quarta-feira, 14 de agosto de 2019

A VER "A VOLTA" PASSAR


A VER A " VOLTA" PASSAR

1 - Uma das melhores recordações da minha infância é a de ver a "Volta" passar, umas vezes, em pelotão compacto e rápido, que logo desaparecia na primeira curva, outras em que o espetáculo se prolongava, graças a fugas individuais ou de pequenos grupos, sempre muito saudadas, quaisquer que fossem as cores das suas camisolas. Nos anos cinquenta, já os três grandes clubes do futebol português se defrontavam também na estrada, o que dava à corrida mais paixão e mais impacto mediático. Era o acontecimento- rei do mês de agosto!. Um desporto de resistentes, de"heróis",  todos e qualquer um, mereciam do público, (composto por homens, mulheres, famílias inteiras), alinhado nas bermas dos caminhos e amontoado em pontos estratégicos, os mais entusiásticos aplausos e  incitamento, quando não, também, uma garrafinha de água...  E ali ficávamos, num ambiente de romaria, quase invariavelmente sob um sol tórrido, até que a aproximação do "carro vassoura" desse o sinal de retirada, fechando o cortejo.
O Porto, então, não vencia sempre, como  tem acontecido, desde o seu feliz regresso à modalidade, em 2016, mas ganhava muito mais do que no futebol. A luta norte/sul era equilibrada. O norte não se circunscrevia ao FCP, que tinha a companhia de Leixões, Boavista, Académico, Maia, ou, mais ao centro, Sangalhos... O sul não se reduzia aos dois colossos da capital, era, igualmente, Campo de Ourique, Carcavelos ou CUF, e estendia-se ao Algarve, com destaque para Tavira e Loulé.
Na primeira Volta, em 1927, foram, por sinal, homens do Carcavelos, Leixões e Campo de Ourique as figuras principais, que inscreveram o nome no topo da classificação geral.
A regularidade da competição só se conseguiu a partir de 1931, com raras interrupções provocadas, no início da década de quarenta, pela Grande Guerra, por razões que desconheço  em 53/54, e, em 1975, pelo PREC.
Ainda eu não era nascida quando os míticos José Nicolau (Benfica) e José Trindade ( Rio de Janeiro e, depois, Sporting) comemoraram vitórias individuais e ofereceram aos companheiros a coletiva.
O FCP fez a fulgurante estreia em triunfos, coletivo e individual, com Fernando Moreira, em 1948, e repetiu o feito com Dias dos Santos, em 1949 e 1950, quando eu aprendia as primeiras letras e já teimava em soletrar as notícias da "Volta" no Janeiro e no Comércio. Dias dos Santos foi o primeiro que vi, de perto, e nunca esqueci a receção apoteótica com que a cidade do Porto o recebeu, nem o seu sintético e pragmático discurso, quando lhe foi pedido para falar à multidão: "Ena, pá, limpámos o sebo à malta de Lisboa!". É difícil dizer mais em menos palavras! Foi um delírio!
A década de 50 começou com a segunda vitória de Dias dos Santos, e foi mais"nortista" do que propriamente "portista", com a ascensão imparável de Alves Barbosa (Sangalhos) e de Ribeiro da Silva (Académico). O  FCP somava mais títulos de equipa do que individuais. Um destes, em 1952, foi o de Moreira de Sá, atleta de eleição. Não posso precisar a data em que emigrou para a Venezuela na veste de empresário, mas sei que aí deixou fama mais duradouramente - a ele se deve a introdução do ciclismo de competição naquele País! Um pioneiro, de quem muito se orgulham as comunidades portuguesas.
Só em 1959 o FCP voltou a um triunfo individual, com Carlos Carvalho, que repetiria nos anos seguintes com Sousa Cardoso,José Pacheco e Joaquim Leão.,
A década de 70 foi indelevelmente marcada por outro "imortal": Joaquim Agostinho, com as cores do Sporting, Apenas em 1979, o "meu" FCP voltou a vencer, por equipas e individualmente, com Joaquim Sousa Santos e os anos 80 começaram em pleno, no pódio em três anos sucessivos, com Manuel Zeferino (1981) e Marco Chagas (1982 e 1983), mas, afinal,seguir-se-ia um longo interregno de mais de três décadas..
O Sporting desapareceu da história gloriosa da Volta, pouco depois, com um último êxito de Marcos Chagas, em 1985. O Benfica ganhou a sua derradeira "Volta" anos mais tarde, em 1999, mas ainda não retornou ao contrário dos rivais - que são rivais, sobretudo, no futebol.

