domingo, 19 de junho de 2016

A SELEÇÃO SEM RONALDO...

1 - Talvez já no próximo mundial, e, certamente, no próximo europeu de futebol. Vai ser bem mais fácil ganhar!!! O dito "o melhor do mundo", excetuando praticamente naquele Portugal Suécia de antologia, só serve para atrapalhar. Ele falha os livres, os remates de baliza aberta. até consegue falhar "penalties" (o de ontem foi um de vários). Sim, a seleção jogou melhor com Quaresma e Nani, etc etc (se bem que no tão celebrado meio campo. agora que Moutinho está não está em boa forma, haja um défice de qualidade, mais no aspeto ofensivo do que defensivo - como trinco Danilo é ótimo...). Moutinho foi, "quand même" para a UEFA o "homem do jogo". Para mim foi Ricardo Carvalho. Genial!!! 2 - Por falar em génios; valeu a pena ver ontem a diferença que faz, na sua seleção, o outro "o melhor do mundo" (o que é o melhor do mundo mais vezes e, este ano, deve sê-lo de novo). Messi, é claro! Pegou na equipa, marcou dois golos com assinatura, fez duas assistências. Isto é, esteve não em todas as jogadas de golos perdidos "à Ronaldo", mas em todas as de golos feitos. Já imaginaram até onde iria um Portugal, com um "melhor do mundo" tipo Messi? Depois da depressão do nulo com a Austria, preparava-me pra me deitar cedo - não consegui, fiquei em frente do ecrã a ver o Argentina-Venezuela até ao minuto final. Valeu a pena! 3 - Numa entrevista referida por "A Bola" de hoje, Deco diz que Ronaldinho Gaúcho era melhor do que Messi e Rolando, que trabalharam duramente para chagarem ao topo. enquanto a Ronaldinho bastava jogar com o seu espantoso talento inato. Quando a equipa não resolvia um impasse, ele sozinho, surpreendendo sempre, resolvia... Faltou a Deco dizer que atrás de Ronaldinho estava ele próprio, e nunca vi um nº 10, mais influente na dinâmica de todas as suas sucessivas equipas do que o subtil maestro que era Deco. Que bem jogou Portugal com ele, como o Porto, o Barça, e até o Chelsea, na Europa e o Flu no Brasil... A seleção deve muito mais ao seu 20 DECO do que ao CR7... Nota final: interessante a opinião de Deco, sabendo nós quanto ele é também amigo de Messi. o menino prodígio que despertou no seu tempo de Barcelona, e que fez questão de participar na homenagem que lhe prestaram, no relvado do Dragão (e Ronaldinho, por acaso, falhou, perdendo o avião para o Porto . coisas de Ronaldinho, de quem eu também era uma devota!)

O MUNDO NUMA MALA - um pequeno testemunho

O Mundo numa mala, livro fascinante, em que a mala passa de mão em mão, de geração em geração, ao longo de meio século, pelo espaço que liga o oriente e o ocidente da Europa ao seu centro alemão ... Mala- simbolo que prefigura a partida. A mala metálica dos munumentos ao emigrante, a mala de cartão que ele transporta, a mala intangível do seu mundo de projetos, que vai enriquecer-se de vivências. Livro sobre o português Armando de Sá, o milionésimo Gastarbeiter recebido em festa na Alemanha de 1964. Um rosto para a história, simbolizando as infinitas histórias da emigração. Do homem símbolo partimos com as Autoras ao encontro do homem concreto e da sua mensagem intemporal: só a emigração pode fazer mais Europa e um mundo melhor. Maria Manuela Aguiar

sexta-feira, 17 de junho de 2016

CONVERSANDO COM OS PRESIDENTES

GENERAL RAMALHO EANES

 Em 1976, votei no candidato Ramalho Eanes. Não o conhecia pessoalmente, só como figura pública, um dos heróis da Revolução. Gostei da campanha, que, apenas dois anos depois do 25 de abril e um ano depois do 25 de novembro, exigiu a coragem física e política para fazer face a difíceis afrontamentos, de toda a ordem...
 Quem não se lembra, por exemplo, daquelas suas fotos, de pé, em cima de um carro, a desafiar potenciais agressores? Determinação e seriedade, as primeiras qualidades que associava à sua personalidade! Contudo, depois, foi-se acentuando o distanciamento político. Fiquei do lado dos fundadores dos partidos do chamado "bloco central " (Sá Carneiro, Soares) e do centro- direita (quando o CDS, com Freitas do Amaral e Amaro da Costa era um partido cristão - democrata, que se afirmava "rigorosamente ao centro"). Em 1980, o Presidente Eanes foi reeleito contra a vontade de todos estes líderes, vencendo nas urnas o General Soares Carneiro. O futuro do "Conselho da Revolução" era um pomo de discórdia, pouco importando que com o General Ramalho Eanes estivessem militares moderados, democratas insuspeitos, como Melo Antunes.
 O Governo Pintasilgo não havia pacificado a situação. Maria de Lurdes - com quem convivi desde os meus tempos de estudante de Coimbra, na frequência (esporádica) das iniciativas do "Graal", uma organização que ela dirigia juntamente com Teresa Santa Clara Gomes - era uma mulher extraordinária, mas o seu reino não era deste mundo. Mais facilmente ganharia o céu do que a terra! A sua demanda do Graal em São Bento foi uma espécie de corrida contra.relógio, que assustou imenso as hostes reformistas.
Hoje considero a sua escolha mais uma prova de coragem da parte do General. Quem mais teria a audácia politica de nomear uma mulher, militante da vanguarda católica e declaradamente feminista? Sobretudo aquela concreta pessoa, com a sua inesgotável energia, criatividade e crença na missão feminina de fazer criativamente a diferença na luta contra as injustiças e imperfeições das sociedades humanas?
 Num olhar retrospetivo, posso compreender e aplaudir, mas, na altura, não via as coisas assim, considerava demasiadamente arriscado fragilizar a construção da arquitetura democrática, que teria de assentar em partidos fortes ... Durante esses cinco vertiginosos meses da "experiência Pintasilgo" voltei ao meu trabalho como assessora do Provedor de Justiça, mas logo em Janeiro de 80, estava de regresso ao governo, a convite de Sá Carneiro - já não no Ministério do Trabalho, mas no MNE.
 Ora, um dos focos de maior dissensão entre PR e Primeiro-ministro incidia, exatamente, nas áreas das relações internacionais e das comunidades do estrangeiro. Os conselheiros presidenciais para cada uma delas eram Melo Antunes (diplomacia) e Victor Alves (emigração).. Nos meios da "Aliança Democrática, falava-se de "diplomacia paralela" - do primeiro como "o MNE do Senhor Presidente" e do segundo como "o Ministro da Emigração do Senhor Presidente".
O meu ADN nortenho, minhoto e duriense, torna-me um soldado sempre pronto para qualquer batalha e nesse espírito bélico vivi, feliz, o ano de 1980. Participei ativamente na campanha eleitoral de Soares Carneiro à presidência, com os ataques da praxe ao Conselho da Revolução. Depois da tragédia da morte de Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa, um novo governo da AD tomou posse, nos primeiros dias de Janeiro de 81. Suponho que no dia 3, pela tarde.
 De manhã, tinha na agenda a abertura do curso de defesa nacional, no Instituto de Defesa Nacional. O IDN era, então, dirigido pelo General Altino de Magalhães, que me tinha convidado a fazer uma das palestra do programa anual (sobre emigração, o que aconteceria, também, nos anos seguintes). Não podia faltar, em caso algum, mas o certo é que não sabia que a abertura era um ato tão solene, presidido pelo PR General Ramalho Eanes. Desse facto só tomei conhecimento no gabinete do Diretor, onde, ao lado das mais altas patentes das Forças Armadas, fiquei, por alguns minuto, à espera da sua chegadas..
E eis que surgiu o Presidente, atravessou a sala e foi diretamente falar comigo. Perante tão ilustre assistência, cumprimentou-me, disse que me ia oferecer um exemplar da Constituição e fez-me uma pergunta absolutamente inesperada, tão inesperada quanto a própria oferta: "Prefere com dedicatória ou sem dedicatória?" Respondi prontamente: " Muito obrigada, Senhor Presidente, prefiro com dedicatória. é claro".
Ao que o Presidente, com o mesmo semblante muito sério, acrescentou: "É que por umas declarações recentes que lhe ouvi, parece que a Senhora Doutora não leu muito bem a Constituição".
 Percebi, então, todo o alcance da pergunta, porque, de facto, eu tinha posto em causa, em entrevista de campanha eleitoral, o estatuto conferido pela Constituição ao Conselho da Revolução - sendo esse, aliás, o cerne da minha intervenção televisiva, como fora de escritos, encontros e comícios. Estava bem lembrada de tudo isso, e, pelo visto, o Senhor Presidente também. Abstraindo, contudo, do meu assertivo discurso de um passado muito recente, que não fora concretamente referido e eu também não referi, disse com precisão e inteira franqueza: "Tem toda a razão, Senhor Presidente, nunca li a Constituição nem tenciono lê-la - leio artigo a artigo, quando é preciso" .
Julgo que a resposta foi tão surpreendente para o Presidente, como a sua pergunta havia sido para mim. Talvez por isso, embora a sua postura se não tivesse alterado, notei um esboço quase impercetível de sorriso - o suficiente para eu levar a conversa, que fluía mais naturalmente, para a parte da Constituição que mais me agradava, para artigos que sabia de cor e pelos quais estava disposta a lutar a vida inteira, como o que consagra a igualdade entre todos os cidadãos (ou, em linguagem agora politicamente correta entre "as cidadãs e os cidadãos"). E como tinha, em data ainda muito recente, dado, no Serviço do Provedor de Justiça, um parecer, no sentido de as mulheres poderem fazer serviço militar obrigatório, (visto que o regime de voluntariado, em que já eram admitidas a prestar serviço, exigia capacidade mínima para o exercício de funções - e, se lhes era reconhecida essa capacidade, então, face à Constituição, não podiam ser discriminadas, nem negativa nem positivamente).
 O Presidente manifestou o seu pleno acordo. Eu acrescentei que esse novo passo para a igualdade de género já não seria para mim, ao que ele retorquiu, de imediato, que isso se resolvia, dando à lei eficácia retroativa. O animado diálogo a dois prometia continuar, mas, nessa altura, o General Altino de Magalhães atalhou para convidar o Presidente a encaminhar-se para o auditório do IDN, depois dos cumprimentos aos presentes.
Foram, apenas, uns minutos de diálogo, mas mudaram radicalmente a minha opinião sobre o Presidente Eanes e o meu relacionamento com ele, também. Nunca tal acontecera com ninguém, assim, tão de repente, nem voltou a acontecer...
Uma primeira conversa, uma primeira certeza, que veio a confirmar-se, ao longo dos anos, numa admiração crescente. Gosto da frontalidade, da inteligência viva e do acutilante sentido de humor do General Ramalho Eanes. Qualidades que jogam bem entre si - e com a sua postura invariavelmente distinta e sóbria, enquanto as palavras com que nos interpela vão sendo sempre imprevisíveis e estimulantes. É possível ser inteligente e e não ter graça nenhuma, mas acho que é absolutamente impossível ter sentido de humor sem ser realmente inteligente. O General está no círculo privilegiado dos que têm os dois atributos... Nessa tarde, como disse, tomei posse do cargo de Secretária de Estado da Emigração e das Comunidades Portuguesas do VII Governo Constitucional. O cumprimento do Presidente foi cordial e nunca mais deixou de ser.

