domingo, 28 de dezembro de 2014

CARLOS CORREIA

A memória é um mundo em que vivem connosco os amigos que já não estão entre nós… Ninguém o disse melhor do que Pascoais: “Existir não é pensar, é ser lembrado”.
Lembro uma última e muito longa conversa que tive com o Dr Carlos Correia, sobre o Pai, que tinha falecido pouco antes. Falámos, quase exclusivamente sobre os nossos Pais, o que significavam para nós. Sobre a forma de superar a sua perda, de os trazer connosco na caminhada pela vida fora, tentando adivinhar o conselho que nos dariam em situações difíceis, sentindo a sua presença nos momentos de festa e de alegria.
Encontrei-o, logo depois, a 26 de Março, nos salões do protocolo do Palácio das Necessidades, durante o colóquio com que a AEMM abria as comemorações da Revolução de Abril no domínio das migrações. Como muitas vezes acontece nestes eventos, saudamo-nos cordialmente, sem tempo para mais nada. Coincidimos em fotos de grupo, que seriam as suas últimas fotografias. .Estou a vê-lo, na primeira fila, na cadeira mais distante, de onde, discretamente, se levantou duas ou três vezes, com toda a certeza para atender questões de serviço. Era o chefe de gabinete do Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, e assumia essas funções, como as outras que desempenhou, nesta área das migraçõe (Técnico, Assessor, Vice presidente do Instituto de Apoio à Emigração e Comunidades Portuguesas, Conselheiro Social nas Embaixada de França e do Luxemburgo), com uma dedicação total, com muita inteligência com um conhecimento completo dos “dossiers”. E sempre, também, com um grande sentido das responsabilidades, com preocupação de ser.perfeito.E era! Eu sei, porque na meia década de oitenta, o Dr. Carlos Correia foi meu Chefe de Gabinete no mesmo pelouro. Trinta anos mais jovem, mas igual… Não falhou no mais pequeno pormenor… Tê-lo à frente daquela máquina complexa, daquela torrente de papéis quotidiana, dando solução a tantos problemas, que, de outro modo, recairiam sobre mim, foi, sem dúvida, uma absoluta segurança, um sossego. Tinha, porém, a consciência de que me podia despreocupar, na exacta medida em que ele se preocupava. Até demais, na minha opinião! De todos os colaboradores próximos (e tantos foram...), o Dr. Carlos Correia foi o único de quem só discordei, por julgar que trabalhava em excesso e que se preocupava demasiado! “Despache alguns desses processos para os outros, por favor!” – dizia-lhe quase todos os dias, sem sucesso. Mas, em tudo o resto (e até naquela atitude também!) o considerava admirável. Era de uma gentileza e bondade infinitas…Impossível não gostar muito dele!
Mas, curiosamente, as minhas primeiras recordações do Dr Carlos Correio são de um colectivo em que o integrava, o grupo dos “jovens”do chamado “Centro de estudos” – oficialmente esse título não existia em nenhum organograma da Secretaria de Estado da Emigração, mas correspondia ao que faziam, excepcionalmente bem, sob a direcção da Dr.ª Rita Gomes. Eram a "nova vaga",mas já com larga experiência e especialização na matéria – intelectualmente brilhantes, muito unidos, e muito simpáticos: Carlos Correia, Victor Gil, Bento Coelho e, entre homens, uma mulher invulgar, que tratavam como igual – a Maria do Céu Cunha Rego. Havia outros, mas eles foram sempre os que considerei mais próximos. O que não quer dizer que se apercebessem disso, isto é, que eu evidenciasse sentimentos de tanto apreço. As vezes, com a minha pressa e impaciência, bem pelo contrário… Algumas histórias que, muitos anos depois, me contaram desse nosso relacionamento laboral foram, para mim, surpreendentemente hilariantes.
Há muito que estava combinado um jantar convívio para recordar esses tempos felizes. Acho que não devemos esperar mais, para levar por diante o planeado, agora para falar, sobretudo, do nosso amigo Carlos Correia

