segunda-feira, 31 de outubro de 2016

O DOUTOR CARLOS LEMOS NA "PRAÇA"

História da sua vida contada na "Praça" - uma inesquecível entrevista de Sónia e de Jorge Gabriel. Eu, coisa muito divertida, fiz de " efeito surpresa". Tudo perfeitamente controlado, nas salas e corredores para não nos encontrarmos antes do tempo certo, em pleno estúdio... Link to Praca program 21 October 2016 http://www.rtp.pt/play/p2778/e255525/a-praca/531208

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

O DR CARLOS de LEMOS EM ESPINHO

“HISTÓRIA DE UMA VIDA” O HOMEM E O LIVRO Tem estado entre nós, desde Setembro, um dos casais portugueses mais cosmopolitas e mais viajados que conheço - o Doutor Carlos Pereira de Lemos e a Doutora Molly Murray de Lemos, emigrantes na Oceânia há largas décadas. Ele tem 90 anos, ela é mais nova, mas da mesma geração. Recentemente, ela recebeu uma honraria rara, a Ordem da Austrália, pelos seus trabalhos de investigação e ele, em Dili, as insígnias da Ordem de Timor - Leste, pela sua incansável intervenção diplomática em favor dos timorenses Nesta visita a Portugal Carlos de Lemos trouxe consigo uma autobiografia, que apresentou em vários lançamentos, de Lisboa a Melgaço, num vai vem constante, a partir de Espinho. Nada a que não esteja habituado - de movimento se fez " a história de uma vida", que parecia condenada ao confinamento em pequenos povoados serranos do Alto Minho. O Homem Carlos de Lemos quase não teve infância - saiu da escola com a 3ª classe e logo precisou trabalhar, como um adulto. A partir dos 12 anos ficou entregue a si próprio e as grandes decisões, que o conduziram a um destino prodigioso, foram da sua inteira responsabilidade. O perfeito exemplo de "self made man" que chegou longe - mas não no tipo de sucesso que geralmente se associa ao conceito: o sucesso material, a fortuna contabilizada em milhões. Não era isso o que procurava. Queria ir longe no sentido literal de abrir horizontes geográficos, mas também os horizontes do conhecimento e da Cultura. .Ele mesmo o afirma no epílogo da autobiografia: "Não acumulei dinheiro. Mas acumulei riqueza de ter vivido uma vida cheia de experiências variadas". Sozinho vai para a cidade. É empregado de café em Melgaço, depois em Monção. Já aí um dos doutores, cliente diário do café, lhe diz: "Rapaz, tu és um verdadeiro diplomata". E diplomata viria a ser, muito mais tarde…Na etapa seguinte está Lisboa e Cascais. É adjunto de topógrafo - um jovem bem parecido e simpático, facilmente aceite em tertúlias de universitários e de intelectuais. Discretamente, aí vai a exame da 4ª classe. Como topógrafo, palmilha o País, de lés a lés. Espinho, a Póvoa, são parte do seu roteiro. Na Póvoa, num só ano, completa o antigo 5º ano do liceu. Em todo o lado, convive e dialoga à vontade com elites da cultura. Está pronto para "correr mundo", até ao limite das fronteiras de um "império" (que entrava na sua fase derradeira), "do Minho a Timor".Primeiro, Moçambique - o vale do Limpopo, com esporádicas visitas à capital, onde frequenta o seletivo "Clube de Lourenço Marques"). E conta no seu círculo João Maria Tudela, Paulo Vallada, e... Samora Machel. Com as poupanças amealhadas, tira licença sem vencimento, não para se divertir, mas para estudar em Universidades da África do Sul. Quando o pecúlio se esgota procura nova ocupação, ainda mais longe. É o novo topógrafo -Chefe no projeto de construção do porto de Dili. Anos felizes, já com a Mulher. Molly, por quem se apaixonara nos bancos da Universidade. Na África do Sul pertencera ao "inner circle" de Alan Paton (cujo filho era colega). Na sua casa encontra outros famosos oposicionistas ao "apartheid", como Tambo, Mandela e Sisulu. Em Timor, o especial amigo é Rui Cinatti. Um novo capítulo se inicia, quando a carreira académica de Molly os atrai à Austrália. Serão, doravante, emigrantes. Como topógrafo, ele atravessa os desertos do norte australiano, por terras que ninguém tinha ainda pisado. Melbourne é a cidade onde, por fim, se enraízam. Molly prossegue a carreira académica. Carlos de Lemos, depois de terminar os cursos de Sociologia e de Ciências Políticas, é professor, correspondente de bancos portugueses. Um cidadão ativo na emergente comunidade portuguesa, que lidera e mobiliza. Cria a escola de português, o programa de rádio, a "comissão" de atividades sociais e culturais. Antes de ser, formalmente, acreditado como Cônsul Honorário (em 1988), já era o defensor natural dos imigrantes portugueses - e dos timorenses!. O seu prestígio e capacidade diplomática convertem-no no mais notável paladino da cultura e da história portuguesas em toda a Austrália. Consegue o "impossível" - erguer um padrão de homenagem aos navegadores portugueses em Warrnanbool, onde terão aportado as caravelas lusas, 200 anos antes de Cook.. Kenneth Mc Intire, o investigador que comprova a primazia da descoberta portuguesa, é visita assídua de sua casa. .Warrenanbool recebe, desde então, muitos milhares de turistas, sobretudo por altura do "Portuguese Festival", que, por iniciativa do nosso Cônsul, aí se realiza anualmente Converteu-se, assim, em autêntico "lugar de culto" para a nossa gente e para muitos australianos. A cidade agradeceu, dando a uma das ruas, o nome do Dr Lemos. O Presidente Sampaio distinguiu-o com a comenda da Ordem de Mérito. O Livro É uma narrativa fantástica da aventurosa trajetória deste Homem extraordinário, a mostrar mais um dos seus talentos: escrever num português límpido, simples e expressivo, que nos encanta e nos desafia a ir com ele pelo mundo fora, numa viagem que atravessa épocas, mares e continentes. É uma partilha de memórias, de confidências, de observações e comentários sobre muitos lugares e pessoas, com imenso interesse antropológico, histórico, sócio - político. É o retrato de um português de hoje que encarna, realmente, as virtudes que atribuímos aos antigos portugueses – a atracão por outras terras, outros costumes, o dom de conviver afetivamente com outros povos. É o retrato de um emigrante que soube "dar um sentido humanista e fraternal ao movimento incessante da sua vida" - cito palavras finais do meu prefácio, que é seguido por três mensagens, de personalidades dos países a que ele, de facto, pertence. Por Timor fala o Dr. Ramos Horta, reconhecendo que: "A sua tem sido, e sei que será, uma vida de serviço prestado à causa de Portugal, dos Portugueses e dos Timorenses". Por Portugal, o Dr. Rui Quartin Santos, antigo Embaixador em Canberra, realça "as suas qualidades humanas e profissionais, o prestígio que soube conquistar junto de portugueses e australianos". Pela Austrália, Sir James Gobbo, ex- Governador do Estado e Juiz do Supremo Tribunal de Justiça, dirige-se, sobretudo, ao diplomata: "I think particularly of your role as Honorary Consul of Portugal and your admirable leadership of the Consular Corps in Melbourne".. Aqui fica um convite à leitura de uma história de vida, que é, também, parte da história do País e de outros Países. em "A DEFESA DE ESPINHO", 27 de outubro de 2016