 O DR. MÁRIO SOARES

 Conheci pessoalmente o Dr. Soares em fins de 1978, pouco depois de tomar posse no Governo de Mota Pinto, em receções e jantares de embaixadas, em que estava sempre acompanhado pela  Dr.ª Maria Barroso. Com ela, havia um perfeito entendimento. Com o Dr. Soares as coisas eram mais complexas. As discordâncias políticas não se atenuavam - eu pertencia a um governo de iniciativa presidencial, que ele combatia ativamente, como Sá Carneiro e todos os chefes partidários, evidentemente.
Sá Carneiro era o meu herói, desde antes do 25 de abril e Mário Soares não estava no mesmo pedestal. Sim, tinha feito quilómetros atrás dele, em longas marchas cívicas nos primeiros anos pós revolução, e reconhecia o seu papel... mas via-o como o grande opositor do "meu" partido. (não que fosse militante de ficha e cartão, apenas uma absoluta convicta, a rondar o fundamentalismo partidário, que havia de perder, com o correr dos tempo e a observação das pessoas e das coisas). Uma palavra sobre o Doutor Mota Pinto, que foi quem me colocou nestes cenários: entrava numa outra categoria, a dos meus queridos mestres e amigos de Coimbra, com os quais concordância ou discordância de ideias ou de estratégias, tal como com colegas, era absolutamente irrelevante. Imperava a amizade, e, no caso dele, também uma imensa admiração! E, por isso, estava no seu governo, e, por dever de ofício, naqueles encontros com gente famosa. A atração por uma personalidade como o Dr Soares, num mundo em que dava os primeiros passos, contribuiu certamente para o princípio do fim do meu faciosismo político, para uma separação das águas entre ideologias e afetos (facilitada pela matriz coimbrã de que falei, "en passant"), O diálogo direto pode de, facto, mudar para sempre, a opinião sobre celebridades, cuja imagem construímos a partir dos "media".. Comigo aconteceu vezes sem conta, para o melhor ou para o pior...Para o melhor, a começar com o Dr Soares, depois, em 1980, com o Doutor Freitas do Amaral e, logo em 1981, com o Presidente Ramalho Eanes. Casos de conversão, por um relacionamento próximo, que foi uma verdadeira ""estrada de Damasco.
 As memórias de episódios passados com Mário Soares são muitas e algumas muito divertidas. Viajar com ele, mesmo em longas viagens oficiais, era uma festa, desde o momento em que se entrava no avião. A conversa fluía, às vezes resvalava para uma vozearia excessiva, com o som de gargalhadas à mistura. Uma vez, até fui eu que mandei calar toda a gente, porque vi que, na primeira fila, o Presidente já a descansar, depois de ter dado uma volta completa à aeronave, cumprimentando a comitiva, sem esquecer ninguém. Calámo-nos, por precaução, porque ele, imune ao ruído, dormia tranquilamente em qualquer ambiente. Da visita à URSS vou contar só episódios que revelam o seu inato apreço pela instituição parlamentar, que não tinha, pela própria natureza do regime, paralelo no mundo soviético.
O périplo estendeu-se a três Repúblicas - Rússia, Arménia e Azerbeijão. Era Inverno rigoroso em Moscovo. Assisti a quedas aparatosas de dois membros da comitiva, mal tocaram o chão russo, mas a neve dava mais encanto ao Kremlin e à cidade. Gorbatchev e Raisa foram amáveis anfitriões, em salões faustosos, no Bolshoi…
 Problemas só protocolares e sem gravidade. O Dr. Soares insistia em sair do rígido roteiro programado e conseguiu-o algumas vezes, nem sempre. Na verdade, o mais recorrente dissenso protocolar era o que respeitava ao lugar atribuído aos deputados, sobretudo nos esquemas de transportes. Éramos um grupo numeroso, porque o PR queria mostrar, pedagogicamente, o pluralismo da nossa Assembleia e não houve partido, por pequeno que fosse, que não estivesse representado. Havia dois Vice-presidentes, líderes parlamentares, mulheres e homens de várias gerações, enfim, uma representatividade cuidada, a todos os títulos. Mas os soviéticos não eram muito sensíveis ao simbolismo democrático da Delegação. Olhavam-na apenas como um coletivo, que era preciso não separar. E, por isso, enquanto atribuíam vistosos carros pretos a toda a gente, teimavam em compactar os deputados numas carrinhas de aspeto duvidoso, de cores vistosas - coisa obviamente destinada a encerrar o cortejo de viaturas. Os meus colegas ficaram justamente indignados com tal tratamento e, sendo eu na altura, a 1ª Vice-presidente da AR, consideraram-me uma espécie de chefe da delegação e a porta-voz do protesto coletivo. Não foi missão fácil... A nossa diplomacia, ela própria instalada nas "limusinas", manteve uma atitude passiva, e eu vi-me sozinha a travar com os russos a batalha verbal. O único apoio veio, indiretamente, do Presidente. Longe de mim incomodá-lo com estas trivialidades, até porque sabia bem qual seria a reação. Na verdade, nenhum de nós lhe contou o que se passava, nem mesmo quando, nos cerimoniais de deposição de coroas de flores em monumentos, por falta da nossa presença, adiava o início, até que todos estivéssemos a seu lado. E nós, atrasados (inexplicavelmente atrasados, do seu ponto de vista), correndo enquanto não nos viam, por trás da fila de carros, e caminhando, em campo aberto, na sua direção, num mais dignificante passo de marcha. Geralmente, com o Dr. Soares a acenar-nos, impaciente... Esses incidentes constantes constituíram o melhor argumento nas negociações com os diplomatas soviéticos. Era necessário, obviamente, seguirmos em posição de acompanhar o Presidente! Por força dessa evidência, o imbróglio resolveu-se, sucessivamente, em cada uma das Repúblicas, onde tudo se repetiu, desde o transporte previsto naquela espécie de "carro-vassoura" até ao teor dos diálogos e à boa solução conseguida ao segundo dia.
O último episódio embaraçoso envolvendo os eleitos do povo, de todos o que teve mais visibilidade (porque ostensivo aos olhos do Presidente…), aconteceu, digamos, na 25ª hora. No voo de regresso, houve uma escala em Kiev, para um encontro do Presidente com as altas figuras da República da Ucrânia, pelo tempo de um jantar - um grande banquete no aeroporto. Com um "senão": a sala principal não comportava a comitiva inteira, pelo que alguns foram relegados para uma sala ao lado, entre eles dois deputados, que aceitaram, sem protesto, a exclusão. Todavia, sempre atento a tudo, Mário Soares notou a sua ausência e perguntou por eles. Quando lhe disseram que estavam relegados para a sala dos fundos, furioso, exigiu que os chamassem, de imediato, para a sua mesa. Seguiu-se uma verdadeira debandada de ilustres funcionários, voluntários prontos a corrigir a "gaffe",  Fora, voltaram, todos menos dois, para reocuparam lugares, com algumas trocas, para que os deputados tomassem assento na cadeira a que faziam jus. Inédito em banquetes solenes, suponho... E mais uma lição de democracia dada pelo nosso Presidente!
Porém, na verdade, a desconsideração da instituição parlamentar também existe em Portugal. Se existe!... Protocolarmente, é coisa usual colocar Funcionários Públicos nas mesas de honra e deixar Deputados da Nação na 2ª ou 3ª fila, ou não os mencionar numa longa lista de cumprimentos, no início ritual dos discursos... Sempre senti isso, como um resquício do velho regime, uma falta de ponderação democrática - não são as pessoas que ficam em causa, mas o que elas representam com a força do voto popular. De tão habituados à desvalorização do cargo estamos, que, por vezes, os próprios deputados se esquecem de defender o seu estatuto. O Dr. Soares é, dentro da classe política. a grande exceção... Uma cena, na essência, não muito diferente do delicioso episódio de Kiev (bem mais divertido, na realidade do que no meu relato) sucedeu no Palácio de Belém, durante uma audiência presidencial a uma Delegação da República Popular da China Era eu Vice-presidente da AR há poucas semanas e fui incumbida de os acompanhar, em toda a visita, em Lisboa e no Porto sentados, nem queria acreditar. Exigiu, de imediato, a sua presença e seguiu-se uma verdadeira debandada de ilustres funcionários, que voluntariamente, queriam ajudar a compôr a situação. Iam, voltávam, , rearranjavam os lugares, para que os deputados ocupassem a cadeira a que faziam jus. Inédito em banquetes solenes... E mais uma lição de democracia dada pelo nosso Presidente! Em boa verdade, a desconsideração da instituição parlamentar também existe em Portugal. Se existe!... Protocolarmente, é coisa usual colocar funcionários nas mesas de honra e deixar deputados da Nação na 2ª ou 3ª fila, ou não os mencionar numa longa lista de cumprimentos no início ritual dos discursos... Sempre senti isso, como.um resquício do velho regime, falta de maturidade democrática. Não são as pessoas que ficam em causa, mas o que elas representam com a força do voto popular. De tão habituados à desvalorização do cargo estamos, que, por vezes, os próprios deputados se esquecem do que são e representam. O Dr Soares é, dentro da classe política. a grande exceção. Uma cena, na essência, não muito diferente do delicioso episódio de Kiev (bem mais divertido, na realidade do que no meu relato) sucedeu no Palácio de Belém, durante uma audiência presidencial a uma Delegação da República Popular da China.  Era eu VP da AR há poucas semanas e fui incumbida de os acompanhar, em toda a visita, em Lisboa e no Porto.   Ao Norte poucos se deslocaram, mas em Lisboa éramos um grupo grande, com membros de todos os Grupos Parlamentares. Mais de uma quinzena, entre deputados chineses e portugueses, intérpretes e funcionários...Não é fácil acomodar toda uma comitiva dessa dimensão nos gabinetes de S Bento ou Belém. Decidimos, por isso, de comum acordo, que só eu estaria nessas duas audiências, com os seis ou sete visitantes, mais intérpretes e diplomatas, enquanto os demais aguardavam nas salas de espera.
 Em S Bento, com Cavaco Silva não houve reparos. Foi tudo muito formal. O Primeiro-ministro estivera há pouco tempo na China, falou polidamente das suas impressões da missão.E é tudo o que há para contar. Não assim em Belém. Ainda mal nos tínhamos sentado, quando o Dr Mário Soares me perguntou: “Está sozinha com esta Delegação? Porque é que não vieram mais deputados?" Ao que eu respondi que, pelo contrário o grupo português era enorme e não cabia naquelas salas com tão poucos assentos...O Dr. Soares ficou escandalizado: "Deputados lá fora? Nem pensar. Eu sou um parlamentarista! Quero-os todos aqui connosco”!" Correram a chamá-los, claro. Foi um reboliço maior do que o de Kiev... Funcionários trazendo cadeiras, o próprio Presidente ajudando, dando instruções, cumprimentando os deputados afavelmente, lamentando que tivessem sido deixados à margem, sentando-se, por fim, no meio da maior multidão que aquele espaço acolheu em audiência... E eu só pensava: Os nossos pares chineses nunca viram coisa igual. O que acharão eles de tudo isto?" Na sala cheia de cadeiras, de gente, de animação. a conversa decorreu com um certo ar de tertúlia, todos muito bem dispostos, muito faladores (os interpretes traduzindo). o Presidente interessado em pormenores sobre o trabalho de cada um, sobre as suas impressões do país, sobre o programa, dando sugestões e muitas informações sobre o Porto, para onde partíamos no dia seguinte.. Á saída do gabinete, esperava-nos uma conferência de jornalista, televisão, muitos microfones. E foi aí que obtive resposta para as minhas dúvidas sobre como os nossos hóspedes de honra avaliavam o "fait divers" da inesperada dança das cadeira a que tinham assistido. Eram todos velhos, de rosto sereno e impenetrável, que não augurava o melhor. Para surpresa minha, o "Speaker" fez o mais entusiasmado discurso que lhe ouvi no nosso solo. Verdadeiramente empolgado! Não poupou elogios ao nosso incomparável Dr. Soares. Começou por felicitar o povo português por ter como presidente uma tão extraordinária personalidade. Seguiu-se uma impressionante lista de elogios, encimada por "grande humanista"!
 Depois, os jornalistas quiseram saber como tinha decorrido o anterior encontro com o Primeiro-ministro (onde não houvera presença da imprensa). A resposta foi pronta e lacónica."Também correu bem".