Maria Manuela Aguiar

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

O DOUTOR ADRIANO SEABRA DA VEIGA - um amigo inesquecível

Em Março de 1980, aquando da minha primeira visita aos EUA, partilhei com Adriano Seabra da Veiga e a mulher, Rita, que acabava de conhecer, e com o Deputado José Gama, já um “velho” amigo, um jantar festivo, calorosamente organizado pelos portugueses de Ludlow. No longo roteiro de cidades da costa leste, que então percorri, Waterbury era a que se seguia, e o Dr Veiga, Cônsul Honorário de Portugal no Estado de Connecticut, seria, nessa qualidade, meu anfitrião.
Sabia que ele era um eminente cirurgião, muito prestigiado no meio científico e na sociedade americana, uma verdadeira sumidade, que, nem por isso, deixava de atender, na sua clínica, todos os emigrantes portugueses, com a familiaridade de um médico de terra pequena, a quem todos recorrem, de quem todos dependem. Sabia também, pelo José Gama, ex-emigrante nos EUA, que na sua grande mansão, em Eastfield Road, tinha acolhido, sem olhar a cores políticas, o cantor José Afonso, exilados como o General Spínola, em breve passagem, e, em estadas mais prolongadas, Veiga Simão e Victor Crespo - seus colegas na Universidade de Coimbra– que, entre os amigos muito próximos se contavam Veiga Simão, Almeida Santos, António Maria Pereira, o Cardeal Medeiros, os Aldrich Rockefeller, Amália Rodrigues (a prima, casada com o Engº Seabra). Sá Carneiro também esteve em Eastfield Road (levado por AM Pereira) o tempo suficiente para converter o anfitrião ao PPD.
O Dr. Seabra da Veiga era, realmente, uma celebridade, movia-se no mundo americano e português, com igual naturalidade – um profissional de excepção, um cientista, um filantropo, um patriota, que serviu o país como Cônsul honorário, durante décadas. De Portugal, recebeu as mais altas condecorações, antes e depois do 25 de Abril, e nos EUA, a sua notoriedade era ainda maior.
Dados de conhecimento geral...Muito mais comecei a descobrir nessa viagem de carro, entre Ludlow e Waterbury - ou seja, a fantástica pessoa que dava vida a tão impressionante curriculum.
 É impossível retratar Adriano! Nem vou tentar…Direi apenas que ele tinha uma graça espontânea, um humor muito coimbrão, moderadamente irreverente (como mandam as boas maneiras, quando as senhoras estão presentes), uma energia inesgotável, que o tornavam divertidíssimo, imprevisível e imparável. Qualquer novo projecto o entusiasmava, e não poupava esforços para o realizar em tempo “record” – posso falar, sobretudo, dos que respeitavam à emigração… A seu lado, estava uma mulher encantadora, suave e fleumática, sempre pronta a colaborar com tudo e com todos, a abrir a sua casa a reuniões e a constantes visitas de gente lusa -  ela que é americana de origem canadiana francesa. Era, sem dúvida, a mulher ideal para Adriano e formaram uma família maravilhosa – três filhos (todos fluentes na língua pátria, tal como a Rita), e (anos mais tarde…) quatro netos. Ele adorava crianças e, também, como eu, cães e gatos – recordo-me de uma gata persa, muitos Yorkshire terriers, um São Bernardo. Tudo em paz, como no paraíso de que aquela casa parecia uma antevisão terrena
Para mim, a Rita e o Adriano tornaram-se família chegada, mais do que bons amigos - . Não sei quantas vezes estive com eles em Waterbury, em Lisboa, em Espinho…Em Waterbury, umas vezes como membro do governo ou deputada, outras em viagens privadas, mas com o indispensável envolvimento comunitário, porque havia sempre iniciativas para que me convocavam, através do dinâmico Cônsul Honorário. Antes do mais, para as festas do 10 de Junho, ano após ano…. Telefonava-me, peremptório: “Está convidada pela Comunidade e tem de vir, porque eles estão a contar consigo e eu já dei a notícia para os jornais”
Adriano não admitia recusas, quer se tratasse de projectos comunitários, quer de questões de saúde  dos amigos – assim, por exemplo, se a visita fosse no Outono, ninguém escapava à vacinação contra a gripe. Eu até sou contra, mas ali, não escapava… Recordo-me do dia em que, juntamente com a Presidente do Instituto de Emigração Maria Luísa Pinto, no final de um Encontro do CCP, regressava, com ele, a Waterbury. Antes de seguir para casa, informou-nos que íamos passar pela sua clínica, onde a vacina nos esperava, mas, entretanto, encontrou por lá um doente, quis resolver-lhe o problema e esqueceu-se do nosso caso. A Maria Luísa e eu ficámos felizes… mas por pouco mais de meia hora... Ele deu conta do lapso, chamou, de imediato, uma enfermeira que apareceu em Eastfield Road de bata branca …e, assim, embora a contra-gosto, viemos da América devidamente protegidas contra todas as epidemias invernais…
Adriano, além de generoso, extrovertido e super activo, era, também, muito impaciente.
A morosidade irritava-o por demais – uma vez, numa portagem de auto-estrada, arrancou, apressado, com o seu potente Mercedes e derrubou (involuntariamente, para nosso gáudio!) uma daquelas barreiras que, depois de accionada pela recepção de moedas, levanta, devagar, devagarinho...
Um episódio entre mil, daqueles com que o lembramos, a sorrir, como ele gostaria de ser lembrado.
Adriano Seabra da Veiga deixou-nos, subitamente, no apogeu dos seus mais de 90 anos.

Telefonei-lhe poucas semanas antes, para conversarmos – mantinha toda a alegria de viver, o ânimo, a preocupação com os amigos, o interesse por Portugal.


