de acolhimento?
M A: De início, em muitos casos, sim. Eram enganados por redes de engajadores, explorados como trabalhadores indocumentados. moravam nos tristemente célebres bairros de lata dos arredores de Paris. Um quadro assustador!. Mas, progressivamente, a sua situação foi mudando. A legalização era facilitada (penso em primeira linha na França, que representava mais de 80% do total), e empregos não faltavam. Eduardo Lourenço, testemunha presencial desse período negro fez, como disse, lapidarmente, o balanço final. Nenhuma outra imigração foi aí tão bem sucedida como a nossa.
Desde a crise de 2008 e, mais ainda, nos anos de intervenção externa (da "troyka") , a emigração em massa não só recomeçou, como bateu todos os recordes. Nesses quatro anos, cerca de meio milhão abandonou o País... Fala-se de uma "nova emigração", de jovens altamente qualificados, quadros, cientistas, mulheres e homens. Nunca tal acontecera no passado, em números significativos, em massa, mas, na verdade, no total, são ainda uma minoria (nem por isso a situação de "braindrain" imparável deixa de ser uma constatação tremenda!). Contudo, a maioria da nossa emigração continua a ser predominantemente masculina, pouco qualificada e envolvida em contratos temporários.. Uma questão que agora se coloca é a de saber se haverá mais riscos de insucesso (relativo) para a "nova emigração". Creio que em algumas profissões - engenheiros, médicos, enfermeiros - o êxito estará, quase sempre, garantido, em termos de promoção na carreira, de vencimentos. O risco, a meu ver, é o de não regressarem. Porém, em outros setores, por falta de reconhecimento e aproveitamento dos seus títulos académicos, poderão acabar acantonados a empregos precários ou insatisfatórios. Face a expetativas mais ambiciosas, podem ver-se num percurso descendente - ao contrário da geração de 50/60. Esperemos que sejam poucos os perdedores!. E esperemos, também que sejam muitos os que decidam voltar. Isso vai depender muito do País, das condições que saiba reunir para o seu regresso e para pôr fim às partidas maciças. Até hoje, como tenho dito muitas vezes, Portugal já conseguiu garantir aos cidadãos o direito de emigrar, mas não ainda o "direito de não emigrar"...
 OM:   Qual a sua experiência no contacto com associações ou outro tipo de organizações em que os portugueses se uniam e reuniam?
 MA: Há pouco, ao referir primeiro contacto com emigrantes, logo o centrei nas associações, porque foi aí que encontrei, desde o primeiro momento, os portugueses. Quer se chamem assim, ou não, são verdadeiras "Casas de Portugal". Foram criadas, algumas há mais de 150 anos, para preservação da língua e da cultura e para defesa e proteção dos compatriotas, que se viam completamente abandonados pelo Estado, mal transpunham as fronteiras do país. A nossa única política de emigração, ao longo de séculos, foi a regulação dos fluxos de saída, quase sempre no sentido de os limitar! Os próprios emigrantes colmataram as omissões do Estado, um pouco por todo o lado, unindo-se em coletividades para a entreajuda (sociedades fraternais, caixas de socorros mútuos, hospitais), para a valorização cultural (Gabinetes de Leitura, grémios literários, centros culturais) e para o convívio (clubes recreativos e desportivos). Até aos fins do século passado, em todos os ciclos migratórios, em todas as latitudes, deparámos com formas de organização semelhantes para atingir os mesmos objetivos (a tipologia "beneficência, cultura, recreio"). Com notável eficácia, diga-se, em diferentes contextos e com meios maiores ou menores. O governo de 1980 não foi, certamente, o primeiro a ter em atenção os méritos do associativismo, mas foi pioneiro no enfoque que deu ao desenvolvimento sistemático de formas de parceria, de co-participação na definição e execução de medidas e programas para a emigração e as comunidades. O Estado não pode alhear-se dos problemas deste Portugal fora de fronteiras, mas tem de respeitar a autonomia da "sociedade civil", que se soube substituir à sua antiga e costumeira inércia. É um equilíbrio que é fundamental conseguir nas políticas públicas neste domínio!.
Nos governos a que pertenci, o principal instrumento dessas políticas foi uma assembleia consultiva, formada por representantes eleitos no universo associativo, o Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP). Entre 1981 e 1987 (data em que deixei definitivamente o governo), o Conselho funcionava a nível de cada país e em reuniões mundiais e regionais. Procurava ser  um grande "forum" do movimento associativo português, que era muito forte dentro de cada sociedade de acolhimento, mas não tinha uma estrutura internacional, ao contrário de todos os outros países europeus de emigração. E ainda hoje não tem! O CCP é atualmente eleito por sufrágio direto, tendo perdido, assim, a sua essencial faceta interassociativa..

