quinta-feira, 21 de abril de 2016

Uma entrevista

 ENTREVISTA: tema : OS ROSTOS DA EMIGRAÇÃO PORTUGUESA

1. Que evolução podemos traçar da emigração portuguesa nos últimos 50 anos?



Nestes últimos 50 anos de migrações portuguesas podemos distinguir
três fases – a primeira que vai da meia década de sessenta à meia
década de 70, caracterizada por um verdadeiro êxodo que começara na
década anterior, e que levou cerca de dois milhões de portugueses para
a Europa e para novos destinos transoceânicos (Canadá, Venezuela,
África do Sul…) – o que constituiu uma ruptura com os pólos de
atracção tradicionais (Brasil, EUA, Argentina…)

Os maiores contingentes dirigiram-se, para França (quase um milhão) e
outros países do nosso continente e foram esses que fizeram a história
deste período – uma história dramática, muito marcada pela
clandestinidade, pelo engajamento de redes de tráfico de seres
humanos, pelo controlo da Junta de Emigração e por perseguições da
PIDE. A chamada “emigração a salto”! . Os importantes movimentos
transoceânicos paralelos tendem a ser esquecidos ou muito subavaliados
pelos peritos e estudiosos nestas matérias, talvez porque se tenham
processado em condições mais ordeiras, por um lado, e, por outro,
porque fossem, em elevada proporção oriundos dos Açores (para a
América do Norte) e da Madeira (para o sul da América e da África) e,
por isso, menos visíveis no continente…

O perfil dos que partiam da metrópole e das regiões insulares era
muito semelhante. Deixavam a pobreza do mundo rural, tinham baixas
qualificações escolares e profissionais, eram sobretudo homens jovens
- parte deles para se livrarem do serviço militar obrigatório e da
guerra colonial. As mulheres, em regra, vão mais tarde, quando há
condições de alojamento familiar. O crescimento das economias que
apelavam à “mão-de-obra” barata garantia trabalho fácil para todos,
mesmo para os ilegais, incluindo as mulheres.

A crise petrolífera, a recessão mundial, a partir de 1973/74, veio por
abruptamente fim a estes fluxos desmesurados (que só entre 1968 e
1971, envolveram cerca de um milhão e meio). As saídas passam a
limitar-se a mulheres e crianças, admitidas para reagrupamento
familiar.

Na década seguinte, assistimos a movimento maciços em sentido
contrário – o que é, coisa absolutamente inédita numa história
multissecular de expatriação incessante. O retorno de África, súbito e
caótico trouxe cerca de 800.00 entre 1974/76, num tempo em que
acontecia já, gradual, voluntário, ordenado -e, por isso praticamente
invisível - a volta da geração do “salto, que se prolongaria, à média
de 30.000 ao ano ao longo de 80 – um total cerca de um milhão. Como
foi possível integra-los tão bem numa economia tão conturbada e débil?

A meu ver, pelo perfil dos que chegavam, De África, pessoas com rasgo,
capacidade de inovação, experiência empresarial, funcionários
públicos, Da emigração, gente com reformas, rendimentos, projectos de
investimento, que repovoavam as terras que tinha deixado Não voltaram
como tinham ido - na situação de trabalhadores rurais, num sector
agrícola decadente.

A adesão de Portugal à CEE criou uma aparência de prosperidade”, que
deu origem ao discurso prematuro do fim da emigração em Portugal. O
êxodo recomeçaria no início do século XX





2. Podemos estabelecer um perfil do emigrante atual? Ou a atual
população emigrante apresenta características muito díspares?



O que há de diferente neste surto migratório, de uma dimensão já
comparável à dos anos 60, é a sua grande heterogeneidade. Não é
verdade que seja sobretudo uma saída de jovens altamente qualificados.
O que é certo é que, pela primeira vez, há uma parte, ainda uma
minoria, nesse sector, onde, regra geral se encontram as mulheres que
emigrem autonomamente – outra distinção face ao passado, que lhes dá
muita visibilidade. De facto, no conjunto, são uma “pequena minoria”
significativa. O “brain drain” é uma realidade assustadora, embora a
esmagadora proporção dos que saem sejam homens, pouco qualificados,
envolvidos em processos de emigração temporária

Neste momento a falta de perspectivas no País, a falta de esperança, o
discurso dos políticos – talvez mais até a imagem que dão de si, da
sua gestão da coisa pública, do que o discurso… - leva para fora os
que se sentem frustrados, desesperados, desempregados – portugueses de
todas as idades, de todas as formações, de todas as regiões. Nunca se
viu coisa assim·


3. Os destinos da emigração portuguesa atual divergem dos destinos
escolhidos na década de 60/70?



Em larga medida, sim, divergem. Há a novidade da procura de países
como Angola , onde se fala em mais de 100.00, ou, em menor escala, o
Brasil – para onde os movimentos tinham cessado, quase por completo,
em meados do século XX. E há um sem número de países onde se
dispersam, individualmente, ou em pequenos grupos, no Médio Oriente,
na América do Sul, em países asiáticos, na Oceânia – nos sítio mais
inesperados e improváveis.

