quarta-feira, 21 de setembro de 2022

A RAINHA in "Defesa de Espinho"

2022 A RAINHA 1 - Rainhas há muitas, mas quando dizemos, simplesmente, “a Rainha” falamos sempre de Isabel II. A sua desaparição deixou muito poucos indiferentes, a nível planetário – monárquicos e republicanos, por igual. Sentimos a perda como se fosse nossa – do nosso país ou comunidade, ou até da nossa família. Quem não tem, entre os seus parentes, alguém que envelheceu bem, como ela? As emissões televisivas ao longo dos últimos dias mostraram até que ponto a emoção e a tristeza são largamente partilhadas. Na hora da sua morte, objetivamente esperada, mas subjetivamente inesperada, o mundo parou para a homenagear num coro encomiástico, que abrangeu, entre inúmeros líderes de Estados de todas as geografias, Zelensky e Putin, Biden, Obama, Trump e até Bolsonaro (que decretou 3 dias de luto oficial no Brasil!). Em Londres, as duas Câmaras do Parlamento reuniram, prontamente, em sessão especial, para que todos os membros sobre ela dessem o seu testemunho, contando pequenos episódios pessoais, a que não faltou, em alguns casos, um toque de humor carinhoso - no que a antiga Primeira Ministra Theresa May foi, especialmente, exímia. É, afinal, o que é costume em qualquer velório, ou elogio fúnebre. E, tratando-se de uma figura enorme e ímpar, quem resiste à tentação de desfiar as suas próprias memórias de um encontro havido com ela, ou de um simples vislumbre da sua presença? Não serei exceção... Precisamente como o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, (sou da mesma geração), vi-a, pela primeira vez, em 1957, de relance, alinhada numa rua cheia de gente. No meu caso, não em Lisboa, mas ao fundo da Avenida de Gaia, que o cortejo de vistosas viaturas negras descia lentamente, a caminho da ponte sobre o Douro. Eu estava lá, no meio de dezenas de colegas do Colégio do Sardão, todas de uniforme de festa, formando uma longa mancha azul marinho na orla do passeio. Ensaiadas pela nossa professora de inglês, a muito britânica Madre Mary King, cantávamos, alto e bom som, o “God save the Queen”. Ouvindo o hino, a destinatária terá mandado parar o carro. Por uns segundos, olhou-nos, com simpatia, sorrindo e acenando, tal como o marido. Ele mesmo à nossa frente, a pouco mais de um metro de distância, pois, de comum acordo, tínhamos escolhido o lado da Avenida onde melhor o poderíamos ver. Estávamos, naturalmente, mais interessadas no formidável Duque de Edimburgo do que na sua discreta monarca. Quase três décadas depois, na meia década de oitenta, a Rainha voltou ao nosso País, em visita oficial, e eu, então no Governo, tive várias oportunidades de a cumprimentar - nada mais do que breves e formais saudações. Não guardo recordação particularmente emotiva da sua postura sereníssima e hierática … Foi, de novo, o Príncipe Filipe, quem mais me impressionou. Com ele, sim, aconteceu, no Palácio da Ajuda, uma inesperada e divertida conversa a dois, a propósito da vistosa faixa da condecoração (a OBE), que cruzava a metade superior do meu vestido comprido... 2 – Sem mais contactos pessoais, fiz a minha “estrada de Damasco”, em relação à Rainha, nas últimas décadas, à medida que fui reconhecendo, não só a sua surpreendente disponibilidade para acompanhar os novos tempos e as novas gerações, (conciliando progresso e tradição, como só os mais velhos podem fazer, quando mantêm o espírito bem aberto), mas também a sua importância enquanto “Mulher de Estado”, ou seja, enquanto trunfo na argumentação em favor da igualdade de género. Redescobri Isabel II como verdadeiro ícone para causas que, há muito fiz minhas, na luta contra discriminações, que dominam as nossas sociedades, de forma clara ou larvada: o sexismo e o idadismo. De facto, a idade tornou-a mais sábia e verdadeiramente venerada e permitiu-lhe ir, a seu modo, revelando a pessoa por trás da "persona". No início do século XXI, era já a mais poderosa e consensual imagem de empoderamento no feminino. E não se diga que o poder é meramente simbólico nas monarquias constitucionais, porque, tendo intrinsecamente essa componente, pode ir muito além dela, e, com Isabel II, foi! O seu poder era imaterial, derivado de um imenso prestígio e autoridade pessoal, exercido num plano superior ao da política partidária e das questões da governação concreta. E não cessava de crescer com o passar dos anos, e de irradiar no mundo sem fronteira dos afetos. Ela foi a perfeita representante, a grande diplomata ao serviço do Estado e do povo (ou povos). Soube encerrar o ciclo imperial e reerguer uma Commonwealth, animada pelo espírito dos novos tempos. Foi Rainha do Reino Unido pelo acaso do seu lugar numa linha de sucessão dinástica, mas líder da "Commonwealth", por mérito seu. Indiscutível, eleita e reeleita, enquanto aceitou sê-lo, por uma maioria de Chefes de Estado republicanos! A Commonwealth, refundada na época isabelina, no espaço de relacionamento do antigo império, é atualmente constituída por 56 países, que representam uma enorme fatia da população mundial. É um projeto voltado para o futuro, do domínio da cultura e dos afetos, muito orientado para a juventude, em programas de intercâmbio no campo da educação, da formação tecnológica e científica, do desporto e do convívio com a Natureza e da defesa