terça-feira, 29 de maio de 2018

"MUNDO PORTUGUÊS" ANIVERSÁRIO

No 48º aniversário de O MUNDO PORTUGUÊS Em janeiro de 1980, iniciei, enquanto responsável pelo pelouro das migrações, o que seria um longo caminho de colaboração com o "O Emigrante”, então, a completar a primeira década de uma vida intensa, focada na grande vaga de emigração para a Europa, com o propósito de ser a voz daqueles portugueses - os mais marginalizados e esquecidos, tanto pelo Estado (que obrigava a maioria a sair dramaticamente, "a salto"...), como pela sociedade e, até, pelos próprios "media" nacionais. Desde sempre o vi como o aliado em que se podia confiar para trazer testemunho de situações individuais e da evolução da vida coletiva, e para levar a núcleos tão dispersos notícias do país, de uma democracia em progresso, e informações sobre o conteúdo novas leis, medidas e projetos que os afetavam diretamente - o que configurava, a meu ver, autêntico “serviço público”! . No rol infindo das minhas memórias de partilha de ações concretas com O Emigrante- Mundo Português, recordarei três, que são prova evidente da identidade ou da vocação cívica e solidária de um periódico diferente dos outros: A CRIAÇÃO DO CCP O maior destaque vai para a sua participação, sobretudo através do Dr. Carlos Morais, no Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP), desde o momento matricial. O CCP foi, em 1980/81, o instrumento de uma política de aproximação e diálogo do Governo, que visava dois objetivos tão inovadores quanto ambiciosos. O primeiro era o de constituir uma plataforma de encontro e cooperação entre portugueses, a nível mundial, e o segundo, não menos relevante, o de garantir uma representação específica das comunidades face ao Poder, complementando um sistema constitucional que apenas concedia aos expatriados o voto para a eleição de quatro deputados. Este jornal não se limitou a fazer a história do nascimento do CCP como "instituição" pioneira, eleita pelo movimento associativo, e em que se integravam, numa secção autónoma, os "media" das Comunidades do estrangeiro. A transposição da lei para a realidade, da vontade do legislador para a vontade dos destinatários, foi uma aventura extraordinária, que começou pelo radical afrontamento entre emigração europeia, muito partidarizada, e a emigração transoceânica/Diáspora, e foi construindo, de debate em debate, democraticamente, uma comunidade de trabalho e destino, que soube incorporar as naturais divergências, que haveriam de persistir sempre. Foi num tal clima que a qualidade jornalística de "O Emigrante" granjeou aplauso unânime dos conselheiros! E até veio a ser considerado, também, por consenso, um verdadeiro “porta-voz do CCP! E, de facto, no grande forum para a internacionalização ou globalização do associativismo português, o nosso primeiro "jornal global" era o que perfeitamente correspondia à sua dimensão e perspetivas POLÍTICAS PARA A IGUALDADE DE GÉNERO Num país que, ao longo de cinco séculos, sempre, discriminara as cidadãs portuguesas, proibindo ou dificultando as migrações femininas, a primeira medida positiva foi a realização, em 1985, do "1º Encontro Mundial de Mulheres Portuguesas no Associativismo e no Jornalismo" (por recomendação do CCP e para colmatar a quase total ausência de mulheres na composição desse órgão representativo e consultivo). "O Emigrante" esteve lá e, quando foi criada, em 1993, a associação de estudo, cooperação e solidariedade para com a "Mulher Migrante", foi, um dos seus sócios fundadores, através do seu Diretor Carlos Morais. Na sede do jornal se fez o lançamento público da nova organização, que viria a converter-se, a partir de 2005, em parceiro constante de sucessivos governos na execução de políticas para a igualdade nas Comunidades Portuguesas. IGUALDADE DE DIREITOS POLÍTICOS Uma das principais recomendações reiteradas do Conselho era o alargamento dos direitos políticos dos emigrantes, e, sobretudo o voto na eleição do Presidente da República. "O Mundo Português tomou a iniciativa de lançar uma campanha universal pela reivindicação desse direito. Com leitores em todos os continentes, quem o poderia fazer com a mesma abrangência? Quando o voto foi, finalmente alcançado, na revisão constitucional de 1997, pode, pois, reclamar vitória, em nome dos cidadãos das comunidades! O meu abraço de parabéns ao "Mundo Português", por ser, há 48 anos, como o quiseram os seus fundadores, um “jornal de grandes causas.”