Mas também há muitos para quem recomeçou o ciclo europeu, ao abrigo do
direito de livre circulação e de estabelecimento. Não podemos saber
precisamente quantos se fixam em países da U E – sabemos que só não
são mais porque também aí é cada vez mais difícil encontrar trabalho…

4. Que papel entende caber ao Estado português, no apoio a esses emigrantes?



Desde o 25 de Abril de 1974 que os emigrantes gozam, face à
Constituição, não só de direitos políticos, mas, genericamente do
direito à protecção do Estado – contra a tradição de circunscrever a
acção dos poderes públicos em favor dos seus nacionais apenas dentro
do seu próprio território, ou, quando muito ao acompanhamento do acto
de saída – condições do contrato de trabalho, apoio na viagem de ida.
A revolução de 74 estabeleceu, assim, um novo paradigma “personalista”
centrado no estatuto de direitos dos expatriados, à semelhança do que
já acontecia e acontece em outros países europeus, sobretudo, do sul
da Europa.

Sucessivos governos delinearam, a partir de 1974, e até à década de
90, toda uma arquitectura institucional de suporte a políticas de
informação, de apoio no domínio social e cultural, de negociação de
acordos bilaterais, de parceria com o movimento associativo das
comunidades. Logo em 1974 foi criada a Secretaria de Estado da
Emigração, sedeada primeiro no Ministério do Trabalho, depois no
Ministério dos Negócios Estrangeiros, que desenvolveu serviços
próprios, incluindo um Instituto dotado de autonomia administrativa e
financeira, delegações externas, em articulação com a rede consular,
com os conselheiros sociais das Embaixadas. Ou seja, meios adequados,
ainda que com orçamentos sempre modestos para acção cultural externa e
para o ensino da língua aos filhos dos emigrantes (um dever do Estado,
expressamente consagrado na Constituição desde a revisão de 1982). O
enfoque prioritário era na emigração recente, europeia, em questões
sociais e laborais, ainda que, pelo menos desde os anos 80, se
procurasse a ligação à diáspora, em todo o mundo, nomeadamente através
do Conselho das Comunidades Portuguesas

. Porém, desde a última década do século XX, com a ideia de que os
movimentos migratórios tinham cessado de vez (o já então não era
exacto, embora tivessem diminuído relativamente a 60/70 e assumido
mais um carácter temporário) assistimos ao desmantelamento das
estruturas existentes, com o desaparecimento de um instituto autónomo
e a diluição do que restava dos antigos serviços na Direcção Geral de
Assuntos Consulares. Mais recentemente, foram extintos os lugares de
adidos e conselheiros sociais junto das Embaixadas, funcionários
altamente especializados, que tão bons serviços prestaram no passado,
na detecção de problemas e na assessoria de negociações bilaterais.

Hoje, há, é certo, novas formas de contacto, as redes sociais, a RTPI,
uma rede consular informatizada, um Secretário de Estado experiente e
atento. Mas estas fortíssimas correntes migratórias, reclamam
acompanhamento, conhecimento das situações concretas, informação,
assistência, onde for precisa. No dia a dia. O que me parece exigir
reforço de meios materiais e humanos e, onde for possível, um reforço
das parcerias com o associativismo da emigração



5. Para Portugal, a saída de nacionais implica sempre perda de
população ativa. Que consequências, do ponto de vista económico e
demográfico, se podem esperar, num futuro próximo, desta saída?

Também deste ponto de vista a situação é assustadora. Os números são
tremendos – o Secretário de Estado fala, com conhecimento de causa, em
mais de 120.000 saídas por ano… Há o fundado receio de que os mais
qualificados tenham partido definitivamente. Se assim for, isso é uma
perda irremediável para a economia nacional, que deles necessitava
para se reconverter (embora Portugal possa recupera-los na diáspora –
do que, porém, não há certezas…. A larga predominância de uma
emigração temporária, actualmente, faz do regresso dessa maioria uma
questão de criação de oportunidades de emprego. Mas quando se iniciará
esse volte face em Portugal, no interior desta Europa, enredada na
teia das políticas de austeridade anti-desenvolvimentistas, sem visão
estratégica, sem espírito de solidariedade, num afrontamento
norte/sul, que nós somos, entre os países do sul, os únicos que
aparentemente estamos no campo errado ? Neste momento, o que mais há
são interrogações…

Rostos da emigração portuguesa (Visages de l' émigration portugaise) - o prefácio