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

O Livro doa Amigos de MÁRIO LAGES

É um privilégio dar a minha singela contribuição para este livro, que é um ponto de encontro das memórias de cada um de nós sobre algumas das histórias passadas com Mário Lages. Um livro que é, assim, uma "viagem de descoberta" de um ser humano admirável, dotado de muitos e variados talentos, alguns inimagináveis! Por isso, cada depoimento pode trazer-nos surpresas, sempre boas, porque há na sua vida uma essencial coerência de ideias e de ações. Homem de causas e, igualmente, de imensa energia e generosidade concreta. Comunicativo, alegre e muito discreto, com o seu fino sentido de humor. Um militante do humanismo no quotidiano, um cristão verdadeiro, de quem, depois de partir do nosso convívio, poderemos, em definitivo, dizer que "passou por esta terra fazendo o bem". Conheci-o há quase 50 anos, na Casa de Portugal da "Cité Universitaire" de Paris. no início do ano académico de 1968/69. Tornou-se, logo, a figura central de um grupo de jovens portugueses, (bolseiros, investigadores em diferentes áreas, quase todos a iniciarem uma primeira experiência de estudos fora do país), graças a um dom natural de convivialidade e ao seu gosto de partilha, que começava na partilha de informações utilíssimas - sobre como lidar com a burocracia local, onde obter livros com descontos para estudantes, onde fazer refeições económicas fora do perímetro da "Cité"...- e continuava na partilha de ideias, de preocupações sociais, na envolvência cívica. Os ventos políticos que agitavam a França e Portugal, embora de origem e direção diversas, convidavam igualmente à participação. Um duplo convite a que dissemos "sim". Resolvemos começar ali mesmo, na Casa de Portugal - com eleições, naturalmente. Uma das regras inovadoras, que maio de 68 tinha imposto na "Cité", era o "droit d' affichage", um passo largo no sentido da co-gestão. No exercício desse direito, sem consulta ou pedido de autorização ao Diretor da Casa, que, nessa altura, pertencia à Fundação Gulbenkian, afixámos a respetiva convocatória, apresentámos listas, realizámos e vencemos o ato eleitoral. Digo "nós", porque estive entre os proponentes, juntamente com Mário Lages e muitos dos que constituiriam o grupo de amigos, que se consolidou a partir daí, e ainda existe. Não me recordo já dos nomes que compunham essa lista, para além do presidente da assembleia de estudantes, o Luís Galvão Teles. O desenlace eleitoral não agradou ao Diretor que o contestou, de imediato, afixando um aviso em que acusava "uma trintena de residentes" de terem desencadeado aquele processo, à margem dos estatutos da instituição. Afinal, pas de droit d' afichage"... O ato eleitoral foi repetido, nós afastamo-nos, de vez, desse campo de ensaio democrático frustrado, não guardando da querela mágoas ou ressentimentos, mas apenas o rótulo de "católicos progressistas" e a vontade de assumir essa pertença. Concentramo-nos, sem mais, na preparação de combates futuros, pelo debate e reflexão no interior do grupo e, o que não foi menos importante, ao ameno e constante convívio, em que se teceram laços de afecto indestrutíveis. Gostei de saber, agora, há pouco, por acaso, ao conversar sobre Mário Lages, que também ele falava sempre dessa estada na " Cité", como um tempo muito feliz. Qual de nós não diz precisamente o mesmo? Tudo, então, era pretexto para festas e celebrações - os aniversários, por exemplo. Uma trintena de aniversários! Nos tempos livres, visitávamos catedrais e museus, frequentávamos cinemas, livrarias, cafés, discorríamos sobre mil e um assuntos, infindavelmente. E, assim, neste ambiente de tertúlia e de reflexão crítica, se construiu uma comunidade coesa, em terra estrangeira, como tantas outras em que os expatriados recriam um espaço nacional, sem rejeição do que o circunda - emigrantes "temporários", com uma situação bem diferente da maioria dos trabalhadores portugueses que, em massa, estavam a demandar os subúrbios de Paris, mas nem por isso inibidos de exprimir, do mesmo modo, a solidariedade entre pessoas na adaptação a um mundo novo. Compartilhávamos valores, saberes, lazer, como uma grande família no interior de um lugar pequeno, como numa aldeia portuguesa em que todos são parentes, para não dizer "como numa república de Coimbra", só porque acho que nos faltava completamente o toque boémio. Nem boémios, nem "enragés", embora acreditássemos nas profundas transformações sociais e políticas que teriam de acontecer. Mantínhamos as nossas diferenças, sem conflitos, nem cisões, entre iguais, mas com uma liderança espontânea, não imposta, não declarada, não assumida, e, nem por isso, menos decisiva. Responsável, em primeira linha, pela harmonia reinante foi a personalidade de Mário Lages. Disponibilidade constante, simpatia, e bom senso, conselho dado de um modo simples e direto, faziam dele um involuntário, mas autêntico, "primus inter pares". Sensível aos problemas de cada um, com a perfeita compreensão das pessoas e das situações. Um Homem de Ciência, ou melhor, no plural, de ciências - teologia, sociologia, etnografia... - . já com um brilhante doutoramento em Roma e outro em curso, ali, em Paris. Um Homem voltado para as Artes, a escrita, a música (cantava, tocava órgão e outros instrumentos), a fotografia. Um amador de todas estas e de outras Artes, exímio em tudo o que empreendia, facilmente superando os melhores profissionais. Um exemplo: foi ele quem, na altura, fotografou as telas de Nadir Afonso para uma sumptuosa edição das suas obras. Nadir era outra inesquecível personagem da Casa de Portugal, em fins da década da década mítica de sessenta. Um génio da pintura, com um esfuziante sentido de humor, faceta que o terá aproximado de Mário Lages. Um caso de admiração mútua! Pena foi eu não ter gravado alguns dos divertidíssimos momentos que passei a ouvi-los... Com Nadir não tínhamos contacto diário, tal como com amigos que moravam fora da "Cité", e nos faziam visitas muito apreciadas. porque se integravam perfeitamente no nosso círculo de conversação, como o Padre Januário Torgal Ferreira (trazido pelo Mário) ou o Alfredo de Sousa, compadre da Eduarda Cruzeiro. Sobre o tema fotografia, devo acrescentar que Mário Lages não se limitava a tirar retratos com uma máquina "topo de gama", pois se comprazia a completar o ciclo criativo, revelando as suas próprias fotos, num pequeno laboratório de uma das residências bem perto da nossa - não me lembro exatamente qual. A da Suiça, suponho. Sempre pronto a ensinar, convidou-nos para uma espécie de aulas práticas e logo viu crescer o número de discípulos aplicados, entre os quais me contava. Nos meus álbuns ainda hoje conservo algumas dessas fotos, em muito bom estado de conservação, sinal da competência do mestre. Outro terreno em que se distinguiu: o automobilismo, condução, corridas! Ao volante transformava-se por completo, como pudemos testemunhar depois que comprou um Austin mini. O tranquilo e erudito professor que media as palavras e não era dado a qualquer tipo de radicalismo, abria aqui uma exceção e fazia autênticos ralis, por entre as filas de trânsito parisiense, onde vale (quase) tudo, inclusive ultrapassar pela esquerda e pela direita. Ninguém o conseguia seguir. Era normal tomar a dianteira e desaparecer lá à frente, num ápice. Por isso, nos passeios dominicais, em excursão de várias viaturas, traçávamos um plano prévio, com paragens e destino final pré- definidos. E uma vez em que não o fizemos, em viagem para Portugal, no verão de 1969, perdemo-lo praticamente à saída da "Cité" , no "péripherique", para nunca mais o vermos . Ia eu no Volkswagen da Eduarda Cruzeiro, (por acaso, também excelente condutora, mas não tanto) e ela, quase até chegar à fronteira portuguesa, insistia em almoçarmos em esplanadas junto à estrada, na esperança de o reencontrar, com o seu "equipa". Esperança vã. Um episódio que mostra bem como a vida era diferente, sem telemóvel... Aliás, as peripécias com o famoso "mini" começaram cedo, na "rodagem", completada numa ida e volta a Amsterdão (1000 km de boa estrada plana). Chegado à chamada "Veneza do norte", com dois ou três colegas, decidiu estacionar junto ao primeiro canal que lhes oferecia uma vista pitoresca e aparentemente singular. Daí, seguiram todos a pé para o centro, onde jantaram. Pelo caminho, atravessaram pontes, trechos parecidos, despreocupadamente... O problema surgiu, na hora de localizar o "mini", numa densa rede de canais, excessivamente semelhantes na sua beleza pitoresca. Foram horas de deambulação. Depois, em Paris, uma vez por outra, à noite, quando a visibilidade o permitia, passava sinais vermelhos - o que os franceses designam, aliás benignamente, por "bruler les rouges". Era rápido e ágil na argumentação e na condução automóvel, como no desporto, que praticávamos, quando as condições meteorológicas deixavam, nos campos de jogos situados convenientemente em frente à Casa de Portugal. Os relvados que a separam da vizinha Casa do Brasil eram um espaço tranquilo, onde descansávamos dos exercícios atléticos, ou, onde, em dias de sol, nos sentávamos à conversa, após tomarmos um cafezinho brasileiro. Mas café ótimo, delicioso, era o que Mário nos oferecia, vezes sem conta. Café arménio, que ele sabia preparar a preceito, numa cafeteira própria, de metal, com uma base larga, remexendo o pó na água fervente. Como eu era a maior apreciadora dessa bebida exótica, em que o líquido se mistura com o pó, quando não o deixamos assentar, deu -me uma cafeteira igualzinha à sua, que eu guardo, como lembrança das animadas discussões "à volta de uma chávena de café", muito embora não saiba usá-la. O café oriental era uma raridade, sem dúvida, e constituia mais uma evidência de como o nosso Amigo passava dos estudos arménios ao relacionamento fraterno com pessoas concretas e adotava, prontamente, os seus costumes. Tinha colegas arménios, de quem falava com entusiasmo, do mesmo modo que nos relatava avanços na investigação académica. A cafeteira não seria o único presente que dele recebi. Os outros foram livros, todos muito mais utilizados: " Le Nouveau Testament", traduzido para o francês, sob a direção da Escola Bíblica de Jerusalém (na sequência de muitas conversas sobre religião - no meu caso, então, realmente, em busca de respostas para uma crise de fé...), um álbum de arte africana, "um pocket book" de PG Wodehouse, por sinal um dos mais hilariantes da série de Blandings Castle - PG tornar-se-ia o meu autor favorito- e, por fim, o seu ensaio etnológico sobre "Vida/Morte e Diafania do Mundo na História da Carochinha", que é de leitura obrigatória, absolutamente fascinante, tanto do ponto de vista científico como literário. Livros que abrem horizontes - uma das suas grandes missões de vida... São tantas e tão boas recordações! Hoje também já o é a única que podia não o ter sido: um 14 de julho, que comemorávamos pacificamente numa esplanada do "Quartier Latin". De repente, sem razão aparente, eis que irrompe a polícia no alto da rua, que era íngreme e estreita, varrendo os turistas à bastonada! Logo se formou um tropel de criaturas vindas de os lados, ruela abaixo. Ficámos irremediavelmente separados uns dos outros. A Eduarda e eu, por sorte, "integrámos o pelotão da frente" e, ao virar de uma esquina, entrámos por um portão, que estava oportunamente aberto, e fomos recolhidas com palavras amáveis dos donos da casa. Pareciam gente muito habituada a recolher passantes em fuga. Com eles, do alto de uma janela, assistimos à cena de inusitada violência de que foram vítimas alguns dos nossos queridos compatriotas, entre eles, o Mário. Um susto enorme, que se saldou, do mal, o menos, apenas nuns "galos" na cabeça de respeitáveis cidadãos. Foi o mais próximo que estivemos de uma das "bagarres" do pós Maio 68, numa França ainda não recomposta de múltiplas formas de sobressalto. Regressados a Portugal, tentámos lutar contra a dispersão na geografia lisboeta, continuámos a reunir, com frequência, por alguns anos. Contudo, no meu caso, como no de outros, as ocupações, as ausências constantes de Lisboa, do país, levaram-me a perder a ligação assídua com "o grupo de Paris", durante mais de três décadas, até à data da homenagem prestada a Mário Lages, na Universidade Católica, aquando da sua jubilação, que foi seguida de um jantar informal, num restaurante em que reencontrei a Luísa e o António Marques de Carvalho e conheci a Ana Costa Lopes (rimos tanto, que me parecia estar de volta a Paris, à "Cité", à nossa cidade dentro da cidade!). Recomecei a participar em convívios, já não de uma "trintena", mas de uma dezena de bons amigos. Reatámos o diálogo, à volta do Mário, como nos velhos tempos, como se não tivesse havido hiatos. Com o mesmo contentamento, a mesma espontaneidade. Acho que só não esculpimos um boneco de neve e não arremessamos bolas de neve uns aos outros, porque nos faltava a matéria-prima. Tão iguais ao que fomos, apesar dos cabelos brancos! Os verdadeiros amigos têm, afinal, sempre, a idade com que os conhecemos. E, para nós, nunca morrem. in "Lembranças e afectos - A Amizade também é memória" , coordenação de Ana Costa Lopes e Roberto Carneiro, CEP-CEP. Universidade Católica Portuguesa, Lisboa 2016 A A Maria Manuela Aguiar

domingo, 23 de outubro de 2016

FCP: um grande jogador à espera de vez, RÚBEN NEVES

O que mais me impressiona na história recente do FCP não é nem o défice record nas contas que acabam de ser apresentadas, nem a desolação dos resultados desportivos dos últimos três anos, sem títulos, é o continuado desperdício dos talentos das suas escolas de formação. Ao contrário do que, há muitos anos, se passa com o SCP (de Futre, Quaresma ou Ronaldo até João Mário ou Adrien) e, nestes últimos tempos, com o SLB de Rui Vitória, no Porto parece nunca haver lugar para os seus próprios jovens jogadores. Basta olhar a seleção nacional campeã da Europa e ver de onde vem cada um deles... (a atual equipa do FCP conta com um único campeão da Europa, que pouco jogou em França. e não é da sua formação - Danilo) O caso de André Silva é, agora, a exceção que confirma a regra. Teve a sua primeira oportunidade, demasiado tardia, com Peseiro (perdeu-se a Taça de Portugal, mas ganhou-se uma estrela). Rúben Neves, lançado por Lopetegui, é o caso mais visível de desperdício no FCP de Espírito Santo. Para mim, é o melhor da sua geração. Tem visão de jogo, precisão de passe, classe - classe pura! Quem pode esquecer o brilhantismo com que envergou a braçadeira de capitão na "champions" (aos 17 anos), e com que se estreou na seleção nacional? Há que lembrar a Espírito Santo que o seu muito citado "Somos Porto" não pode ser, apenas, um "slogan".