A HORA DE DEFENDER O FUTEBOL PORTUGUÊS

1 -O tema violência no futebol tomou conta dos "media" e, em especial das televisões, desde a invasão da Academia de Alcochete e das cenas de terror perpetradas, ao que tudo indica, por membros de claques leoninas. Coisa jamais vista, até porque foi repetida e abundantemente "vista" em imagens, que correram o mundo e envergonharam o país. Para o presidente do Sporting foi apenas um acontecimento "chato", mas dentro da normalidade porque; segundo ele, "o crime faz parte do dia a dia". Não, não faz!. Foi um ato de "selvajaria", para usar o termo usado pelo Primeiro-Ministro, um ato que chocou, antes de mais, pela sua anormalidade. Vamos separar as águas... Nesta crise, que abala o SCP, eu distinguiria o que é, e o que não é, suscetível de generalização ao futebol como um todo. É-o toda a problemática do "hooliganismo" à portuguesa, enraizado nas claques. É preciso combatê-lo, implacavelmente. Não sei se a "Alta Autoridade para a Violência no Desporto", de que fala o Governo, pode acrescentar alguma mais valia... Essencial, sim, me parece o escrutínio dos registos de filiação nas claques, a exclusão de todos os cadastrados, a condenação destes crimes, com sanções pesadas e com a interdição absoluta de entrada nos estádios. Todavia, nem só de penas dissuasoras se faz a prevenção do crime, que deve partir da consciencialização dos dirigentes clubistas, do seu empenho em fazer a pedagogia dos valores desportivos e da lisura de comportamentos, que o emblema do clube exige. A Inglaterra teve, há décadas, o problema e resolveu-o. É um "case study". Sugiro que comecem por o estudar... Também a suspeita de fenómenos de corrupção agitou, entre nós, a época 2017/18. Não é vício exclusivo deste domínio - existe onde há poder, onde há dinheiro, e, no futebol, há ambos. Não atinge tudo e todos, mas está a ser objeto de investigações múltiplas e praticamente inéditas na liga principal - ao caso mais antigo dos "e- mails" do SLB, junta-se, agora, a suspeita de compra de árbitros e jogadores, por parte de colaboradores próximos de Bruno de Carvalho. A coexistência do "futebol-negócio" com o "futebol-desporto, é um sinal dos tempos. Contudo, isso não pode, de modo algum, significar negócios escuros, tráfico de influências, viciação de resultados. A ser verdade o que é, para já, suspeita, trata-se de uma situação dantesca, de um verdadeiro cataclismo! Há que aguardar... 2 - Admitindo que o "hooliganismo" do "comando" invasor da Academia ultrapassou os níveis de violência antes registados entre nós (e deixando em suspenso a hipótese de envolvimento em processos de corrupção), olhemos o que de singular e específico apresenta o drama que o Sporting vive Aparentemente, é um problema tão personalizado. que, se aqueles outros tiverem solução, pode ser fácil de resolver. Bastará para tal, a remoção de um só homem, que é cada vez mais, um homem só: o presidente Bruno de Carvalho. O dirigente desportivo que, numa inconcebível entrevista ao Expresso, revelou a sua crença na máxima de um tio-avô (excêntrico, sim, mas muito respeitado e a não confundir com o descendente) : "Para ter sucesso, a primeira coisa é criar fama de maluco. Depois, é só mantê-la". A essa fama Bruno de Carvalho fez jus, inteiramente. Só ela lhe terá permitido sobreviver às mais bizarras e insensatas atitudes contra antigos dirigentes do clube, contra treinadores de excelência, como Jardim e Marco Silva, contra os associados, que dele simplesmente discordaram, e, agora, até contra todo o plantel,contra Jorge Jesus!. Sucesso, porém, não conseguiu, bem pelo contrário - o populista terá perdido o seu povo e o clube, com ele, caminha para o abismo. Insolitamente, a cultura de agressividade exacerbada, a incontinência verbal, com que, de início, zurzia o inimigo externo, os competidores, foi resvalando para o interior do clube, em contornos de "guerra civil", como alguém lhe chamou. Quem poderá aceitar que todo o plantel seja objeto de públicos insultos, de ameaças de procedimento disciplinar e suspensão, numa fase crucial da época, ainda com tudo o que havia de mais importante para ganhar - Campeonato, acesso à "Champions" e Taça de Portugal? Quem poderá aceitar que passem sem uma palavra de censura do presidente, o lançamento, por claques do clube, de tochas sobre a baliza de Rui Patrício, no último jogo em casa. ou as tentativas de ataque na garagem de Alvalade, após o regresso da Madeira? Quem poderá aceitar, que, perante a sucessão de atos de violência impunes, ele, o presidente, não tenha acautelado, com reforços, a segurança dos jogadores nas instalações de Alcochete? Quem poderá aceitar que nem desculpas tenha pedido, pelas agressões de que foram vítimas jogadores, técnicos e funcionários do clube? Ele não se demite, mas tem de ser demitido. Obviamente. 3 - É durante estas tempestades mediáticas que, em Portugal, caem sobre o futebol, (sempre avassaladoras e passageiras, deixando, quando passam, tudo como dantes...) que se deve procurar o equilíbrio na avaliação do que corre bem e do que é preciso alterar radicalmente. Não nos esqueçamos, no futuro, de implementar a mudança, e não desvalorizemos, no turbilhão do presente, o que há de admirável no nosso futebol, em geral, e no SCP, em particular. Nenhum clube deu mais jogadores á nossa seleção campeã da Europa do que o Sporting! Patrício e William de Carvalho, alvos preferenciais da fúria das claques, foram dos que mais brilhante contributo deram para a vitória histórica, em Paris. Da sua formação saíram talentos como Figo ou Ronaldo, Quaresma... Lembremos que, em todos os continentes, há jogadores, treinadores e técnicos de futebol portugueses, que nos colocam à altura das grandes potências do desporto, como não acontece em outros domínios. Lembremos o campeonato da Europa de futebol, por nós organizado,que foi um fantástico exemplo de competência, de convívio entusiástico e pacífico de adeptos, dentro e fora dos estádios, que nem a derrota de Portugal no último jogo pôs minimamente em causa! Para mim, que não sou adepta do SCP, esta é a hora de manifestar solidariedade aos jogadores do clube, e a Jorge Jesus pelo seu exemplo de profissionalismo e pela coragem de estarem presentes na final da Taça. Qualquer que seja o resultado do jogo, eles já ganharam! 17 de maio Milénio Stadium - Toronto