PREFÁCIO
O Diário Provável é uma viagem ao interior do mundo da emigração portuguesa, com alguém que alia a experiência de anos e anos de contacto com situações concretas - difíceis, problemáticas... - a uma grande sensibilidade para o sofrimento de pessoas inadaptadas, marginalizadas, e ao conhecimento das regulamentações jurídicas, das burocracias dos países envolvidos no trajecto migratório, dos contornos sociais de questões, que se colocam, com premência, a exigir soluções. Ao que acresce a arte de bem escrever, o dom de apaixonar o leitor pelas personagens, pelas vicissitudes da sua aventura de procuraram em outras terras, no confronto com outras leis, costumes e formas de estar em sociedade, o que o seu próprio país lhes não garantia - emprego, perspectivas profissionais, ou mesmo, num contexto hoje já ultrapassado, liberdade e democracia.
Ficção ou realidade?
“Diário Provável” é uma expressão tão sugestiva quanto ambígua, no que respeita a essa interrogação. Se percorrêssemos todos os capítulos do livro, deixando para o final o primeiro, intitulado "Vidas em tom menor" - onde a explicação nos é dada, sob a forma de um diálogo do Autor com um amigo, que é também um diálogo connosco -, julgaríamos estar face ao verídico registo de casos anotados, dia a dia, pelo responsável do serviço social do Consulado de Portugal em Bruxelas. É o que parece, mas, em rigor, não é - nem poderia ser, por razões deontológicas. Nomes, datas, frequentemente as circunstâncias, ou até o desfecho efectivo, foram, naturalmente, alterados. Isso é, porém, coisa de somenos. Na essência, estamos perante um impressionante relato de ocorrências, captadas na sua verdade humana, bem presente em todos os textos, através de vibrantes narrações, ora focando um determinado evento, ora sumariando o percurso migratório de mulheres e homens, ao longo de muitos anos.
Sou levada a traçar um paralelo com crónicas de uma “realidade ficcionada” na prosa acutilante de Maria Archer, que previamente confidencia aos leitores: "O meu trabalho neste livro ["Eu e Elas"] foi quase o de um artista plástico. Moldei as obras sobre o modelo vivo". Deparamos aqui com uma outra fascinante aplicação desse paradigma - uma obra rigorosamente moldada sobre “modelo vivo”, gizada, do princípio ao fim, com uma profunda compreensão afectiva, uma simpatia que não exclui ninguém.
Por vezes, tudo quanto os interlocutores querem é falar, falar em português, reencontrando um espaço cultural perdido, pelo tempo de uma conversa amiga - reclusos, que sofrem a perda da liberdade, agravada pelo estatuto de estrangeiros, doentes internados em hospitais, em instituições sócio psiquiátricas... Outras vezes, há que agir - para valer, de imediato, a vítimas de violência doméstica, à menina órfã que precisa de uma nova família, à mulher sequestrada pelo marido, a jovens que chegam "ao Deus dará"... Há que proceder com bom senso e perspicácia, ajudando a que, por si mesmos, encarem novos rumos, porque, como diz, com a sageza aprendida na formação académica e aprofundada na prática profissional, "sempre pensei que as soluções têm de vir das próprias pessoas".
São vivências do quotidiano, a que o "saber contar" dá densidade dramática e emoção, aqui e ali pontuada por um subtil sentido de humor, permitindo-nos partilha-las, ver e sentir o que ele próprio viu e sentiu, no seu gabinete acolhedor. Muitas delas revelam-nos personalidades ou circunstâncias extraordinárias- porque o real rivaliza, quando não ultrapassa, frequentemente, o potencial imaginativo do romanesco...