 O DR. JORGE SAMPAIO

 O Dr Jorge Sampaio foi o último dos presidentes com os quais tive, institucionalmente, contacto como deputada - espaçado contacto, já sem a regularidade com que isso acontecia enquanto membro do governo (no 2º mandato do General Ramalho Eanes) ou enquanto Vice-presidente da AR (com o Dr Mário Soares como PR. no seu 1º mandato).
Foi precisamente dessa época da Vice-presidência da Assembleia, o convívio mais assíduo com o Dr Jorge Sampaio, então líder do GP do PS. São cargos que exigem trabalho visível no hemiciclo de S Bento (muito mais exigente o de líder parlamentar...), para além de uma intensa atividade de representação política, que inclui comemorações várias. receções diplomáticas, visitas de personalidades estrangeiras... Uma agenda cheia! Naturalmente coincidíamos na maioria desses eventos e, tudo somado, foram inúmeras as horas de conversa. Era, sem dúvida. um dos deputados com quem mais gostava de trocar impressões sobre as vicissitudes da vida nacional e internacional. E, devo acrescenta, que raras vezes me vi em discordância com ele. Na minha perspetiva, era um perfeito democrata, que valorizava (quase diria britanicamente) o parlamento. Era tudo o que veio a revelar na presidência: inteligente. culto. sensato e de uma grande distinção e simplicidade no trato. Tenho dificuldade em lhe encontrar defeitos... E há virtudes que me encantam, embora, claro. algumas não sejam essenciais para o desempenho de cargos políticos: o seu esplêndido inglês (jamais um PR falou melhor a língua de PG Wodehouse,  o meu autor favorito), o seu sentido de humor (também "very british"), a sua bem portuguesa capacidade de se emocionar e o seu amor pelos animais, nomeadamente por gatos. E foi - dado importante! - também o PR que mais sensibilidade mostrou face às injustiças e preconceitos que continuam a perseguir as mulheres em Portugal. Só ele fez do 8 de março um dia especial de reconhecimento ao trabalho cívico e profissional das portuguesas. Por isso, lembrarei dois pequenos episódios passados a 8 de março. O primeiro foi uma memorável cerimónia, em Braga, onde condecorou mulheres ativas em vários domínios, com critérios objetivos, que não passavam por motivações partidárias ou afetivas. Na política, a maioria era, por sinal, de quadrantes não socialistas, sobretudo membros de governos PSD (onde, diga-se, tinha sempre havido maior, ainda que insuficiente, equilíbrio de género): Manuela Ferreira Leite. Teresa Gouveia, Eduarda Azevedo. eu própria... Quando me colocava a faixa da Ordem do Infante D Henrique, disse-me, em tom discreto:" Como vê, esta condecoração tem as cores do FC Porto". Eu podia ter respondido qualquer coisa como: "Muito obrigada - duplo privilégio", ou "duplamente as minhas cores!", mas confesso que, em momento tão emocionante, não consegui encontrar palavras e limitei-me a um agradecimento e a um sorriso...
 No ano seguinte, a cerimónia de condecorações a 8 de março decorreu em Lisboa, nos salões do Palácio de Belém e foi seguida por uma debate transmitido em direto pela RTP, no cenário idílico dos jardins do palácio. O Presidente teve o cuidado de mandar prevenir todos os convidados de que, embora a previsão fosse de um belo dia de sol, o lugar era frio e ventoso... (fiquei com a impressão de que a ideia da escolha dos jardins não era dele, que foi não vencido. mas convencido, impondo condições...) Por qualquer razão. o Presidente e eu fomos os primeiros a chegar a mesa do debate e ficamos uns minutos a falar. "tête à tête". Eu tinha acabado de ouvir um comentário desagradável sobre gatos de rua, que vagueavam pelos jardins de Belém e, sem saber qual a posição do Presidente. comecei por dizer que esperava que ele não deixasse de os proteger... Descobri, então, que partilhávamos uma grande simpatia pelos felinos e o Dr Jorge Sampaio contou-me várias histórias sobre os seus próprios gatinhos. Fiquei ainda mais convertida ao Presidente - que vestia um sobretudo cinzento, enquanto eu me agasalhava com uma capa de lã vermelha.... Escusado será acrescentar que em boa hora ele se preocupou com a saúde dos participantes do debate. porque, sem a minha manta bem quente, teria arriscado uma grande constipação. Mas valeu a pena - era difícil encontrar recanto mais perfeito para ser filmado. E inspirador, também. Correu tudo na perfeição.

 O PROFESSOR CAVACO SILVA

 O meu relacionamento político e pessoal com o Prof Cavaco (ao contrário do que aconteceu com o General Ramalho Eanes e, de algum modo, com o Dr Mário Soares) foi de bem a mal e de mal a pior. Por fim, já não havia relacionamento. Durante os 10 longos anos de presidência, vi-o uma vez, em Espinho, numa visita que fez à CERCI e à Academia de Música. Era Vereadora da Cultura e estava na fila de cumprimentos. Cumprimentei.
 30 anos antes a saudação teria sido bem mais efusiva... Estava convictamente entre os que consideravam Cavaco Silva o melhor sucessor possível de Sá Carneiro, contra os que achavam que a questão não se punha nesses termos e preferiam Pinto Balsemão. Entre "Balsemistas" e "Cavaquistas" ( "críticos" ou "rurais do norte", por força de Eurico de Melo, o grande e sincero amigo de Sá Carneiro)) o PSD dividia-se a meio. E dividido ficou até ao célebre congresso da Figueira, com uma reconfiguração de polémicas e lealdades durante a presidência do Prof Mota Pinto, tendo por pomo da discórdia, a sua opção por um governo de "Bloco central" (que salvou o país da bancarrota!), mas a que se opunha uma aguerrida ala de jovens, auto-intitulada "nova esperança" (Santana, Durão Barroso, Marcelo e outras novas esperanças menores).
 Já sem Mota Pinto (infelizmente!), em 1985, o Prof Cavaco foi rodar o carro novo de Lisboa até à Figueira, onde decorria o Congresso do PSD e, chegado lá, num impulso, segundo reza a lenda, candidatou-se à presidência do partido e venceu, imparável e epicamente, o duelo com João Salgueiro, o nº 1 da ala "balsemista".
A sua liderança, na fase faustosa da adesão à CEE, não sofreu contestação - coisa praticamente inédita num partido tão turbulento, como fora o PPD. Se então, em 1980/81, soubesse o que sei hoje,  não me tinha envolvido tão entusiaticamente em querelas partidárias. O que sei hoje é que Sá Carneiro era insubstituível, tanto por Balsemão como por Cavaco, figuras que, ainda que, por razões diferentes, são o seu oposto. A um faltava rasgo, coragem, a outro "mundo", cultura, a ambos faltava a visão e a coerência de Sá Carneiro. Andei, pois, a lutar contra moinhos de vento, mas alegremente! Não no imediato, porque estava no Governo (Balsemão "herdara-me", contrariado, na Secretaria de Estado da Emigração, por insistência do Prof Freitas do Amaral) e eu considerava reprovável "conspirar" contra o Primeiro Ministro de um executivo a que pertencia. Mas, mal me vi na Assembleia, fui a correr procurar os chamados "Críticos" (ou "rurais do Norte"), para me alistar nas suas hostes. Era uma recém-chegada ao partido, não conhecia praticamente ninguém, nem Cavaco nem Eurico. Talvez os tivesse cumprimentado, dizendo "bom dia", nada mais...
 Os "crítico" passavam o tempo em esplêndidas reuniões de convívio, do Minho (de Eurico) ao Algarve (de Aníbal), em que se falava de política e de muitas outras coisas. Fizemos boas amizades, enquanto sofríamos inevitáveis derrotas nos conselhos nacionais e congressos do PSD. Cavaco Silva e Eurico de Melo apareciam muito pouco nesses convívios. Uma das exceções, em que contámos com a presença de ambos, foi um memorável almoço, na quinta nortenha do Dr Montalvão Machado. Como na minha passagem pela Secretaria de Estado tinha lançado a divulgação de jogos tradicionais na emigração, com o "jogo da malha" como "ex-libris", terei sido eu a sugerir a esse desporto naquela bela tarde de sol. E logo Cavaco e Eurico, Montalvão e muitos outros  mostraram a sua habilidade. Eu, como promotora, embora nunca até então, jogadora, da "malha", observava, aplaudia e fui experimentar - peguei no pequeno disco redondo e atirei-o, com toda a energia, para tão longe que nunca mais foi visto. Perdeu-se num pinhal, entre as gargalhadas gerais. Um desastre. Não voltei a tentar.
 Entretanto, fui descobrindo pequenas divergências ideológicas com o Professor, mas nada que alterasse a admiração posta na sua figura alta, magra, austera, esfíngica. Na Figueira, fui ainda, naturalmente, uma sua incondicional apoiante. Porém, no seu primeiro (que seria o meu último) governo, deu-se o início do fim de qualquer forma de cumplicidade. Muito por culpa do Ministro dos Negócios Estrangeiros Pires de Miranda (personagem inenarrável, um MNE que dizia "Rússia", em vez de "União Soviética" e lavrava longos "despachos" antipáticos a lápis, a que eu respondia com tiradas ainda mais longas, carregando no traço da esferográfica). E, como, para Cavaco Silva, os Secretários de Estado eram simples "adjuntos de ministro",  não contei nesses constantes diferendos, com a sua simpatia. Descobri que não tinha vocação para "adjunta" de nenhum MNE, muito menos daquele, e afastei-me, definitivamente da governação. Seguiram-se cerca de 20 anos no Parlamento e, apesar de por indicação de Cavaco Silva, ter sido a primeira mulher eleita Vice-Presidente da AR, tanto nos aspetos políticos como no pessoal, o afastamento era irreversível

. O PROFESSOR MARCELO

 De todos é aquele com quem menos convivi, antes e depois da investidura no cargo supremo
E, contudo, foi o único que escreveu sobre mim! Um editorial do "Expresso" de 30 de novembro de 1978, (Figura da semana), assinando com as iniciais MRS.
É um texto surpreendente, que revela uma faceta não suficientemente ressaltada do nosso novo Presidente: a sua compreensão e genuíno e(entre nós), pioneiro interesse pela igualdade de participação política de mulheres e homens.
A prova de que quando agora fala às cidadãs ou das cidadãs não se limita a usar palavras de mera conveniência, lugares comuns eleitoralistas, é esse editorial em que sublinha, com genuíno agrado e aplauso o surgimento de mais uma mulher na cena política. O artigo começa assim: "Num País onde a mulher está ainda muito longe de dispor de possibilidades de afirmação idênticas às do homem, a nomeação da primeira mulher para exercer o cargo de secretário de Estado do Trabalho merece especial referência" (grande verdade, mas ninguém mais, então, a afirmou tão claramente!). Depois de uma breve referência elogiosa ao curriculum académico e profissional dessa jovem desconhecida, recorda os nomes das raras mulheres que a haviam precedido nos governos da República (Teresa Lobo, antes da revolução de 74, Lurdes Pintasilgo, Manuela Morgado e Teresa Santa Clara Gomes...) e acrescenta: "Mas o que poucos arriscariam é que uma pasta tão melindrosa como o Trabalho incluísse uma mulher governante. Tratava-se de um pelouro considerado extremamente sensível nas suas repercussões políticas, a desaconselhar para muitos, a presença de uma mulher. É positivo que este sacrifício do "machismo" latente tenha sido vencido. É positivo que Mota Pinto tenha ousado dar o passo que deu".
 MRS salientava, já então, inteligentemente, o facto de ter sido não um governo socialista, mas um que, por sinal o não era, a dar esse passo. O futuro confirmaria a incapacidade do PS de "surpreender pela positiva" neste domínio (nem António Costa, o mais progressista de todos, conseguiu ainda o equilíbrio de género na sua equipa governamental).  Por isso, a crítica direta que, em 78, lhe dirige por não ousar romper com "tabús", herdados de uma "sociedade velha" (palavras suas), revelar-se-ia profética. Coerentemente, MRS viria a ser o único líder do PSD que "ousou" defender a introdução do sistema de quotas, para a paridade. Um Homem que coloca nas suas prioridades, desde sempre, a igualdade de género é ainda uma raridade na cena política portuguesa. Temos Presidente! Conversas não sei se teremos. Não creio que haja pretexto nem ocasião, agora que estou longe das lides políticas...