domingo, 20 de maio de 2018

EUROPEANS LIVING ABROAD - RESOLUTION 1696 (2009) 1

Resolution 1696 (2009)1 Engaging European diasporas: the need for governmental and intergovernmental responses 1. Migration from other continents and from eastern to western Europe has long existed and will continue to spread as long as disparities persist between living standards, incomes and political situations. However, policies to manage the many challenges and opportunities that emerge with these movements have not kept pace with the development of this phenomenon. 2. The Parliamentary Assembly has been engaged in dealing with the issue of Europeans living abroad and their links to their homelands for the last fifteen years. It regrets that in the particular aspect of the establishment of links with European diaspora communities, policy making has been lacking. 3. There is nevertheless a growing understanding in Europe that labour mobility, if well managed, can be advantageous both for destination countries and countries of origin. How best to manage mobility, multiple identities and diversity in a way that can maximise engagement of diasporas both in countries of origin and host countries is a challenge that governments need to tackle today. 4. The Assembly considers it essential to strike and maintain a proper balance between the process of integration in the host societies and the links with the country of origin. It is convinced that seeing migrants as political actors and not only as workers or economic actors enhances the recognition of their capacity in the promotion and transference of democratic values. The right to vote and be elected in host countries and the opportunity to take part in democratically governed European non-governmental organisations can enable diasporas to endorse an accountable and democratic system of governance in their home countries. Policies that grant migrants rights and obligations arising from their status as citizens or residents in both countries should therefore be encouraged. 5. The Assembly regrets that, notwithstanding its long-standing calls to revise the existing models of relations between expatriates and their countries of origin, relations between member states of the Council of Europe and their diasporas are far from being harmonised. Many member states from central and eastern Europe are only beginning to recognise the potential development and other benefits of engaging their diasporas in a more institutionalised manner, especially in the context of the current global economic crisis. 6. The Assembly reiterates that it is in the interest of member states to ensure that their diasporas continue to actively exercise the rights linked to their nationality and contribute in a variety of ways to the political, economic, social and cultural development of their countries of origin. It is convinced that globalisation and growing migration may have an impact on host countries in many positive ways by contributing to building diverse, tolerant and multicultural societies. 7. The Assembly acknowledges that states have particular responsibilities towards their expatriate communities where such communities form a significant national minority in another state. However, it disapproves of all forms of political manipulation of diaspora communities, including as a means of promoting expansionist policies. For example, the Assembly maintains that any large-scale “passportisation” should be regulated by bilateral agreements between the states concerned and must abide by the principles of international law. 8. In the light of the above, the Assembly calls on the member states of the Council of Europe to focus on elaborating migration policies that are comprehensive and regard diasporas as vectors of development, to promote an institutional role for diasporas through dialogue and regular consultation and to offer policy incentives to diaspora communities or representatives willing to engage in homeland development. 9. In particular, the Assembly encourages member states, as countries of origin, to adopt the following policy incentives: 9.1. civil and political incentives: 9.1.1. develop institutions and elaborate policies for maximum harmonisation of the political, economic, social and cultural rights of diasporas with those of the native population; 9.1.2. ease the acquisition or maintenance of voting rights by offering out-of-country voting at national elections; 9.1.3. involve diasporas in policy making, in particular concerning the issues of nationality and citizenship, as well as political, economic, social and cultural rights; 9.1.4. gather information on nationals living abroad and allow them to have their own representation in domestic politics, through the creation of ministries of representation for diasporas; 9.1.5. use the channel of embassies and consulates abroad to build confidence with diasporas through the provision of specific services and useful information; 9.1.6. promote diaspora networks and associations by drawing up a road map for supporting their establishment, and discuss the ways in which home and host countries can become active partners with diaspora networks; 9.2. fostering return: 9.2.1. put in place policies to encourage permanent or temporary return and promote “brain gain”; 9.2.2. create all necessary conditions for diasporas willing to return to their home countries to foster adaptation and ensure full enjoyment of their tax, retirement and other economic benefits; 9.2.3. facilitate the movement of diasporas (multiple-entry visas, long-term residence permits, entry concessions for diasporas with host country nationality); 9.3. encourage remittance flows through proactive legislative and regulatory policies, which avoid the application of double taxation, create proper legal and regulatory frameworks allowing effective use to be made of remittances in various investment areas and link remittances to other financial services (savings accounts, loans, social insurance, etc.); 9.4. promote diasporas’ entrepreneurship through transparent customs and import incentives, access to special economic zones and to foreign currency accounts, and inform them about investment opportunities; 9.5. develop policies for bona fide recognition of diplomas and certificates obtained outside the country of origin. 10. The Assembly encourages member states, as countries of destination, to: 10.1. review migration policies with a view to according migrants greater rights and obligations, harmonising as much as possible the rights of non-citizen diasporas with those of citizens in the host countries; 10.2. consider the possibility of granting migrant workers the right to vote and to stand in local and regional elections after a residence period of five years; 10.3. adopt a more flexible legal framework that offers regular migrants the possibility of unrestricted movement between country of origin and destination country, while preserving their immigrant status in the destination country; 10.4. elaborate policies allowing migrants to participate in the development process in countries of origin; promote training and capacity-building programmes, transfer of competence, know-how and flows of foreign capital and conduct development projects coupled with development aid; 10.5. actively involve members of diaspora communities in the elaboration of integration programmes for labour migrants. 11. The Assembly encourages the international community, and in particular the International Organization for Migration (IOM) and the International Labour Organization (ILO), to stay actively involved in the issues relating to diasporas and development. In particular, it calls upon relevant partner organisations to: 11.1. clarify the different concepts, classifications and definitions concerning diasporas with a view to harmonising the concept at European level, taking into account the evolving and dynamic nature of the concept of diaspora; 11.2. facilitate collaboration between diaspora organisations, including professional organisations, and other European development non-governmental organisations through incentives such as partnership funds, which could make it possible for the mainstream development agencies and the diasporas to engage with each other; 11.3. encourage collaboration among academic institutions and support international research projects related to diasporas and the migration-development nexus issues. 1. Text adopted by the Standing Committee, acting on behalf of the Assembly, on 20 November 2009 (see Doc. 12076, report of the Committee on Migration, Refugees and Population, rapporteur: Mrs Bilozir). See also Recommendation 1890 (2009)

Prefácio para UMA HISTÓRIA DE VIDA (FASCINANTE)