Penso na jovem reclusa (correio de droga - a tentação fatal do dinheiro fácil...), planeando casar no consulado, logo depois do nascimento do filho, que espera no confinamento da prisão. ( No dia da cerimónia, de Portugal vem o noivo, a mãe, duas filhas pequenas, da penitenciária chega ela, num carro celular. E logo o consulado se converte para eles numa casa de família, aberta para uma festa comovente e inesquecível). Penso no velho mendigo português, que, no centro de Bruxelas, aproveita o segmento lusófono de "mercado", sempre com um sorriso no rosto e conversação jovial - um sem abrigo, que tivera antes muitas profissões, graças às quais, por intervenção do Consulado, vai mudar de estatuto, de mendigo para reformado, com pensão, casa própria e amigos...E em outras excêntricas figuras: o pescador que aparece todos os anos, na primavera, e se faz repatriar para o Porto, ora pelo consulado de Portugal, apresentando o BI, ora pelas autoridades belgas, por quem se deixa prender por vagabundagem, sem qualquer documento de identificação; o tatuador que vem dos Andes e pede repatriamento para os Açores; o portuense que se julga primo do Rei dos Belgas e não quer ser repatriado antes de apresentar cumprimentos na corte...
A religar estes e tantos outros protagonistas existe um só denominador comum: são,todos, numa cidade estrangeira, portugueses cujas vidas, por instantes significativos, se cruzaram com a do Autor, deixando o seu rasto de memórias, umas tristes, muitas outras felizes, porque recordam pontos de viragem, na destino dessas pessoas.
A narração atravessa, assim, o campo da chamada "emigração de sucesso", conduz-nos ao outro lado, o mais esquecido, o das "vidas em tom menor". No vasto fresco da representação das comunidades portuguesas contemporâneas, a geração do "salto", para a Europa, tomou o seu lugar, de início num quadro de exploração generalizada, que gradual e maioritariamente superou, de uma forma corajosa e assertiva. Uma "geração de triunfadores", nas palavras de Eduardo Lourenço, nos anos 80, ao fazer um balanço do processo global. Mas a minoria dos que ficaram para trás - e ainda hoje alguns ficam - é uma parte do todo, que não pode ser abandonada à sua sorte. E não o será, enquanto houver profissionais competentes e dedicados, cuja função é, justamente, a de combater a marginalidade e cooperar na procura de vias e condicionalismos propícios a uma boa integração.
Nesta outra perspectiva, que vai muito para além de um enfoque puramente literário, devemos realçar o valor da publicação como testemunho histórico, como marco das grandes mudanças nas políticas contemporâneas de emigração, que romperam com a atitude de descaso tradicional do Estado para com os expatriados, reconhecendo um novo estatuto de direitos aos nacionais, dentro e fora de fronteiras, no domínio político, social, cultural. A ruptura com um passado de indiferença face à situação dos cidadãos fora do território nacional, tem a sua origem em medidas embrionárias de acompanhamento dos emigrados nas vésperas da revolução de 1974, mas só vem a afirmar-se, definitivamente, nos anos seguintes. A criação de serviços sociais junto dos consulados foi, de facto, o primeiro instrumento eficaz destas políticas de cunho humanista. Um dos muitos méritos do "Diário Provável" é, precisamente, o de nos mostrar, como, a partir das leis, das intenções e declarações oficiais, se passou à prática, dando aos consulados, antes vistos como serviços meramente burocráticos, um rosto mais humano. É, pois, uma incursão até ao cerne dos serviços sociais, revelando a sua enorme importância e constituindo um alerta para que não haja, em nome da austeridade, a tentação de os limitar ou suprimir, precisamente quando explode uma nova vaga imparável de emigração..
Uma palavra final de agradecimento pelo honroso convite para prefaciar este livro e de manifestação do regozijo com que o faço, porque posso dizer que me deu, como dará certamente a todos os leitores, um retrato de época da emigração portuguesa recente, das novas políticas de protecção implementadas, com autonomia e criatividade, pelos executores “no terreno”, e, também - ainda que não fosse obviamenteo esse o seu propósito –, um admirável auto-retrato do Autor, da sua vocação e qualidade profissional, do seu gosto de viver e conviver no universo em expansão das nossas comunidades do estrangeiro.