2 - Quando sumiram do pelotão as camisolas clubistas azuis e brancas, verdes e brancas e vermelhas, a magia do ciclismo não se perdeu, de todo, embora, mesmo com o envolvimento de tantas e tantas marcas comerciais, com a chegada de concorrentes estrangeiros, e com os êxitos internacionais dos nossos ciclistas de elite, algum entusiasmo andasse perdido.... É esse, pelo menos, o muito subjetivo sentimento, que me leva a olhar nostalgicamente as corridas do passado, mais amadoras, sim, mas mais apaixonantes, e não menos duras, pois se prolongavam por três semanas e atravessavam, de facto, o país, de lés a lés -  não, apenas, percursos salteados por pura conveniência e em apenas dez  "episódios", como numa telenovela curta. Espinho, por exemplo, esteve, muitas vezes nesses roteiros e chegou a acolher chegadas e  partida de etapas.
Apesar de assim abreviada, a Volta a Portugal dá sinais de ressurgimento e, depois do "Tour", da "Vuelta" e do "Giro", parece ser mesmo a melhor, a nível europeu. O duelo Porto - Sporting/Tavira, e o despique com outras equipas de antigos pergaminhos, como o  Boavista.e o Louletano, (ficando ainda a faltar o SLB), ajudam a reconciliar a competição com as suas tradições e a trazer mais e mais gente de volta à Volta.
Em 2019, Gaia e Porto  chamaram a si o final da competição e foram amplamente compensados. O vereador da Câmara de Gaia, Guilherme Aguiar, fez título de jornal, afirmando: "Eventos destes são rentáveis na nossa promoção" (no plano nacional e internacional) e o administrador da "Porto Lazer" foi também claro, ao dizer: "Faltava-nos recuperar esta aposta na Volta", querendo com isso significar que, depois de "grandes eventos com automóveis, barcos e aviões", chegara a vez do ciclismo. Em boa hora, porque a tripla vitória do FCP, na etapa e na classificação individual, com o jovem João Rodrigues, e na coletiva, ajudou a juntar uma multidão imensa, fantástica e ordeira, como é habitual nas festas do Porto, que são sempre mais um São João, antes ou depois do que se celebra a 24 de junho. 
Os números, a quantidade e a qualidade da participação popular, (tal como as audiências da RTP...), vieram comprovar que, afinal, os portugueses continuam fiéis aos seus desportos favoritos, o futebol e o ciclismo  (a que poderemos acrescentar o hóquei em patins, pois não sendo jogo de atrair multidões desta ordem, tem lugar cativo no coração dos portugueses).

3 - No dia seguinte, procurei na imprensa o eco daquela esplêndida manifestação desportiva. Para surpresa minha, (ou talvez não...), a melhor reportagem não pertencia a nenhum dos três diários especializados que lhe davam uma modesta entrada num cantinho da primeira página e parcos comentários no interior. O destaque merecido surgiu apenas no DN, que lhe dedica as primeiras páginas da secção de desporto, antes do inevitável futebol, bem como chamada de capa, com uma grande e belíssima imagem de Gustavo Veloso (o veterano galego, já por duas vezes vencedor da Volta, a quem só uma queda terá tirado a enorme probabilidade de repetir a proeza), levando aos ombros João Rodrigues, com o povo eufórico em fundo. 
Imagem duplamente  simbólica, tanto de admirável companheirismo num desporto em que tem de imperar a generosidade e a capacidade de sacrifício, como de uma aliança entre gerações, reunindo a classe do mais velho e a impetuosidade do mais jovem. Imagem que, afinal, documenta, na perfeição, o segredo de uma vitória  do Porto clube no Porto cidade.