quarta-feira, 15 de junho de 2016

MEMÓRIAS DA AVENIDA

Em Espinho, o que chamávamos "a Avenida" era uma parte da Avenida 8, delimitada pelo casino. a norte, e pela Rua 23, a sul - um espaço mítico de convívio, estrategicamente situado entre a estação de caminho de ferro e o mar, os hotéis, os casinos, os "dancings", os cafés, as esplanadas... O largo retangular, convenientemente fechado ao trânsito, era percorrido por multidões coloridas, em movimento ordenado, em filas compactas, formadas por gente de todas as idades, como que em diálogo feito daqueles passos ritmados, para cá e para lá… Um desfile de vestidos e fatos bonitos, de cabelos bem penteados, de esmerada demanda de elegância e sofisticação. Uma forma de estar com os outros, na comunidade, na sociedade. Uma espécie de imensa "tertúlia andante", subdividida em pequenos grupos, conversando, tranquila, ao som da música, por entre as altas palmeiras, sob os olhares dos que descansavam sentados nas esplanadas Os comboios paravam, passavam, com ampla visão sobre tão exuberante espetáculo, e, por isso, os passageiros levavam consigo imagens que terão sido, ao longo de mais de um século, o melhor cartaz turístico de Espinho, do seu alegre viver... E muitos foram os que o caminho-de-ferro trouxe para cá, do interior do país e de Espanha, fazendo de um pequeno povoado de pescadores uma praia vanguardista e internacional, onde o génio dos homens soube criar uma admirável nova realidade, não só no seu desenvolvimento urbanístico, como na sua capacidade de relacionamento humano, de atracão, de abertura a uma pluralidade de círculos sociais e culturais, harmoniosamente coexistentes. Portugueses e estrangeiros, homens e mulheres, lado a lado, nas ruas e nos cafés, (que eram, à época, num país de tradição misógina, por todo o lado, coutada masculina). 2 - Sabemos "onde", mas não sabemos exatamente "quando" começou a fantástica "movida". É plausível a teoria da sua origem espanhola. Certo é que já em fins do século XIX, Ramalho Ortigão, um dos habituais membros das tertúlias do "celeste império", se lhe referia, jocosamente, (nas "Farpas"...): " [...] piscina consagrada dos magistrados, os quais, ao encontrarem-se uns com os outros - grupo que vai, grupo que vem - se saúdam reciprocamente, de parte a parte, em variadas vozes e em diversos tons de afabilidade: colega! colega! colega! colega! " Mais tarde, em 1930, Guedes de Amorim na "Ilustração", denomina Espinho "a praia ibérica", traçando um quadro deliciosamente sugestivo não só do ambiente geral, mas também, em especial, do que designa por "a grande avenida": “Os dias decorrem em Espinho como domingos, como dias de festa. O verão é o grande domingo do calendário. E Espinho, romaria à beira-mar, tem seduções para todas as horas, para todos os paladares, [...] só se ouvem frases na linguagem de Cervantes, só se ouvem gargalhadas espanholas [...] ao fim da tarde, na grande avenida ressuscita a vida, a folia, o sem número de diversões, onde Espinho vai passar a noite [...] retalhada a tangos, a golpes estridentes de jazz band, a noite de Espinho termina. Amanhã começa novo dia. Espinho acaba sempre a sua alegria na noite. O verão, porém, é extenso, o sol é quasi eterno, só desfalece no outono". Duas ou três décadas depois, a "Avenida" da minha infância e juventude mantinha, intacta, a sua excelência. Talvez já com menos magistrados, menos políticos e escritores famosos e até menos espanhóis, mas ainda uma festa que durava o verão inteiro, "com sedução”para todas as horas e todas as idades. De manhã, na volta do mar ou da piscina, podíamos aí deambular em traje desportivo, à tarde um fato ou airoso vestido já era de bom-tom, e à noite, para ir ao cinema (com uma vasta oferta de 60 filmes por mês), ao casino, aos bailes, aos cafés, ou para o simples calcorrear da "Avenida", o "dress code" era ainda mais exigente... A "movida" continuava em pleno - e nenhuma foto a captou tão bem como um trecho do precioso documentário "A praia da saudade", dos anos 50. É exatamente assim que recordo o meu peregrinar pelo seu chão mágico, no meio de uma imensa e animada mole humana. Fenómeno sociológico digno de estudo, um retrato de época! O mesmo se diga do ambiente dos cafés que bordejavam a Avenida...Todos diferentes, com o seu núcleo duro de frequentadores. O meu era o Palácio, o antigo Palácio, na esquina do hotel, com esse nome - de tarde, domínio das tertúlias femininas, grupos de amigas que ocupavam, invariavelmente, os assentos junto às janelas. Raridade, não é demais repeti-lo, esta presença descontraída e natural de senhoras no “café – clube”! Ali encontrava sempre as sobrinhas de Amadeo, Isabel Souza Cardoso e a filha, Maria da Graça, ambas muito simpáticas e ótimas conversadoras. Os homens ficavam-se mais pelo interior da sala, ou no sofá junto ao balcão. À noite, mais caminhadas na "Avenida", uma ida ao cinema, de longe a longe, uns passos de dança no salão do casino. Nos anos 50 e 60 e ainda por alguns anos, tal como em 1930 ou em fins de novecentos, não havia tempos mortos em Espinho. 3 - Depois de enterrada a linha-férrea, esperamos, impacientemente, há muito, que as obras de superfície nos restituam, não já a "grande avenida" das palmeiras. mas o seu equivalente, como "ex-libris" de Espinho no século XXI. Acredito que o renascimento de uma cidade originalmente convivial pode acontecer naquele lugar telúrico, com o mesmo espírito, em configurações muito diversas – um encontro com o futuro a construir no rasto saudoso das memórias. in "A DEFESA DE ESPINHO"

REINVENTAR A DEMOCRACIA in "A DEFESA DE ESPINHO"