De novo, em Portugal, o nosso admirável Cônsul em Melbourne - homenageado pelo Secretário de Estado numa reunião mundial de cônsules honorários, depois por várias Câmaras do Alto Minho, que é o seu berço. A sua autobiografia esteve, de novo em debate, com jovens para quem o seu percurso de vida é fonte de esperança e de inspiração, porque lhe diz "Yes, you can". Está hoje de partida para a Austrália, com a promessa de voltar em breve. No meu prefácio, um breve relance pelos seus intensos mais de noventa anos de vida. O PREFÁCIO Numa linguagem simples, límpida, coloquial. que nos prende da primeira à última página, esta narrativa na primeira pessoa do singular não cessa de nos surpreender e encantar, através de uma vertiginosa sucessão de factos, de aventuras, e de encontros com pessoas, no quadro de variadas realidades sócio-culturais, em paragens longínquas..É uma trajetória individual meteórica que acompanhamos, aceitando o convite do Autor para uma longa viagem de memórias, que atravessa épocas, regiões, continentes, desde remotos lugares do Alto Minho, como Cousso, Cubalhão, a Serra da Peneda (onde um menino orfão e desprivilegiado pareceria condenado a crescer e trabalhar num confinamento insuperável), até aos espaços imensos, aos horizontes que alargou, com o seu inconformismo e uma insaciável vontade de conhecimento, caminhando, os pés na terra, de terra em terra, incansavelmente, indo cada vez mais longe - primeiro num Portugal que o discurso do "Estado Novo" concetualizava como uma unidade pátria pluricontinental, que, sob a mesma bandeira, se estendia "do Minho a Timor". O jovem Carlos Lemos vai precisamente do Minho a Timor, cruza os mares, ajuda a desbravar matas virgens, nas margens de rios africanos, a explorar as costas das possessões portuguesas do Indico ao Pacífico, ultrapassa fronteiras, converte-se ao destino tão português da emigração, na lonjura do sul da África e da Oceânia... "História de uma vida", assim denomina, discretamente, como é seu timbre, tão fascinante encadeamento de relatos, confidências, observações, comentários e ensinamentos do maior interesse histórico, antropológico, político. A primeira tentação de quem a lê é o de lhe acrescentar adjetivos expressivos, como "vida excecional", ou "vida fantástica"! Desde o princípio, desde a infância, o mais insólito e espantoso é que todas as decisões, afinal tão avisadas, são dele, apenas dele, depois de terminar prematuramente a escola, e de ficar entregue a si mesmo, em trabalhos árduos, trabalhos de adulto, que despertam a sua precocidade e força de ânimo. E, assim, em dificuldades e desafios ilimitados, se forja uma personalidade independente, honesta e tenaz, mas também sensível e gentil. Num dos seus primeiros empregos urbanos, em Monção, num café bem frequentado, um velho e arguto doutor diz-lhe, a certa altura: "és um perfeito diplomata!". Retive, muito em especial, essa exclamação profética, porque, cerca de quatro décadas decorridas, quando o Dr. Carlos Lemos organizou a minha primeira visita a Melbourne, e o conheci mais de perto, não fiz, mas poderia ter feito idêntica apreciação. Ali estava um diplomata nato, amabilíssimo, hábil e pragmático, qualidades que juntas, em regra, não se encontram. Ali estava um emigrante que prosseguia, apaixonada e eficazmente, a missão de enaltecer a história e os valores eternos da lusofonia, e de defender a imagem e os interesses dos seus compatriotas - antes mesmo de ser nomeado cônsul honorário. O seu dom natural de se aproximar das pessoas (independentemente da classe social, do estatuto académico, de tendências ideológicas, de origem étnica, de idade...) a par de uma inteligência invulgar explica, o que, por modéstia, nunca explicita: a facilidade com que, rapaz solitário, vindo de um pequeno povoado rural, é aceite nos círculos mais fechados e "snobs" das elites de então, ou nas tertúlias de estudantes, com quem, sem dúvida, aprende a reflectir e debater sobre quaisquer questões É na sua nova profissão de topógrafo - com formação, em boa hora, adquirida nas Minas da Panasqueira - que conversa, em Cascais, com o Presidente Carmona, e convive com as netas do Presidente, com jovens da alta burguesia. A Póvoa do Varzim é o destino seguinte, e bem marcante, no extenso roteiro que tem pela frente. Faz parte de grupos de estudantes e recém licenciados. É aí que decide retomar os estudo e completa cinco anos do liceu de uma vez só! Mais tarde, em Moçambique, conta entre os seus íntimos Paulo Vallada, João Maria Tudela e, como eles, pertence ao mais seletivo dos clubes, o Clube de Lourenço Marques. Em Pretória, é amigo de Mary, a filha de Henry Oppenheimer, de Tamara, a ex-toureira, em Durban, de Jonathan, o filho de Alan Paton, do próprio Alan Paton, que o estimava muito, e em casa de quem conhece personalidades como Mandela, Oliver Tambo, Sisulu e Lutuli e tem o privilégio de assistir a inúmeras conversações entre eles -, em Hong Kong do famoso português que, como Presidente da Câmara, projetou a cidade para o apogeu, o Comendador Arnaldo Sales, em Timor, de Ruy Cinatti, a quem admira imensamente, na Austrália de Kenneth McIntyre, cujas teses sobre a descoberta portuguesa deste país defende e apregoa por todo o lado, a começar por Portugal e por Macau (onde, por sua influência, o Museu Marítimo dedica, atualmente, uma secção a esse achamento secreto e onde o texto original inglês veio a ser traduzido para a nossa língua). Exemplos, entre centenas. de ilustres personalidades que se nos tornam familiares nas páginas deste livro! De destacar ainda, relacionamentos ocasionais e incomuns, caso de Samora Machel (que dele cuida no Hospital de Lourenço Marques!), e, numa conturbada Indonésia, durante umas férias improváveis, da mulher do General Yani, Chefe do Estado-maior das Forças Armadas, e ela própria uma celebridade. A Senhora Yani, logo convida o simpático casal Lemos para animados passeios por lugares turísticos, receções e jantares, e até para uma visita a casa de Sukarno. Um português de quem, obviamente todos gostam - moçambicanos, timorenses, indonésios, egípcios, sul-africanos, negros e brancos, aborígenes do deserto australiano... artistas, homens de letras e ciências, empresários, embaixadores, políticos de um sem números de países. Uma impressionante rede universal de contactos fraternos, que ficam para sempre, que cultiva e reencontra em intermináveis digressões. Como não olhar, retrospetivamente, séculos de história, e lembrar a velha arte portuguesa de fazer amigos entre gentes de todo o Globo? No século XXI, este português dá-nos a certeza de que somos ainda o mesmo povo, com a ânsia de movimento, de que se teceu o "século de ouro" dos Lusíadas - movimento de caravelas, de homens, de ideias, e, frequentemente, de afetos também… Em meados do século XX, a um ousado Carlos Lemos, com pouco mais de 20 anos, a especialização em topografia e hidrografia faculta modernos meios técnicos de exploração ou reconhecimento da terra e dos mares, primeiramente ao longo do retângulo continental, depois, em Moçambique, nos vales do Limpopo, do Rio dos Elefantes (já na fronteira norte da RAS) , em Timor, de lés a lés, e, posteriormente, nos desertos da Austrália, onde percorre, em trabalho de campo, 34.000 km, inscrevendo o seu nome como pioneiro em diversos lugares então intocados de território austral. Ao tentar esta breve apresentação (certamente arbitrária e redutora....) da sua autobiografia, devo acrescentar que a considero uma digna herdeira da literatura de viagens de sabor quinhentista, na medida em que o Autor vai muito além