A minha ligação afetiva ao associativismo que dá corpo e alma às comunidades, enquanto comunidades orgânicas, vem dum tempo em que estava no auge. Sempre vi nele a generosa marca do "percurso coletivo" dos portugueses, tão importante para o País como o sucesso individual, a que costuma dar muito mais atenção. E por isso me preocupa o seu futuro num mundo em espantosa mudança, com as novas tecnologias, a economia e a cultura digitais, formas de relacionamento, de trabalho e de diversão inimagináveis há apenas algumas décadas. Como resistirá o associativismo tradicional e o seu património às infinitas transformações a que assistimos ? .
 OM: Existe um número, ainda que aproximado, que nos possa adiantar de portugueses emigrados em 1981?
 M A: As médias de saídas eram baixíssimas, em comparação com as do passado recente e com as do presente. Talvez, uns 8000, (não sei exatamente os números, mas são dessa ordem de grandeza). Atualmente estão acima dos 100.000. Uma diferença abissal.Vivemos, atualmente, um recomeço de ciclo, de èxodo.
 OM: A Língua portuguesa significava um entrave à integração dos portugueses nas diferentes comunidades?

MA: O conhecimento de um idioma, nunca é entrave à aprendizagem de outro. Pelo contrário! Esse é um erro em que caíram alguns pais portugueses, que consideravam necessário que os filhos falassem apenas a língua local, que eles tinham dificuldade em aprender. Não compreendiam que o bilinguismo, para além de manter os laços à cultura pátria é sempre um enriquecimento, e mais ainda numa das línguas mais ricas e mais espalhadas no mundo. Mas esta visão nunca foi predominante. Mesmo pessoas com baixa escolarização, souberam, em regra, valorizar a preservação da língua-mãe, ensiná-la em casa, na escola pública, ou a partir do movimento associativo..
 OM: Quais as medidas que foram implementadas para que os emigrantes e os lusodescendentes, nomeadamente de segunda geração tivessem acesso em contexto escolar ao idioma de Camões?

 MA: Perante a multi-secular indiferença do Estado Português foram as associações e as paróquias católicas que criarem escolas ou cursos de português, com os seus´próprios meios, como disse. De facto, a preocupação dos governos com a aprendizagem do português só se manifestou, quando a emigração passou a dirigir.se para o nosso continente. Por largas décadas, manteve-se a dualidade, com uma rede oficial de professores na Europa, articulada, ou não, com os governos dos países europeus, em contraste com a não concessão de apoios às escolas comunitárias da emigração transoceânica. Nunca aceitei esta discriminação, mas tive dificuldade em a combater, porque, nessa altura a política do ensino para as comunidades estava sediada no Ministério da Educação e não no Ministério dos Negócios Estrangeiros 8MNE). Durante os governo a que pertenci. só na África do Sul foi possível estender, de algum modo, a rede oficial, com aulas extra-curriculares, gratuitas e dadas por professores do nooso ensino oficial nas escolas sul-africanas
 A transição do Instituto Camões para o MNE é coisa relativamente recente. Hoje há mais equilíbrio, mais rateio de meios entre as comunidades, de "àquém e além mar", mas a situação está longe do ideal e as escolas associativas continuam a desempenhar, em muitas comunidades., um papel de primeiro plano. Dar cursos de língua e cultura, continua a ser o obetivo de um sem número de organizações - e o que mais atrai as mulheres à intervenção na vida coletiva! É de realçar que em muitos casos tem resultado o esforço do nosso governo junto de outros, para conseguir a integração curricular do português. A meu ver, a multiplicação e a conjugação de várias ofertas de ensino é de incentivar. Nunca será demais.....

OM:  Quais as dificuldades da Lei eleitoral à data se refletiam no voto por parte das comunidades, nas diversas eleições portuguesas?