sábado, 8 de outubro de 2016

NO GOVERNO (5 VEZES) - Governo MOTA PINTO

No início de uma participação política em órgãos de soberania, que haveria de se prolongar por mais de vinte e cinco ano, esteve um convite do Prof. Mota Pinto para o seu governo (1978/79). Tinha a particularidade de ser formado por independentes - um dos chamados "governos de iniciativa presidencial", não menos constitucional do que os outros, já que o seu programa passara (sem ir a votos) na Assembleia da República. O anterior, também nomeado pelo Presidente Eanes e chefiado por Nobre da Costa, objeto de uma moção de rejeição, caiu ao ver o seu programa rejeitado. Com eleições obrigatórias em Outubro de 1979, aquele era, de qualquer modo, um executivo destinado a durar cerca de um ano e foi ainda mais breve. Quando, depois de aprovado o orçamento de 79, que provocou uma cisão no PSD, os principais partidos ameaçaram, já nem me recordo a que pretexto, com uma moção de rejeição, o Doutor Mota Pinto não esperou muito para apresentar o pedido de demissão, simplificando o processo. E não se manteve em gestão, porque o Presidente optou pela constituição de um terceiro e último governo desta série, com uma duração estimada de três meses (embora tenha durado bastante mais), a fim de organizar eleições. A maior surpresa foi ter escolhido uma mulher: Maria de Lurdes Pintasilgo. Curiosamente, depois dela, desde que todo o poder foi retomado pelos partidos, não houve mais nenhuma... É obviamente mais difícil a ascensão feminina no puro quadro das maiorias parlamentares, pois as máquinas partidárias são coutada de homens - eram, e continuam a ser, regra geral. Já lá vão 37 anos! Thatcher e Pintasilgo, as primeiras a ocupar o cargo, com apenas algumas semanas de intervalo, faziam, então, história na Europa. Lideranças masculinas nos grandes partidos, dão primeiros- ministros, no masculino, numa perfeita relação de causa e efeito. Quando me perguntam a razão porque escolhi a política, a resposta é "não escolhi". De facto, fui convidada e pela circunstância de ser independente de qualquer partido. Para ser uma presença feminina num governo quase 100% masculino. Entrei na aventura,( que à partida seria breve e, como disse, o foi mais do que o previsto ), por me ser difícil dizer "não" ao Primeiro Ministro, que era um amigo de Coimbra, assim como ao parceiro de equipa no Ministério do Trabalho, o João Padrão, um colega de curso (brilhantíssimo!), que se ocupava do Emprego. Hesitei, mas fui bastante pressionada, sobretudo pelo João. Ofereci-me como voluntária para a assessoria no seu gabinete, mas não consegui ser aceite nessa mais modesta, mas bem conhecida posição (prestei serviço nessa qualidade, desde os primeiros governos provisórios). Tinha as minhas razões, não queria ser chefe de ninguém, faltava-me a paciência para esperar que outros fizessem as coisas por mim. Não sabia mandar - tive de aprender e, por acaso, não foi tão difícil como imaginava. Não era, pois, essa a minha opção de vida - dar aulas na Faculdade ou pareceres num centro de estudos, ou na Provedoria de Justiça: eis o meu sonho do presente e do futuro, aos 36 anos, para melhor usar o que a Universidade de Coimbra me ensinara. Com tempo para o cinema, (quase todos os dias, pelas 18.00), o desporto e o convívio com a família, as tertúlias de café, nos fins de semana, em Espinho. Tempo para ler e ouvir música (os meus velhos discos de vinil) e passear a minha cadela Serra d'Aires/cão de água, na Avenida do Uruguai, onde uma a Maria Póvoas, uma maravilhosa governante, que estava connosco há três gerações, cuidava do meu apartamento. Não me parecia que na vida política houvesse lugar para tudo isso. Pior ainda era a convicção de que o mundo do trabalho perderia uma executante suficientemente competente e o da política não ganharia nada com a troca. À mistura com o receio de falhar havia, porém, uma boa dose de curiosidade de conhecer o "outro lado", o lado do "poder" - neste caso, muito relativo e garantidamente efémero. Não sabendo como dizer "não", acabei Secretária de Estado do Trabalho. Fui para um Ministério que conhecia bem: ali mesmo, no arranha-céus da Praça de Londres, no início de 1967. tomara posse como assistente do Centro de Estudos, cerca de um ano depois de ter terminado o curso de Direito (com a média de curso exigida aos assistentes da Faculdade ou daquele "centro de estudos - não bastava, como em Passárgada, ser amigo do rei...). Um lugar de boas memórias, onde tudo me era familiar, os assuntos, os problemas e até algumas das caras que via nos corredores. Apesar da mudança de regime, o que havia de bom no Ministério se mantinha, antes de mais, a qualidade dos funcionários e dos serviços, dos velhos directores- gerais de carreira (à inglesa), que se distinguiam pela competência, bem mais do que por quaisquer tendências ideológicas. Por sinal, coube-me acolhe-los de volta à atividade, a eles e a muitos dezenas de dirigentes que tinham sido saneados, em 1974, e, depois, reintegrados por insuspeita decisão do Conselho da Revolução. Foram todos colocados em funções técnicas, para sua tranquilidade´, já que a nossa era imperturbável. Quatro anos apenas depois da revolução, os gabinetes dos membros do governo eram pequenos, como mandava a lei - um chefe de gabinete, dois adjuntos, dois secretários, dois motoristas. E assim foi enquanto estive nos Executivos, até 1987. Depois, parece que as coisas foram mudando, através de expedientes para recrutar gente vinda sobretudo dos partidos , com vencimentos "à la carte". Procurei, pois, compensar a minha falta de experiência com uma seleção, norteada pela procura desse atributo que me faltava. Desde já antecipo que resultou. Recomendo a solução. Escolhi os dois adjuntos dentro da "casa" (uma mulher e um homem), trouxe para chefe de gabinete o Manuel Marcelino, colega do Serviço do Provedor de Justiça, uma sumidade na área do Direito Administrativo. As duas secretárias, formadas no ISLA, tinham longo curriculum de gabinetes. Ajudaram-me, poderosamente, a atravessar o tempo iniciático - uma equipa unida nos bons e maus momentos. E destes, houve alguns. Não tanto pelos conflitos sociais, negociações, greves... verdadeiros "braços de ferro", uma requisição civil, etc, etc. Com o "adversário exterior" lidávamos nós bem. Com o interno, nem sempre... Não foi sempre pacífico o relacionamento com o Ministro e o seu "staff". Vinham do sector privado, convencidos da sua superior eficácia - o ministro até era eficaz, muito melhor do que a "entourage", ao contrário do que comigo se passava. A qualidade dos quadros do Ministério acabou por convencer o Dr Eusébio Marques de Carvalho, que fez lentamente a "estrada de Damasco" na Praça de Londres. Mais difícil de converter era o seu chefe de gabinete. Julgava-se o "chefe" dos chefes de gabinete dos Secretários de Estado. Ora não há vínculo hierárquico entre os gabinetes, embora haja entre o Ministro e cada um dos Secretários de Estado. Com ele, as coisas nunca melhoraram. O João Padrão foi o maior obreiro da paz, naquele 16º andar da Praça de Londres... Um homem encantador, com uns vivíssimos olhos azuis, um apurado sentido de humor e da relatividade das coisas. Muito inteligente, um diplomata e um grande amigo. Sempre que eu irrompia no seu gabinete, contíguo ao meu, a relatar um novo "caso" e a ameaçar demitir-me, oferecia-me um café, desdramatizava, entre sorrisos e amena conversa, e logo reduzia a dimensão do incidente... A esta distância, vejo que se tratava de uma falta de "savoir faire" do reincidente, que, aliás, era um homem de boas maneiras e agradável à vista - comigo muito simpático, mas não tanto com o meu gabinete... Talvez na empresa de onde vinha, esse comportamento fosse aceitável, mas na função pública eu estava habituada a mais civilidade. Os meus "chefes" formavam uma galeria de verdadeiros "gentlemen". Ali, na Praça de Londres, o Dr Cortez Pinto, cerimonioso, educadíssimo, e o Doutor António Silva Leal, um sábio, um génio, exuberantemente cordial, descontraído, que se sentava nas escadas do corredor a apertar os atilhos dos sapatos - "para que não tenham a tentação de me fazer ministro", explicava, entre duas sonoras gargalhadas. Depois da Revolução, na Universidade de Coimbra (onde tomei posse a 24 de abril), o Doutor Boaventura Sousa Santos, o Doutor Rui de Alarcão, o Doutor Mota Pinto. Em Lisboa, no Governo, o Doutor Rui Machete, na Provedoria de Justiça, o Coronel Costa Bráz, em meados de 1976, e, poucos meses depois, tendo ido o Coronel para o Governo, organizar eleições livres, o incomparável Dr José Magalhães Godinho - que foi, para mim, o mais próximo e o mais querido de todos. Tinha uma memória fenomenal e muita graça a contar as histórias da História. Era generoso, solidário, carismático e acessível. O mesmo não se diria do Dr. Eusébio Marques de Carvalho, com o seu feitio impulsivo e impaciente, e, tal como eu, "estreante" em lides governativas. Acabou por me influenciar mais do que todos os antigos e tão estimados "superiores", converteu-se em verdadeiro "role model"... Por um espontâneo mimetismo, dei por mim a tomar decisões rápidas e a exigir execução pronta. Com o que, sem que fosse esse o meu objectivo, se construiu a imagem que dei para o exterior "dama de ferro", na esteira daquele "homem de aço". Imagem mais ou menos positiva, segundo a perspectiva do observador. Mas a essa imagem devo, com certeza, o convite seguinte, para a pasta da Emigração. O tempo era de guerra, de afrontamento e contraditório, na aprendizagem da democracia, a começar no MNE, em guerra aberta com a Presidência. Numa das primeiras conversas com o Doutor Freitas do Amaral, no Palácio das Necessidades, disse-lhe que já se murmurava pelos corredores que eu iria revolucionar tudo, que não deixaria "pedra sobre pedra". Ao que ele me respondeu que não me preocupasse, porque era um tipo de fama não prejudicava a acção concreta. Talvez fosse "mais a fama do que o proveito", mas é verdade que parti para a inovação possível, embora mantendo tudo o que encontrei bem, nas práticas ou nas pessoas. Trabalhara os anos suficientes na função pública, ou com a função pública, para acreditar, até prova em contrário, que as pessoas estão nos seus postos para cumprirem tarefas e não para fazerem espionagem ou conta-corrente, a mando de forças ocultas. Suportei, logo na primeira experiência governativa, a pressão para despedir uma secretária, a Ana, que tinha transitado do gabinete do meu antecessor, supostamente comunista. A Ana era oriunda do quadro da Presidência do Conselho de Ministros e tinha-me sido recomendada pelo Secretário de Estado, Doutor Xavier de Basto, como muito competente. "Durante duas semanas fez de chefe de gabinete e de secretária, foi formidável, mas agora chegaram as pessoas que eu já tinha convidado e não tenho vaga para ela", dizia-me ele. (ali no alto da presidência, também tinha de respeitar os limites quadro legal...). "Ela conhece bem esse ministério, secretariou o seu antecessor". "Isso é que é pior" - disse - "o Ministro não quer, por perto, ninguém que tenha vindo dos anteriores gabinetes". O sigilo e a confidencialidade eram importantes, ali, onde se esperava já a conflitualidade, que veio a verificar-se. Contudo, como o meu amigo e professor de Coimbra, um homem particularmente perspicaz, a recomendava, contratei-a, de imediato. Pouco depois, alguém a denunciou e foi-me sugerido o seu afastamento. Recusei a sugestão, apesar do Ministro me prevenir, muito irritado: "No meu gabinete e no do Secretário de Estado do Emprego toda