de uma mera menção de ocorrências, de apontamentos sobre lugares de exótica beleza - que também abundam... - para nos dar a sua visão sobre costumes, conflitos sociais e políticos, sobre personalidades que deixaram indeléveis marcas na história. É a mundivisão de um homem culto e cosmopolita, do sociólogo e do observador político, que já era, antes de terminar os estudos universitários nestes domínios (iniciados na África do Sul, onde conhece Molly, sua futura mulher, e concluídos, uns anos depois, em Melbourne). Um incansável "peregrino em terra alheia" (como o definiria Adriano Moreira), disposto a partilhar com o leitor mil e uma experiências vividas, vicissitudes e sentimentos, mais o seu sentido de humor, que irrompe aqui e ali, direcionado de preferência a si próprio, na menção de alguns pequenos desaires, pelos quais se penitencia, com muita graça... O casamento com Marion Murray, a jovem de origem britânica, doutorada em psicologia, que se lhe junta nessa "ilha do fim do mundo" , Timor , a revelar um simétrico gosto pela aventura e pelo movimento (juntos, levados pelo trabalho de um ou de outro, ou pelo puro prazer do turismo, darão várias voltas ao mundo.....) iria, a breve prazo, ser o início de uma "segunda vida" para ambos - a vida de emigrantes, definitivamente enraizados num novo país. A carreira académica da Professora Marion, centrada na Austrália, será o factor de estabilização. A partir daqui, a autobiografia regista novas profissões exercidas pelo Autor, em Melbourne - professor da universidade, do liceu, agente de bancos comercias, gestor... E revela-nos, também, uma nova faceta: a de líder, de principal construtor de uma comunidade forte e coesa, onde antes só havia portugueses dispersos e ignorados na sociedade de acolhimento... A partir de então, com o seu "ímpeto de Portugal (como diria Pessoa) e capacidade de mobilização, a história dos portugueses em Victoria fica intimamente ligada à sua própria história. Um exemplo que os estudiosos da génese das comunidades da emigração contemporânea e da nossa diáspora precisam de analisar, como um "case study"! Na verdade, muitas famílias portuguesas estavam já radicadas naquele Estado, mas sem qualquer dinâmica de agregação entre si. Tudo muda pela ação e pelo carisma de um "homem de causas". Começa pelo fundamental: cria uma escola de português (em 1972), um programa de rádio em língua portuguesa, do qual é diretor e locutor, uma "Comissão de atividades da comunidade", (a que preside, entre 1976 e 1984). o"Portuguese Community Trust", (1983), cooperativa destinada a angariar fundos para uma sede associativa condigna, projeto que, por obstáculos burocráticos, é reconvertido, dando origem ao famoso "Café Lisboa", restaurante português de alto nível, no centro de Melbourne, que atrai as elites políticas e culturais da cidade e oferece, como era sua vocação inicial, um espaço aberto a iniciativas comunitárias. O Dr. Carlos Lemos vê-se na obrigação de encabeçar o projeto reconvertido, garantindo-lhe um sucesso espetacular. Aí recebe muitas individualidades do mundo lusófono de visita ao país: D Ximenes Belo, o Dr. Ramos Horta, o Dr.Alberto João Jardim, Carlos do Carmo, os escritores da diáspora Vasco Calixto e Marcial Alves, o Secretário de Estado Correia de Jesus, o Governador Rocha Vieira (com quem se inicia uma colaboração estreita com Macau), os sucessivos embaixadores e cônsules de Sydney e tantos outros… A não esquecer o chamativo lançamento de um CD de música para as crianças de Timor, que foi trazido em mão pelo Arcebispo Deacon, depois de aterrar de helicóptero, num terreno contíguo ao Café Lisboa!. Anteriormente, enquanto dirigente da "Comissão de atividades", promovera as primeiras festas a Nª Sª de Fátima, com uma procissão que circulou nas ruas de Melbourne, e à qual não faltaram o Arcebispo da diocese, o Ministro da Imigração, o Cônsul-Geral de Sidney e outras individualidades (que obviamente aceitaram o convite de um amigo especial...), para além de uma multidão de milhares de portugueses, que, assim, ganham visibilidade na sociedade australiana. A visibilidade da Pátria - da sua história, das suas tradições e qualidades bem vivas na emigração - é uma causa maior assumida numa ação constante, em que podemos destacar: a divulgação das teses de Kennett McIntyre sobre a descoberta secreta da Austrália pelos navegadores lusos, corroborada pelas investigações de PeterTrickett (sobre o Atlas Vallard de 1547) e do Professor catedrático John Mollony (sobre vocábulos de origem portuguesa entre os aborígenes) e a procura de outros laços de ligação com a Austrália - como o facto do que é considerado o fundador da nação moderna, o Governador Arthur Philip, ter sido oficial da nossa Marinha, ou o enfoque na nacionalidade portuguesa de Artur Loureiro, o grande pintor portuense, porventura, hoje, mais recordado em Melbourne, onde se radicou por uns anos, do que na terra onde nasceu, ou na solidariedade luso - timorense dada a Bernard Collinan, herói australiano, que comandou a "Coluna independente", na resistência ao invasor japonês, durante a grande guerra, e que também foi seu amigo. Há, porém, um feito que deve ser salientado, como expoente máximo, pois só por si, mais do que justificaria a alta condecoração, que, em 2002, lhe foi entregue pelo Presidente Sampaio: a proposta, bem concretizada, de erguer, em solo australiano, um padrão evocativo dos navegadores portugueses. Foram muitas e morosas as diligências que permitiram garantir o espaço perfeito, numa belíssima colina sobre o mar agreste, em Warrenambool (onde, em oitocentos, foram avistados, por inúmeras testemunhas oculares, os vestígios prováveis de uma caravela quinhentista) e, ulteriormente, uma inauguração, com honras de presença dos mais altos representantes do Estado: o Governador Geral, o Embaixador de Portugal, Ministros, deputados, Kenneth McIntyre, uma massa imensa de participantes e, o que não é despiciendo, com uma enorme cobertura dos grandes "media"! Warrenambool é, doravante, um lugar de culto da história e da presença portuguesa. O “Portuguese Festival”, de periodicidade anual, atrai milhares de turistas ao monumento (entretanto enriquecido com a inauguração das estátuas do Infante D Henrique e de Vasco da Gama, oferecidas, por proposta do Dr Carlos Lemos, pelo último Governador de Macau – evento muito mediático, a colocar Portugal, novamente, no centro das notícias). Em que outro país ou continente, dos que foram, como sabemos, descobertas secretas de Portugal, conseguiu a nossa diplomacia algo de semelhante? Obviamente, em mais nenhum… É, assim, uma realização esplêndida e única, a coroar uma consistente trajetória de intervenção, em defesa das pessoas e dos valores nacionais, junto dos Governos, de lá e de cá - intervenção lúcida e corajosa nos domínios da emigração, da lusofonia, da política internacional, com uma participação ativa nos “fora” e congressos mundiais da Diáspora, com uma voz que clama, desassombradamente, contra o negativismo dos historiadores, ao renegarem teses verosímeis, favoráveis à grandeza pátria, contra a mediocridade dos políticos e servidores públicos, contra a injustiça e a intolerância. Uma palavra final para agradecer ao Dr. Carlos Lemos a sua amizade e a sua preciosa colaboração de décadas, na luta pelos direitos dos emigrantes e dos timorenses e, também, para manifestar ao Homem e ao Português, a minha admiração, pela forma como soube dar um sentido humanista e fraternal ao movimento incessante da sua vida, que muito ainda nos promete. Manuela Aguiar Espinho, 12 de Agosto de 2015