domingo, 21 de dezembro de 2014

AMM PORTUGUESE YOUTH CONFERENCE

PORTUGUESE YOUTH CONFERENCE

Caras Amigas, Caros Amigos


Saúdo calorosamente todos os participantes na “Portuguese Youth Conference”, os dirigentes do ”Board of Education” de New Jersey, que a convocaram e organizaram e merecem os maiores elogios, e jovens lusófonos, que acorreram ao chamamento e trazem a este belo auditório escolar a força do seu entusiasmo e desejo de trabalhar nos grandes objectivos da Conferência.
Queria sublinhar, em especial, o facto de terem acrescentado ao título da conferência, no programa definitivo a menção de:“1ª” Conferência. Não é, pois, um “happening”, singular, é o começo de um plural: d encontros a realizar, ano após ano. Um acontecimento isolado já seria importante, entrando nos anais da diáspora portuguesa pelo seu ineditismo. Mas, a intenção de lhe dar continuidade é significativa de querer ir além da vontade de "estar na história", com uma estratégia de”fazer história”, com estes jovens. Já Agostinho da Silva, que gosto muito de citar, dizia, com a sua inteligência profética, que a história que interessa é a do futuro.
O futuro da língua portuguesa no continente americano, e da presença lusófona depende dos jovens, como os que aqui estão, do seu trajecto de vida, ao longo deste século, e para além dele, se souberem transmitir o portuguesismo a novas gerações.
Pensamos, obviamente, na consolidação da Diáspora e da língua que, neste 2014, celebra 800 anos de existência e mais de 240 milhões de falantes, que lhe dão ser no mundo inteiro, no chamado velho continente onde nasceu, com Portugal, na América, onde mais avulta e cresce, com o Brasil, na África, em cinco Estados, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, no Oriente, num dos mais jovens Estados da nossa época, Timor – todos unidos na CPLP. A estes Países se juntam as comunidades da Diáspora, nos quatro cantos da Terra, e se pode somar a sobrevivência do Português, como componente em vários dialectos ou crioulos - alguns dos quais tão próximos e fáceis de entender, caso do “Kristang” de Malaca, que na sua elegância e beleza seiscentistas, conserva muito das expressões, que, por todo o lado fora dessa comunidade cristã, foram desaparecendo… ..
A Profª Deolinda Adão, numa lição magistral, levou-nos consigo ao longo de séculos de uma história esplendorosa. Vou apenas, brevemente, secunda-la, salientando a essência dessa saga, a audácia e criatividade de um pequeno país que “fez a diferença” na história da Humanidade, na chamada era dos Descobrimentos -com o achamento do caminho marítimo para a Índia, a descoberta mútua de povos que se desconheciam, a primeira viagem de circum-navegação da terra… O mundo moderno é fruto dessa aventura portuguesa de navegação, dos avanços científicos e tecnológicos da sua Escola, da perícia e coragem dos marinheiros. Foi neste entre cruzamento dos Saberes de uns com o empreendimento de outros – qualidades que muitos acumulavam… - e na execução de um plano estratégico da Coroa, dos Monarcas, em que se alicerçou o êxito da Expansão portuguesa, iniciada no século XV, com a tomada de Ceuta, em 1415, continuada com o reconhecimento da costa africana e os intercâmbios com as suas gentes, prolongada no Oriente, onde, no século seguinte, atinge o seu apogeu, e, depois, a partir do século XVII, centrada no Ocidente, sobretudo, na formação e delimitação territorial do Brasil.
A Expansão, como fenómeno multifacetado abrange o comércio, estatal e privado, o proselitismo religioso, a colonização pela Coroa portuguesa de vastas possessões (o Brasil as colónias de África) e, desde muito cedo, também o desenvolvimento de uma tradição migratória individual. Qualquer destas facetas é, de um ou outro modo, responsável pela grande viagem da língua, pela sua difusão universal, pela sua força como veículo de comunicação, a sua apropriação pragmática e (ou) afectiva por muitos deles.
É, essencialmente, à colonização e, cada vez mais, a partir de setecentos, à emigração espontânea que se deve a constante disseminação da língua e das culturas que nela se vão enraizando e miscigenando. Mas já antes, desde 1500, cerca de um terço da população partia para terras distantes - no século XVI, mais de 350.000 num total de apenas um milhão de pessoas (na sua maioria homens, pois às mulheres era, em regra, vedado acompanha-los…) Uma percentagem que se manteve constante até nossos dias (com uma proporção crescente da emigração feminina, que é, actualmente, de quase metade). Há, hoje, dez milhões de portugueses dentro de fronteiras e cerca de cinco milhões fora.
Mas a dimensão da Diáspora é muito superior, incontável… E a expatriação prossegue em crescendo, com o risco de atingir níveis jamais vistos.
Sem este permanente vaivém de gente, e o seu impacte em dezenas e dezenas de milhões de homens e mulheres nos quatro cantos da terra, o que seria o português? Apenas o idioma de um pequeno país do sudoeste da Europa, com 10 milhões de habitantes e sem um Camões para celebrar “Os Lusíadas”, sem um Pessoa para escrever a Mensagem, sem uma Sophia de Mello Breyner para cantar uma manhã de Abril…
O português floresceu do diálogo, na vivência das pessoas, não foi imposto por decreto de nenhum governo… Foi povo emigrado que o levou pelo mundo, e o partilhou com outros povos. – e, consequentemente, ele pertence a todos, para sempre. Não é uma língua imperial, europeia, é também, genuinamente sul-americana, africana, asiática. É, neste sentido, policêntrica – ao contrário de outras, igualmente grandes.
A história da expansão da língua está, assim, intrinsecamente ligada à
imensa dispersão migratória da nossa gente, que ultrapassou, sempre, o quadro da colonização planeada ou imposta pelo Estado. Dou um exemplo: quando o Brasil se tornou independente, o êxodo nacional para o seu território não foi interrompido, aumentou enormemente, mesmo contra leis e medidas de proibição. Numa época de grande imigração de muitas outras nações europeias, se os portugueses não tivessem sido o principal contingente, por decisão de cada um deles, ao longo de mais de um século, talvez a língua aí se tivesse perdido… Assim nada se perdeu, nem a fala comum, nem a ligação afectiva, que resistiu à separação política do Brasil no século XIX, como haveria de resistir à descolonização, desencadeada, em África, pela revolução de 1974, e ao retorno em massa nos anos seguintes. Basta dizer que Angola já é hoje o principal destino da emigração portuguesa. Portugal o maior destino da emigração brasileira, da cabo-verdiana… Movimentos cruzados no espaço da lusofonia – e muito bem vindos, a meu ver! Quando Portugal reiniciar um ciclo de crescimento económico vai precisar de muitos imigrantes, e eu espero que eles venham sobretudo da CPLP e que fiquem por muito tempo.
A este imenso mundo lusófono, a este êxodo sem fim pertencem, igualmente, as comunidades da Diáspora nos EUA e em tantos outros países, no planeta Terra - todos aqueles que guardam o sentimento de pertença, desde a infância, ou o recuperem, voltando às raízes. Uma nova forma de expansão, de um povo “solúvel e insolúvel (…) na memória dos outros e na sua mesma”, como tão bem o retrata Jorge de Sena.
A fronteira da língua e do convívio no seu cerne foi sempre muito mais lata e muito mais resistente do que a fronteira de um Estado, de uma potência colonial. Foi e é muito mais do que uma realidade puramente linguística, porque incorpora memórias e afectos, relações entre pessoas, vivendo lado a lado -  sociedade civil, por oposição a Estado, relações de família e vizinhança, por contraste com relações de Poder.
Por isso, o império findou, em guerra inúteis, e a presença portuguesa no mundo permaneceu e progride, em paz.
Esta é a herança humanista que queremos preservar, com o ensino da língua, e, também, com a presença lusa na América, através de uma geração que desponta e vai atravessar tempos prodigiosos.
Foram inspiradores os exemplos de iniciativas, aqui referidos, para dar visibilidade às comunidades portuguesas de imigração, como as que se devem a Donald Coutinho, quando tinha apenas 12 anos, ou a Maria João Ávila, com poucos anos mais, ou, muito recentemente, as dos jovens oradores que formam estes painel.
Termino com sinceros agradecimentos aos directores do “Board of Education” de New Jersey pela dinâmica desta Conferência, que promete prosseguir em novos encontros, e com uma palavra para os alunos de português que aqui nos acompanham:

Sei bem que o destino da língua e da presença portuguesa na América é responsabilidade vossa, e acho que está muito bem entregue. Bem-hajam!

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

COLÓQUIO NA UNIVERSIDADE DE TORONTO Outubro 2014

Nesta esplêndida sala da Universidade de Toronto, que nos é aberta pela Professora Manuela Marujo, começo por partilhar com todos os amigos que reencontro e que saúdo, uma preocupação: como sintetizar os principais acontecimentos dos últimos 40 anos de migrações
portuguesas, em 15 minutos? … O tempo vou cumprir, com certeza, porque não há melhor e mais rigorosa organizadora do que a nossa ilustre anfitriã. Quanto ao desafio que me lança, vou tentar…
Inspirando-me no título que Manuela Marujo escolheu para este colóquio, direi: que foram 40 anos de vivência da democracia partilhados na comunidade nacional, no território e na diáspora. A liberdade de emigrar, os direitos de cidadania, de participação na vida política, social e cultural do País, a dupla cidadania, foram reconhecidos, pela primeira vez, aos emigrantes. Com eles se fez e se faz a democracia num espaço alargado, de reencontro da Nação e do Estado. Eis o grande “acquis” da Revolução, ou, como se dizia, em 1974, a grande “conquista de Abril”

Todavia, a história dos movimentos migratórios - e das situações
vividas pelas pessoas e pelas comunidades - no período considerado,
foi marcada (mais do que em qualquer outro…) por contradições, rupturas, imprevistos, determinados, frequentemente, por causas exógenas e incontroláveis, que testaram a nossa capacidade de reacção
Distinguirei, nesta reflexão sobre o curso das nossas migrações recentes - e sobre as políticas que suscitaram -  três fases muito distintas.