M A: Tudo hoje é mais fácil e mais consensual entre partidos da direita à esquerda. Em 80, não. Até a dilatação do período de recenseamento de um para dois meses foi polémica e inviabilizada no parlamento! A votação era limitada à eleição de 4 deputados para a Assembleia da República e o voto por correspondência perdia-se, frequentemente, sobretudo em países onde os correios eram lentos e pouco fiáveis, ao contrário dos nossos. Infelizmente o número de deputados não se alterou, mas o voto alargou-se às eleições presidencial e europeias e a alguns "referenda". E o universo eleitoral, independentemente de recenseamento, passou a abranger todos os emigrantes que possuem cartão de eleitor.
OM: Tem algum episódio que nos queira contar do contacto com alguma «Mãe ou Pai da Saudade"

M A: São tantos os que já partiram, deixando saudades... O mundo das comunidades era, então, a nível de dirigentes, de interlocutores, quase 100% masculino, e, por isso, o meu círculo dos amigos e aliados homens era imenso, tornando a escolha complicada, ao contrário do que acontece com as raríssimas mulheres, que lideravam associações, "media", ou grandes movimentos cívicos. Matriarcas como a mítica Dona Benvinda Maria, diretora do jornal "Portugal em Foco" do Rio de Janeiro, Maria Alice Ribeiro, fundadora e diretora do "Correio Português" de Toronto (aí, o mais antigo jornal na nossa língua), Mary Giglitto, presidente do Festival Cabrilho em São Diego (Festival de homenagem ao descobridor da Califórnia, que sem nossa Mary seria, provavelmente, considerado castelhano...), a Fernanda Ramos, de Minas Gerais, empresária e primeira presidente do Elos Clube Internacional, a Manuela da Luz Chaplin, advogada dos indefesos, em Newark...  Todas foram vozes fortes, arrebatadoras, que mobilizaram os compatriotas e engrandeceram as suas comunidades. Contar episódios passados com elas ou com eles, dava outra grande entrevista! Mas há um, que acaba de me ocorrer agora mesmo, talvez por ter trazido à conversa a desigualdade de género na emigração dessa altura. Estava, um dia, a almoçar com um jornalista de rádio de San Diego, Paulo Goulart, e ele disse-me que, entre os muitos políticos que visitavam a Califórnia, só dois tinham a simpatia da comunidade, o Dr João Lima e eu (assim se vê que ele era meu amigo - nem todos seriam dessa opinião.é claro...). Fez uma pausa, com ar de quem está a refletir e acrescentou: "Pensando bem o João Lima até tem mais valor, porque para ele é muito mais difícil, por ser homem e socialista". De facto, a América tinha, então, fortes preconceitos anti-socialistas. Essa parte era óbvia. Não assim o facto de ter vantagem como mulher! A frase, a que achei imensa graça, dita com evidente franqueza e sinceridade, constituiu a pista que me faltava para compreender o enigma de me ver bem aceite em comunidades, no seu conjunto, tão conservadoras. Creio que Paulo Goulart me terá convencido de que é mais difícil a uma mulher chegar ao cargo, do que, depois, exercê-lo. Aqui deixo a hipótese, para futuro estudo  

; OM:   Deseja fazer alguma saudação especial dirigida aos milhões que a vão ler?

 MA: Sim, com muito prazer, aproveito para mandar um abraço a todos os emigrantes que deixaram o seu país , mas o levaram consigo, em espírito e , assim, apesar da ausência física, são uma presença cultural.~

OM: A OBSERVA Magazine agradece-lhe novamente a honra desta entrevista

VIAGENS DA CHINA


VISITAS DA CHINA

1 - A auspiciosa visita do PR Marcelo Rebelo de Sousa à China (todas as suas viagens vêm sendo auspiciosas), trouxe-me à memória o meu primeiro contacto com altos dignitários chineses.
Aconteceu em 1988, estava eu há pouco tempo no exercício de  funções de Vice- Presidente da Assembleia da República. A minha primeira tarefa protocolar consistiu em acompanhar o programa da visita oficial, ao nosso País, de uma Delegação da Assembleia Popular da China. Visita pioneira na história multissecular das relações sino-portuguesas (em 2017, o "Público" noticiava a chegada a Portugal, numa visita "inédita", do  Presidente da mesma Assembleia, a convite do Presidente da AR  Ferro Rodrigues - a  iniciativa teve, com certeza, aspetos inéditos, sobretudo um acento "inédito" mas questões económicas, que hoje comandam o relacionamento dos dois Países, ainda que, como convite de um Presidente da AR ao homólogo chinês. fosse, de facto, o segundo, depois do de Victor Crespo, mais de 30 anos antes). Imprecisões históricas, a que já estamos habituados, num patamar diferente das "fake news", porque se devem exclusivamente a ignorância..
Voltemos, pois, a 1988 e a esses três dias intensos de conversações, passeios por Lisboa, Sintra e Porto, receções não só na Assembleia e na Embaixada da China, como  nos municípios, e," last but not least", de audiências com o Primeiro Ministro (Cavaco Silva) e o Presidente da República (Mário Soares).
À época,  a Assembleia Nacional Popular era não só o maior parlamento do planeta, como tinha, certamente, os mais velhos dirigentes  de entre todos os parlamento do mundo. O Chefe da Delegação, um Vice.Presidente, andaria pelos 80 anos e a média de idade do restantes  membros não estaria muito longe dessa idade ("grosso modo", o dobro da minha e da dos deputados portugueses, que me acompanhavam). Não obstante a diferença geracional e as especificidades culturais, estabelecemos fácil convívio a conversas fluia naturalmente. As paisagens e monumentos, a gastronomia ou a música, agradavam visivelmente aos nossos hóspedes. De qualquer modo, tudo era feito "by the book" segundo os canônes da diplomacia parlamentar.