"EM TRÊS PALAVRAS" in "A DEFESA DE ESPINHO" 12 de novembro de 2015 REINVENTAR A DEMOCRACIA~ 1 - A democracia foi considerada um sistema perfeito, quando excluía a metade feminina da humanidade, e não só na antiga Atenas, mas, universalmente, até às primeiras décadas. do século passado. A luta pelo sufrágio foi longa e em alguns países heróica (a propósito, vale a pena ver, como documentário de época, o filme " As sufragistas"). Uma vez alcançado o voto das mulheres, os progressos foram acontecendo, gradualmente, com ritmos diversos, na caminhada para a meta da igualdade de participação política, facilitada pela (recente) imposição de quotas. A meu ver, as chamadas leis da paridade só se justificam para eliminar os muros que protegem" cidadelas" de poder masculino. A quota é a fenda na muralha... A estas medidas subjaz, sempre, a ideia de uma igual capacidade dos dois sexos, amplamente demonstrada nas sociedades contemporâneas. São, pois, uma via de procura de um novo equilíbrio de género, potencialmente portador de mais qualidade e competência nas listas compostas pelos partidos, à porta fechada e não um meio de promoção imerecida – que, a existir, deriva de má aplicação de uma boa lei.. 2 - O governo paritário de Justin Trudeau - 15 mulheres e 15 homens - acaba de tomar posse no Canadá Após uma década de domínio conservador, marcado pelas políticas de austeridade e pela obsessão securitária de Stephen Harper, o partido liberal, de esquerda moderada, chegou ao poder, com maioria absoluta, e fez a diferença logo no primeiro dia.. Os imigrantes portugueses do Canadá são maioritariamente liberais - muitos deles não por perfilharem ideologias de esquerda, mas porque sabem, por experiência vivida, que este partido é o grande defensor dos seus direitos, como trabalhadores, como estrangeiros, como cidadãos. .Justin usa um apelido célebre. É filho de Pierre Trudeau, homem público de primeiro plano no século XX. Fascinante, é o adjetivo com que o definiria, numa só palavra. Bastará acrescentar que no seu funeral, em 1984, estiveram milhões de admiradores anónimos, e, entre os Chefes de Estado, Jimmy Carter e Fidel de Castro. Justin começou "à Trudeau", levando o mundo a olhar o futuro da própria ideia de democracia, e não, nostalgicamente, o passado do seu nome. Quando lhe perguntaram o porquê de um governo paritário respondeu, simplesmente: "Porque estamos em 2015". Veio, assim, dizer ao mundo que o equilíbrio de uma representação multifacetada é da essência da democracia. A igualdade de género é, aliás, um de múltiplos equilíbrios conseguidos no seu governo que reflete, como afirmou, orgulhosamente, "a "imagem do Canadá": dois inuites (uma mulher, Jody Wilson-Raybould na pasta da Justiça e Hunter Tootoo nas Pescas ), dois sikhs, uma refugiada muçulmana, um astronauta, um milionário de Toronto (nas Finanças), um antigo atleta em cadeira de rodas, vários ministros de cabelos brancos ao lado de rostos jovens… A cerimónia de posse foi simbolicamente informal, portas abertas ao povo, e ao som de música aborígene. O "jamais vu". 3 - Em Portugal, teremos, neste ano, previsivelmente, uma sucessão de três governos, dois de Passos, um de Costa. Este último, se vier a existir, consubstancia uma viragem à esquerda, tal como no Canadá. Mas trará também consigo a mais valia democrática de novos equilíbrios, entre eles, o de geração e o de género,"porque estamos em 2015"? 3 de dezembro de 2015 ENSINO - UMA SOLUÇÃO SUECA 1 - A minha primeira visita à Suécia aconteceu há mais de 40 anos. Ia frequentar um curso de verão, não sobre a língua, que é difícil e não se aprende em duas semanas, mas sobre a realidade do país. Destinava-se a um público francófono, com um título bem adequado ao que todos procurávamos e recebemos em abundância: Connaissance de Suède. Foi organizado pela Universidade de Upsala e pelo Instituto de Informação (não de propaganda, mas de informação mesmo). E abrangeu os aspetos mais diversos, desde a história à economia, à religião, à vida política e sindical, à emigração, ao planeamento urbano, à fiscalidade, ao cinema e televisão, ao sistema de ensino… Quando parti já era social-democrata "à sueca", e, só por isso não posso dizer que fiz nessa agradável quinzena de um verão ameno, ali e então, politica e culturalmente falando, a minha “estrada de Damasco…Mas voltei à pátria, (ainda imersa em cinzenta ditadura), com mais certezas e sonhos de futuro, porque o paradigma de cidadania e justiça social funcionava em pleno, tornando aquela sociedade e aquele país próspero, ordeiro e praticante dos seus bons princípios, a vanguarda da Europa e do mundo… 2 – Um das grandes surpresas foi, depois de visitas a um estúdio de televisão, a uma paróquia (encabeçada por uma pastora luterana), a um sindicato, e muitas mais, a ida a uma escola: ambiente colorido, alegre, meninas e meninos tranquilos e uma professora que dialogou connosco, enquanto tivemos perguntas para lhe fazer - muitas! Começou por nos declarar que o sistema estava em constante avaliação, por pedagogos, psicólogos, pais, ministério, sempre com a finalidade de melhorar a qualidade do ensino e a adesão dos alunos - particularmente no caso de crianças imigrantes ou refugiadas. Ali, ninguém “chumbava! Repetir o ano não era um castigo, mas um verdadeiro privilégio. Foi preciso ela explicar melhor tão inovador conceito, porque naquele grupo, todo ele, como disse, francófono, mas de múltiplas nacionalidades, da Roménia a Portugal, passando pela Bélgica e Alemanha, reinava a dúvida ou o ceticismo… A argumentação foi sueca, simples, racional, e, para mim, decididamente convincente; se a professora é idónea e se os alunos têm normais capacidades de compreensão e expressão, o natural é aprenderem o que se lhes transmite. Se isso não acontece, há que averiguar o porquê – ambiente em casa, ou na escola, ou doença ou anomalia de outra ordem. Reúnem-se especialistas, procuram-se as causas, dá-se a máxima atenção ao aluno E, se for necessário, a título de exceção, pode repetir o ano… 3 – Em Portugal, tudo o que parece preocupar os que se intitulam os grande paladinos da “qualidade” são os exames! Visto o problema na perpetiva em que, já em meados do século passado, a Suécia o equacionava, eu direi que o exame pode constatar um défice de qualidade, mas não o resolve. Não acrescenta nada que a avaliação contínua não resolva melhor. Só pode pensar o contrário, quem desconfie, em primeira linha, não dos alunos, mas dos professores, da escola enquanto comunidade. Falo não como especialista destas matérias - que não sou, muito menos a nível do ensino das primeiras letras, dos primeiros anos, pois me limitei, há muito tempo, à atividade docente em duas universidades públicas e numa privada - mas como cidadã, uma antiga aluna feliz e realizada, tanto num colégio privado, como, depois, num liceu público. Gostava genuinamente de estudar e abominava exames., que via como uma espécie de jogos de sorte e azar (onde, por sinal tive esplêndidos resultados!) Fui uma boa aluna, e tive muito bons professores Razões de sobra para confiar na solução sueca… 22 DE JANEIRO DE 2016 2015, O ANO DA MORTE DE MARIA BARROSO 1 - Num tempo propício a festas de família, balanços e prognósticos políticos, estava eu posta perante a dificuldade da escolha de tema para esta coluna, enquanto ouvia, na Antena 1, um programa sobre os factos marcantes de 2015. Primeiro pronunciaram-se comentadores e celebridades, depois a voz do povo, glosando motes: a aliança de esquerda pós eleitoral, o Banif e outros buracos negros, o desaparecimento de três vultos da vida portuguesa, dois cineastas e um poeta… Reagi, de imediato ao esquecimento em que via deixada uma grande personalidade que, em julho, partira do nosso convívio, a Dr.ª Maria Barroso. Tinha de escrever sobre ela… 2 - Maria Barroso foi um símbolo de excelência em tudo quanto fez durante uma vida longa, em tantas e diversas vestes – jovem e talentosa atriz do Teatro Nacional D Maria II, pedagoga e diretora de um colégio que colocou no topo dos “rankings”, militante da causa da liberdade, que usou o palco do teatro, a expressão artística, a força da poesia na sua voz, como instrumento de luta, mulher que ousou subir ao mundo masculino dos comícios políticos e falar sem medo. Esteve no centro da sua própria família como esteve no centro da vida pública nacional, com a mesma dedicação e competência. Foi o rosto da cultura, da inteligência e da elegância das mulheres do seu país, na Europa e no mundo. A conversão, sincera e emotiva ao catolicismo, aprofundou o seu sentido de missão, a vontade de viver para os outros, num mundo melhor, que foi o fio condutor do seu percurso, nas Artes, na Política (com letra grande), no Voluntariado. O trabalho que, nas últimas décadas levou a cabo, no campo dos direitos humanos, na Fundação Por Dignitate, foi notabilíssimo, ultrapassou fronteiras, em especial no espaço da Diáspora e da lusofonia (no processo de paz de Moçambique, em Angola, na Guiné), no combate ao tráfico de armas, à intolerância e à violência nos “media” (e sobre todas as formas!), no apelo à participação das mulheres nas suas comunidades - como eu pude testemunhar, durante os chamados “Encontros para a Cidadania”, nos quatro cantos do mundo, admirando, de perto, a sua energia contagiante, uma enorme proximidade das pessoas, feita de compreensão dos problemas e de simpatia, uma rara capacidade de mobilização, pelo discurso e pelo exemplo - ia já nos 80, quase nos 90 anos. Uma caminhada intensamente vivida em todas as idades, com a sabedoria dos que não envelhecem intelectualmente, com uma espantosa modernidade de pensamento e vontade de ação – até ao seu último dia entre nós! Maria Barroso foi a maior figura feminina do século XX português, um incomparável exemplo de cidadania, que seu (e nosso) tempo lega ao futuro, um legado verdadeiramente intemporal, como o cinema de Oliveira ou os versos de Helberto Hélder. 3 – Há alguns anos, numa brilhante intervenção na cidade de Joanesburgo, a Dr.ª Maria Barroso lembrava que “apesar da História ter sido tecida por Mulheres e Homens, só a estes é dada relevância”. Não deixemos que isso aconteça no seu caso! 21 de janeiro de 2016 LOPETEGUI, UM CASO DE ESTUDO 1 - Os erros, que fazem de Lopetegui um "caso de estudo" não cabem num texto curto. Em síntese, apenas uma referência a dois que lhe foram fatais. Primeiro erro: a forma como viveu o seu estatuto de emigrante. A cabeça e o coração ficaram no país basco, ou em Madrid, ou noutra terra longe de nós. É comum esta espécie de inadaptação, que os portugueses, em regra, superam melhor do que quaisquer outros, simplesmente porque, onde quer sejam bem recebidos (como Lopetegui foi), retribuem, gostando do novo país, fazendo-o seu. E, por isso combinam formas próprias de estar no trabalho e na sociedade, com as dos outros, intuitivamente. A partir de certa altura, já pertencem lá, sem deixarem de pertencer aqui. Há para isto uma palavra: integração.. .Lopetegui nunca se integrou: o Porto era "Oporto", esperança era "ilusión". Mais do que mera questão linguística, dificuldade de aprendizagem desculpável, era a ponta de um "iceberg"... Ficamos com a impressão de que se sentiu sempre, subjetivamente, um Gulliver em Lilliput, não viu que todos os homólogos que encontrava nos estádios de Portugal eram da sua dimensão, exceto os que lhe eram superiores... Não percebeu que estava num país de treinadores de excelência, muitos dos quais vão pelo mundo fora, como triunfadores: Mourinho, Villas- Boas, Manuel José, Marco Silva, Fernando Santos, Jardim, Jesualdo, Victor Pereira, etc, etc. Pior ainda: não soube avaliar a grandeza do FCP, não conhecia bem o seu passado, não interiorizou a sua "mística". 2 - Segundo erro e o maior de todos: o excesso de vedetas que exigiu para a equipa com que queria fazer história no futebol português - hispanizando-a, naturalmente. Olhávamos com espanto a revoada de espanhóis, que se instalava no Porto, ao lado de alguns sul-americanos, africanos, e até um português, o Rúben, vindo da "cantera" do clube - única decisão altamente meritória a que deixa o seu nome ligado. Foi o oposto de Mourinho, que chegou ao FCP e prometeu ganhar o campeonato apenas com dois ou três reforços, recrutados em modestos clubes portugueses (Derlei, Nuno Valente...). E assim construiu um conjunto fantástico e cumpriu a promessa. Depois, para vencer a "champions", pediu um nome sonante só um! Benny McCarthy, que já conhecia o clube. As infindáveis contratações de luxo deste "anti- Mourinho" eram de mau augúrio. Estavam reunidas as condições para a "grande nau" sofrer a "grande tormenta"... Não tardaram as tormentas. A primeira atingiu Quaresma, o génio do futebol, o herói portista! Como era possível prescindir de Quaresma? Resposta fácil: tinha bons jogadores a mais! 3 - Nova época, mais exigências milionárias. Nunca o FCP condescendera tanto com um técnico, ainda por cima perdedor em toda a linha. Mas nem por isso ele se mostrava reconhecido. Queixava-se da falta dos jogadores que partiram - alguns, Quaresma, Quintero, em boa verdade, por sua vontade, outros, Óliver, Casemiro, em função de contratos precários que promovera. E, pelo visto, subestimava as numerosas aquisições de 2015, como Maxi Pereira, André André, Layún, Danilo (um Danilo português), Corona, para além de Casillas, Imbula (por 20 milhões), sem falar de Cissoko, Bueno, Varela. Osvaldo, Sérgio Oliveira... . Ora lidar com o excesso num plantel, não parecendo, é mais difícil do que o seu contrário. Foi a super abundância de estrelas que levou um inexperiente Lopetegui à perdição. Não havia um onze base, não havia lugar certo para ninguém (salvo, evidentemente, para o guarda-redes) e era enorme a probabilidade de qualquer um se tornar redundante, caíndo em desgraça. Em suma: muitos jogadores e pouca equipa. Com a qual perdeu tudo qunto havia para ganhar... Partiu, assim, em boa hora, este imigrante do futebol, sem levar saudades e sem deixar saudade. E chega um emigrante português, José Peseiro, homem sensato e telentoso, que nos dá a garantia pôr o FCP a jogar bem (e, sobretudo, para frente! )... e talvez de ganhar tudo o que há ainda para ganhar 18 de fevereiro de 2016 POR UMA SELEÇÃO DOS MELHORES 1 - Fernando Santos é, desde há muitos, muitos anos, o primeiro selecionador nacional que se preocupa em escolher os melhores para a equipa que representa o país, sem olhar a regiões de origem, clubes, nomes, idades, isto é, sem qualquer preconceito. Estranho é que tenhamos de considerar excecional o que deveria ser, imperativamente, a regra. A história anterior é uma história triste, que foi de mal a pior, com cada mudança de titular. Refiro-me a Scolari, Queiroz e Bento. Os três fizeram da seleção o seu clube privado, onde os favoritos tinham lugar cativo. Alguns deles até eram indiscutíveis, o problema é que faltavam outros… Scolari era um homem da Lisboa imperial, que, desde a primeira hora, tratou o Porto como uma pequena colónia, situada nos confins do planeta, Quem não se lembra de ele declarar que não podia vir ao Norte, fazer observação direta, porque era muito longe? A perceção da distância é coisa relativa, admitamos, e 300 km pode ser longe para um monegasco, ou um luxemburguês, mas para um brasileiro não é, de certeza. Tratava-se de uma desculpa estúpida. Mas estúpido o homem não era, e acabou por vir ao FCP buscar meia equipa pronta e feita por José Mourinho. Contudo, "esqueceu " Vitor Baía e isso custou-lhe o título europeu - título que Baía garantiu ao seu clube, precisamente nesse ano, recebendo o galardão de melhor guarda redes europeu. O plano inclinado acentuou-se com Carlos Queiroz, a sua arrogância e incompreensíveis opções, expressivamente criticadas no momento da derrota final, por gestos e palavras do intocável Ronaldo. E veio a bater no fundo com o mais limitado e prepotente destes fracos "reis" do futebol, que "fizeram fraca a forte gente" nos tórridos campos de combate do mundial do Brasil. Na verdade, levou em excursão os mais fracos, mais cansados, quando não lesionados com gravidade - houve até os que, mal deram uma corrida no relvado, saíram de maca... .. 2 - O Eng.º Fernando Santos fez "obra de engenharia", de prospeção, de entrosamento, com seriedade, sem dar seguimento às querelas que lhe deixaram por herança, recuperando do ostracismo a que estavam condenados jogadores de classe universal como Ricardo Carvalho, Tiago ou Ricardo Quaresma. Preferência à qualidade, pura e simples, às mais valias do presente! Em jogos decisivos, lugar à experiência (assim fizera já na ´Grécia, recorrendo a Katsouranis e Karagounis e outros da mesma idade"), em partidas amigáveis, oportunidade às jovens promessas, que têm o tempo futuro para se revelarem plenamente. .Transformou, num ápice, um "onze" desclassificado, desmoralizado e perdedor num coletivo eficaz, que ganha, pragmaticamente, mesmo quando não deslumbra, com nota artística. Como nortenha, direi que é uma lição que o Porto precisa de aprender depressa - e o Engenheiro até já abriu caminho, testando, com sucesso, num "particular" um excelente trio de meio campo - Rúben, Danilo e André André - que, por insondáveis razões, o FCP raramente põe em campo. 