a gente é de absoluta confiança. Se houver uma fuga de informação é do seu gabinete. "Com certeza! Mas não vai haver problema!", tranquilizei-o. Isto é, não devo ter tranquilizado, mas, provou-se que tinha razão. Fuga de informação foi coisa que não houve. Nem Ministro nem mais ninguém jamais suspeitou que a Ana também tinha sido secretária e tradutora do Vasco Gonçalves! Imagino a reação, se descobrissem esse passado, aliás, nada secreto, porque ela era simplesmente oriunda dos quadros da Presidência. Foi convidada por uma boa razão, a sua competência. A par do "segredo" estava a outra secretária, a Maria de Lurdes. O que nós nos ríamos, a traçar cenários de pânico se a ligação, puramente profissional, viesse a ser detetada.... Na verdade, nunca fiz nomeações de pessoal vindo das profundezas dos partidos, nem para chefias de departamentos, nem para o "inner circle". A excepção terá sido um ou outro caso, fora de Lisboa, onde não conhecia alternativa aos nomes que me indicavam. As minhas preocupações eram outras: a primeira, descobrir talento e experiência profissional, a segunda a paridade de género. Tive a sorte de encontrar, no fundo de uma gaveta, um anteprojeto enviado ao Ministério do Trabalho pela Comissão da Condição Feminina e dei-lhe pronta sequência. Nomeei uma comissão, presidida por um homem, justamente para contrariar a ideia de que os homens não se devem preocupar com as chamadas "questões femininas", que são, evidentemente, questões de direitos humanos, Convidei, claro, o homem certo, o Dr. João Caupers, grande jurista, dinâmico e capaz de cumprir prazos muito curtos, E cumpriu, elaborando relatório e anteprojeto de lei, depois de terem sido ouvidas todas as entidades de uma longa lista de consultas, em primeira linha, sindicatos e associações patronais. Assim, nasceu a CITE (Comissão para a Igualdade no Trabalho e Emprego). Inspirada no "Ombudsman para igualdade", na legislação sueca, que visa assegurar, "em condições iguais, preferência ao sexo sub-representado na profissão". Aqui ainda não era possível ir tão longe. Assim mesmo, como surgiu, a CITE, com a sua composição tripartida (governo, sindicatos, associações patronais) foi, na altura, considerada "avant-garde", em termos de direito comparado. O projeto foi integrado, por vontade do Ministro (que nunca levantou obstáculo a estas minhas iniciativas), num muito mais vasto "pacote laboral". O governo caiu antes da sua promulgação e o seguinte, de Maria de Lurdes Pintasilgo, decidiu vetar o pacote, globalmente. Não desisti, falei com o meu sucessor, Dr. Ribeiro Ferreira, um dissidente do PPD - dissidência aparte, um político muito simpático, que eu conhecia no gabinete de Rui Machete. Expliquei-lhe a singularidade do projecto, ele compreendeu a sua importância e tudo fez para o salvar. Conseguiu. O decreto-lei foi promulgado em pleno mandato de Pintasilgo, ainda com a assinatura de Mota Pinto. Todavia, nem todas as batalhas "feministas" foram ganhas. Foi impossível evitar Portarias de Regulamentação de Trabalho (PRT's), com salários de enorme disparidade para tarefas definidas como masculinas ou femininas. Esbarrei na oposição dos sindicatos, para além da dos patrões. Nada fácil, mas concretizada, foi a nomeação da primeira mulher para chefiar uma delegação distrital do Ministério do Trabalho (em Aveiro) e das primeiras mulheres Inspectoras do Trabalho - várias, de uma assentada. Encontrei algumas delas, anos e anos depois, numa visita que fizeram à Assembleia da República, talvez para participarem nalguma audição, não me recordo das circunstâncias. Procuraram-me para me dar notícias sobre as suas carreiras. A que vinha à frente disse-me logo: "Sabe, sou uma daquelas primeiras inspectoras, que nomeou". Estava em rota ascendente na carreira. Pelo visto, o Inspector-Geral, que era um magistrado, não quis ser apenas condescendente com o poder político (feminino), velou, e muito bem, pala qualidade das escolhas. Foi mérito dele, eu não interferi no processo. Gostei de as conhecer, quase uma década depois - o IV Governo fora tão breve, que não tinha havido essa oportunidade em 1979. A verdade é que às mulheres pioneiras se exige, quase sempre, mais do que aos homens, e que, para se moverem na política, elas têm, em regra, menos à vontade do que eles. Eu contava-me na regra. Providencialmente, as funções de Secretário de Estado do Trabalho não tinham grande visibilidade mediática. Quem estava sempre em cena era o Ministro - situação ideal, porque eu preferia o trabalho "de interior", detestava falar em público e dar entrevistas. Das poucas intervenções públicas a que não escapei, algumas incidiram sobre trabalho feminino. As audiências ficavam, por vezes, perplexas com o discurso da Secretária de Estado, que se assumia como "feminista" naquele particular governo, conotado à direita. Mas eu, crente e praticante do "verdadeiro feminismo", tal como o definia Ana de Castro Osório (nele abrangendo os homens bem formados e sensatos, preocupados com a valorização da metade discriminada da humanidade) passei, naturalmente, à acção concreta, com inteiro aplauso do Ministro, e do Primeiro Ministro, que, de mim, não esperava outra coisa. Dos "media" mantive distância máxima, com uma só entrevista, dada ao jornal "A Bola", sobre o caso mais escaldante, ou, pelo menos, mais badalado que me passou pelas mãos, a transferência de jogadores de futebol para o estrangeiro. Contra tudo e contra todos, autorizei a saída, sem restrições, por uma pura questão de princípios - no caso concreto, o princípio de liberdade de circulação. Considerava inconstitucional a PRT, que impedia a contratação para o estrangeiro dos jovens, que não tivessem um mínimo de idade e uma permanência de, pelo menos, três anos no mesmo clube. A meu ver, esta última exigência violava o "direito à emigração" de cidadãos, que eram jogadores de futebol, sem deixarem de ser cidadãos iguais aos outros. Ora, se, por exemplo, um atleta mudasse, várias vezes de clubes, dentro do país, não permanecendo em nenhum deles por aquele período de três anos, nunca poderia exercer a profissão fora de fronteiras. Foi o fim do mundo!...Consegui uma espécie de antecipação da doutrina estabelecida, anos depois, sobre o caso Bosman. Os jovens que beneficiaram da minha interpretação jurídica, eram, por acaso, do SCP, que vendeu os passes a um clube americano de Boston (os Tea Men?) por somas à época extraordinárias. O Keita, o Jordão e outros. Felizmente, não eram do meu clube. O FCP até estava contra, o Benfica também. Diziam os especialistas que tal abertura iria pôr em causa o futuro do futebol nacional... O despacho era conjunto com o Secretário de Estado do Desporto, mas eu mantive-me irredutível, com os meus argumentos juridico-constitucionais, e ele assinou, ainda que contrariado. E o caos, que se anunciava, não aconteceu. O Ministro deixou-me fazer a "revolução", sem se intrometer. Era um desportista - corria todas as manhãs, antes do pequeno almoço - mas não creio que fosse um entusiasta do "desporto-rei". Deve ter gostado que eu fizesse frente à pressão dos poderosos do futebol. Era "linha dura" e muito corajoso. Teve, nomeadamente, a coragem de aceitar na sua equipa, na pasta do Trabalho, uma mulher, o que então surpreendia, mesmo na Europa mais progressista. Estive em duas ou três reuniões internacionais e os interlocutores perguntavam, invariavelmente: "É Secretária de Estado do Trabalho Feminino?". Quando retorqui: "Não. Do Trabalho, globalmente", manifestavam espanto: "Tem a negociação com os sindicatos?" Confirmava e estranhava a estranheza deles, porque problema com os sindicatos pelo facto de ser mulher, foi coisa que não aconteceu. Houve muitas greves em sectores chave - como o sector portuário, as comunicações... . mas contendiam com o patronato, ou com o governo, sendo para o caso indiferente que no governo estivessem homens ou mulheres. Mesmo sem querer e sem fazer nada demais - apenas o que era minha função, à frente de excelentes negociadores dos serviços do Ministério - ganhei uma aura de "resistente". Apercebi-me de que tinha essa fama na primeira conversa com o Dr. Sá Carneiro. Quando argumentava que o pelouro da emigração era especialmente difícil para mim, contrapôs: "Mas a Srª Drª foi Secretária de Estado do Trabalho!" (o tom era de quem considerava que aí residia um expoente máximo de dificuldade). Parece-me que achou que eu fazia humor, quando retorqui: "Oh, Não! Isso não foi nada de complexo! Lidava com questões jurídicas e técnicas, despachava tudo rapidamente, deixava a secretária livre de papéis ao fim do dia.". Era verdade. A política do governo era clara, não havia que enganar na hora da decisão. Os processos vinham bem instruídos. O Chefe de Gabinete escrutinava cada palavra, na dúvida os adjuntos, especialistas de Direito do Trabalho, davam parecer, avaliávamos em conjunto os dossiers mais controvertidos. Óbvio, a responsabilidade política era minha. Quando havia que falar aos "media", o Ministro lá estava, sempre pronto a isso. O que mais poderia eu desejar? Sá Carneiro, ao contrário de Mota Pinto, não me conhecia pessoalmente, não sabia da minha aversão a falar de improviso, para plateias, para jornalistas. Era óbvio que a pasta da Emigração obrigaria a isso, constantemente. E a viagens, também - e eu tinha medo de andar de avião. Bem! Aprendi que tudo isso só custa a primeira vez. A segunda já é rotina. Sem o meu feminismo, não teria havido uma primeira vez, para mim, na política, Protestava tanto contra a ausência de mulheres nos Governos, que não pude recuar, quando eu própria era convidada o cargo. Realmente, nesse tempo, mulheres no Governo eram raridade (antes, com Caetano,apenas uma Subsecretária de Estado, no domínio da assistência, Maria Teresa Lobo). Pintasilgo foi Ministra dos Assuntos Sociais nos Governos Provisórios. Maria de Lurdes Belchior, ocupou a pasta da Cultura, já não sei em que governo. Com Pintasilgo, Primeira-Ministra esteve Teresa Santa Clara Gomes... fez mais convites, que foram recusados, Vinham todas de fora dos partidos, onde o poder se enraíza. Como eu própria. Sem Mota Pinto, como disse, eu também não teria aceite o desafio... Ele era um político diferente, que avançava com um sentido de missão - não só no discurso, mas na realidade. O primeiro declaradamente "não socialista" depois da revolução de 74. O ter resistido às pressões "da rua" (como então se dizia), o ter conseguido "governar", com firmeza, ainda que apenas durante nove meses, foi um grande passo na história pós revolução. Não há democracia sem a possibilidade concreta e concretizada de viragem, como a que Mota Pinto representou. Sá Carneiro haveria de salientar justamente a importância matricial da alternância democrática, no discurso de tomada de posse, reivindicando para o seu governo o título de primeiro governo de alternativa saído do sufrágio popular. O que era exacto, já que o anterior, de Mota Pinto, não resultara directamente do voto, mas de nomeação presidencial. Acredito, porém, que sem a experiência vivida ("ver para crer"...) que ele protagonizou, a maioria do povo português não teria arriscado dar a vitória, aliás muito estreita, à AD, em fins de 1979. Os Ministros e Secretários de Estado do Prof Mota Pinto eram, quase todos, independentes da área social-democrata e seriam chamados para o Executivo da AD. Fui um caso, entre outros. A única mulher, obviamente. E, por impulso, filiei-me no partido, que era ideologicamente o meu, tornando-me, assim, a primeira militante do PSD a integrar um Governo da República Portuguesa.