do meio ambiente. É um aspeto que não tenho visto suficientemente salientado pelos nossos comentadores, apesar do relevo que lhe é atribuído na Grã-Bretanha, nos "media", na opinião pública, nas instituições políticas e, "last but not least", no discurso régio, como pudemos constatar nas primeiras declarações do Rei Carlos III (impossível comparar esta realidade com a de uma insignificante CPLP, que nunca "levantou voo", ainda à procura de uma identidade, de um "cimento", levando a que as relações de Portugal com as ex-colónias, e mais largamente, entre todos os países que a compõem, se vão processando, essencialmente, no eixo bilateral). O percurso de Isabel II foi verdadeiramente admirável, e permitiu-lhe contribuir poderosamente para o moderno reposicionamento do seu Reino (ou dos seus Reinos) no concerto das Nações. Em meados do século XX, ela era apenas uma jovem feliz no seu casamento e maternidade recente, que se via "obrigada" a entrar num mundo de homens, repentinamente, pela morte prematura do pai, sem ter preparação e experiência da coisa pública. Contudo, o seu desempenho, do primeiro ao último dia, foi uma extraordinária mostra da capacidade (feminina) para responder aos maiores desafios, para exercer, de forma superlativa, as mais exigentes funções e para as articular com a vida de família. Deste ponto de vista, o seu legado é precioso e inspirador, porque nos deixa a certeza, ou, pelo menos, uma pertinente interrogação sobre o que todos os Estados e todas as sociedades ganhariam se dessem às mulheres, mesmo àquela que parecem pessoas comuns, como de início parecia ser Elizabeth Alexandra Mary Windsor - que, ainda por cima, teve uma oportunidade que nem sequer desejava… 3 – Nesta leitura das lições do reinado de Isabel II , que alguns verão como"feminista", é particularmente interessante a forma como conjugou as esferas pública e privada em teve de repartir o seu múnus. O primeiro sinal da sua fortíssima personalidade, que a postura suave não deixava pressentir, foi o fazer, contra tudo e contra todos, um casamento de paixão, com um jovem e belo oficial da Marinha e príncipe grego no exílio, Filipe, um primo afastado, trineto da Rainha Vitória, que por ela abdicou dos seus títulos das Casas Reais da Grécia e da Dinamarca. Contrariando presságios e vaticínios, a união duraria 73 anos de esplêndida cumplicidade, apesar de subverter a tradicional divisão de papéis conjugais: ela era a chefe de Estado, e reinava sozinha, com um poder indivisível, e punha o interesse do Estado à frente do seu, enquanto ele assumia plenamente as responsabilidade familiares, sacrificava uma muito promissora carreira militar, e ficava publicamente “desempregado”. Em suma, assumia a condição de "grande homem atrás de uma grande mulher". Teve de reinventar ocupações e fê-lo, inteligentemente, em iniciativas e tarefas de enorme importância, embora, as mais das vezes, quase invisíveis, porque nunca quis tirar o palco à sua Rainha. Em anos recentes, com a autoconfiança que a idade permite, ela veio desvendar, publicamente, o seu contributo, por tanto tempo escondido na sombra, mas não é certo que a História lhe dê semelhante reconhecimento... Assim aconteceu com as mulheres consortes, ao longo dos tempos. Só agora, começa a repetir-se com alguns, ainda raros, homens. A injustiça é da mesma ordem e deve mover-nos, do mesmo modo, a denunciá-la... Ninguém fez o elogio fúnebre de Filipe Mountbatten sem o relacionar com a sua mulher - e, a meu ver, bem. Por isso, nessa lógica, eu não gostaria de escrever sobre Isabel II, sem lembrar o papel do marido, a seu lado. Sabe-se hoje (mas talvez isso seja esquecido amanhã), que ele foi o seu principal conselheiro, e até o seu "ghost writer" e, seguramente, não por complacência. Isabel II sabia ouvir, a fim de julgar e decidir depois. Tinha boas razões para confiar em Filipe, na sua mundivisão e audácia, que temperava com o filtro da sua proverbial sensatez e prudência. A ele se deve, por exemplo, a abertura a um novo relacionamento com os “media”, que começou pela inédita transmissão em direto da cerimónia da coroação da Rainha (vencendo um braço de ferro com Churchill, que era absolutamente contra), a modernização da monarquia (ele não acreditava, no que o acompanho inteiramente, que a realeza se banaliza se perder o seu "mistério" e se aproximar do "povo") e, note-se, a própria reconfiguração da “Commonwealth”, que reflete as suas causas culturais e ambientalistas, a sua aposta na força da convivialidade. A presença, as visitas da Rainha (muitas, que ele sempre acompanhou, e completou com as suas, a solo, que foram muitíssimas mais) constituíram as bases da sua construção e consolidação. O "fenómeno Isabel II" não teria, sem os extraordinários e constantes aportes do seu consorte, a dimensão universal, que celebramos em breves dias deste setembro de 2022, lembrando sete esplêndidas décadas de reinado. Penso, muito em especial, na mediatização da sua imagem de grande Rainha, que, muito para além das fronteiras da Grã-Bretanha, valorizou, nomeadamente, as virtualidades de todas as monarquias modernas, de todas as Mulheres, que conciliam carreira e família, de todos os idosos, a quem é permitido o bom uso societal da sua experiência e saberes até ao fim da vida. Thank you, Madam!