1 -  Uma primeira fase se inicia em 1973/74, com a recessão económica generalizada, o fim da ditadura em Portugal e a descolonização do último império europeu. A revolução veio garantir um estatuto cidadania, e políticas de protecção dos emigrantes no estrangeiro e no regresso a casa.
Todavia, as nossas fronteiras abrem-se, precisamente quando se encerram, devido ao “choque petrolífero” e a uma crise mundial, as dos países que haviam recebido, nas duas décadas precedentes, cerca de dois milhões de portugueses (a França e outros vizinhos europeus à cabeça, sem esquecer (como são, tantas vezes, esquecidos), os chamados “novos destinos transoceânicos”, o Canadá, a Venezuela, a Austrália…).
A descolonização provoca, de imediato, o súbito e caótico retorno de África cerca de 800.00 a um milhão, entre 1974/76, num tempo em que irrompia já, gradualmente, o regresso voluntário, ordenado, programado -e, por isso praticamente invisível – dos expatriados da Europa, que se intensificaria ao longo dos anos 80, atingindo um total que se estima em mais de 800.000.
A nossa própria situação económica, agravada pela turbulência social e política, deveria ter tornado impossível o bom sucesso destes dois diversos surtos de regresso. Mas não…pelo contrário, foram parte da democratização do País, contribuíram, fortemente, para a sua
estabilização, tornaram vantajoso um desmesurado vaivém de quase dois milhões de pessoas. Pode perguntar-se: como? porquê? A meu ver, pelo especial perfil dos que chegavam, por muito mérito seu, acompanhado pelo inesperado acerto das políticas, num domínio onde sempre imperara a inércia do Estado.
De África vinham portugueses desenvoltos, mais qualificados profissionalmente, muitos com experiência empresarial, da Europa migrantes com reformas, rendimentos, pequenos projectos viáveis de investimento - "uma geração de triunfadores" na feliz expressão de Eduardo Lourenço.
Uns e outros, não ficaram só nas grandes cidades, repovoaram regiões desertificadas pelo ciclo transmigratório anterior. Uns e outros aproveitaram da melhor maneira os incentivos oferecidos pelos Governos – as contas de poupança crédito, os empréstimos a juro bonificado para emigrantes, os fundos de apoio ao investimento para os retornados de África.
O temor com que a opinião pública, os media e, também, alguns políticos, sempre olharam a dimensão avassaladora do retorno não se justificou…


2 – As políticas de Emigração e Diáspora

Segue-se um ciclo, caracterizado pela ausência de grandes vagas migratórias – ao menos quando comparado com o antecedente. As saídas – exceptuadas as período do retorno das antigas colónias, para África do Sul, Brasil e, em menor número, para muitos outros países, quase se limitam ao reagrupamento familiar – fala-se em “feminização” da emigração, acentua-se o equilíbrio dos sexos, a criação de comunidades orgânicas, com o progressivo enraizamento do associativismo na cultura popular, vivida por famílias inteiras.
 As políticas de emigração procuram formas de parceria com estes movimentos, para os quais o Estado em nada contribuíra, com uma nova consciência da sua importância, quer na
afirmação colectiva da presença portuguesa, quer na defesa dos direitos individuais. O Conselho das Comunidades Portugueses é criado, junto da Secretaria de Estado da Emigração e Comunidades Portuguesas, como instrumento de diálogo, de representação das comunidades, e de co-participação nas políticas para as migrações e para a diáspora – com
a expressa intenção de abrir um novo capítulo nas políticas de emigração.
A Secretaria de Estado foi desenvolvendo toda uma arquitectura institucional, com um Instituto, dotado de autonomia administrativa e financeira. o IAECP, as delegações, dentro e fora de fronteiras, os núcleos de assistentes sociais, os conselheiros sociais. De salientar, em especial, o recrutamento e formação de técnicos especializados, de forma a apoiar tanto a opção do regresso, como a de integração no estrangeiro, sem corte das ligações ao país.
De início a emigração europeia absorvia, quase completamente, o centro das atenções. A partir de 80, com o CCP como plataforma de diálogo, vai-se alargando o enfoque dos outros continentes, às comunidades mais antigas, à diáspora. As políticas de género embrionárias datam de 1985, com a tentativa de compensar a ausência feminina no CCP – Málice Ribeiro, em representação dos “media” de Toronto foi uma das raras mulheres a distinguir-se nesse forum.
 A adesão à CEE, em 1985, deu aos portugueses a liberdade de circulação no espaço comunitário, mas não grandes oportunidades de a aproveitar, em concreto…Os fluxos migratórios, que persistiram, dirigiram-se a novos mercados de trabalho, a Suiça, o Médio Oriente – em regra, através de projectos temporários, de curta duração.
 Portugal queria afirmar o seu sucesso, como parceiro igual num “clube de ricos”, e proclamava, no discurso oficial, que deixara de ser um país de emigração e se convertera em país de imigração. Era uma proclamação prematura, mas serviu de pretexto para o
desmantelamento dos serviços da emigração, que foram integrados na Direcção Geral dos Serviços Consulares, perdendo toda a sua autonomia. Pela mesma altura, na transição da década de 80 para 90, é desactivado o CCP, que ressurgiria em 1996 em novos moldes (com eleição por sufrágio directo e universal dos portugueses de passaporte, perdendo a sua componente de representação da diáspora)
Só em fins de século, com o lançamento de grandes obras públicas, se inicia, de facto o processo da imigração em massa, com preeminência de Europeus de leste e do Brasileiros