Uma história de vida - o nosso admirável Cõnsul em Melbourne

Numa linguagem simples, límpida, coloquial. que nos prende da primeira à última página, esta narrativa na primeira pessoa do singular não cessa de nos surpreender e encantar, através de uma vertiginosa sucessão de factos, de aventuras, e de encontros com pessoas, no quadro de variadas realidades sócio-culturais, em paragens longínquas..É uma trajetória individual meteórica que acompanhamos, aceitando o convite do Autor para uma longa viagem de memórias, que atravessa épocas, regiões, continentes, desde remotos lugares do Alto Minho, como Cousso, Cubalhão, a Serra da Peneda (onde um menino orfão e desprivilegiado, pareceria condenado a crescer e trabalhar num confinamento insuperável), até aos espaços imensos, aos horizontes que alargou, com o seu inconformismo e uma insaciável vontade de conhecimento, caminhando, os pés na terra, de terra em terra, incansavelmente, indo cada vez mais longe - primeiro num Portugal que o discurso do "Estado Novo" conceptualizava como uma unidade pátria pluricontinental, que, sob a mesma bandeira, se estendia "do Minho a Timor". O jovem Carlos Lemos vai precisamente do Minho a Timor, cruza os mares, ajuda a desbravar matas virgens, nas margens de rios africanos, a explorar as costas das possessões portuguesas do Indico ao Pacífico, ultrapassa fronteiras, converte-se ao destino tão português da emigração, na lonjura do sul da África e da Oceânia...
"História de uma vida", assim denomina, discretamente, como é seu timbre, tão fascinante encadeamento de relatos, confidências, observações, comentários e ensinamentos do maior interesse histórico, antropológico, político. A primeira tentação de quem a lê é o de lhe acrescentar adjetivos expressivos, como "vida excecional", ou "vida fantástica"!
Desde o princípio, desde a infância, o mais insólito e espantoso é que todas as decisões, afinal tão avisadas, são dele, apenas dele, depois de terminar prematuramente a escola, e de ficar entregue a si mesmo, em trabalhos árduos, trabalhos de adulto, que despertam a sua precocidade e força de ânimo. E, assim, em dificuldades e desafios ilimitados, se forja uma personalidade independente, honesta e tenaz, mas também sensível e gentil.
Num dos seus primeiros empregos urbanos, em Monção, num café bem frequentado, um velho e arguto doutor diz-lhe, a certa altura: "és um perfeito diplomata"!. Retive, muito em especial, essa exclamação profética, porque, cerca de quatro décadas decorridas, quando o Dr. Carlos Lemos organizou a minha primeira visita a Melbourne, e o conheci mais de perto, não fiz, mas poderia ter feito idêntica apreciação. Ali estava um diplomata nato, amabilíssimo, hábil e pragmático, qualidades que juntas, em regra, não se encontram ...Ali estava um emigrante que prosseguia, apaixonada e eficazmente, a missão de enaltecer a história e os valores eternos da lusofonia, e de defender a imagem e os interesses dos seus compatriotas - antes mesmo de ser nomeado cônsul honorário, em1988.
O seu dom natural de se aproximar das pessoas, independentemente da classe social, do estatuto académico, de tendências ideológicas, de origem étnica, a par de uma inteligência invulgar explica, o que, por modéstia, nunca explicita - a facilidade com que, rapaz solitário, vindo de um pequeno povoado rural, é aceite nos círculos mais fechados e "snobs" das elites de então, ou nas tertúlias de estudantes, com quem, sem dúvida, aprende a refectir e debater.sobre quaisquer questões
É nas suas novas funções de topógrafo - com uma formação, em boa hora, adquirida nas Minas da Panasqueira - que conversa, em Cascais, com o Presidente Carmona, e passa a conviver com as netas do Presidente, com jovens da alta burguesia, alguns dos quais virão a ser embaixadores e artistas de renome. A Póvoa do Varzim é o destino seguinte, e bem marcante no longo roteiro que tem pela frente. Faz parte de grupos de estudantes e recém licenciados, como Salgado Zenha. É aí que decide retomar os estudo e completa cinco anos do liceu de uma vez só!
Mais tarde, em Moçambique, conta entre os seus íntimos Paulo Vallada, João Maria Tudela e, como eles, pertence ao mais seletivo dos clubes, o Clube de Lourenço Marques. Em Pretória, é amigo de Mary, a filha de Henry Oppenheimer, de Tamara, a ex-toureira, em Durban. do filho de Alan Paton - em casa de quem conhece Mandela, Oliver Tambo,Sisulu e Lutuli e tem o privilégio de assistir a inúmeras conversações entre eles -, .em Hong Kong do famoso português que, como Presidente da Câmara, projetou a cidade para o apogeu, o Comendador Arnaldo Sales, em Timor, de Ruy Cinatti, a quem admira imensamente, na Austrália de Kenneth McIntyre, cujas teses sobre a descoberta portuguesa deste país defende e apregoa por todo o lado, a começar por Portugal e por Macau (onde, por sua influência, o Museu Marítimo dedica uma secção a esse achamento secreto e onde o texto original inglês é traduzido para a nossa língua).