No Governo SÁ CARNEIRO

Não conhecia pessoalmente Sá Carneiro até ao dia em que me convidou para Secretária de Estado da Emigração. Fui ao seu encontro às cinco em ponto de uma tarde do início de Janeiro de 1980. Cheguei um minuto antes, recebeu-me no minuto seguinte. Pontualíssimo. Primeira impressão favorável, porque também sou. Veio à porta do gabinete receber-me, sorrindo: segunda nota favorável, porque sou adepta de "boas maneiras". Reparei no olhar intenso (intenso era o primeiro adjectivo que usaria para o descrever). A conversa foi inesperada. Para ambos, suponho. Para mim, certamente. Senti-me tão à vontade, que falei com ele como se o conhecesse há muito, como se fosse um dos velhos amigos de Coimbra. Sá Carneiro gostava, obviamente, de ser confrontado com respostas do género "não, não posso ir para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, porque ando sempre mal penteada e mal vestida". O que era visível, apesar do levar um casaco de peles, emprestado pela Branca Amaral. Tinha sido chamada por Sá Carneiro horas antes, sem tempo para ir a casa mudar de fato e, como estava com um casacão de tweed inglês, velho e "démodé", a Branca, minha colega de gabinete na Provedoria de Justiça, me aconselhou vivamente a trocar pelo dela.... Sá Carneiro quis foi saber se falava línguas, francês e inglês. Pragmático! (Quando tomaram posse dois dos meus sucessores, por sinal ambos do PSD, que não iam além do cultivo da língua - mãe, lembrei-me muito de Sá Carneiro e da falta que ele faz). A certa altura, chamou à reunião o Ministro Freitas do Amaral, que, como Vice-Primeiro Ministro, estava sedeado na Gomes Teixeira. Iria trabalhar diretamente com ele, na veste de MNE, no Palácio das Necessidades. A três, o tom do diálogo não sofreu alteração - mais parecia uma tertúlia! O Doutor Freitas do Amaral mostrava-se, igualmente, muito sorridente. Gostei dele, de imediato. E não é dizer pouco, porque como político, até esse preciso momento, não era propriamente um dos meus favoritos. Notei, que também ele, valorizava muito o meu relacionamento com os sindicatos e foi-me alertando para uma ameaça de greve que pairava sobre os consulados. Despedi-me de Sá Carneiro no mesmo tom bem-humorado em que a conversa começara: "Senhor Primeiro Ministro, por si faço tudo: vou de escadote colar o seu “poster” nas paredes. Vou de balde e pá pintar AD nas ruas. Tudo, menos ser Secretária de Estado! Ignorou o "não" e deu-me o prazo de 24 horas, para decidir. Dali, fui, de imediato, pedir conselho ao Doutor Mota Pinto (pelo telefone, porque ele estava em Coimbra). Encorajou-me a aceitar. Depois, combinei um jantar com Rui Machete, que tinha sido responsável pela mesma Secretaria de Estado, por uns meses, antes de se tornar Ministro dos Assuntos Sociais, ainda nos governos provisórios. Colaborei nesse seu gabinete, quando dava aulas em Coimbra, e de lá saí, por sua indicação, para assessorar o Provedor de Justiça, na área da segurança social. Um e outro me encorajaram a avançar - mais a Branca Amaral, cunhada do Rui e dona do casaco emprestado para o encontro com Sá Carneiro, que se juntou a nós nesse jantar. No dia seguinte, aceitei, não sem repetir ao Dr Sá Carneiro que não me considerava à altura da missão. Respondeu-me que não me preocupasse, porque assumia, por inteiro, a responsabilidade pela sua escolha. Penso que se apercebeu de que eu "queria e não queria" envolver-me naqueles trabalhos, que estava interessada, mas insegura. Acompanhou de perto as minhas primeiras semanas no Palácio das Necessidade, com um apoio constante. Foi extraordinário! Telefonava-me para me dar informação sobre casos concretos de emigração, para me dizer como esta ou aquela das minhas iniciativas tinha resultado bem... Pretextos para me dar ânimo -e dava. Gastou comigo algum do seu tempo tão ocupado de Primeiro-ministro, até ter a certeza de que estava à vontade... Pormenor significativo: não se servia, como é costume, de secretárias para mediarem as chamadas, ligava directamente para mim, e, às vezes, enganava-se no número direto e pedia às minhas secretárias para me passarem o telefone. Imagine-se a excitação delas... Ao longo de anos, transitando de gabinete em gabinete, nunca tinham ouvido a voz de um governante, através do fio. Exemplo único e irrepetível. Um Sá Carneiro bem diferente do que preferem traçar para a história muitos dos seus biógrafos. É o caso paradigmático de Miguel Pinheiro, que até começa bem mas acaba mal, apesar de ter recolhido larga bibliografia, e ouvido muita gente. Gente parcial... uma super abundância dos que perderam, no interior da "Nação PPD", todas as batalhas contra Sá Carneiro. Bem melhor é o texto de Maria João Avillez, numa objetividade mais conseguida. Ou José Miguel Júdice, que lhe era mais próximo. Júdice, a quem uma vez, num colóquio, ouvi dizer que Mota Pinto, à frente do IV governo Constitucional, foi uma espécie de São João Baptista, que anunciou aquele que havia de vir. Disse para comigo: "Il y a du vrai". Vi sempre Sá Carneiro, acima de tudo, empenhado em levar o país para patamares mais altos, acreditando que isso era possível, de imediato, sem períodos de transição (concretamente sem Conselho da Revolução...). Caminhava em linha recta para os objectivos, vertiginosamente. Para mim, ele era o “anti-Salazar” por excelência, na medida em que confiava tanto quanto o ditador desconfiava da capacidade dos portugueses para viverem em democracia, como os outros europeus do Ocidente. Toda a sua pressa, e o que chamavam perigoso “radicalismo” ou teimosia, eram a manifestação da vontade de pôr o sistema a funcionar democraticamente, sem tutelas militares ou outras, fortalecendo as instituições da democracia representativa. No domínio particular da emigração, como no conjunto da governação, considerava essencial o fortalecimento da sociedade civil, o diálogo Estado-sociedade civil. A criação de uma Assembleia ou Conselho de representantes das comunidades do estrangeiro era a grande novidade do programa da AD, e uma manifestação dessa vontade de diálogo. O Conselho das Comunidades Portugueses (CCP) era, de algum modo, inspirado no modelo francês, tal como os que, alguns anos depois do nosso, vieram a surgir na Itália e na Espanha, e, mais tarde, na Grécia. Um órgão de representação específica dos emigrantes, que acrescia à representação na Assembleia da República (então e ainda hoje apenas quatro deputados, eleitos nos dois círculos da emigração). No meu gabinete, toda a prioridade foi concedida à feitura do diploma, com a ajuda de deputados da emigração, sobretudo o José Gama, e de diplomatas, sobretudo o do Brasil, Embaixador Menezes Rosa. Foi ele mesmo que tomou a iniciativa de vir a Lisboa falar comigo. O primeiro esboço de diploma deixou-o preocupado. Veio propor alterações que contemplassem a especificidade dos países onde o movimento associativo estava federado, como era o caso do Brasil, nomeadamente no que respeita à constituição do colégio eleitoral para os delegados ao conselho mundial. Uma proposta que consideramos pertinente. Houve outros diplomatas que deram também contributos interessantes, mas não foi possível consultar diretamente os dirigentes associativos, porque havia pressa... O CCP era a grande prioridade, e essa falta seria compensada com a consulta aos Conselheiros, com vista a uma futura revisão legislativa. Ou seja, o Decreto- Lei criava o instrumento de co-participação no processo legislativo, a partir da primeira reunião. Estabelecia as regras para a eleição do órgão consultivo, delineava as suas funções principais, e deixava aos eleitos o poder de moldarem a instituição nascente. Uma originalidade, sem dúvida. Durante os meses de janeiro e fevereiro a vida do meu gabinete esteve muito centrada no arranque do CCP. Depois de cumprir as formalidades de circulação entre os membros do executivo, depois de se ter respondido a várias sugestões e propostas de alteração, o texto final foi aprovado em Conselho de Ministros no dia 1 de Abril, dando-nos tempo de convovar a primeira reunião no verão desse ano. Porém, de Belém, tardava a promulgação. O Presidente da República General Ramalho Eanes aplicou-lhe o "veto de bolso" ao longo de cinco meses, só o promulgando em 12 de Setembro. Foi a resposta natural ao facto de o Governo ter adiado o "Congresso das Comunidades", integrado nas comemorações camonianas, cuja preparação se iniciara no Governo Pintasilgo, sob a presidência de Vítor Alves. O Congresso seria realizado a 10 de junho de 1981, sob a presidência de um militante do CDS, coadjuvado (bastante mal, diga-se) por um secretário-geral do PSD, António Cabecinha, No esquema de Pintasilgo, ao Congresso se seguiria a institucionalização de novas formas de representação dos emigrantes. O Governo da AD avançava na mesma direção com um CCP, formado por líderes associativos, à semelhança do "Conséil" francês, que, sendo pioneiro, serviu de modelo a todos os que vieram a surgir na Europa (o português, anos depois o italiano e o espanhol, muito mais tarde, o grego). Com as eleições legislativas em Outubro, e as presidenciais em Dezembro, tornava-se impraticável convocar o Conselho, de imediato. Ficou adiado para 1981, antecedendo em dois meses o também adiado Congresso das Comunidades. Entre as duas iniciativas não houve, porém, qualquer articulação, constatação do domínio do insólita, que se explica por ter sido marginalizada na preparação do Congresso, não só a Secretária de Estado, pessoa concreta, mas, o que é mais ainda pior, os serviços da Secretaria de Estado (embora não a rede diplomática e consular, lá fora, onde era preciso apoio "in loco" para as reuniões preparatórias - de qualquer forma essa rede dependia diretamente do Ministro). Este "insólito" era impensável sob a liderança de Sá Carneiro e Freitas do Amaral, mas de 81 em diante, perdera-se toda a coesão da equipa, toda a harmonia que havia reinado na AD (não me digam que as coligações partidárias não dependem essencialmente do entendimento pessoal, porque a experiência daqueles sete meses provou-me o contrário). Mesmo sem CCP (que teve de ser anunciado não como feito mas como projeto) 1980 foi um ano prodigioso. Sá Carneiro definia Portugal como “Nação de Comunidades" - mais uma “cultura do que uma organização rígida", mais Povo do que território. São palavras dele, que me são, por vezes, atribu ídas, só porque as repeti ao longo dos anos, aliás sem nunca me esquecer de o citar. Dizia que era preciso reconfigurar o Estado à medida da Nação, estabelecer a igualdade de direitos políticos entre residentes e não residentes dentro no país, privilegiar os laços de sangue e a ligação afetiva dos expatriados à sua terra, apelar às segundas gerações, promover a sua participação real na vida coletiva. A chamada "lei da dupla nacionalidade", a mobilização para o recenseamento eleitoral, a revisão das leis eleitorais discriminatórias, o reencontro pelo diálogo, não só com a emigração europeia, mas com a de além mar (bonita que, então, andava muito marginalizada nos programas da Secretaria de Estado, em todas as formas de apoio social e cultural e na cooperação com o movimento associativo. A grande marca da governação AD foi a parceria com este movimento. Houve a exata compreensão de que uma coisa são os emigrantes portugueses isolados, imersos numa sociedade estrangeira, outra são as comunidades orgânicas, com a força das suas organizações e iniciativas culturais. Foi em relação a esta realidade a que muitos chamam "Diáspora" que o Governo Sá Carneiro foi mais inovador - até então havia política de emigração, com o enfoque nas questões sócio-laboral e económica. As comunidades de cultura portuguesa andavam esquecidas, desde que o Prof Adriano Moreira. à frente da Sociedade de Geografia, as convocara para grandiosos Congressos Mundiais, em 1964 e 1967. O regime, com Marcelo Caetano, não o deixou prosseguir... A reaproximação à "Diáspora" começara e ser tentada, após o 25 de abril, nas comemorações do 10 de junho, promovidas pelo Presidente da República Ramalho Eanes, Ecoam para sempre as palavras de Vitorino Magalhães