3 -  Contra todas as expectativas, quando se realizara já a parte da profecia de um Portugal acolhedor de estrangeiros, em fins do século passado, eis que ressurge a emigração, no século XXI, desmentindo a outra metade do prognóstico, a de um Portugal onde acabara, para sempre, a necessidade premente de emigrar.
É um êxodo que atinge proporções dramáticas, ameaçando ultrapassar os números da década de 60. O Secretário de Estado José Cesário enfrenta, sem sofismas, essa realidade e fala em mais de 120.000 partidas, ano após ano.
Emigração temporária, de homens pouco qualificados, à maneira tradicional, ainda constitui a maioria, mas é a chamada “nova emigração”, de profissionais altamente qualificados, o fenómeno inédito de “brain drain”, que sobressai, deixando os outras na sombra… De facto, partem todos os que podem partir, fugindo da falta de horizontes de esperança – académicos, operários, jovens e menos jovens, mulheres e homens. Um dos países mais envelhecidos do mundo, esvai-se mais e mais, dispersa-se mais do que nunca, nos mais improváveis cantos da Terra! É uma constatação assustadora….
 De positivo, é de realçar a escolha crescente do espaço lusófono, sobretudo pelos que têm formação superior. Em Angola são já mais de 100.000, o Brasil está de volta neste roteiro de destinos (pela primeira vez, coincidindo com grandes núcleos de brasileiros espalhados por todo o Portugal). Moçambique e até Macau e Cabo Verde também (Cabo Verde, que já foi a maior comunidade estrangeira a viver, entre nós, e que mantém toda a importância).
Este intercâmbio dentro do “nosso mundo”, é facilitado por uma Europa em desagregação, que, perdido o cimento solidário e humanistas dos seus princípios fundadores, ameaça já a livre circulação dos cidadãos europeus - na dominante Alemanha, no Luxemburgo, no Reino Unido, por todo
o lado…
É a hora de Portugal dar, estrategicamente, prioridade à lusofonia, num desígnio de vivência em comum – a começar pelos povos, que é sempre melhor do que principiar pelos Estados, como o demonstra a malogro do projecto europeu…A aprofunda no enlace de migrações, nos dois sentidos
Portugal só tem futuro, se conseguir compensar a sua calamitosa situação demográfica, com o apelo, mal o permita o crescimento económico, à vinda em massa de jovens estrangeiros, e ao retorno - porventura muito mais incerto -  dos portugueses, mormente, dos profissionais de elevado estatuto… Não defendendo o fechar de fronteiras à demanda de outros estrangeiros, defendo, sim, uma activa política de convocação dos povos lusófonos, que a nossa Constituição fundamenta, ao atribuir-lhes um estatuto de direitos equiparável aos da nacionalidade (sob condição de reciprocidade para os portugueses)
O nosso destino está, pois, dependente de um infindo vaivém de vagas humanas, que as políticas devem saber acolher e projectar. Lá fora, a expansão da língua e da cultura pela emigração e pela diáspora – com a diplomacia cultural do MNE, da SECP, do Instituto Camões da RTPI, do CCP (na sua veste de congregação do movimento associativo). No interior, o desenvolvimento e o equilíbrio demográfico do país com políticas de hospitalidade e perfeita integração dos imigrantes que hão-de vir   