Exemplos, entre centenas. de ilustres personalidades que se nos tornam familiares nas páginas deste livro! De destacar ainda, relacionamentos ocasionais e incomuns, caso de Samora Machel (que dele cuida no Hospital de Lourenço Marques!), e, numa conturbada Indonésia, durante umas férias improváveis, da mulher do General Yani, Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, e ela própria uma celebridade. A Senhora Yani, logo convida o simpático casal Lemos para animados passeios por lugares turísticos, jantares nos melhores restaurantes, e até para uma visita a casa de Sukarno.
Eis um Português de quem, obviamente todos gostam - moçambicanos, timorenses, indonésios, egípcios, sul-africanos, negros e brancos, aborígenes do deserto australiano... artistas, homens de letras e ciências, empresários, embaixadores, políticos de um sem números de países - uma impressionante rede universal de contactos fraternos, que ficam para sempre, que cultiva e reencontra em intermináveis expedições. Como não olhar retrospetivamente séculos de história, e lembrar a velha arte portuguesa de fazer amigos entre gentes de todo o Globo? Eis um português que nos dá a certeza de que somos ainda o mesmo povo, com a mesma ânsia de movimento, de que se teceu o "século de ouro" dos Lusíadas - movimento de caravelas, de homens, de ideias…
Em meados do século XX, a um ousado Carlos Lemos, com pouco mais de 20 anos, a especialização em topografia e hidrografia faculta modernos meios de exploração ou reconhecimento da terra e dos mares, primeiramente ao longo do retângulo continental, depois, em Moçambique, nos vales do Limpopo e do Rio dos Elefantes (já na fronteira norte da RAS) , em Timor, de lés a lés, e, posteriormente, nos desertos da Austrália, onde percorre, em trabalho de campo, 34.000 km, inscrevendo o seu nome como pioneiro em diversos lugares intocados de território austral
Ao tentar esta breve apresentação (certamente arbitrária e redutora....) da sua autobiografia, devo acrescentar que a considero uma digna herdeira da literatura de viagens de sabor quinhentista, na medida em que o Autor vai muito além de uma mera menção de ocorrências, de apontamentos sobre lugares de exótica beleza - que também abundam... - para nos dar a sua visão sobre costumes, conflitos sociais e políticos, sobre personalidades que deixaram indeléveis marcas na história. É a mundivisão de um homem culto e cosmopolita, do sociólogo e do observador político, que já era, antes mesmo de terminar os estudos universitários nestes domínios ( iniciados na África do Sul, na Rhodes University, onde conhece Molly, sua futura mulher, e concluídos, uns anos depois, em Melbourne). Um incansável "peregrino em terra alheia" (como o definiria Adriano Moreira), disposto a partilhar com o leitor mil e uma experiências vividas e o seu olhar sereno sobre vicissitudes com que permanentemente se confronta, o seu sentido de humor, que irrompe aqui e ali, direcionado de preferência a si próprio, na menção de alguns pequenos desaires, pelos quais se penitencia, com muita graça...
O casamento com Marion Murray, a jovem britânica doutorada em psicologia, que se lhe junta nessa "ilha do fim do mundo" , Timor,a revelar um simétrico gosto pela aventura e pelo movimento (juntos, levados pelo trabalho del um ou de outro, ou pelo puro prazer do turismo, darão várias voltas ao mundo.....) iria, a breve prazo, ser o início de uma "segunda vida" para ambos - a vida de emigrantes, definitivamente enraizados num novo país. A carreira académica da Professora Marion, centrada na Austrália, será o factor de estabilização. A partir daqui, a autobiografia regista novas profissões exercidas pelo Autor, em Melbourne - professor da universidade, do liceu, agente de bancos comercias, gestor... - E revela-nos, também, uma nova faceta: a de líder, de principal construtor de uma comunidade forte e coesa, onde antes só havia portugueses dispersos e ignorados na sociedade de acolhimento... A partir de então, com o seu "ímpeto de Portugal ( como diria Pessoa), e capacidade de mobilização, a história portuguesa em Victoria fica intimamente ligada à sua própria história. Um exemplo que os estudiosos da génese das comunidades da emigração contemporânea e da nossa diáspora precisam de analisar, como um "case study"! Na verdade, muitas famílias portuguesas estavam já radicadas naquele Estado, mas sem qualquer dinâmica de agregação entre si. Tudo muda pela ação e pelo carisma de um "homem de causas". Começa pelo fundamental: cria uma escola de português (em 1972), um programa de rádio em língua portuguesa, do qual é diretor e locutor, uma "Comissão de atividades da comunidade", (a que preside, (entre 1976 e 1984). o"Portuguese Community Trust", (1983), destinado a angariar fundos para uma sede associativa condigna, projeto que, por obstáculos burocráticos, é