Godinho, num desses atos solenes: "Há um Portugal maior do que o império que se fez e desfez..." Há e o programa da AD era o primeiro que quis passar das palavras à ação - a par das "políticas de emigração", dedicou um capítulo próprio às "políticas para as comunidades", baseadas na trave mestra da institucionalização do diálogo com o associativismo, com o acento colocado nas questões culturais, na ideia de reencontro dos dois Portugais, que vivem um dentro e o outro fora do território. Na ideia da igualdade entre diversas formas de pertença ao todo nacional. Igualdade, também entre as emigrações, a mais antiga e a mais recente, a mais próxima e a mais distante, a europeia e a universal. Em Março fiz a minha primeira visita ao serviço dessa ideia. Comecei, naturalmente, pelas que ficam do outro lado do Atlântico: os EUA e o Canadá, de costa a costa, mais de 20 dias, mais de 20 hotéis, de cidades, dezenas de associações, de paróquias, de escolas, com longos debates públicos, entrevistas, conferências de imprensa... (o tirocínio, para quem não gostava de exposição pública e a teve em abundância). Em abril, segui para a América do Sul, Brasil (a minha descoberta do Brasil, de Manaus ao Rio Grande do Sul, dos seus grandiosos Gabinetes Portugueses de Leitura, Beneficências, Hospitais, Clubes desportivos, tudo à dimensão da grandeza do próprio país, e, também, de uma familiaridade tão imediata e completa, com os brasileiros, que os transformava em tudo menos estrangeiros), Argentina (mais uma surpresa, os seus dinâmicos clubes, a sua alegria, o seu cosmopolitismo, à imagem da sociedade argentina). Depois, a Europa - França, Alemanha, Inglaterra, Ilhas do Canal, Luxemburgo, Bélgica - a Europa portuguesa, que desconhecia mesmo em países, onde estudara ou estagiara, casos da França e do Reino Unido. O 10 de junho foi em Caracas, no já monumental, mas ainda inacabado Centro Português - uma sensação de futuro, essa cerimónia num salão ainda sem vidros nas janelas, nem soalho de madeira. Em agosto, obviamente, fiquei no país cheio de emigrantes e não parei um minuto, em colóquios e em festividades, de norte a sul - sobretudo a norte, no Minho e em Trás-os- Montes, de onde vinham, todos os fins de semana, convites irrecusáveis.Era Em Setembro, foi a vez do sul da África, de Capetown a Harare, M'Babane e Manzini, com regresso por Kinshasa. A Diáspora, num espaço cheio de história portuguesa, mas não história colonial - o rasto das caravelas e a presença bem amada, bem integrada da pura emigração, antiga e recente. Instituições com sedes espetaculares, como a Amicale Sportive Kinoise, o melhor e maior clube social de todo o Zaire, aberto a sócios de uma trintena de nacionalidades, em portuguesíssimo ambiente. Muito cordiais foram as conversas com os meus homólogos dos governos de Pretória (o Vice-Ministro do Interior, Kotze, e em Kinshasa, o Embaixador Izumbuir, Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros. Aí, fui também recebida pelo Primeiro Ministros, Doutor Karl-i- Bond, um académico, que tinha sido Professor universitário na Bélgica, para onde julgo que voltou. Ambos amabilíssimos, a contarem-me a sua ligação pessoal a portugueses, que os tinham ajudado com bolsas de estudo. Izumbuir falava português perfeitamente, tinha vindo da Embaixada em Brasília. Um organização impecável do Embaixador Baptista Martins, de quem fui hóspede na residência, que era imponente (encantadora, também, a Embaixatriz, que me levou às zonas da cidade, onde os europeus nunca punham os pés, mas onde ela fizera amizades, com ourives e outros vendedores de arte africana - era um figura muito popular entre o "povo.povo", como tive a sorte de poder constatar. Voltei a Kinshasa, muitas vezes, mas sem ela, nunca mais voltei aqueles "quartiers", tão acolhedores...). Nas viagens à América do Norte e à África, o José Gama, deputado do CDS, fez-me companhia. Nos EUA foi mesmo ele que me traçou o roteiro - tinha sido jornalista em New Bedford, conhecia tudo e todos. Era uma simpatia e um orador excecional. Falava sempre, como manda o protocolo antes de mim, e deixava as audiências empolgadas, frequentemente, em lágrimas. E eu tinha bem a consciência de ficar longe do seu patamar oratório, com um discurso terra a terra, a enumerar os diplomas que estavam em agenda, o CCP (que não entusiasmava muito) a Lei da nacionalidade (que entusiasmava imenso), o livre acesso dos jovens às universidades, o aumento da representação política, os intercâmbios culturais. Apresentados, invariavelmente, num tom coloquial. As pessoas aceitavam-nos como éramos, guardo, desta movimentação incessante, boas recordações da hospitalidade lusa, mas ficou-me a impressão de quem nem todos acreditavam piamente no rol de promessas que fazia e que, felizmente, no essencial viriam a ser cumpridas... Os encontros bilaterais, com as autoridades eram, evidentemente, preparados pelos nossos diplomatas - e de forma muito dissemelhante: Em Ottawa, o Embaixador Góis Figueira organizou uma verdadeira cimeira, quase um dia inteiro de contactos com Ministros - Axworthy, que reencontraria, anos depois, no Conselho da Europa. mais dois membros do Governo, que não voltei a ver, e uma dezena de altos funcionários públicos das áreas da imigração, segurança social, cultura, Pelo meio, um almoço oferecido pela parte canadiana. Voltei à capital do Canada muitas vezes, mas nunca mais um diplomata português mostrou esta capacidade de interlocução com as autoridades do país. Nota 20... Em Toronto, fui recebida pelo Primeiro-Ministro do Ontário, pelo Mayor. Em Montreal pelo célebre Maire Drapeau, que convidou De Gaulle a falar na varanda, de onde este soltou o seu o grito de guerra "Vive le Quebec libre!", após o que foi convidado a regressar, prontamente a Paris. Em Conneticut, o Governador do Estado, os "mayors" das principais cidades - a aí fiquei a saber que há cônsules honorários com muito mais influência na sua área do que os de carreira. Era o caso do Dr Seabra da Veiga, uma sumidade como médico-cirurgião e professor, mais famoso no meio político e social americano do que na terra de origem , que, tal com a mulher Rita veiga, se tornariam meus grandes amigos.. Em Rhode Island, encontrei a primeira Cônsul, Anabela Cardoso. Impressionou muito pela sua desenvoltura e espírito prático. Em vez de uma "limousine" levou numa espécie de grande "jeep", colocando toda a nossa bagagem atrás, porque à noite já tínhamos hotel e programa de encontros no vizinho Estado de Massachussets, mas em Providence cumprimos uma agenda cheia - audiência com o governador, receção oficial na Assembleia Legislativa, almoço com o primeiro eleito portugês, o Senador Castro, um homem muito alto e forte, jovial, caloroso. Em Boston e Harvard, acrescentámos aos contactos oficiais, visitas às Universidades, Em Brasília, as receções oficiais foram múltiplas, sempre marcadas pelo "charme" brasileiro - com ministros, congressistas, muito interesse dos "media".Em 1980, não havia praticamente, mulheres na política nacional e o exemplo que Portugal dava comigo causou sensação e fez notícia. Quem diria que, tão pouco tempo depois, o Brasil no ultrapassria, meteoricamente. com uma Presidenta, Governadoras e Prefeitas, nos principais Estados, congressistas (nota curiosa, a nível estadual, por onde começou a imparável ascensão feminina, as pioneiras foram imigrantes de nacionalidade portuguesa, ao abrigo do "tratado de Igualdade": a atriz Ruth Escobar, deputada na Assembleia do Estado de São Paulo e a médica Manuela Santos, Secretária Estadual do Governo do Estado do Rio de Janeiro).Na Venezuela, foram insignificantes os contactos oficiais durante a primeira visita, acantonada à emigração portuguesa por um embaixador político e pouco simpatizante com a AD, mas, felizmente, passei por Caracas, de novo, nas férias desse sonho, e o Encarregado de Negócio, Rosa Lã, supriu todas as omissões. Um dos muito encontros bilaterais, com o Vice-Ministro do Interior, Aristigueta- Gramco foi de crucial importância para a legalização de portugueses (maciça, mas muito discreta - a condição era mesmo essa, não a divulgar - 36 anos depois, posso, enfim,, falar disto... Na Argentina, também tive um "rendez-vous" com um simpático colega, na França, idem, com Stoléru, que não era, propriamente muito efusivo, nem muito aberto a justas concessões. na Alemanha, com interlocutores governamentais, por sinal, mais sensíveis às boas provas aí dadas pelos trabalhadores portugueses (os alemães são facilmente convencidos por factos e números, e a nossa Embaixada, sabendo isso, preparou "dossiers" convincentes, baseados em estatísticas alemãs. No Luxemburgo, a receção do governo foi fraterna, começando po. Jean Claude Juncker, até hoje meu amigo, e mais importante do que isso, um amigo dos portugueses. E até na África do Sul, as reuniões fora um sucesso - Sá Carneiro, em negociações com o Governo de então, só as permitia a um membro do seu governo - o responsável pela emigração. Sou muito direta, e, sempre que o ambiente o permite, informal e, por isso, as coisas correm particularmente bem, com políticos nórdicos, germânicos, "boers", que são mito diretos também e olham as mesuras e os floreados latinos com reserva. Ainda hoje recordo o espanto do Embaixador Coutinho a ver-me em discurso, para usar uma expressão do povo, "pão, pão, queijo, queijo", sobre problemas da nossa comunidade, com a melhor das recetividades... O meu interlocutor no governo era o Vice-Ministro Kotze, a que já aludi - um homem enorme,de porte austero que me esperava, cortezmente, na sala VIP do aeroporto e se foi tornando mais e mais simpático à medida que a conversa fluía. À hora do almoço, que ofereceu à comitiva portuguesa (diplomatas, eu e uma adjunta, que era a minha única acompanhante) já mostrava um sentido de humor muito "british", e à volta da mesa, o embaixador Coutinho, homem encantador, mas sempre com o seu ar preocupado, era o mais silencioso. Enfim, só boas recordações do que aconteceu no eixo bilateral, mas lembro-me, sobretudo, da sensação de espanto e encantamento com que percorria este "outro Portugal" - mais intenso, mais afetivo, cheio de arraiais e procissões, de saraus, de música, de folclore, de caldo verde e bacalhau, de sessões solenes à portuguesa, e, também de muitos queixumes e justas reivindicações.. Quem visita comunidades, assim, uma a seguir a outra,num curto espaço de tempo e num largo espaço geográfico, pode melhor não só avaliar as suas diferenças, como constâncias - a primeira das quais, a fidelidade às tradições, o gosto pelas coisas portuguesas. No Brasil, a sensação estendia-se, como disse. ao povo inteiro, Só a dimensão continental, os voos de seis horas dentro de fronteiras me trazia à realidade de estar num outro país, que não o meu. Não é figura de retórica, é verdade, no Brasil sempre me senti brasileira (possivelmente mais do que muitos compatriotas que lá estão há muitos anos...). Quando digo que 1980 foi o ano mais feliz da minha vida, refiro-me ao período que vai de janeiro até 4 de dezembro ...O desaparecimento de Sá Carneiro e de António Patrício Gouveia, um dos homens mais inteligentes e mais agradáveis que encontrei ao longo da vida (a quem, com grande frequência, dava conta das minhas histórias, a quem pedia conselho. Era mais novo, mas mais sábio do que eu. Não era diplomata, mas parecia - falava do Ministério dos Negócios Estrangeiros e das suas particularidades, como se pertencesse à carreira. Um choque a sua morte, a de Sá Carneiro, a de Adelino Amaro da Costa (com quem tive pouco contacto, mas o havido bastou para o ver como uma espécie de Guterres do CDS). Acredito que com eles tudo teria sido diferente. Alguém imagina Sá Carneiro a dizer, por exemplo, que "Portugal é o bom aluno da Europa"? A aceitar esse tratamento para um país quase milenário, de cultura universalista, face a países com pouca história e "pouco mundo"? Sá Carneiro fez falta ao nosso país, e não só - também ao sul da à Europa, à Europa inteira... Mário Soares, o outro grande político que emergiu da revolução, ficou demasiadamente só....