Maria Manuela Aguiar

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

MANUELA CHAPLIN, MULHER DE ABRIL

Conheci Manuela da Luz Chaplin em 1980, na minha primeira visita
oficial às comunidades portuguesas da América do Norte. Com o seu
cabelo revolto, os olhos muito azuis, uma bela voz forte, que se fazia
ouvir em discurso assertivo, reivindicativo, ousado... Recordo-a
claramente, a única voz feminina entre as dos homens, que eram, então,
o rosto invariável de dirigismo associativo... Uma mulher para se
impor, nessa época, em comunidades da emigração conservadoras e
fechadas, precisava de ter qualidades excepcionais, antes de mais,
tinha de ter coragem e tinha de ter razão - a primeira, era a condição
prévia para tomar a palavra, a
segunda imprescindível para ser ouvida e respeitada.
As questões que colocava, com sinceridade e veemência, pedindo
respostas, eram as dos seus concidadãos, as das mulheres, as dos mais
marginalizados. Não eram preocupações consigo, eram causas!
Até no vestir, sempre à vontade, descontraída e simples, se revelava
como alguém para quem o "social" queria dizer solidariedade e não
convívio elitista. Logo nesses momentos iniciais em que a escutei as
suas críticas pertinentes às "políticas de indiferença" dos governos
de Portugal para com os emigrantes da América, incluía-a em uma de
duas categorias de militantes que sempre me foram particularmente
simpáticos -sindicalistas e missionários! Só depois vim a saber que,
órfã de pai, desde os 3 meses de idade, viveu os seus anos de infância
em Moçambique, numa missão protestante, onde a mãe era professora de
português.
Manuela da Luz veio estudar para Lisboa. Na Lisboa salazarista,
revoltou-se contra a mesquinhes e a misoginia da ditadura, a situação
opressiva de submissão da mulher. A palavra submissão feminina não
existia no código de conduta daquela jovem inteligente e radical. Foi
a revolta que e levou para a América, em 1948. Aí encontrou o que
procurava: liberdade! Liberdade de pensamento, liberdade de expressão,
liberdade de lutar pelas sua ideias, liberdade para “libertar”outras
mulheres da passividade e da subjugação, liberdade para fazer dos
imigrantes portugueses, mulheres e homens, cidadãos da América. Uma
cruzada para o resto da sua vida!
Muitos anos mais tarde, haveria de escolher para a capa do um livro
seu, sobre as portuguesas dos EUA, a estátua feminina da Liberdade, de
Ellis Island  - porta de entrada no” novo mundo” para tantos milhões
de mulheres e homens…
Manuela foi ela própria uma emigrante/imigrante exemplar – porque
nunca deixou de ser apaixonadamente portuguesa e tornou-se não menos
apaixonadamente americana.
Soube integrar-se plenamente na vida do novo país, na sua vida
política, social e cultural e sempre quis ajudar os outros portugueses
a alcançarem a mesma alegria e orgulho por serem luso-americanos.
Foi precisamente nesse segmento em expansão do “luso americanismo” que
se centrou a sua acção, com especial enfoque nas mulheres.
Manuela da Luz Chaplin foi, como não podia deixar de ser, pela
proeminência do seu curriculum comunitário, uma das emigrantes
convidadas, em 1985, para o 1º Encontro das Mulheres Portuguesas no
Associativismo e no Jornalismo – onde entre tantas notáveis, se
destacou, em múltiplas intervenções.
Citar algumas das suas declarações, recolhidas nas actas do "Encontro"
é uma forma de la ter, entre nós, nestas jornadas de reflexão sobre o
25 de Abril, sobre a projecção qu a revolução teve, concretamente,
nos EUA, nas nossas comunidades, na participação feminina. Embora não
fale de si, adivinha-se o entusiasmo com que acompanhou o renascimento
da democracia em Portugal, assim como a sua contribuição pessoal para
repercutir o eco da revolução de Abril entre os portugueses, do outro
lado do Atlântico:
“Após o 25 de Abril, a mulher portuguesa nos EUA demonstrou uma rápida
transformação no conceito social e na realização dos seus direitos
humanos, devido à influência de elementos femininos mais evoluídos”
Também sobre um dos temas que a AEMM trouxe ao debate neste ano de
2014, as migrações de retorno de Angola e Moçambique, se pronunciou.
 Vamos ouvi-la, à distância de quase 30 anos, elogiar a nova vaga de
emigração dos anos 70, com uma componente de retornados de África, e,
genericamente, mais urbana, mais qualificada, integrando muitas
mulheres “cuja bagagem intelectual e profissional lhes proporcionou
acesso a campos de acção até aí raramente tocados por mulheres
portuguesas emigradas nos EUA. A este novo elemento juntam-se jovens
de 1ª e 2ª geração, que no país acolhedor obtiveram um nível de
cultura e de preparação que as eleva a
posições de destaque e influência…”
Mas logo acrescenta: “…o homem português continua relutante a
adaptar-se a esta evolução e ao reconhecimento da igualdade da
mulher”. “Raras vezes a mulher é convidada a participar na direcção e
na
administração das associações. (…) Todavia, muitas organizações Luso
americanas têm no seu elenco directivo, presidentes e outros elementos
directivos femininos. Nos últimos 10 anos, várias associações não só
são dirigidas, como foram fundadas por elas.
Do curriculum abreviado de Manuela Chaplin, inserido na publicação do
Encontro Mundial de 1985 consta que é licenciada em Direito e em
Jornalismo e membro das seguintes organizações:
 - Fundadora e directora executiva do Centro de Cultura Portuguesa de New Jersey
-Presidente e fundadora da Associação Luso-Americana Republicana de New Jersey
 - Presidente da Federação das Associações Luso-Americanas
Republicanas da Costa Leste
-Directora e fundadora da Congresso Luso_Americano de New Jersey
-Secretária Executiva dos Grupos Étnicos de New Jersey
-Presidente da Área Regional da Costa Leste da Associação Nacional dos
Grupos Étnicos Republicanos dos EUA
É já um impressionante elenco da sua multifacetada intervenção cívica,
da sua liderança não só na comunidade portuguesa, e nos outros grupos
étnicos que formam o imenso mosaico multicultural do país, mas também
na política americana, como activa militante do Partido Republicano.
Esta intransigente opositora da ditadura portuguesa era republicana e
monárquica, tendo fundado e presidido, a partir da década de 90, à
Real Associação de NJ. E a política portuguesa também a atraía - foi a
primeira mulher presidente do núcleo do PSD dos EUA.
Uma mulher, lutando pelos direitos de cidadania, em associações
mistas, em organizações políticas, sem nunca esquecer as mulheres. (o
papel  fundamental que, posteriormente, viria a ter na Associação MM é
referido, detalhadamente, no testemunho de Rita Gomes).
Às mulheres dedicou, em 1989, um livro extraordinário em que retrata
muitas emigrantes e no qual deixa, também, um retrato de si própria,
dos seus valores e interesses humanistas, que gostaria de destacar
neste breve depoimento O título, na versão portuguesa, é “Retalhos de
Portugal dispersos pelos Estados Unidos da
América. Mulheres Migrantes de Descendência Portuguesa. (Na versão
inglesa, "Scattered fragments of Portugal in the United States of
America - Women of Portuguese Descent).
São 30 narrativas de vida, escritas com brilho e com uma intenção
clara de desvendar, a partir de casos individuais, a história feminina
da emigração portuguesa na América, em diferentes épocas e contextos –
a parte mais desconhecida, mais subvalorizada da presença portuguesa.
São relatos verdadeiros, singulares, fascinantes… Para muitas
portuguesas, a emigração foi uma oportunidade de se transcenderem, de
tomarem em mãos o seu destino, para outras teve o sabor da
adversidade…A sorte e o azar, o mérito de saber lutar ou a a falência
de não poder resistir… A atracção do novo, a americanização, ou a
resistência cultural e afectiva à perda da identidade. As segundas
gerações, para as quais Portugal é uma realidade remota - ou não...
É tudo real, mas lê-se como um romance, feito de muitos capítulos. A
visão da própria Manuela não pretende ser necessariamente neutra. Os
factos estão lá, objetivos, precisos, mas sente-se, muitas vezes, a
empatia e compreensão da autora e pelas pessoas e pelas suas circunstâncias.…
Manuela Chaplin pertence, igualmente, à história que começa nestes
fragmentos de Portugal, nestas múltiplas experiências de América – e a
sua própria trajectória bem merece ser escrita por alguém que tenha o
seu talento e intuição..
Na nota “Sobre a Autora”, que prefacia o livro, Maria Fernanda Alves
Morais diz-nos: “ao longo dos anos em que me tem sido dado o
privilégio da sua amizade, encontrei sempre a sua casa acolhedoramente
aberta a quantos, oriundos de Portugal, procuram o seu auxílio ou o
seu conselho. Dias úteis ou feriados…pacientemente a sua hospitalidade
e solicitude nunca falham. Daí a alcunha que carinhosamente lhe deu
seu marido, Charles Chaplin, de “Nossa Senhora dos Portugueses”
Assim era a mais americana das portuguesas, a mais portuguesa das americanas.
Manuela Chaplin, Mulher de Abril, antes e depois desse 25 Abril, que
agora comemoramos, homenageando-a, saudosamente...

domingo, 7 de dezembro de 2014

DEBATE NA UNIVERSIDADE DE BERKELEY

BERKELEY Abril 2014


1 - Até 1974, as revoluções portuguesas não “revolucionaram” nunca as políticas de emigração – nem sequer, verdadeiramente as reformaram. Há uma linha de continuidade multissecular na forma de olhar o fenómeno migratório, que já vem do antecedente, do período de colonização de possessões ultramarinas, das ilhas do Atlântico à Africa, do Oriente ao Brasil… A distinção entre esses dois períodos é, aliás, difícil de fazer, quando se olham os projectos individuais no quadro do projecto estatal, como salienta Joel Serrão e, de um modo geral, os estudiosos deste passado longo.
O êxodo ininterrupto para o Brasil, que foi o grande palco onde se deu a transição entre colonização e emigração bem o comprova – era ainda colónia ou Reino unido, e já atraía, incessantemente, mais voluntários do que a Coroa estimava como bastantes. E, por isso, as políticas de emigração visaram, fundamentalmente, limitar as partidas – ou mesmo
proibi-la – sobretudo as das mulheres, a s migrações de grupo, de família. Preocupações demográficas, financeiras, uma visão economicista das migrações, e, consequentemente, uma mesma ideia do interesse público, sobrepuseram-se, sempre, aos direitos individuais.
A Revolução de 1910 não veio alterar nem estas correntes de pensamento dominante, nem a ordem jurídica, e a “praxis” vigente
O primeiro gesto revolucionário é, assim, a imposição da liberdade de emigrar, expressamente consagrada na Constituição de 1976. Com ela, o cidadão passou a ocupar o centro da decisão, a ser sujeito de novas políticas personalistas.