quinta-feira, 17 de maio de 2018

SÉRGIO, UM TREINADOR À PORTO

SÉRGIO, UM TREINADOR PORTISTA, UM TREINADOR À PORTO 1 - Para mim, festejar um título é sempre subir ao céu (ao céu muito azul), mas o campeonato ganho neste maio de 2018, foi especialíssimo! Fez renascer a esperança no recomeço de um longo ciclo vitorioso, e acordou memórias da primavera de 1956, de um outro campeonato alcançado contra a predestinação, o impossível, ou, talvez, afinal, simplesmente, forças mais ou menos ocultas. 1956! A primeira vitória azul e branca no meu tempo de vida, quando o centralismo nacional ditava o vencedor antecipado, com regras não escritas, mas cumpridas (como nas eleições em ditadura). Só os da minha geração (privilégio da idade) podem comparar, em tudo o que têm de espantosamente semelhante, duas equipas separadas por mais de sessenta anos de história - a de Yustrich e a de Sérgio Conceição. Em ambas, sobressai o treinador, que as impulsiona à sua imagem, unindo um coletivo, em que todos são iguais. Ambas entram em campo de rompante, e partem para o ataque, com a intensidade que o líder lhes inculca, sem nunca vacilar ou desistir. Ambas se apresentam desfalcadas de nomes sonantes, parecendo de menos para o feito enorme que se lhes exige. De fora, poucos acreditam que o conseguirão, porém, eles - Sérgio, como Yustrich, e os seus jogadores - não têm dúvidas, só certezas de alma! Se quisermos ir ao pormenor, poderemos ver no veloz gigante que é Marega um avatar de Jaburú, no artista que é Brahimi o de Hernâni, e em Sérgio Oliveira o de Monteiro da Costa, "quinta essência" da entrega à luta e de orgulho nas cores da camisola. 2 - Um regresso ás origens... de resistência à adversidade e ao desfavorecimento dos poderes instalados. A primeira vida do FCP decorreu, invariavelmente, assim. Mais obstáculos, mais dificuldades, forjaram o seu caráter. Triunfos com a dimensão da utopia, criaram a sua mística. O sumptuoso troféu que o Povo da cidade lhe ofereceu quando, num "match" particular, derrotou o nº 1 do mundo, um Arsenal no apogeu, era já o prenúncio de uma ambição sem limites, que havia de levá-lo ao patamar proibido - o de campeão do mundo de clubes. A segunda vida do FCP começa, (como não poderia deixar de ser), numa revolução libertária, em 1974. A revolução chegou ao futebol, com uma inesperada "viragem a norte" e a marca de Jorge Nuno Pinto da Costa. [44 anos depois, note-se, semelhante rotura está ainda por fazer na política, onde o centralismo, herdado da ditadura, mantém o cerco às atividades económicas, culturais, sociais, fora de Lisboa]. Em liberdade, o FCP pode ser igual, Em igualdade, pode ser superior. Do plano nacional ao internacional. Não era milagre, era organização, modernidade, rigor, liderança... As estruturas organizacionais criavam valores, convertendo jovens desconhecidos, vindos de todo o lado, em estrelas, e apostando em técnicos e treinadores portugueses, que ganharam fama universal - na senda de Artur Jorge e de Mourinho. Dir-se-ia o "toque de Midas"! 3 - A época de ouro teve o seu ocaso numa longa e dura a travessia do deserto de títulos. Em 2017, com o plantel depauperado e um orçamento zero para contratações, por imposição das regras de "fair-play" financeiro, parecia não haver treinador de renome que aceitasse um convite do FCP. E eis que surge em cena um "voluntário", capaz de trocar o certo pelo incerto, disposto a reduzir a metade o valor do contrato que o ligava a um dos grandes de França e pronto para a missão impossível de salvar o Dragão - o seu clube. Sérgio, o resistente, que desde menino soube viver com pouco, conviver com a injustiça e nunca se dar por vencido. Não era, ao que consta, uma primeira escolha, mas foi, sem dúvida muito melhor do que qualquer outra teria sido. À chegada, deixou bem claro que vinha para ensinar, não para aprender. E assim foi. Consigo trouxe, de facto, não só o saber muito de futebol, em termos teóricos e práticos, mas também "a arte de ensinar a arte", de levar cada um a redescobrir-se, na sua capacidade de evolução, não apenas individual, mas como parte de um todo. Não é para qualquer um - é só para génios! Como Mourinho, que, nas primeiras declarações, afirmou que, no ano seguinte, iria fazer do Porto campeão - e fez! - para tal lhe bastando dois reforços do Leiria e um do Setúbal, contratados a custo reduzido, Chamavam-se Derlei, Paulo Ferreira e Nuno Valente, aos quais se juntou o incomparável Ricardo Carvalho, que andava emprestado. Paradigmático, na tradição de Mourinho, o modo como, inteligentemente, conseguiu adaptar as disponibilidades à sua ideia de jogo (ou as táticas às disponibilidades...), como transformou em mais valias, jogadores " descartados" pelos seus diretos predecessores. Recuperação profissional, recuperação humana, numa rota de transcendência, de emoção, que, de imediato, passou às bancadas, e arrastou multidões no movimento imparável para a vitória Assombroso o ensinamento de Sérgio, que vale tanto para avaliar o passado recente, (nomeadamente, a "performance" dos seus antecessores) , como para preparar o futuro, de preferência com ele. Sérgio Conceição foi um jogador que admirei imensamente e um treinador em quem sempre acreditei - o que, em tempos recentes, só com Villas Boas acontecera. No que estava muito bem acompanhada. Antes de ser, nesta segunda veste, entronizado na história do FCP, já ele era o herói do povo. E o povo também jogou neste campeonato!