3 - É, pois, tão necessário, ir detetando talentos, « quanto é incongruente prescindir dos mais velhos, ainda no seu apogeu, em favor de quem só beneficia em esperar, para aprender com a maturidade dos outros, em vez de aprender à custa dos seus próprios erros. A idade é coisa relativa, como se vê pelos exemplos de Ricardo Carvalho ou de um Helton renascido, depois de lesão que parecia fatal - um Helton muito mais ágil e seguro, agora, aos 37, do que há dez anos, quando, prematuramente, substituiu na baliza o grande Vitor Baía. Há que aceitar a força das evidências. O rejuvenescimento “à outrance” é coisa tão má como o respeito reverencial por mitos em decadência ou má forma conjuntural - o caso de Ronaldo na humilhante campanha do Brasil. . No futebol, como globalmente na vida do país, o essencial é aproveitar recursos humanos disponíveis em cada momento, num sábio cruzamento de gerações, pelo que Fernando Santos, com visão e coragem, criou, para além de uma equipa verdadeiramente nacional, um paradigma válido em todos os domínios da sociedade e da "res publica" portuguesa. 25 de fevereiro de 2016 ROTAS E DERROTAS DA TAP 1 - A TAP nasceu no tempo do império e nunca perdeu a marca originária, que, através do um percurso já longo, a levou a sucumbir, quase sempre, à tentação de identificar os interesses de serviço do país inteiro com os da sua capital. No que tem estado, aliás, em consonância com o paradigma de desenvolvimento que, antes e depois de 1974, alimenta a macrocefalia de uma região, em prejuízo do todo nacional... A privatização podia, pois, neste contexto, vir melhorar um estado de coisas, interagindo com o setor privado que, fora de Lisboa, faz os possíveis para corrigir assimetrias, dando-nos uma transportadora mais "amiga" do progresso global do país, do norte e do sul, das ilhas e das comunidades da emigração, aproveitando inteligentemente as suas virtualidades. Todavia, a privatização, engendrada pelo governo anterior e, neste aspeto, intocada pelo atual, vai precisamente em sentido contrário, que é aquele que convém aos seus concretos compradores. Com eles, está visto, a TAP promete ser cada vez mais centralista. O encerramento de voos para destinos europeus a partir do Porto (a que se seguirão, se não me engano, os intercontinentais que ainda restam) prejudicará não só a cidade, mas toda a metade norte do país, o seu turismo, as suas exportações e até a sua emigração, de que tanto se fala, como se ela fosse de Lisboa, quando não é - é maioritariamente do norte e do centro, litoral ou interior, e, quando vem a Portugal, é para aí que quer ir. Aliás, não menos chocante é o que se passa com o Algarve, de onde a companhia nacional se limita a disponibilizar voos para Lisboa…E na emigração são muitas as grandes comunidades cortadas do seu mapa - por exemplo, as do Canadá. 2 - Esta é, não o esqueçamos, a segunda tentativa governamental de se desfazer da TAP e deixa-nos uma sensação de "dejà vu"... A primeira (estava o PS no poder) traduziu-se na sua entrega às mãos da Swissair. Um negócio inenarrável, uma falsa parceria, que deu a essa empresa, em vésperas de falir, a possibilidade de manipular as reservas da outra, esvaziando os seus voos diretos para várias cidades da Europa - e não só - desviando os passageiros para os seus próprios aviões, para um "hub" helvético, e, daí, para o destino final. Péssimo serviço para nós, acordo leonino para os suiços, que nem assim evitaram a bancarrota. Esta última negociação da TAP, com assinatura de um governo PSD, será assim tão diferente da primeira? Uma das interessantes denúncias de Rui Moreira - pouco glosada, por sinal - é a de que o novo dono da TAP, e também da "Azul" tem uns aviões parados, a que precisa de dar ocupação rentável na ponte aérea entre Lisboa e Porto. Esta "ponte" tem, assim, por finalidade não a ligação das duas cidades, favorecendo-as por igual, mas o desvio do trânsito internacional de uma para a outra... A "ponte aérea" a partir de Vigo completará a manobra, com que visa esvaziar o aeroporto Sá Carneiro (um magnífico aeroporto, subaproveitado, muito mais funcional e confortável do que o da Portela...). 3 – Contudo, o abandono do aeroporto Sá Carneiro pela companhia de transportes dita “portuguesa” não é o único problema que deve fazer-nos pensar... O Porto há-de saber reagir, boicotando a ponte aerea e privilegiando os voos diretos de outras companhias, que ocuparão o vazio da TAP - até porque fazer escala, mudar de avião, por muito frequentes que sejam as ligações oferecidas, é sempre um grande incómodo e perda de tempo, sobretudo em aeroportos com vários terminais. Isso seria o fatal para o turismo nortenho.. Mas, para além disso, esperemos que esta privatização (que avança com o atual governo num estranho e opaco modelo de "hibridismo" e, segundo os "media", já a evidenciar a necessidade de uma injeção de capital chinês ) não venha a revelar-se fatal para a própria empresa. A TAP foi sempre, para nós, no domínio crucial da segurança, uma das melhores companhias do mundo – aquela em mais confiança depositávamos. Um símbolo nacional de excelência, como José Mourinho! Os seus pilotos eram os melhores, os seus serviços de manutenção também (ainda que não fosse do mesmo nível a sua gestão, pois Fernando Pinto está bem mais mais próximo da classe de um Scolari do que de um Mourinho). Eram razões de sobra para termos um imenso orgulho na nossa companhia de bandeira. Perder, eventualmente, estes padrões de qualidade é perder a TAP, mesmo que mantenha o nome e o "hub" em Lisboa. 17 de março de 2016 OS PRESIDENTES da REPÚBLICA E A " QUESTÃO DE GÉNERO" 1 – A questão de género, entre nós, nunca está na ordem do dia. Por isso, sobre o Presidente Marcelo e sobre os seus antecessores muito pouco se disse e escreveu, nesta matéria. A presidência da República tem sido sempre e vai, por certo, continuar a ser, durante muitos anos, reserva masculina (a última Chefe de Estado em Portugal foi a Rainha Dona Maria II…), embora simbolicamente se represente a República na estatuária de pedra ou de bronze, com uma bela imagem de mulher… Esta é a situação de "disparidade" em que vivemos, mas podemos, pelo menos, esperar que o Presidente faça sua a causa da paridade... 2 – Vou aventurar-me, como o Professor Marcelo costumava fazer nos seus memoráveis programas da TSF, a dar notas aos Presidentes eleitos depois do 25 de Abril, com enfoque neste domínio. Todos me merecem, felizmente, classificação positiva: 18 valores para o General Ramalho Eanes, pela coragem de ter nomeado, num governo de iniciativa presidencial, uma mulher Primeira ministra, Maria de Lourdes Pintasilgo (audácia admirável numa altura em que, na Europa, só Thatcher chegara, e apenas algumas semanas antes, a esse lugar cimeiro); 14 valores para o Dr Mário Soares (a quem, nos demais capítulos, daria nota 20!), pela atividade normativa dos seus governos, expressa em leis igualitárias, saídas de pena ágil do Dr. Almeida Santos. 19 valores para o Dr Jorge Sampaio, coerente mensageiro da igualdade (na expressão de Ana de Castro Osório um “feminista prático”, que é aquele que se afirma pela ação concreta). Foi o primeiro Presidente a criar um gabinete e uma assessoria para o cônjuge, o primeiro a comemorar o Dia da Mulher, com um forte apelo à participação cívica e à valorização do seu papel na sociedade e na política - o único que não esquecia as mulheres na lista de condecorações, tão disputadas no mundo dos homens… e até o único que escolheu um génio feminino, Paula Rego, para pintar o seu retrato destinado à galeria do Palácio de Belém; 12 valores para Cavaco Silva, apesar de ter sido, enquanto PR, um implacável adversário da lei da paridade (vetando uma versão inicial, que tornava a paridade vinculativa, forçando a sua substituição por uma modalidade "soft", em que a infração ao normativo legal dá apenas origem a uma multa…). Contudo, enquanto governante e líder partidário, teve a preocupação de promover mulheres. A ele se devem as nomeações das primeiras governadoras civis, as eleições das primeiras Vice-presidentes da Assembleia da República (segundas na linha de sucessão do Presidente…), a indicação das primeiras juízas do Tribunal Constitucional, o maior número, até então, de mulheres num governo da República (algumas com grande influência e poder, como Leonor Beleza e Manuela Ferreira Leite). 3 – É muito cedo ainda para classificar o atual PR, mas não para ter fundadas esperanças na sua atuação futura. É um defensor declarado do sistema de quotas, contra as elites e as bases do seu partido (neste aspeto, terá sido o dirigente do PSD mais próximo do pensamento da social democracia nórdica). E tem um longo passado de luta contra os preconceitos de género, pelo menos desde os míticos anos 70 do século XX. Posso exemplificar com breves citações do seu editorial do Expresso de 30 de Novembro de 1978, que conservo numa seletiva pasta de recortes de imprensa: "Num País onde a mulher está ainda muito longe de dispor de possibilidades de afirmação idênticas às do homem, a nomeação da primeira mulher para exercer o cargo de secretário de Estado do Trabalho merece especial referência". Depois de uma breve referência ao curriculum académico e profissional dessa jovem desconhecida (que, por acaso, era eu…), recorda os nomes das raras mulheres que a haviam precedido nos governos da República: Teresa Lobo, ainda antes da revolução de 74, Lurdes Pintasilgo, Manuela Morgado e Teresa Santa Clara Gomes. E prossegue: "Mas o que poucos arriscariam é que uma pasta tão melindrosa como o Trabalho incluísse uma mulher governante. Tratava-se de um pelouro considerado extremamente sensível nas suas repercussões políticas, a desaconselhar, para muitos, a presença de uma mulher. É positivo que este sacrifício do "machismo" latente tenha sido vencido. É positivo que Mota Pinto tenha ousado dar o passo que deu". Não me lembro de outro político que tenha feito uma denúncia tão frontal do “machismo latente” na vida pública portuguesa! E como, quase 40 anos depois, o “machismo latente” persiste, não faltarão ao Presidente ocasiões para o combater. 7 de abril de 2016 UM CONGRESSO EM ESPINHO - memórias de outros congressos do PSD 1- Há, pelo menos, doze anos que não ia a um congresso do PSD, mas, desta vez, com a sua realização à porta de casa e sucessivamente desafiada pela Leonor Fonseca e pela Virgínia Estorninho, não hesitei em as acompanhar. Foram três dias esplêndidos, cheios de reencontros com amigos da emigração e do país, que não via há muito tempo, e de ocasiões de rememorar com eles outros congressos, alguns bastante mais aguerridos. O primeiro a que assisti, como convidada, foi o do cinema Roma, em Lisboa. Estávamos em 1979 e ainda não era filiada no PPD/PSD, embora fosse "Sá Carneirista" declarada há muito ( desde que ele se afirmara contra a ditadura, no hemiciclo de São Bento, e como "social-democrata à sueca" numa entrevista dada a Jaime Gama). Depois, perdi a conta àqueles em que participei. Por exemplo, em 1981, o do Porto, com Balsemão (no meu caso, com os chamados críticos" contra Balsemão), uma reunião agitada por insuperáveis divisões e inflamados discursos, no interior do Rivoli, mais uma falsa ameaça de bomba, que nos obrigou a um pacífico interregno no exterior. Recordo, em especial, os históricos congressos de mudança de lideranças: em 1983, o de Albufeira, que vivi euforicamente, com a vitória de Mota Pinto; em 1985, o da Figueira da Foz, que parecia destinado à volta do "Balsemismo sem Balsemão" (com João Salgueiro) e acabou na consagração de Cavaco Silva (reviravolta ocorrida a altas horas da noite, enquanto eu dormia, pelo que fiquei fora de todas as listas, então elaboradas); o de 1995, no termo da "pax" Cavaquista, com a sucessão a ser disputada por Nogueira, Durão Barroso e Santana Lopes - um elenco de luxo, no mais mediático de todos os eventos do género e, se me não engano, pioneiro na total abertura aos "media". Coisa nova, também no que me respeita, porque tinha não só um, mas dois candidatos para escolher, Fernando e José Manuel. A amizade e solidariedade coimbrã falaram mais alto, decidi apoiar Nogueira, mas, antes de o fazer, escrevi a Durão Barroso, dizendo-lhe que, mais tarde, ainda haveria de votar nele, o que, realmente, veio a acontecer. 2 - Espinho 2016 foi, assim, tempo de olhar, nostalgicamente, o passado, num ambiente que tem ainda muito de semelhante, na mescla alegre e convivial em que os debates, lá dentro, alternam com os abraços e animadas conversas, cá fora. Menos despreocupadas, menos afetivas, são, provavelmente, as negociações de bastidores para a composição de listas de dirigentes, a marcação e ordenamento das intervenções em palco, que costumavam ser mais complicadas para os delegados comuns do que para os" notáveis" do partido. Sei-o por experiência própria, e um dos velhos amigos que revi nos corredores, recordou-me o caso passado no Pavilhão Rosa Mota... Eram 4.00 da manhã e ele saíamos de uma sala vazia, onde quase só Cavaco e Silva se mantinha, atento, como era seu dever. E eis que ouvimos chamar, pelos microfone, o meu nome... no fim da tal grande lista de intervenientes. Voltei à pressa ao recinto, para tomar a palavra sobre questões internacionais - sobre a Europa das Nações, a Europa da "iguais", que já não existe hoje. Fui muito aplaudida pelo Prof. Cavaco, pelo meu amigo e por meia dúzia de resistentes ao cansaço da madrugada. Em 2016, isso não aconteceu a Virgínia Estorninho, a primeira na lista dos oradores! Por sinal, abordou muito bem um tema da maior importância - o do relacionamento inter-geracional. A Virgínia, que diz sempre, sem rodeios, o que tem para dizer, apelou a uma política de valorização, de aproveitamento, de inclusão dos recursos humanos deste grupo etário que tanto cresce, proporcionalmente, na sociedade portuguesa. Cito: "Os da minha geração - a peste grisalha, como alguns lhe chamam - deram-lhes(aos jovens) aquilo que nunca tiveram [...] Cometemos, admito, o grande crime, que foi o de trabalharmos muito, nalguns casos até demais, para que nada lhes faltasse". E, a terminar, aconselhou os nossos políticos a atentarem nas diretrizes europeias neste domínio, nas recomendações do CESE, que, entre várias prioridades. exorta os governos a colocarem " a tónica na capacidade e nos contributos dos idosos e não na sua idade cronológica", realçando-os "através de declarações positivas", promovendo a sua participação ativa no processo de decisão na comunidade, na política, nos conselhos de administração de empresas, em organismos públicos, no voluntariado"... Bem vistas as coisas, a proposta da Virgínia vale tanto, ou mais, do que a muito badalada "mobilidade social" de Paulo Rangel, que, obviamente, também é precisa... 3 - Pode a voz das mulheres, por muito forte que se erga, ser ainda pouco ouvida nestes areópagos partidários, mas é justo reconhecer que, de um ponto de vista feminista, o Congresso de Espinho deu um passo em frente: a Comissão Política é quase paritária e na Comissão Permanente (o poderoso "inner circle" dos Vice-presidentes) as mulheres estão em maioria! O Conselho Nacional, esse, continua longe da paridade, prejudicada pela grande multiplicidade de listas concorrente, encabeçadas, regra geral, por homens. Por outras razões, o panorama é ainda pior no Conselho de Jurisdição (uma mulher) e no das auditorias (100% masculino...). Outra nota a merecer realce é a aprovação de moções (a "K" de Maria Trindade do Vale e a "N" de Lina Lopes) voltadas para as questões da igualdade de género, da paridade. À beira mar, em Espinho, soprou, enfim, neste campo especial , uma brisa social-democrata "à sueca". 