2 - A abertura de fronteiras não foi o único ímpeto libertário de Abril – seguiu-se o reconhecimento nas leis da República do princípio da igualdade de todos os cidadãos portugueses, não só no rectângulo continental e nas ilhas atlânticas, mas no imenso espaço da emigração portuguesa. O Estado assumiu, consequentemente, o seu dever de protecção dos nacionais, onde quer que estivessem. A democracia era, pela primeira vez, concebida à dimensão nacional, e seria aprofundada na transição do "paradigma territorialista" para o
"paradigma personalista", focalizado na pessoa, nos seus direitos individuais, num verdadeiro “estatuto do expatriados” em constante aperfeiçoamento, a nível interno e, também, a nível internacional, através de novas convenções e acordos multilaterais. O direito dos expatriados baseia-se na sua pertença a uma comunidade demarcada, não apenas por linhas de fronteira geográficas, mas pelos sentimentos de identidade nacional. Representa o encontro do Estado com a Nação. É uma via aberta à procura de formas de inclusão dos expatriados na vida do país. Não é contudo, um processo acabado, nem no nosso, nem em outros países de emigração.

3 - Subsistem múltiplas restrições, nomeadamente no campo da participação política: a Constituição e as leis limitam o número de representantes dos círculos de emigração na Assembleia da República: o voto na eleição do Presidente da República foi negado até 1997,   e ainda o é nas eleições autárquicas e autonómicas. Também em matéria de direitos à prestações sociais se pode referir a inexistência de pensões mínimas, cujo sucedâneo é um esquema de atribuição de reduzidos subsídios em casos de pobreza extrema – o “apoio social a idosos carenciados”, ASIC). E até no que respeita ao acesso dos filhos dos emigrantes ao ensino da língua e da cultura, que é incumbência constitucional do Estado, desde a revisão de 1982, a desigualdade subsiste, por imperfeito cumprimento desse dever pelos governos, embora mais numas comunidades do que noutras (com as mais distantes, fora da Europa, a ficarem dependentes da sua própria iniciativa

3 – No ímpeto libertário da revolução se desfez, no imediato, a política colonialista, a visão decadente e anacrónica de um Portugal do Minho a Timor, do mesmo passo que se revelava à “inteligentzia” nacional, aos políticos e à sociedade civil, a dimensão humanista da presença portuguesa universal, através da emigração e da diáspora – uma dimensão que andava esquecida e que se devia, integralmente, às pessoas, não ao Estado ou aos regimes.
As comunidades portuguesas, com as suas próprias e poderosas organizações – que se tinham substituído ao Estado ausente, no plano social e cultural - impuseram-se como parceiras obrigatórias da execução das novas políticas, incluindo as que se dirigiam aos portugueses, na defesa de direitos individuais. As políticas de protecção das pessoas, de informação, os projectos culturais, passaram, frequentemente, por elas.
O Conselho das Comunidades Portuguesas, uma câmara de audição de representantes das associações e do jornalismo em todo o mundo, veio, a partir da década de 80, dar forma oficial a esse diálogo entre os governos e as comunidades orgânicas.

4 – Nem sempre foi fácil o entendimento, o acordo, ou a satisfação das reivindicações expressas no CCP ou fora dele.. O que não aconteceu logo nos momentos primordiais de arrebatamento colectivo, no auge da Revolução, caiu, depois, no andamento gradual e, quantas vezes hesitante, do reformismo. E por isso, no que respeita aos direitos dos emigrados, às políticas que se dirigiam aos seus problemas específicos, ao aparelho burocrático, que lhes deu sustentáculo, podemos falar de lenta evolução, com alguns retrocessos de permeio. Mesmo quando havia consenso nas grandes linhas de actuação concertadas com as comunidades, os meios eram escassos…
 São estas 4 décadas de reformismo, no domínio das migrações que a AEMM propõe a debate. ao longo deste ano de 2014, num ciclo de colóquios, iniciado em Lisboa, no Palácio das Necessidades  com uma motivadora intervenção do Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas. O cicço prossegue, aqui, integrado nas comemorações  da Revolução promovidas na Universidade de Berkeley. Seguir-se-ão colóquios e mesas redondas na Universidade Aberta de Lisboa, na Sorbonne, no Arquivo Municipal de Gaia, e na Universidade de Toronto – as duas últimas especialmente voltadas para as migrações de retorno de África

5 - Dos movimentos migratórios registados nos últimos 50 anos em Portugal, podemos dizer que constituíram as maiores vagas de saída e retorno jamais vistos numa história pontuada por ciclos infindáveis de partidas em massa, mas nunca de regressos tão vultosos. Estes movimentos condicionaram decisivamente as prioridades políticas dos Executivos, apesar de só um deles se ligar, directamente, à Revolução – o retorno de Africa, que trouxe de volta mais de 800.000 portugueses, em circunstâncias dramáticas, desapossados de todos os seus bens e psicologicamente abatidos pelo infortúnio. “De jure” não eram emigrantes nem refugiados, todavia enfrentavam dificuldades análogas no seu esforço de reinserção
A crise económica europeia e geral pusera abruptamente termo ao êxodo que, entre 1950 e 1973, envolvera quase dois milhões de portuguesas. Muito deles preparavam o regresso ou já o tinham concluído, de uma forma voluntária, discreta, bem sucedida – os primeiros estudos realizados por equipas de investigadores universitários, sobre o censo de 1980, surpreenderam o país, quando foram divulgados, em 1984 – mais de 500.000 já estavam de volta, outros tantos viriam, previsivelmente, até final do século.
Em 1974, só o Brasil abriu, de forma incondicional, o seu território aos retornados de Africa. Algumas dezenas de milhares ficaram na Africa do Sul, alguns centenas dispersos por outros continentes. A Europa apenas permitia entradas para reagrupamento familiar, beneficiando, com isso, maioritariamente a imigração feminina. Escassas oportunidades surgiram no Médio Oriente, num país europeu, que foi excepção à regra, a Suiça, a partir de 80 – e pouco mais,