No Governo BALSEMÁO

1981 - CONVITE E "DESCONVITE" Francisco Pinto Balsemão tornou-se presidente do PSD e, seguidamente, Primeiro ministro, em Janeiro de 1981. Balsemão era o dono do "Expresso", um milionário lisboeta (fortuna de família, dinheiro "velho", note-se), com uma atitude na vida, um temperamento, um perfil político, que, muito mais do que a ideologia, o distanciavam de Sá Carneiro. E, ao que se dizia, foi-se distanciando dele também no governo, enquanto Freitas do Amaral e Amaro da Costa se aproximavam, num relacionamento cada vez mais sedimentado na colaboração quotidiana, e, finalmente, na amizade. Isto não era segredo para ninguém, nem mesmo para mim, que não pertencia ao "inner circle" de nenhum deles. Com Balsemão houve dissonâncias - as que se conhecem por notícias dos media e outras menos mediáticas, de que me apercebi, por exemplo, no caso do resgate dos pescadores portugueses em território "sarauí" (por sinal, levado a bom termo por um meu colega de Coimbra e grande amigo, Luís Fontoura). Dentro do PSD, era visível a fratura entre Sácarneiristas (que queriam Eurico de Melo - o principal conselheiro do primeiro-ministro desaparecido - ou Cavaco Silva - seu ministro das Finanças - para a chefia do Governo) e Balsemistas, uma maioria do Conselho Nacional do partido. Balsemão venceu, e a AD nunca mais foi a mesma, apenas se arrastou, penosamente, até meados de 83. Recebi um convite para continuar à frente da SEECP, formalizado pelo novo MNE Gonçalves Pereira. Pareceu-me de fraca intensidade, mas aceitei-o, por saber que Freitas do Amaral, com que tinha tido o mais perfeito dos entendimentos, fazia questão de me ver prosseguir o trabalho iniciado, nomeadamente o lançamento do CCP. Na verdade, nesse e nos governos seguintes, tentei levar por diante a política de Sá Carneiro, sem Sá Carneiro. Faltavam meios financeiros e sobravam ataques pessoais, movidos de dentro do partido, por um dos adjuntos do Secretário -Geral António Capucho - que não creio ter estado envolvido na campanha, diga-se - um Capitão Figueiredo Lopes, deputado da emigração, irmão de um Dr Figueiredo Lopes, excelente pessoa, colega de governos, com quem me dei sempre bem). O MNE não me dava, nem de perto nem de longe, o apoio a que estava habituada com Freitas do Amaral. Foi uma aprendizagem dura do que é a política sem aliados no Governo e no partido, duas frentes agitadas. Aprendi, antes de mais, que é muito mais fácil fazer dupla com ministros de outros quadrantes partidários, que nos tratam como parceiros de coligação, do que com correlegionários, que nos tratam como subordinados - casos em que qualquer pessoa que se preze e preze o cargo, tende para a insubordinação. Foi ótima a relação com Freitas do Amaral, CDS, e com Jaime Gama, PS, menos rósea com Gonçalves Pereira, (um independente próximo do PSD ou, pelo menos, de Balsemão) e irremediavelmente conflituosa com Pires de Miranda, PSD., (o mercador de petróleo, pouco versado em outras formas de diplomacia e completamente avesso aos projetos sociais e culturais da emigração). Eu tinha sido eleita, em Outubro de 1980, deputada da emigração, como cabeça de lista no círculo Fora da Europa, com José Gama na 2º lugar, que cabia ao CDS. Podia, felizmente, contar com ele e com muitos líderes das comunidades, que conhecera nos périplos dos ano anterior, mas senti a diferença ... Na Europa, era acusada, num abaixo- assinado cheio de nomes dos principais dirigentes do PSD (a mando do tal Capitão, em quem alguns genuinamente acreditavam), por tudo quanto corria mal no governo - desde o ensino da língua à segurança social ou à falta de emprego. Mas esta parte, a do abaixo assinado contra a Secretário de Estado, publicitada nos "media" foi coisa de pouca dura. Bastou uma viagem à Alemanha (ao "olho do furacão") e tudo se esclareceu, porque eram justamente matérias, que escapavam à decisão do Secretário de Estado da Emigração, simples mediador face ao Ministro da Educação ou do Trabalho. O ataque pessoal redundava, pois, em ataque político radical ao governo da AD, vindo dos militante do principal partido do Governo. Quando expliquei isto de uma forma muito clara, o primeiro signatário pediu-me desculpa e essa campanha terminou ali - outras, muitas, futuras, seriam menos desajeitadas Gastei algum tempo a apagar estes fogos, mas, como é óbvio, ocupava a maior parte do meu tempo, a trabalhar no que importava mais - a execução do programa de co-participação nas política das emigração, a convocação do 1º CCP, o diálogo, dentro desse órgão, como fora dele, com os interlocutores das comunidades, as suas organizações. Havia que estabelecer pontes. Visitas ao estrangeiro, sempre as houve, até durante o Salazarismo e o Marcelismo, que lançou as primeiras estruturas de apoio, tanto aos imigrantes como ao associativismo, com o "Secretariado Nacional da Emigração. Porém faltou-lhes a mobilização sistemática, a centralidade política com que se moldou um novo ciclo. Uma visão bastante “institucionalista”, a minha, eu sei, sem prejuízo de reconhecer os direitos de cada cidadão face ao Estado. Todavia, mesmo os direitos individuais são, em geral, bem mais e melhor protegidos se houver estruturas para a afirmação colectiva, solidariedade, parceria com os governos. Estes têm feito alguma coisa, mas muito pouco em comparação com a obra dos próprios emigrantes, em todos os tempos e em todo os lugares, no Brasil, na França, na Austrália... O 1º Governo Balsemão foi o mais breve de todos aqueles em que estive - sete meses e meio. Quase sempre dentro de fronteiras, porque o MNE achava que não valia a pena sair, nem mesmo para as comemorações do 10 de junho... Limitei-me a umas rápidas deslocações à Europa, para contactos com os meus homólogos, sobretudo com Stoléru, em Paria - contactos nos quais o MNE via, certamente, muito mais interesse do que os reuniões com emigrantes. Mas não houve lugar a lamentações, graças às pontes estabelecidas com o roteiro de visitas do anterior Executivo e ao facto de ter conseguido realizar em Lisboa, em abril, a 1ª reunião do Conselho das Comunidades, trazendo ao País alguns dos principais personagens do mundo da "Diáspora" - veio a montanha ao encontro de Maomé... De qualquer modo, foi um feito ter resistido num governo onde era "personna non grata", conseguindo prosseguir o que fora começado em 80, não só o Conselho, mas o recenseamento eleitoral, a remodelação dos programas de televisão para emigrantes, novos apoios aos "media" das comunidades, cursos de verão para jovens, concursos musicais, ações de formação em folclore e jogos tradicionais (curiosamente com a ajuda de uma colega do colégio do Sardão, a Graça Guedes, que participara numa iniciativa semelhante lançada por Vitor Alves), visitas de emigrantes seniores ao lugar de origem - que, no fim da década de 90 o José Lello retomaria, num formato mais mediático, com o apelativo nome de código de "Portugal no Coração". Em 1981, os seniores eram escolhidos pelos consulados, de entre os que há mais tempo não vinham à sua terra, e para lá seguiam com o apoio dos serviços locais da Secretaria de Estado, nas datas que individualmente escolhiam para a vinda e para o regresso. O meu gabinete era um centro operacional para uma programação intensiva, que envolvia o vai-vém dos outros, seniores, jovens, conselheiros das comunidades, funcionários, que enviava em minha representação a diversas comunidades, enquanto eu permanecia em Lisboa. Pelo mundo viajava uma improvável dupla formada por Rosado Fernandes, catedrático de Letras e António Cabecinha, Cabecinha, um homem que, pelo que lhe ouvi dizer, sempre me pareceu pouco letrado, animando grandes reuniões preparatórias do "Congresso das Comunidades", o tal de cuja presidência Victor Alves fora desapossado. Retrospetivamente, reconheço que o "seu" congresso seria, com certeza, mais profícuo do que o que aconteceu num hotel cinco estrelas, em Lisboa, por altura do 10 de junho. Basta dizer isto: os participantes eram muitos e o tempo escasseava, pelo que Cabecinha, que dirigia os trabalhos, houve por bem proceder a um rateio, que dava pouco mais de um minuto "per capite". O minuto esgotava-se numa saudação irrelevante, naturalmente. Nenhum militar se lembraria de um dislate desta natureza e dimensão... Para me distanciar daquele espetáculo absurdo, entrei muda e saí calada... Logo na abertura das sessões, Victor Alves, que era o representante do Presidente da República, foi insultado. O incidente prolongou-se em afrontamentos vários, em verdadeiras agressões verbais entre congressistas da Europa e de Fora da Europa. No CCP também isso esteve para acontecer, em abril, com guerrilhas de oratória entre a mesma geografia e as mesmas opostas ideologias, mas tudo se resolveu com paciência e diplomacia, garantindo-se aquele nível de diálogo e coesão que é imprescindível ao nascimento de uma instituição, na feliz transição do texto da lei para a vida real. O Conselho teve percurso acidentado, com hiatos, roturas, recomeços, mas continua de pé. O Congresso foi para uns uma festa, para outros um oportunidade de contestação política. Foi um "happening" e não teve "dia seguinte". Pinto Balsemão caiu poucas semanas depois, dentro do próprio PSD, num Congresso Nacional em que, para calar os "críticos" (nome da facção que se lhe opunha internamente, com Eurico e Cavaco à cabeça), se demitiu da presidência do partido e do Executivo, coisa nunca vista... "Saiu sem sair" - como muitos gostariam que acontecesse no "Brexit". Reassumiu as rédeas do partido, na semana seguinte e foi, de novo, chamado pelo PR a formar governo. O MNE Gonçalves Pereira transmitiu-me um convite do Primeiro Ministro para continuar com ele, porque o tinha convencido Balsemão a aceitar a continuação da minha presença nas Necessidades. Balsemão, segundo me contou, estava relutante, achava que eu pertencia, secretamente, ao grupo dos críticos... Não pertencia! Com Eurico e Cavaco nunca tinha tido nem sequer uma pequena conversa! Ficara pelo "bom dia", em poucos encontros casuais. Estava eu a ultimar os preparativos de uma nova ida a Paris, para negociações com Stoléru, quando, na véspera da tomada de posse, se deu o golpe de teatro: Gonçalves Pereira chamou-me para me dizer que, afinal, Balsemão queria no meu lugar um homem de sua confiança, José Vitorino, um dos fundadores do PPD/Algarve, líder regional que queria a pasta do Turismo ou a das Pescas, mas aceitava a Emigração (ao contrário de Jacob, em vez de Raquel, aceitava Lia). O "desconvite", como lhe chamou, expressivamente, o semanário "O Tempo" de Nuno Rocha foi uma surpresa, sem dúvida, que me deixou irritada, nada mais. A pedido de Gonçalves Pereira, com quem, todas as contas feitas, fora interessante trabalhar, contactei, de imediato, com Vitorino, para o pôr a par das questões mais importantes. Fui anfitriã de um almoço de trabalho num restaurante simpático, na calçada da Estrela, em frente ao lado sul do palácio de S Bento. Falei, falei... mas o meu sucessor parecia pouco atento e, antes da sobremesa, interrompeu considerações sobre prioridades governativas para perguntar: "Que carro é que eu vou ter?" A inocente pergunta enfureceu-me, confesso. Não resisti a retorquir, com despropositada satisfação: "Vai ter o carro novo, foi comprado há poucas semanas, mas é o carro mais barato que existe no mercado para Secretários de Estado" . Com cara de poucos amigos, nova questão: "Mas ao menos é preto?" Foi com imensa satisfação que respondi: "Não, é azul claro - um azul muito feio, que era o único disponível" (tudo verdade - tratava-se de um "saldo" de um Peugeot 504, modelo que já não se fabricava. Vitorino tomou a minha escolha como uma espécie de afronta, embora ao tempo da compra, ninguém antecipasse a queda do governo.... Nova interrogação, com semblante fechado: "Porque é que fez isso?". Expliquei-lhe pacientemente: "Para poupar dinheiro do pequeno orçamento do Instituto de Emigração" (a compra do carro fora necessária, porque um motorista estouvado, embora muito simpático, tinha destruído o Citroen "boca de sapo", que sobreviveu até 1981, vindo do velho regime, do Secretariado Nacional da Emigração - com cerca de 10 anos de muito uso). Não sei se foi a absoluta falta de sintonia sobre um Peugeot azul que envenenou, desde as primeiras impressões, o meu relacionamento com José Vitorino. De qualquer modo, a falta de sintonia foi uma constante, ao longo do período em que ele exerceu o cargo governamental e eu assumi o mandato como deputada pelo círculo da emigração "Fora da Europa"entre julho de 1981 e junho de 1983. Voltei ao Palácio das Necessidades nessa data. Vitorino foi, pois, o meu sucessor e o meu antecessor. Quando, um dia, em conversa com Georgina Dufois - que, entretanto substituíra Lionel Stoléru - o referia nesta dupla qualidade, ela sintetizou, brilhantemente: "Votre intercalaire!". De facto, o meu intercalar... ---