28 de abril de 2016 A COMUNIDADE LUSO-BRASILEIRA 1 - O relacionamento entre o Brasil e Portugal, enquanto Estados do mundo da lusofonia, tem conhecido momentos altos, separados por algumas crises passageiras - crises que, aliás, raramente conseguem afetar o bom entendimento entre as pessoas. O que nos une ao Brasil são, de facto, laços tecidos por séculos de migrações, quase sempre consideradas excessivas e objeto de políticas nacionais proibitivas ou limitadoras da liberdade de movimentos através do atlântico. Êxodo multissecular, que contribuiu poderosamente para construir uma nação quase continental, cerca de cem vezes maior do que Portugal, e para lhe dar uma língua unificadora (e a língua, note-se, não se impõe por decreto - vive-se no diálogo quotidiano de gente concreta). Foi por isso inteligente e justo o gesto do legislador brasileiro, em 1967, ao instituir o Dia da Comunidade Luso-Brasileira, a 22 de abril, data em que, em 1500, Cabral e os homens da sua expedição avistaram a terra a que puseram o nome de "Vera cruz". É o momento simbólico de um primeiro encontro entre povos, que haveriam de construir o Brasil futuro. Portugal aceitou a ideia, naturalmente. Todavia, a lei é letra morta nos dois países... a comunidade não! E a comemoração faz-se, sobretudo, por iniciativa das associações de imigrantes portugueses, em colóquios e debates, chamando personalidades do poder político dos dois países às grandiosas instalações dos seus Gabinetes de Leitura, Grémios Literários, Casas de Portugal... Entre nós, as comemorações andam esquecidas, tanto a nível oficial, como na sociedade civil... Espinho constituiu-se, este ano, em exceção à regra geral do olvido, graças à proposta de uma associação de mulheres migrantes, acolhida pela Câmara Municipal no auditório da Biblioteca José Marmelo e Silva. Uma exposição de pintura inspirada em festas populares, semelhantemente organizadas no espaço luso-brasileiro, e três admiráveis conferências sobre literatura e história do Brasil (proferidas pelos Professores Arnaldo Saraiva e Eugénio dos Santos, e pelo escritor e jornalista Danyel Guerra), transformaram a sessão numa "viagem de achamento" de factos, de personagens e de emoções! O Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, José Luís Carneiro, trouxe de uma recente visita ao Brasil o testemunho das significativas celebrações em que participou (e que haviam sido antecipadas, para contar com a sua presença). Um dia inesquecível, em que, de algum modo, se "remou contra a maré", num país onde a história do Brasil não é aprendida nas escolas e desapareceu, insolitamente, dos "curricula" das Faculdades de Letras (veja-se o caso da Universidade do Porto, onde Eugénio dos Santos a ensinava, de forma superlativa). Os responsáveis pela "res publica", em particular no domínio da Educação e da Cultura, deviam reler Joaquim Nabuco, o grande intelectual, político, diplomata, que afirmava : "Os Lusíadas" e o Brasil são as duas maiores obras de Portugal. 2 - A comunidade, a fraternidade luso brasileira não é, como pretendem alguns, pura expressão retórica. Leis e práticas do Brasil contemporâneo provam o contrário e pena é que sejam, quase completamente, ignoradas por cá... Dois exemplos admiráveis, da segunda metade do século XX: a solidariedade para com os retornados de África e o reconhecimento da "cidadania luso-brasileira. Em 1974/75, o Brasil foi o único Estado a abrir incondicionalmente as fronteiras aos portugueses, que abandonavam Angola e Moçambique, aquando de uma descolonização súbita, que os deixou em situação de refugiados de facto. Para lá foram todos os que quiseram ir, novos ou velhos, saudáveis ou doentes, mais ou menos qualificados, mais ou menos pobres... Nos aeroportos instalaram-se serviços especiais de receção, que, sem burocracias nem delongas, carimbavam nos passaportes destes portugueses uma autorização de residência definitiva! Os que atravessavam o oceano em pequenas embarcações de pesca, eram igualmente recebidos, de braços abertos. Vinham sem haveres, alguns até sem papéis, e logo viam a documentação reconstituída, com base na prova testemunhal dos próprios companheiros de aventura. (Que diferença com o que se vê, hoje, no mediterrâneo, ou nas fronteiras terrestres de uma Europa, que, tão desumanamente, ergue muros de arame farpado contra quem foge da guerra, do terror. Ou paga a sua "deportação" para um destino inseguro, quando não fatal!) Já alguns anos antes, em 1969, com a mesma compreensão da ideia de pertença a uma comunidade singular, o Brasil estabelecera o estatuto de direitos civis e políticos para imigrantes portugueses (a que Portugal corresponderia em 1971). Enquanto, ainda hoje, a chamada "cidadania europeia" , decorrente do Tratado de Maastricht, em matéria de direitos políticos, não vai além do nível local, a cidadania luso-brasileira, fundada no Tratado de Igualdade de Direitos e Deveres entre Portugueses e Brasileiros, alarga-se à eleição para órgãos de soberania e ao acesso à magistratura judicial. Em 1988, a Constituição Brasileira foi ainda mais longe e atribuiu aos residentes portugueses, em votação unânime, unilateralmente, mas sob condição de reciprocidade, todos os direitos dos nacionais - capacidade eleitoral passiva e ativa nas eleições, autárquicas estaduais e nacionais, acesso a altos cargos públicos, ao governo local, estadual e federal, à magistratura e ao exército (praticamente excecionando apenas a Presidência da República e sua linha de sucessão, como previsto para brasileiros naturalizados). Portugal só veio a dar plena reciprocidade na revisão constitucional de 2001. Desde então, está em vigor este Estatuto de Cidadania nos dois Estados - o mais avançado que se conhece no século XXI. Sobra entre nós, brasileiros e portugueses, a fraternidade que falta entre europeus... 3 - Em 1974, com a revolução do 25 de abril, desfez-se o Império, que era obra do Estado, mas resiste a obra das pessoas, dos emigrantes, as relações privilegiadas entre povos da mesma fala, a diáspora. Ganhamos a liberdade de sermos portugueses, lusófonos, europeus, com uma identidade que temos de saber afirmar em cada um dos círculos em que partilhamos um longo percurso, continuando-o em cada novo tempo, com cada nova geração. Comunidade Luso-Brasileira, CPLP, Europa… Por esta ordem de prioridades? Eu diria que sim, embora saiba que não tem sido essa, desde há muito, a opção estratégica dos nossos políticos. 19 de maio de 2016 FUTEBOL - FAZER HISTÓRIA, FAZER A FESTA 1 - No domingo passado a festa do futebol foi vermelha. Todavia, num gesto de sublinhar pela raridade, também saíram à rua as bandeiras verdes dos "leões", que perderam o campeonato - perderam, porque "o segundo é sempre o primeiro dos últimos" e porque lideraram a classificação durante muitas semanas e se deixaram, por fim, definitivamente ultrapassar. Tudo isso aconteceu a sul, com ramificações um pouco por todo o país e emigração. A norte, os adeptos do clube maior, mantiveram-se numa neutralidade melancólica, recordando uma história recente de vitórias, que revestiam de azul e branco a cidade inteira, e se estendiam, também, pelo mundo português.. Imperava, agora, a indiferença quanto ao vencedor, porventura com gradações.... Em circunstâncias normais, quase todos os portistas. a terem de escolher, optam pelos "verdes", por razões várias - uma das quais é o facto de se sentirem mais iguais a eles, perante o favorecimento com que muitos "media" e as altas instâncias do futebol privilegiam o rival encarnado, ou perante o que consideram a megalomania e o complexo de superioridade de que este dá mostras, reivindicando, por exemplo, a pertença de 6 milhões de portugueses e outras desmesuradas qualificações. Desta vez, na minha relativa indiferença, incrivelmente, preferi a vitória do SLB, para o que foi determinante a faceta megalómana e o insuportável complexo de superioridade da dupla Jorge Jesus/Bruno de Carvalho, que, por contraste, deu do Benfica de Rui Vitória uma imagem da contenção e urbanidade (esqueçamos, como coisa menor, o seu discurso de vencedor eufórico, com aquela piada despropositada da colocação de Jorge Jesus atrás de um vendedor de pipocas, numa longa lista de afetos ...) . Em suma, gosto de bons treinadores, que sejam também "gente boa", gente civilizada. Por isso, sou sempre por perfis como os de André Villas Boas, Marco Silva, ou Leonardo Jardim, contra figuras como Jorge Jesus, Co Adriaanse ou Julen Lopetegui - estes dois últimos com a agravante de nem sequer serem treinadores de topo. A arrogância, só a admito a José Mourinho, Fraqueza minha, confesso, mas não só admiro a sua genialidade, como me divirto com os seus "mind games". 2- Jorge Jesus declarou, antes mesmo da perda do título nacional, em jeito de auto-defesa, que já " pagou" o seu contrato (milionário) de três anos com o Sporting. Ao longo da época, não ganhou nada, nem sequer uma Taça de Portugal, na esteira de Marco Silva, pelo que estaria a referir-se ao apuramento direto para a Champions. O que poderia, nesse capítulo, dizer Rui Vitória, que deu ao clube muitíssimo mais, por muitíssimo menos dinheiro? Com um modesto contrato e sem exigências de grandes investimentos no plantel, fez uma bela campanha na "champions", venceu o campeonato nacional, vai provavelmente ganhar, amanhã, a "Taça da Liga", que conta para a estatística dos títulos oficiais, e, ainda por cima, foi o criador de uma improvável vedeta, vinda da équipa B, Renato Sanches, que já a protagonizou o negócio do ano, quer se venha a transformar, ou não, no "novo Ronaldo", como se anuncia. Nesta comparação de custos/benefícios dos treinadores, também o FCP perde em toda a linha. E, a meu ver, não somente pelas as derrotas, que o presidente Pinto da Costa foi o primeiro a adjetivar de "vergonhosas", mas pela incapacidade de valorizar magníficos jogadores da formação , como são, por exemplo, Rúben Neves e André Silva. Onde estariam eles se tivessem sido titulares indiscutíveis, no onze base, como foi, a partir de certa altura, Renato Sanches no Benfica? Rúben e Renato chegaram, ambos, à Seleção A. Rúben jogou da mesma maneira, com a mesma classe, a mesma autoridade e precisão de passe, no onze do Porto e no de Portugal. Impressionante! É mais do que pode dizer-se de Renato, que não provou nada nas suas primeiras chamadas à seleção, mas, apesar disso, vai ao Euro. . 3 - No próximo domingo há mais festa do futebol - azul, desta vez, se o sonho portista se concretizar em espetáculo e golos. E aonde será a festa?..Há mais de uma década que a Câmara Municipal do Porto não saúda os sucessos do clube, que levou o nome da cidade ao mundo inteiro. Triunfos para celebrar. houve-os de toda a espécie: taças e campeonatos nacionais, Taça UEFA," Champions", Taça Intercontinental. Ou seja: sobraram os títulos, as oportunidades, mas faltou visão do seu significado ao então edil portuense. Rui Rio fechou portas aos representantes do clube e às grandes manifestações populares, levando a multidão de bandeiras azuis e brancas a peregrinar entre a avenida, que tradicionalmente acolhia os festejos, e o estádio. Por fim, cada vez mais demandava apenas o estádio, propriedade privada... Em Lisboa, ou em Coimbra, ou em Guimarães, comemorações semelhantes têm sempre na sede do município, na "casa comum", o seu momento mais simbólico. Do Presidente da Câmara Rui Moreira se espera, agora, caso a Taça viaje para o Porto, esse gesto institucional - e não como adepto, (a cor clubista é sempre institucionalmente irrelevante), mas em representação do governo da cidade. Não se trata de misturar política e desporto, mas, bem pelo contrário, de destacar a parte de cada um. Os feitos desportivos pertencem não só à história do clube como à da terra. Reconhece-los com uma grande receção na Câmara é, no plano das relações pessoais, uma cortesia. No plano político, é um ato de cultura. 15 de junho de 2016 MEMÓRIAS da AVENIDA Em Espinho, o que chamávamos "a Avenida" era uma parte da Avenida 8, delimitada pelo casino. a norte, e pela Rua 23, a sul - um espaço mítico de convívio, estrategicamente situado entre a estação de caminho de ferro e o mar, os hotéis, os casinos, os "dancings", os cafés, as esplanadas... O largo retangular, convenientemente fechado ao trânsito, era percorrido por multidões coloridas, em movimento ordenado, em filas compactas, formadas por gente de todas as idades, como que em diálogo feito daqueles passos ritmados, para cá e para lá… Um desfile de vestidos e fatos bonitos, de cabelos bem penteados, de esmerada demanda de elegância e sofisticação. Uma forma de estar com os outros, na comunidade, na sociedade. Uma espécie de imensa "tertúlia andante", subdividida em pequenos grupos, conversando, tranquila, ao som da música, por entre as altas palmeiras, sob os olhares dos que descansavam sentados nas esplanadas Os comboios paravam, passavam, com ampla visão sobre tão exuberante espetáculo, e, por isso, os passageiros levavam consigo imagens que terão sido, ao longo de mais de um século, o melhor cartaz turístico de Espinho, do seu alegre viver... E muitos foram os que o caminho-de-ferro trouxe para cá, do interior do país e de Espanha, fazendo de um pequeno povoado de pescadores uma praia vanguardista e internacional, onde o génio dos homens soube criar uma admirável nova realidade, não só no seu desenvolvimento urbanístico, como na sua capacidade de relacionamento humano, de atracão, de abertura a uma pluralidade de círculos sociais e culturais, harmoniosamente coexistentes. Portugueses e estrangeiros, homens e mulheres, lado a lado, nas ruas e nos cafés, (que eram, à época, num país de tradição misógina, por todo o lado, coutada masculina). 2 - Sabemos "onde", mas não sabemos exatamente "quando" começou a fantástica "movida". É plausível a teoria da sua origem espanhola. Certo é que já em fins do século XIX, Ramalho Ortigão, um dos habituais membros das tertúlias do "celeste império", se lhe referia, jocosamente, (nas "Farpas"...): " [...] piscina consagrada dos magistrados, os quais, ao encontrarem-se uns com os outros - grupo que vai, grupo que vem - se saúdam reciprocamente, de parte a parte, em variadas vozes e em diversos tons de afabilidade: colega! colega! colega! colega! " Mais tarde, em 1930, Guedes de Amorim na "Ilustração", denomina Espinho "a praia ibérica", traçando um quadro deliciosamente sugestivo não só do ambiente geral, mas também, em especial, do que designa por "a grande avenida": “Os dias decorrem em Espinho como domingos, como dias de festa. O verão é o grande domingo do calendário. E Espinho, romaria à beira-mar, tem seduções para todas as horas, para todos os paladares, [...] só se ouvem frases na linguagem de Cervantes, só se ouvem gargalhadas espanholas [...] ao fim da tarde, na grande avenida ressuscita a vida, a folia, o sem número de diversões, onde Espinho vai passar a noite [...] retalhada a tangos, a golpes estridentes de jazz band, a noite de Espinho termina. Amanhã começa novo dia. Espinho acaba sempre a sua alegria na noite. O verão, porém, é extenso, o sol é quasi eterno, só desfalece no outono". Duas ou três décadas depois, a "Avenida" da minha infância e juventude mantinha, intacta, a sua excelência. Talvez já com menos magistrados, menos políticos e escritores famosos e até menos espanhóis, mas ainda uma festa que durava o verão inteiro, "com sedução”para todas as horas e todas as idades. De manhã, na volta do mar ou da piscina, podíamos aí deambular em traje desportivo, à tarde um fato ou airoso vestido já era de bom-tom, e à noite, para ir ao cinema (com uma vasta oferta de 60 filmes por mês), ao casino, aos bailes, aos cafés, ou para o simples calcorrear da "Avenida", o "dress code" era ainda mais exigente... A "movida" continuava em pleno - e nenhuma foto a captou tão bem como um trecho do precioso documentário "A praia da saudade", dos anos 50. É exatamente assim que recordo o meu peregrinar pelo seu chão mágico, no meio de uma imensa e animada mole humana. Fenómeno sociológico digno de estudo, um retrato de época! O mesmo se diga do ambiente dos cafés que bordejavam a Avenida...Todos diferentes, com o seu núcleo duro de frequentadores. O meu era o Palácio, o antigo Palácio, na esquina do hotel, com esse nome - de tarde, domínio das tertúlias femininas, grupos de amigas que ocupavam, invariavelmente, os assentos junto às janelas. Raridade, não é demais repeti-lo, esta presença descontraída e natural de senhoras no “café – clube”! Ali encontrava sempre as sobrinhas de Amadeo, Isabel Souza Cardoso e a filha, Maria da Graça, ambas muito simpáticas e ótimas conversadoras. Os homens ficavam-se mais pelo interior da sala, ou no sofá junto ao balcão. À noite, mais caminhadas na "Avenida", uma ida ao cinema, de longe a longe, uns passos de dança no salão do casino. Nos anos 50 e 60 e ainda por alguns anos, tal como em 1930 ou em fins de novecentos, não havia tempos mortos em Espinho. 3 - Depois de enterrada a linha-férrea, esperamos, impacientemente, há muito, que as obras de superfície nos restituam, não já a "grande avenida" das palmeiras. mas o seu equivalente, como "ex-libris" de Espinho no século XXI. Acredito que o renascimento de uma cidade originalmente convivial pode acontecer naquele lugar telúrico, com o mesmo espírito, em configurações muito diversas – um encontro com o futuro a construir no rasto saudoso das memórias.