6 – As acções desenvolvidas no pós 25 de Abril, foram, naturalmente, dirigidas a ajuda aos emigrantes, cuja situação precária era conhecia – na Europa, sobretudo – e de apoio aos movimentos de regresso.
Foi criada, em 1974 a Secretaria de Estado da Emigração, - que iria estendendo a sua rede de delegações no estrangeiro (núcleos de assistentes sociais, de animadores culturais, professores de português, enviados pelo Ministério da Educação). No país reforçou, gradualmente, as suas estruturas, a Direcção-Geral, o Instituto de Emigração, dotado de autonomia administrativa e financeira. Foram recrutados e a formados técnicos altamente especializados – um património humano que lhe permitiu actuar utilmente, mesmo quando os orçamentos para acções eram reduzidos. Ao associativismo continuaria a caber um papel de primeiro plano, aspecto social e cultural
De sucesso se pode, certamente falar, principalmente, nas políticas de apoio ao regresso, a dos recém-chegados de Africa (a cargo da “Secretaria de Estado dos Retornados”) e da emigração., Nenhum país, em circunstâncias, de algum modo, semelhantes, conseguiu resultados comparáveis. Portugal perdera, na década anterior, quase dois milhões de pessoas. Como foi possível reabsorver, em época de tremenda crise económica, um número equivalente nos anos seguintes? Uma das respostas estará, seguramente, no diferente perfil de quem partiu e de quem veio, das circunstâncias em que veio e do lugar que escolheu para viver…E, numa boa parte, também, no acerto das políticas…Políticas de incentivo ao investimento no interior. Muitos retornados de África, como a maioria dos emigrantes não escolheram para residir as grandes cidades, mas as suas terras de origem, onde os laços familiares e a solidariedade de vizinhos eram facilitadores da integração. Áreas que os emigrantes haviam despovoado e que, então, repovoavam, com outros meios de subsistência, reformas, capitais, projectos de negócios… De Africa, os portugueses traziam experiência de vida, de empreendimento e a vontade de recomeçar.
Instrumentos muito concretos, como isenções fiscais e alfandegárias, as contas de poupança crédito, empréstimos a juro bonificado foram bem utilizadas pelos emigrantes, como o foram as verbas adiantadas para projectos de investimento dos retornados da descolonização – em larga medida financiados por um Fundo especial concedido pelo governo dos EUA.

7 – Estabilizados os desmesurados fluxos migratórias, melhor conhecida a realidade da vida das comunidades portuguesas e dos cerca de 5 milhões de concidadãos dispersos pelo universo, o olhar dos governantes, a partir da década de oitenta, sem prejuízo da atenção dada às questões do regresso e ao processo de adesão à CEE – dirige-se, também, para outros continentes, para a emigração mais antiga, para a Diáspora, com um acento nas políticas culturais. O CCP pretendia ser um elo de ligação cultural das diásporas, embora, nos seus trabalhos, a componente social da emigração recente e a vertente política e mais conflitual, introduzidas pela representação da Europa, tenham tido sempre maior visibilidade mediática,
A década de 90 foi dominada pelo discurso oficial do fim da emigração e do início da imigração (cujo anúncio era, aliás, prematuro…) e marcada pela extinção dos serviços autónomos da Emigração, que foram anexados pela Direcção Geral dos Assuntos Consulares e das Comunidades Portuguesas. E também pelo fim do CCP, cujas reuniões plenárias cessaram em 1988. Em 1996 O Conselho seria recriado, num novo modelo, com eleição por sufrágio directo e universal de portugueses de passaporte – excluindo os lusos descendentes, o círculo mais lato da Diáspora lusófona.
O maior equilíbrio no relacionamento do Estado com as comunidades de dentro e fora da Europa não foi, porém, prejudicado, beneficiando com a criação da RTPI, em 1990 - o maior investimento jamais feito na aproximação ao mundo disperso da lusofonia, que uma melhoria da qualidade da programação poderá potenciar enormemente.

8. No início do século XXI, Portugal tornara-se, de facto, um país de imigração, com a chegada em massa de europeus de leste, após a queda do muro de Berlim, e de brasileiros. Todavia, não deixara de ser definitivamente terra de emigração…Um novo ciclo se desenha, um novo êxodo já comparável ao dos anos sessenta… Fala-se de nova emigração muito qualificada, de “brain drain” , de uma forte componente feminina… Na verdade, partem todos os que podem partir…A principal característica desta nova vaga é a  maior heterogeneidade e dispersão geográfica. Predominam os que vão como trabalhadores temporários, com o antigo perfil – sexo masculino, baixas qualificações. Mas pela primeira vez, há muitos profissionais altamente qualificados, e é sobretudo neste grupo que se encontram mulheres a emigrar autonomamente.
A Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas perdeu muitos dos meios humanos e materiais de intervenção de que laboriosamente se havia dotado na primeira década pós revolução, mas mantém a tradição de convívio e audição das pessoas sedimentada ao longo de 40 anos. e a estratégia de mobilização através da cooperação com o movimento associativo, em particular no que respeita aos mais jovens, aos potencialmente mais intervenientes, às mulheres – de que vai, em seguida, falar, detalhadamente a Profª Graça Guedes.
Esta tem sido uma inteligente prática comum a sucessivos Secretários de Estado no novo século – e, com ela se tem minimizado a insuficiência de recursos destinados à emigração (no caso da Secretaria de Estado, mas, mais globalmente, de todo o Governo, pois se trata, como é obvio, de um domínio que toca todos os sectores da administração pública)  

9 – Houve, neste século, progressos assinaláveis, sobretudo, no domínio legislativo: a recuperação automática da nacionalidade, com efeitos retroactivos, processa que se arrastava desde a aprovação da chamada Lei da dupla nacionalidade, em 1981; a votação de todos os recenseados no estrangeiro na eleição presidencial: o alargamento do estatuto de igualdade de direitos entre portugueses e brasileiros: a votação nas eleições para o Parlamento Europeu, dos cidadãos residentes fora das fronteiras da EU.
De mencionar, também, como medidas positivas: a extensão da rede do ensino de português fora da Europa, que cabe agora nas competências do Instituto Camões (integrado no Ministério dos Negócios Estrangeiros); a informatização dos serviços consulares; a multiplicação das permanências consulares, com que se procura combater o encerramento de alguns postos e a impossibilidade de instalar consulados em comunidades distantes; a reforma do CCP, em apreciação na Assembleia da República

10 – Olhamos o passado e vemos um povo que, ciclicamente, se evade de um pequeno território para todos os continente do globo, levando consigo e a língua e a presença pátria (ou mátria, como diria Natália Correia). Nenhuma revolução alterou esta realidade. O que o regime democrático trouxe de novo, desde 1974, foi, por um lado, a liberdade de assim ser, sem a vã oposição do Estado, e, por outro o reconhecimento dos laços de cidadania, e da existência e força das comunidades extra territoriais.
Olhamos prospectivamente as próximas décadas em Portugal e vemos um país que é o 6º ou o 7º mais envelhecido do planeta, fatalmente dependente da emigração e da imigração para sobreviver. Só com muitos jovens estrangeiros, numa sociedade aberta e multicultural, só com o eventual regresso dos jovens portugueses se pode pensar a sustentabilidade demográfica,
 O futuro de Portugal passa essencialmente por políticas económicas, sociais e culturais que incentivem os movimentos de regresso e de uma imigração, de sinal mais, em crescendo, de uma emigração, em decréscimo, e de diáspora e lusofonia em imparável expansão.


Maria Manuela Aguiar