2 - O imprevisto estava, porém, para acontecer onde menos se esperava - no Palácio de Belém..Para compreender o sucedido, é preciso dizer que o conjunto das delegações chinesa e portuguesa constituía um grupo alargado, uma vintena de pessoas,  somando intérpretes e secretários. Por isso, em São Bento, com o Primeiro Ministro, estivemos presentes nas conversações, os visitantes e, pela parte portuguesa, apenas eu. Os demais ficaram na sala de espera. O Prof Cavaco Silva, tinha vindo da China meses antes, e falou longamente dessa sua inesquecível experiência, sempre formal, não só porque esse é o seu estilo, mas também porque julgava que assim o exigia a etiqueta oriental. Notei que usava uma curiosa super abundância de adjetivos - possivelmente porque os considerava do agrado dos interlocutores, Em suma, esforçou-se bastante para ser o perfeito anfitrião, e, a meu ver, saiu-se bem.
Dali, o cortejo seguiu diretamente para Belém. Tal como na reunião anterior, atendendo a que o salão presidencial, em condições normais, não dispõe de assentos para tanta gente, os mesmos deputados aceitaram continuar de fora. Contudo, o Presidente Soares, especialista como era em praxes parlamentares, estranhou ver-me desacompanhada de colegas e perguntou : "Veio sozinha?"  Ao que tive de dizer: "Não, Senhor Presidente", explicando que os outros estavam na antecâmara, porque os serviços do protocolo entenderam ser impossível acomodá-los ali dentro. O Doutor Mário Soares, indignado, levantou-se, de imediato, exclamando que era um parlamentarista e não podia permitir que os nossos deputados não fossem recebidos na audiência. Mandou chamar os deputados, mandou vir mais cadeiras, começou ele próprio a trazer as que estavam arrumadas em recantos da sala. Uma incrível movimentação, um reboliço, homens transportando cadeiras, reorganização da ordem de precedências. Coisa rápida, à portuguesa... E só depois de todos estarmos devidamente enquadrados naquele salão elegante, mas relativamente pequeno, se iniciou uma conversa que o Presidente conduziu com a mestria e a cordialidade costumeiras, com o seu espontâneo à vontade, querendo saber as impressões dos visitantes sobre o que tinham visto até então. Eu só queria adivinhar a impressão que o extraordinário episódio suscitara neles, cerimoniosos orientais, segundo estereótipos aceites!..  

3 - Para o saber, não tive. afinal, de aguardar muito. À saída, esperava-nos um coletivo de jornalistas, uma multidão de microfones e câmaras de televisão para entrevistar o Chefe da Delegação chinesa. Ele, habitualmente calmo e pausado, fez uma intervenção viva e empolgante, para felicitar Portugal por ter um Presidente que era uma figura admirável, um grande humanista, etc etc. O  elogio  continuou por vários minutos! Por fim, um dos interlocutores lembrou que também fora recebido pelo Primeiro Ministro e perguntou-lhe como correra esse encontro. Ao que ele respondeu, em duas sonoras e breves palavras: "Correu bem".
 Fiquei elucidada...  Moral da história: qualquer que seja o público, a idade, a mentalidade, a etnia, o quadrante partidário ou quaisquer outras particularidades, o que é genuíno tem muita força, muito impacte. O Presidente  Marcelo é, como o Presidente Soares era, capaz de gerar uma grande proximidade  não só com o seu próprio povo, mas com todos os povos, em todos os pontos cardeais. Mário Soares  conseguia projetar Portugal com esse seu dom de simpatia e compreensão universais. Marcelo, ao que parece, também possui o dom! Ei-lo na China a somar sucessos.