reconvertido, dando origem ao famoso "Café Lisboa", restaurante português de alto nível, no centro de Melbourne, que atrai as elites políticas e culturais da cidade e oferece, como era sua vocação inicial, um espaço aberto a iniciativas comunitárias. O Dr. Carlos Lemos vê-se na obrigação de encabeçar o projeto recconvertido, garantindo-lhe um sucesso espetacular. Aí recebe individualidades do mundo lusófono de visita ao país: D Ximenes Belo, Ramos Horta, Alberto João Jardim, Carlos do Carmo, os escritores da diáspora Vasco Calixto e Marcial Alves, o Secretário de Estado Correia de Jesus, o Governador Rocha Vieira (com quem se inicia uma colaboração estreita com Macau, mantida depois da passagem para administração chinesa), os sucessivos embaixadores e cônsules de Sydney e tantos, tantos mais - sem esquecer o chamativo lançamento de um CD de música para as crianças de Timor, que foi trazido em mão pelo Arcebispo Deacon, depois de aterrar de helicóptero, num terreno contíguo ao Café Lisboa.
Anteriormente, enquanto dirigente da "Comissão de atividades", promovera as primeiras festas a Nª Sª de Fátima, com uma procissão que circulou nas ruas de Melbourne, seguida de um piquenique gigante, ao qual não faltaram o Arcebispo da diocese, o Ministro da Imigração, o Cônsul-Geral de Sidney e outras individualidades (que obviamente aceitaram o convite de um amigo especial...), para além de uma multidão de milhares de portugueses, que, assim, ganham visibilidade na sociedade australiana.
A visibilidade da Pátria - da sua história, das suas tradições e qualidades bem vivas na emigração - é uma causa maior assumida numa ação constante, em que podemos destacar: a divulgação das teses de Kennett McIntyre sobre a descoberta secreta da Austrália pelos navegadores lusos, corroborada pelas investigações de PeterTrickett (sobre o Atlas Vallard de 1547) e do Professor catedrático John Mollony (sobre vocábulos de origem portuguesa entre os aborígenes) e a procura de outros laços de ligação com a Austrália - como o facto do que é considerado o fundador da nação moderna, o Governador Arthur Philip, ter sido oficial da nossa Marinha, ou o enfoque na nacionalidade portuguesa de Artur Loureiro, o grande pintor portuense, porventura, hoje, mais recordado em Melbourne, onde se radicou por uns anos, do que na terra onde nasceu, ou na solidariedade luso- timorense dada a Bernard Collinan, herói australiano, que comandou a "Coluna independente", na resistência ao invasor japonês, durante a grande guerra
Há, porém, um feito que deve ser salientado, como expoente máximo, pois só por si, mais do que justificaria a alta condecoração, que em 2002, lhe foi entregue pelo Presidente Sampaio: a proposta, bem concretizada, de erguer, em solo australiano, um padrão evocativo dos navegadores portugueses! Foram muitas e morosas as diligências que permitiram garantir o espaço perfeito, numa belíssima colina sobre o mar agreste, em Warrenambool, onde, em oitocentos, foram avistados, por inúmeras testemunhas oculares, os vestígios prováveis de uma caravela quinhentista e, ulteriormente, uma inauguração, com honras de presença dos mais altos representantes do Estado. o Governador Geral, o Embaixador, Ministros, deputados, Kenneth McIntyre, uma massa imensa de participantes e, o que não é despiciendo, com uma enorme cobertura dos grandes "media.!
Warrenambool é doravante um lugar de culto da história e da presença portuguesa. O Portuguese Festival, de periodicidade anual. atrai milhares de turistas ao monumento (entretanto enriquecido com a inauguração das estátuas do Infante D Henrique e de Vasco da Gama, oferecidas, por proposta do Dr Carlos Lemos, pelo último Governador de Macau – um evento muito mediático, a colocar Portugal no centro das atenções!).
Em que outro país ou continente, dos que foram, como sabemos, descobertas secretas de Portugal, conseguiu a nossa diplomacia algo de semelhante? Obviamente, em mais nenhum…
É, assim, uma realização esplêndida e única, a coroar uma consistente trajetória de intervenção, em defesa das pessoas e dos valores nacionais, junto dos Governos, de lá e de cá - intervenção lúcida e corajosa nos domínios da emigração, da lusofonia, da política internacional, com uma participação ativa nos “fora” e congressos mundiais da Diáspora, com uma voz que clama, desassombradamente, contra o negativismo dos historiadores, ao renegarem teses verosímeis, favoráveis à grandeza pátria, ou contra a mediocridade dos políticos e servidores públicos, contra a injustiça e a intolerância.
Uma palavra final para agradecer ao Dr. Carlos Lemos a sua amizade e a sua preciosa colaboração de décadas, na luta pelos direitos dos emigrantes e dos timorenses e, também, para manifestar ao escritor e ao Homem, a minha admiração, pela forma como soube dar um sentido humanista e fraternal ao movimento incessante da sua vida, que muitos feitos nos promete ainda, futuramente.