quinta-feira, 10 de maio de 2018

MÁRIO LAGES

É um privilégio dar a minha singela contribuição para este livro, que é um ponto de encontro das memórias de cada um de nós sobre algumas das histórias passadas com Mário Lages . Um livro que é, assim, uma "viagem de descoberta" de um ser humano admirável, dotado de muitos e variados talentos, alguns inimagináveis! Por isso, cada depoimento pode trazer-nos surpresas, sempre boas, porque há na sua vida uma essencial coerência de ideias e de ações. Homem de causas e, igualmente, de imensa energia e generosidade concreta. Comunicativo, alegre e muito discreto, com o seu fino sentido de humor. Um militante do humanismo no quotidiano, um cristão verdadeiro, de quem, depois de partir do nosso convívio, poderemos, em definitivo, dizer que "passou por esta terra fazendo o bem". Conheci-o há quase 50 anos, na Casa de Portugal da "Cité Universitaire" de Paris. no início do ano académico de 1968/69. Tornou-se, logo, a figura central de um grupo de jovens portugueses, (bolseiros, investigadores em diferentes áreas, quase todos a iniciarem uma primeira experiência de estudos fora do país), graças a um dom natural de convivialidade e ao seu gosto de partilha, que começava na partilha de informações utilíssimas - sobre como lidar com a burocracia local, onde obter livros com descontos para estudantes, onde fazer refeições económicas fora do perímetro da "Cité"...- e continuava na partilha de ideias, de preocupações sociais, de envolvência cívica. Os ventos políticos que agitavam a França e Portugal, embora de origem e direção diversa, convidavam igualmente à participação. Um duplo convite a que dissemos "sim". Resolvemos começar ali mesmo, na Casa de Portugal - com eleições, naturalmente! Uma das regras inovadoras, que maio de 68 tinha imposto na "Cité", era o "droit d' affichage", um passo largo no sentido da co-gestão. No exercício desse direito, sem consulta ou pedido de autorização ao Diretor da Casa (que, nessa altura, pertencia à Fundação Gulbenkian), afixámos a respetiva convocatória, apresentámos listas, realizámos e vencemos o ato eleitoral. Digo "nós", porque estive entre os proponentes, juntamente com Mário Lages e muitos dos que constituiriam o grupo de amigos, que se consolidou a partir daí, e ainda existe. Não me recordo já dos nomes que compunham essa lista, para além do presidente da assembleia de estudantes, o Luís Galvão Teles. O desenlace eleitoral não agradou ao Diretor que o contestou, de imediato, afixando um aviso em que acusava "uma trintena de residentes" de terem desencadeado aquele processo, à margem dos estatutos da instituição. Afinal, pas de droit d' afichage"... O ato eleitoral foi repetido, nós afastámo-nos, de vez, desse campo de ensaio democrático frustrado, não guardando da querela mágoas ou ressentimentos, mas apenas o rótulo de "católicos progressistas" e a vontade de assumir essa pertença. Concentrámo-nos, sem mais, na preparação de combates futuros, pelo debate e reflexão no interior do grupo e, o que não foi menos importante, ao ameno e constante convívio, em que se teceram laços de afecto indestrutíveis. Gostei de saber, agora, há pouco, por acaso, ao conversar sobre Mário Lages, que também ele falava sempre dessa estada na " Cité", como um tempo muito feliz. Qual de nós não diz precisamente o mesmo? Tudo, então, era pretexto para festas e celebrações - os aniversários, por exemplo. Uma trintena de aniversários! Nos tempos livres, visitávamos catedrais e museus, frequentávamos cinemas, livrarias, cafés, discorríamos sobre mil e um assuntos, infindavelmente! E, assim, neste ambiente de tertúlia e de reflexão crítica, se construiu uma comunidade coesa, em terra estrangeira, como tantas outras em que os expatriados recriam um espaço nacional, sem rejeição do que o circunda - emigrantes "temporários", com uma situação bem diferente da maioria dos trabalhadores portugueses que, em massa, estavam a demandar os subúrbios Paris, mas nem por isso inibidos de exprimir, do mesmo modo, a solidariedade entre pessoas na adaptação a um mundo novo. Compartilhávamos valores, saberes, lazer, como uma grande família no interior de um lugar pequeno - como numa aldeia portuguesa em que todos são parentes, para não dizer "como numa república de Coimbra", (só porque acho que nos faltava completamente o toque boémio). Nem boémios, nem "enragés", embora acreditássemos nas profundas transformações sociais e políticas que teriam de acontecer - com as nossas diferenças, mas sem conflitos, nem cisões, entre iguais, mas com uma liderança espontânea, não imposta, não declarada e nem sequer assumida, e, nem por isso, menos decisiva. Responsável, em primeira linha, pela harmonia reinante foi a personalidade de Mário Lages. Disponibilidade constante, simpatia, e bom senso, conselho dado de um modo simples e direto, faziam dele um involuntário, mas autêntico, "primus inter pares". Sensível aos problemas de cada um, com a perfeita compreensão das pessoas e das situações. Um Homem de Ciência, ou melhor, no plural, de ciências - teologia, sociologia, etnografia... - . já com um brilhante doutoramento em Roma e outro em curso, ali, em Paris. Um Homem voltado para as Artes, a escrita, a música (cantava, tocava órgão e outros instrumentos), a fotografia. Um amador de todas estas e de outras Artes, exímio em tudo o que empreendia, facilmente superando os melhores profissionais. Um exemplo: foi ele quem, na altura, fotografou as telas de Nadir Afonso para uma sumptuosa edição das suas obras. Nadir, outra inesquecível personagem da Casa de Portugal, em fins da década da década mítica de sessenta! Um génio da pintura, com um esfuziante sentido de humor, faceta que o terá aproximado de Mário Lages. Um caso de admiração mútua! Pena foi eu não ter gravado alguns dos divertidíssimos momentos que passei a ouvi-los... Com Nadir não tínhamos contacto diário, tal como com outros amigos que moravam fora da "Cité", mas nos faziam visitas muito apreciadas e se integravam perfeitamente no nosso círculo de conversação, como o Padre Januário Torgal Ferreira (trazido pelo Mário) ou o Alfredo de Sousa, compadre da Eduarda Cruzeiro. Ainda sobre o tema fotografia, devo acrescentar que Mário Lages não se limitava a tirar retratos com uma máquina "topo de gama", pois se comprazia a completar o ciclo criativo, revelando as suas próprias fotos, num pequeno laboratório de uma das residências bem perto da nossa - não me lembro exatamente qual (a da Suiça, suponho). Sempre pronto a ensinar, convidou-nos para uma espécie de aulas práticas