quarta-feira, 8 de junho de 2016

QUARESMA EM AÇÃO

Quaresma é o mais genial jogador de futebol da sua geração. Provou-o hoje na seleção nacional. Simplesmente fantástico! Absolutamente Harry Potter... Na sua primeira passagem pelo Porto, eu ia ao Estádio do Dragão só para o ver fazer... o impossível. Na segunda passagem, também. E ainda não recuperei do desgosto de o ver empurrado para fora do Porto, por um dos piores treinadores de sempre a exercer a profissão num clube em Portugal. Como puro talento não há quem se possa comparar a Quaresma. Talento inato, que não se ensina, nem se aprende. Mas aprendeu outras coisas - por exemplo, a lidar com maus treinadores. Resistiu a Lopetegui. Não lhe deu motivo algum para o dispensar, embora tenha sido dispensado por esse grande perdedor, que, até ser ele próprio dispensado, decidiu sempre tudo livremente. Muito mal, é claro. A maior perda do FCP na última temporada não foi J Martinez, nem Oliver, nem Danilo (o brasileiro), - como não seria, se tivesse saído, o celebrado Brahimi. Foi Quaresma.

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Colóquio Migrações e Cidadania UAB 2 junho

I A divisa da AEMM - :"Nenhuma pessoa é estrangeira numa sociedade que vive os direitos humanos". - é uma utopia, mas também uma ideia-força, que vai ganhando espaço, na progressiva consolidação de um "Estatuto de Direitos dos Expatriados", como emigrantes/ imigrantes, face a duas sociedades, a dois ordenamentos jurídicos - o do país de origem e o país de destino – assim como em convenções e tratados internacionais. Um Direito novo, que se vem criando, desde o último quartel do século XX e que coloca no centro os interesses das pessoas, e não o dos Estados, A dupla nacionalidade, a dupla participação política são crescentemente aceites "de jure constituto", bem como o sufrágio dos imigrantes em eleições locais - em alguns países, como o nosso, ainda sob condição de reciprocidade, limitação injusta dos direitos dos imigrantes, que, na cidade onde moram, na sua cidade, devem ser todos iguais perante a lei Contudo, ter direitos e poder exercê-los livremente não é a mesma coisa, como nos ensina a saga das mulheres na reivindicação da sua cidadania. A proclamação formal e a prática dos direitos raras vezes aconteceram em simultâneo. E as discriminações no ordenamento jurídico e na realidade vivida fizeram das mulheres "estrangeiras no seu próprio país"... Vamos falar hoje, aqui, de cidadania e migrações, com acento na componente de género. Vamos lembrar o mais perfeito exemplo de "Mulher - cidadã" que nos deu a sociedade portuguesa do nosso tempo: Maria Barroso! Recordaremos o seu pensamento e a sua ação num dos setores em que é, porventura, menos conhecida a importância do seu papel: na luta pela afirmação cívica e política das mulheres nas comunidades da emigração, como dinamizadora do projeto que representou uma viragem nas políticas públicas para a igualdade – os ”Encontros para a cidadania”, que decorreram nos quatro cantos do mundo, entre 2005 e 2009. Foi uma grande aventura contra o descaso, a marginalização das migrações femininas - tão esquecidas, até data recente, nas investigações académicas, na literatura, no jornalismo, na opinião pública, como o haviam sido nas preocupações do Estado e até no movimento feminista de novecentos.. No que respeita a definição de políticas para as mulheres migrantes, podemos, em Portugal, distinguir três períodos: - o das políticas proibitivas, que começa na Expansão e vai até 1974, com o objetivo dominante de confinar as portuguesas nas fronteiras da terra-mãe, em consonância com costumes ancestrais que, praticamente, as emparedavam dentro de suas casas, por vontade de pais ou de maridos - o das políticas de indiferença, que se estende por três décadas, a partir da revolução de 1974, depois de reconhecida a liberdade de emigrar e a igualdade de direitos entre os sexos, sem todavia a encorajar fora do território, não atentando nas especificidades das migrações femininas, padronizando-as, globalmente, em estereótipos masculinos – e isto, apesar da "feminização da emigração", que era já, então, um fenómeno omnipresente (visto que, após a crise petrolífera de 1973/74, os países de acolhimento apenas permitiam o ingresso de estrangeiros a título de reagrupamento familiar). - o das políticas de emigração com a componente de género e cidadania, que, têm pouco mais de uma década de existência e se desenvolveu, de início, em parcerias entre os poderes públicos e a "sociedade civil", através de instituições com sede no pais, como a AEMM e a Fundação Pro Dignitate, ou na Diáspora. Uma primeira tentativa de implementar um programa para uma maior participação cívica feminina acontecera em 1985, com a convocação pela Secretaria de Estado da Emigração, de um encontro mundial de mulheres do associativismo e do jornalismo - gesto absolutamente pioneiro, a nível europeu e universal. e deveras improvável à luz da nossa experiência multissecular, neste particular domínio Todavia, a sua prossecução, através de audições periódicas em Conferências, organizadas na órbita do Conselho das Comunidades Portuguesas (órgão, quase exclusivamente constituído por homens...) foi interrompida pelos governos seguintes. Historicamente do domínio do efémero, deixou, porém, um rasto de memórias que levou a AEMM, vinte anos depois, a propor ao Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas um novo Encontro mundial, não tanto para celebrar o passado, como para antecipar o passo em frente que tardava. O Secretário de Estado António Braga foi além da proposta, avançou, em moldes completamente inovadores, para os "Encontros para a cidadania", realizados, sucessivamente, na América do Sul, Europa, América do Norte e África e finalizadas por um encontro internacional no nosso país. A Drª Maria Barroso foi, como disse, a figura emblemática desse ambicioso programa de mudança. Tinha mais de 80 anos, mas não hesitou em o fazer seu, contribuindo poderosamente, com a força da sua convicção, do seu entusiasmo. do seu carisma, para a compreensão da importância da chamada das mulheres a uma intervenção maior - importância para elas próprias, como cidadãs, mas também para um movimento associativo em fatal declínio, se não souber eliminar, por completo, a exclusão de género e de geração. No Encontro internacional de 2009, em que se procedia à avaliação de todo o projeto , a Drª Maria Barroso afirmou: "A meu ver, são duas as condições "sine qua non" para o "empowerment" das mulheres, em geral, e das mulheres migrantes, em particular. A primeira é a sua integração no mercado de trabalho, que as conduz a uma progressiva independência económica e lhes permite o acesso, seu e dos filhos, aos bens fundamentais, como a educação e a saúde.. A segunda é a sua participação nos vários órgãos do poder, central e local, nomeadamente as legislativas, onde se tomam a decisões, que também a elas dizem respeito, e nas associações, onde têm dado provas de enorme sucesso na dinamização das comunidades e na reclamação dos direitos coletivos das mulheres". A tónica nestes dois pontos ajuda-nos a sublinhar, justamente, a trajetória diversa das mulheres nas sociedades de destino e no mundo aparte das nossas comunidades, enquanto espaço extraterritorial de língua, de cultura, de costumes portugueses. O acesso a um trabalho remunerado, essencial à melhoria do nível de vida da família, à educação dos filhos, tornou a emigração uma via de emancipação das portuguesas, que elas, efetivamente, trilharam em massa. Em França, onde o fenómeno está melhor estudado, a investigação científica veio evidenciar que o emprego, regra geral. no setor dos serviços, lhes facilitou a aprendizagem da língua, os contactos sociais, a vivência de um novo modelo de família, o êxito social e profissional. A mulher tornou-se, contra as expetativas, o principal agente de uma transição para a modernidade. E, assim, de uma infinidade de casos concretos se teceu o sucesso de toda uma geração de emigrantes, que se deve, sobretudo, a elas próprias, mas também ao apoio e recetividade dos homens, da família inteira na partilha de novas formas de solidariedade, de conhecimentos e de tarefas. Oposta é. porém, a sua situação nas comunidades portuguesas, onde, quase sempre, são (ou eram, até data muito recente) forçadas a regredir para papéis tradicionais, porque o coletivo reproduz ainda largamente a divisão de trabalho entre os sexos imposta no viver das aldeias rurais, de onde partiram. Os desfasamentos na evolução do estatuto das nossas compatriotas nestes espaços sobrepostos foram claramente denunciados no 1º Encontro Mundial em 1985, e, porque o "status quo" em quase todo o lado se mantivera, referidos, insistentemente, nos Encontros para a Cidadania, e nos Congressos mundiais, que os prosseguiram, em 2011 e 2013, por impulso do Secretário de Estado José Cesário. Tal constatação tornava mais evidente a premência de o Governo Português dar cumprimento, não só dentro como fora do País, à tarefa fundamental de promover a participação cívica e política das mulheres, de que o incumbe a Constituição. Por duas razões: - primeiramente, porque, como vimos, é naquela esfera comunitária que mais se sente a discriminação das emigrantes, com ostensivos obstáculos ao seu acesso a cargos diretivos. - em segundo lugar, porque é nesse âmbito que o Governo nacional mais e melhor pode contribuir para a tomada de consciência das desigualdades subsistentes - e não tanto, como é óbvio, no mercado de trabalho ou nas formas de relacionamento social ou profissional num outro país. Em apenas uma década de ativa defesa da igualdade, por governos de diferentes quadrantes (note-se!), muita coisa mudou, sem ter ainda mudado radicalmente um "estado de coisas" . Os "encontros para a cidadania" estimularam a expansão de um associativismo feminino, que, não rompendo com as tradicionais vertentes da beneficência e cultura, assumiu, crescentemente, o carater de reivindicação de direitos e de intervenção na "res publica" . Não deixa de ser significativo que as presidentes de ONG's nascidas por inspiração da "Mulher Migrante" se tenham candidatado e vencido às eleições para o CCP. na Argentina e na Venezuela e que mais de metade das Conselheiras pertençam a este novo tipo de associativismo. De destacar, também, o facto de o atual Secretário de Estado José Luís Carneiro, numa decisão inédita, ter levado a debate, no bastião masculino que continua a ser o "Conselho" as questões de género, pela voz da Secretária de Estado da Igualdade e Cidadania, Catarina Marcelino, cuja intervenção aí, como agora, entre nós, focada nos problemas das portuguesas expatriadas, é uma prova clara de uma nova concertação de esforços no plano interministerial.. A nosso ver, num país de migrações e Diáspora como Portugal, o Governo deve agir, neste campo, através de uma estreita cooperação entre os departamentos da SEI e da SECP, que tutela a rede consular e junto da qual funciona a grande assembleia representativa e consultiva, que é o Conselho das Comunidades,. . Uma palavra final para dizer que o caminho iniciado com Maria Barroso nos "Encontros para a cidadania" tem, no presente, muitas caminhantes. O seu apelo, o seu exemplo tornaram as emigrantes "mais portuguesas, mais cidadãs". Esses múltiplos congressos tiveram o seu lugar, a sua data. São passado, para recordar. Porém, enquanto paradigma, são futuro pata viver. Como a Drª Maria Barroso, na memória do País. Maria Manuela Aguiar Lisboa, 2 de junho de 2016