quinta-feira, 7 de abril de 2016

UM CONGRESSO EM ESPINHO - memórias de outros congressos do PSD

1- Há, pelo menos, doze anos que não ia a um congresso do PSD, mas, desta vez, com a sua realização à porta de casa e sucessivamente desafiada pela Leonor Fonseca e pela Virgínia Estorninho, não hesitei em as acompanhar. Foram três dias esplêndidos, cheios de reencontros com amigos da emigração e do país, que não via há muito tempo, e de ocasiões de rememorar com eles outros congressos, alguns bastante mais aguerridos. O primeiro a que assisti, como convidada, foi o do cinema Roma, em Lisboa. Estávamos em 1979 e ainda não era filiada no PPD/PSD, embora fosse "Sá Carneirista" declarada há muito ( desde que ele se afirmara contra a ditadura, no hemiciclo de São Bento, e como "social-democrata à sueca" numa entrevista dada a Jaime Gama). Depois, perdi a conta àqueles em que participei. Por exemplo, em 1981, o do Porto, com Balsemão (no meu caso, com os chamados críticos" contra Balsemão), uma reunião agitada por insuperáveis divisões e inflamados discursos, no interior do Rivoli, mais uma falsa ameaça de bomba, que nos obrigou a um pacífico interregno no exterior. Recordo, em especial, os históricos congressos de mudança de lideranças: em 1983, o de Albufeira, que vivi euforicamente, com a vitória de Mota Pinto; em 1985, o da Figueira da Foz, que parecia destinado à volta do "Balsemismo sem Balsemão" (com João Salgueiro) e acabou na consagração de Cavaco Silva (reviravolta ocorrida a altas horas da noite, enquanto eu dormia, pelo que fiquei fora de todas as listas, então elaboradas); o de 1995, no termo da "pax" Cavaquista, com a sucessão a ser disputada por Nogueira, Durão Barroso e Santana Lopes - um elenco de luxo, no mais mediático de todos os eventos do género e, se me não engano, pioneiro na total abertura aos "media". Coisa nova, também no que me respeita, porque tinha não só um, mas dois candidatos para escolher, Fernando e José Manuel. A amizade e solidariedade coimbrã falaram mais alto, decidi apoiar Nogueira, mas, antes de o fazer, escrevi a Durão Barroso, dizendo-lhe que, mais tarde, ainda haveria de votar nele, o que, realmente, veio a acontecer. 2 - Espinho 2016 foi, assim, tempo de olhar, nostalgicamente, o passado, num ambiente que tem ainda muito de semelhante, na mescla alegre e convivial em que os debates, lá dentro, alternam com os abraços e animadas conversas, cá fora. Menos despreocupadas, menos afetivas, são, provavelmente, as negociações de bastidores para a composição de listas de dirigentes, a marcação e ordenamento das intervenções em palco, que costumavam ser mais complicadas para os delegados comuns do que para os" notáveis" do partido. Sei-o por experiência própria, e um dos velhos amigos que revi nos corredores, recordou-me o caso passado no Pavilhão Rosa Mota... Eram 4.00 da manhã e ele saíamos de uma sala vazia, onde quase só Cavaco e Silva se mantinha, atento, como era seu dever. E eis que ouvimos chamar, pelos microfone, o meu nome... no fim da tal grande lista de intervenientes. Voltei à pressa ao recinto, para tomar a palavra sobre questões internacionais - sobre a Europa das Nações, a Europa da "iguais", que já não existe hoje. Fui muito aplaudida pelo Prof. Cavaco, pelo meu amigo e por meia dúzia de resistentes ao cansaço da madrugada. Em 2016, isso não aconteceu a Virgínia Estorninho, a primeira na lista dos oradores! Por sinal, abordou muito bem um tema da maior importância - o do relacionamento inter-geracional. A Virgínia, que diz sempre, sem rodeios, o que tem para dizer, apelou a uma política de valorização, de aproveitamento, de inclusão dos recursos humanos deste grupo etário que tanto cresce, proporcionalmente, na sociedade portuguesa. Cito: "Os da minha geração - a peste grisalha, como alguns lhe chamam - deram-lhes(aos jovens) aquilo que nunca tiveram [...] Cometemos, admito, o grande crime, que foi o de trabalharmos muito, nalguns casos até demais, para que nada lhes faltasse". E, a terminar, aconselhou os nossos políticos a atentarem nas diretrizes europeias neste domínio, nas recomendações do CESE, que, entre várias prioridades. exorta os governos a colocarem " a tónica na capacidade e nos contributos dos idosos e não na sua idade cronológica", realçando-os "através de declarações positivas", promovendo a sua participação ativa no processo de decisão na comunidade, na política, nos conselhos de administração de empresas, em organismos públicos, no voluntariado"... Bem vistas as coisas, a proposta da Virgínia vale tanto, ou mais, do que a muito badalada "mobilidade social" de Paulo Rangel, que, obviamente, também é precisa... 3 - Pode a voz das mulheres, por muito forte que se erga, ser ainda pouco ouvida nestes areópagos partidários, mas é justo reconhecer que, de um ponto de vista feminista, o Congresso de Espinho deu um passo em frente: a Comissão Política é quase paritária e na Comissão Permanente (o poderoso "inner circle" dos Vice-presidentes) as mulheres estão em maioria! O Conselho Nacional, esse, continua longe da paridade, prejudicada pela grande multiplicidade de listas concorrente, encabeçadas, regra geral, por homens. Por outras razões, o panorama é ainda pior no Conselho de Jurisdição (uma mulher) e no das auditorias (100% masculino...). Outra nota a merecer realce é a aprovação de moções (a "K" de Maria Trindade do Vale e a "N" de Lina Lopes) voltadas para as questões da igualdade de género, da paridade. À beira mar, em Espinho, soprou, enfim, neste campo especial , uma brisa social-democrata "à sueca". Maria Manuela Aguiar Defesa de Espinho, 7 de abril 2016