e logo viu crescer o número de discípulos aplicados, entre os quais me contava. Nos meus álbuns ainda hoje conservo algumas dessas fotos, em muito bom estado de conservação, sinal da competência do mestre. Outro terreno em que se distinguiu: o automobilismo, condução, corridas! Ao volante transformava-se por completo, como pudemos testemunhar depois que comprou um Austin mini. O tranquilo e erudito professor que media as palavras e não era dado a qualquer tipo de radicalismo, abria aqui uma exceção e fazia autênticos ralis, por entre as filas de trânsito parisiense, onde vale (quase) tudo, inclusive ultrapassar pela esquerda e pela direita. Ninguém o conseguia seguir! Era normal tomar a dianteira e desaparecer lá à frente, num ápice. Por isso, nos passeios dominicais, em excursão de várias viaturas, traçávamos um plano prévio, com, paragens e destino final pré- definidos. E uma vez em que não o fizemos, em viagem para Portugal, no verão de 1969, perdemo-lo praticamente à saída da "Cité" , no "péripherique", para nunca mais o vermos . Ia eu no Volkswagen da Eduarda Cruzeiro, (por acaso, também excelente condutora, mas não tanto) e ela, quase até chegar à fronteira portuguesa, insistia em almoçarmos em esplanadas junto à estrada, na esperança de o reencontrar, com o seu "equipa". Esperança vã. Um episódio que mostra bem como a vida era diferente, sem telemóvel... Aliás, as peripécias com o famoso "mini" começaram cedo, na "rodagem", completada numa ida e volta a Amsterdão (1000 km de boa estrada plana). Chegado à chamada Veneza do norte, com dois ou três colegas, decidiu estacionar junto ao primeiro canal que lhes oferecia uma vista pitoresca e aparentemente singular. Daí, seguiram todos a pé para o centro, onde jantaram. Pelo caminho, atravessaram pontes, trechos parecidos, mas isso não os preocupou. O problema surgiu, na hora de localizar o "mini", numa densa rede de canais, excessivamente semelhantes na sua beleza pitoresca. Foram horas de deambulação... Depois, em Paris, uma vez por outra, à noite, quando a visibilidade o permitia, passava sinais vermelhos - o que os franceses designam, aliás benignamente, por "bruler les rouges". Era rápido e ágil na argumentação e na condução automóvel, como no desporto, que praticávamos, quando as condições meteorológicas deixavam, nos campos de jogos situados convenientemente em frente à Casa de Portugal. Os relvados que a separam da vizinha Casa do Brasil eram um espaço tranquilo, onde descansávamos dos exercícios atléticos, ou, onde, em dias de sol, nos sentávamos à conversa, após tomarmos um cafezinho brasileiro. Mas café ótimo, delicioso, era o que Mário nos oferecia, vezes sem conta. Café arménio, que ele sabia preparar a preceito, numa cafeteira própria, de metal, com uma base larga, remexendo o pó na água fervente. Como eu era a maior apreciadora dessa bebida exótica (em que o líquido se mistura com o pó, quando não o deixamos assentar), deu -me uma cafeteira igualzinha à sua, que eu guardo, como boa lembrança de animadíssimas discussões "à volta de uma chávena de café", muito embora não saiba usá-la. Aquele café oriental era uma raridade, sem dúvida, e, sobretudo, constituia mais uma evidência de como o nosso Amigo passava dos estudos arménios ao relacionamento fraterno com pessoas concretas e adotava, prontamente, os seus costumes. Tinha colegas arménios, de quem falava com entusiasmo, do mesmo modo que nos relatava avanços na investigação académica. A típica cafeteira não seria o único presente que dele recebi. Os outros foram livros, todos muito mais utilizados: " Le Nouveau Testament", traduzido para o francês, sob a direção da Escola Bíblica de Jerusalém (na sequência de muitas conversas sobre religião - no meu caso, então, realmente, em busca de respostas para uma crise de fé...), um álbum de arte africana, "um pocket book" de PG Wodehouse, por sinal um dos mais hilariantes da série de Blandings Castle (PG tornar-se-ia o meu autor favorito!) e, por fim, o seu ensaio etnológico sobre "Vida/Morte e Diafania do Mundo na História da Carochinha", que é de leitura obrigatória, absolutamente fascinante, tanto do ponto de vista científico como literário. Livros que abrem horizontes - uma das suas grandes missões de vida... São tantas e tão boas recordações! Hoje também já o é a única que podia não o ter sido: um 14 de julho, que comemorávamos pacificamente numa esplanada do "Quartier Latin", De repente, sem razão aparente, eis que irrompe a polícia no alto da rua, que era íngreme e estreita, varrendo os turistas à bastonada! Logo se formou um tropel de criaturas vindas de os lados, ruela abaixo... Ficámos irremediavelmente separados uns dos outros. A Eduarda e eu, por sorte, "integrámos o pelotão da frente" e, ao virar de uma esquina, entrámos por um portão, que estava oportunamente aberto, e fomos recolhidas, com palavras amáveis dos donos da casa (pareciam gente muito habituada a recolher passantes em fuga). Com eles, do alto de uma janela, assistimos à cena de inusitada violência de que foram vítimas alguns dos nossos queridos compatriotas, entre eles, o Mário. Um susto enorme, que se saldou, do mal, o menos, apenas nuns "galos" na cabeça de respeitáveis cidadãos. Foi o mais próximo que estivemos de uma das "bagarres" do pós Maio 68, numa França ainda não recomposta de múltiplas formas de sobressalto. Regressados a Portugal, tentámos lutar contra a dispersão na geografia lisboeta, continuámos a reunir, com frequência, por alguns anos. Contudo, no meu caso, (como no de outros), as ocupações, as ausências constantes de Lisboa, do país, levaram-me a perder a ligação assídua com "o grupo de Paris", durante mais de três décadas, até à data da homenagem prestada a Mário Lages, na Universidade Católica, aquando da sua jubilação, seguida de um jantar informal, num restaurante em que reencontrei a Luísa e o António Marques de Carvalho e conheci a Ana Costa Lopes (rimos tanto, que me parecia estar de volta a Paris, à "Cité", à nossa cidade dentro da cidade!). Recomecei a participar em convívios, já não de uma "trintena", mas de uma dezena de bons amigos. Reatámos o diálogo, à volta do Mário, como nos velhos tempos, como se não tivesse havido hiatos. Com o mesmo contentamento, a mesma espontaneidade. Acho que só não esculpimos um boneco de neve e não arremessamos bolas de neve uns aos outros, porque nos faltava a matéria-prima. Tão iguais ao que fomos, apesar dos cabelos brancos! Os verdadeiros amigos têm, afinal, sempre, a idade com que os conhecemos. E, para nós, nunca morrem Maria Manuela Aguiar