No Governo SOARES- MOTA PINTO

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"BLOCO CENTRAL" (1985/87) Seria o mais duradouro dos meus cinco governos - 26 meses. Voltei à Secretaria de Estado da Emigração pela mão de Mota Pinto, o líder que substituiu Balsemão no PSD. Uma experiência inédita na democracia portuguesa, em tempo de crise: o chamado "Bloco Central", com Mário Soares e Mota Pinto. Dois homens que se entendiam bem. Toda a turbulência que abalou o "Bloco" vinha de dentro do PSD, não da vertente interpartidária . Mota Pinto demitiu-se da presidência do partido e, consequentemente, do governo. Não era uma jogada tática "à Belsemão". Não haveria regresso. Os opositores, a ala que sempre se opusera aquela fórmula governativa, a auto - intitulada "Nova Esperança", com Santana Lopes, Durão Barroso e Marcelo Rebelo de Sousa e outros menos proeminentes, preparava a rotura. O Governo não caiu, de imediato, continuou com Rui Machete, no lugar de Mota Pinto. A queda consumou-se depois do congresso da Figueira, até onde Aníbal e Maria Cavaco Silva foram rodar o carro novo, segundo reza a lenda. Mas isso seria na primavera de 85, o anos em que Cavaco ganhou as eleições, sem maioria. No verão de 83, o resultado eleitoral e o estado das Finanças públicas, na iminência de uma intervenção do FMI, obrigou os dois grandes partidos à coligação (afinal, o mesmo tipo de solução desejado na era da "troika", ironia das ironias da vida política, por radicais opositores do "bloco central", como Cavaco Silva ou Passos Coelho... Eu estava com Mota Pinto, naturalmente, e com a absoluta necessidade de uma aliança o mais abrangente possível naquela conjuntura, e no interior do PSD fui uma das suas mais ruidosas apoiantes. Porém, enquanto o Professor formava governo com Mário Soares, andava eu por longe, nas Américas, festejando a vitória no círculo onde fora reeleita, por larga margem. As notícias apontavam-me como Secretária de Estado da Emigração, mas ninguém me tinha contactado (talvez, porque não havia ainda nem telemóveis nem internet). Nas vésperas de regressar ao país, em New Bedford fui entrevistada pela televisão e pelo jornal Portuguese Times. Confrontada com as notícias que me davam de volta à pasta da emigração, neguei que tivesse sido sondada para o efeito.... Incrédulo de início, mas convencido pelo meu tom peremtório, o Diretor, que era um amigo e confiava na minha palavra fez título de 1ª página com a sensacional informação do meu não retorno ao cargo. Mas mal aterrei em Lisboa fui chamada de urgência ao gabinete de Doutor Mota Pinto e convidada, tal como previam, há muito, as agências noticiosas. Em vão invoquei argumentos para recusa - o meu antecessor (ou intercalar) deixara reduzir os orçamentos para ações, tratara de o gastar no primeiro semestre, fizera nomeações no estrangeiro, que seria impossível pagar, sob pena de total paralisia dos serviços, suspendera, "contra legem", as convocatórias do CCP, a pretexto de proceder a uma reestruturação da lei, que não fizera. Tudo isso havíamos criticado na Comissão de Negócios Estrangeiros, onde a suspensão do funcionamento do CCP foi censurado, por unanimidade. O Doutor Mota Pinto não se deixou convencer - estava certo que eu encontraria soluções. Saí, pois, da Gomes Teixeira, a dizer que não e o Dr Mota pinto a achar que sim, e, no dia seguinte, (dia improvável, um sábado!), lá fui tomar posse e enfrentar as dificuldades. Não eram poucas...Consegui salvar a reunião mundial do Conselho, mas não muitas das nomeações de Vitorino tiveram de ser anuladas. Em New Bedford, Adelino estava zangado comigo - com razão, embora sem culpa minha, que dissera a verdade... O Portuguese Times saiu com a manchete já desmentida por factos supervenientes: o ritmo dos acontecimentos vencera o "timing" da publicação. Ainda hoje, quando nos vemos, ou ele me fala disso, ou eu pressinto que o caso está no seu pensamento. De regresso ao meu pequeno gabinete conventual nas Necessidades, a prioridade foi normalizar a vida do CCP, reativar os canais de contacto, promover as necessárias eleições e organizar a reunião mundial, que teve lugar ainda em 1985. A solene abertura realizou-se, com larga cobertura dos órgãos de comunicação social, no Porto. Sou a favor de receber os representantes das comunidades do estrangeiro nas nossas melhores salas de visitas. Depois da sala dos espelhos do Palácio Foz, em 1981, o salão árabe do Palácio da Bolsa. O único que não terá gostado muito foi o Ministro da Cultura. Coimbra Martins aceitou o meu pedido para presidir, simbolicamente, à sessão e no seu breve discurso aludiu ao "luxo" do local, como se estivessemos a pagar por ele, naquele momento. Estranho conceito da utilização e gozo do património construído, pensei. É certo que as sessões de trabalho continuaram em instalações bem mais ao gosto do Ministro Coimbra Martins, quando ele já não estava connosco, nas modernas, mas, comparativamente, modestas instalações do INATEL da Feira, onde todos ficaram alojados, em regime de internato. O encerramento foi presidido pelo Ministro da Educação, José Augusto Seabra, num cenário mais austero embora com uma sumptuosa torrente de palavras da sua parte. Tarde demais vi que devia ter começado com o titular da Educação e terminado com o da Cultura... De qualquer modo, ambos foram excelentes e a sua participação prestigiou a renascida instituição, como era nosso objetivo. No CCP, muitos haviam sido reeleitos, conheciam-se bem. debatiam ideias e propostas acaloradamente, mas, por fim, estavam de acordo no essencial, que era não pôr em causa a existência do Conselho. Se era importante para eles, não era menos para mim. Julgo que o CCP é dispensável políticos que procuram simplesmente manter o "status quo", numa aparência de grande harmonia e progresso, e indispensável para os que querem, realmente, mudar as coisas e mudá-las em diálogo com as pessoas, pressionando os colegas de governo a dar resposta positiva. Neste caso, valia a pena pagar os custos de alguns ataques despropositados, que faziam manchetes de imprensa. Embora fosse eu, como membro do governo, o alvo principal desses ataques, nunca me senti particularmente incomodada - respondia-lhes à letra, não resistia à tentação de responder. Estas batalhas campais tinham, assim, o seu lado lúdico. Outras vezes, era eu própria que procurava acalmar os ânimos e restabelecer a paz entre as hostes amplamente maioritárias, que eram "mais papistas do que o Papa", e os demais. Recomendações das mais relevantes, como a que criou os conselhos regionais, ou a que reclamou o voto nas eleições presidenciais, acabavam votadas por unanimidade. O jantar de encerramento foi, em 83, como fora em 81, uma festa de despedida de amigos. Lembro-me, sobretudo, de uma frase de um dos mais radicais delegados de França, um padre operário, que à saída me dizia, em tom de gracejo: "Há quem queira estar de bem com Deus e com o Diabo". Ao que eu, no mesmo tom ligeiro e amigável, retorqui: "Pois há, incluindo padres". Seletiva a nossa memória - não me lembro de mais nenhuma das palavras que disse nessa noite. O tempo era de austeridade, imposta com firmeza, mas também com inteligência e com resultados. O Ministro das Finanças era Hernâni Lopes, não uma espécie de funcionário da própria "troika", de onde veio e para onde voltou, como Victor Gaspar. A "saída limpa" foi real, segui-se, não uma ameaça de colapso bancário, mas a era das "vacas gordas" de Cavaco Silva, com fundos comunitárias, que pareciam inesgotáveis. Para os serviços da SE Emigração a diferença não se notou. Os orçamentos eram sempre tão magros (salvo no Governo Sá Carneiro), que me tornei perita em fazer o que importava com pouco dinheiro. O melhor exemplo foi o do pagamento de uma promessa eleitoral do PS, que apontava para a criação de um Instituto de Apoio ao Regresso. Confesso que não tinha lido atentamente e lista de compromissos do outro partido, um vistoso pacote de "cem medidas para cem dias" e fui surpreendida por uma áspera crítica num jornal, que, decorridos os emblemáticos cem dias, me acusava de ter incumprido essa medida em concreto. Falei com o MNE Jaime Gama e dispus-me a providenciar a promessa, na forma de um Instituto. Para meu infinito espanto, deparei com uma invencível oposição do colega responsável pela reforma administrativa (um socialista!), muito empenhado em apresentar trabalho, fechando Institutos, não abrindo mais um. Por irritação e teimosia, em doses iguais, decidi levar por diante o projeto, sem custos, sem formalização legal, através de afetação de funcionários dos nossos serviços e de parcerias interdepartamentais. E resultou! Conseguimos o suporte técnico da OIT para ideias saíram maioritariamente da poderosa imaginação criativa portuguesa. O sucedâneo do "Instituto - promessa" era composto por um "Centro de Estudos" , (dirigido por um e dinamizado por especialistas da "Casa", ou por académicos sem vínculo à Secretaria de Estado, em projetos muitas vezes protocolados com outras entidades, algumas das quais os subsidiavam os subsidiavam, e por uma "Comissão Interdepartamental", que reunia entidades públicas a nível regional (o ICEP, o IAPMEI, a CCRN e Câmaras Municipais. Foi no norte que a Comissão melhor funcionou, contrariando o preconceito de que as comissões só servem de pretexto para adiar soluções. A OIT considerou esta fórmula exemplar e deu-a como paradigma para outros países de emigração. O colega da reforma administrativa ignorou-nos olimpicamente. Do mesmo modo, informalmente, sem custos, que disseminei, um pouco por todo o país, as Delegações da SEE, algumas unipessoais, formadas por funcionários destacados, que prestavam serviço em instalações cedidas nos Governos Civis ou nas Câmaras Municipais. (Trinta anos depois, é de um modo semelhante que os Gabinetes de Apoio ao Emigrante se multiplicam de norte a sul do país, com uma diferença - o estarem integrados nos quadros municipais de pessoal e não nos da Secretaria de Estado, a quem cabe dar o suporte técnico). Nos anos 80, o mais difícil foi abrir espaço para uma certa autonomia dessas Delegações, ou Delegados (todos voluntários, e, por isso, dedicadíssimos!), porque Lisboa era ciosa dos seus poderes - recordo cenas que pareciam saídas da série "Yes, Minister", tendo-me, a mim, como protagonista... A primeira visita ao estrangeiro foi para participar na 2ª Conferência de Ministros do Conselho da Europa responsáveis pelas migrações, em Roma. Uma estreia absoluta em cimeiras internacionais, onde fui logo me elegeram, juntamente com Anita Gradin, da Suécia, vice-presidente da Conferência. Consegui, não sozinha, evidentemente, as coisas foram bem preparadas nas reuniões prévias de altos funcionários, pela Rita Gomes nomeadamente, que a seguinte fosse agendada para Portugal. Veio a realizar-se em 1987, ainda eu estava nas mesmas funções, e coube-me presidi-la na cidade do Porto, pouco antes de abandonar para sempre as Necessidades. Eu não era dessa opinião - e na ausência de estatísticas ou estudos fiáveis, estávamos perante meros palpites, com alguma vantagem para mim, porque, ao contrário dos funcionários, contactava emigrantes, dentro e fora do país e apercebía-me de que muitas das casas construídas com as suas remessas, já estavam habitadas ou em vias de o serem. E, em abono desta convicção, havia um estudo, realizado por um adido comercial da Embaixada de França que, nos inícios da década de 80, estimava em 150.000 os retornados às origens, só a partir daquele país. Por isso, em Roma, não hesitei em cortar o "nâo" daquela frase, proclamando: "há regressos significativos a Portugal". Surpreenderam ainda mais os meus colegas os comentários que fiz à nova à lei nacionalidade, em Portugal, permitindo a dupla cidadania. A dupla nacionalidade, expliquei, favorece a integração na sociedade de acolhimento, tanto ou mais do que a ligação ao Estado de origem, porque esta ligação é inquebrantável, e, bem vistas as coisas, obsta aos pedido de naturalização, se estes implicarem a perda do estatuto de cidadania originário. Os ministros da emigração, como o espanhol, e eu, viam e proclamavam esta evidência. Para os ministros da imigração, a perpetiva trazida por Portugal era absolutamente inovadora, precisavam de tempo para fazer caminho, mas a dúvida estava lançada. Era o princípio do fim do dogma da uninacionalidade, consagrado pela Convenção de 1963. Anita Gradin logo ali se ofereceu para organizar uma mesa redonda sobre a "vexata questio", que veio a realizar-se em Estocolmo no ano seguinte. A controvérsia continuou, ao longo de inúmeras outras reuniões e mantém-se, mesmo depois de aprovada a atual Convenção sobre a nacionalidade. À reticência dos países do norte, junta-se a dos do leste europeu, não em razão de migrações recentes mas de antigas minorias étnicas que subsistem dentro de fronteiras. A Europa e as suas divisões ancestrais... A Conferência de Roma foi interessante a vários títulos, um deles o de uma forte afirmação feminina, não só pela eleição de duas mulheres para a vice-presidência (a presidência vai por inerência para o país anfitrião), como da voz forte de várias outras, entre as quais a francesa Georgina Dufois. Georgina e Anita, amigas e aliadas com as quais sempre pude contar, eram ambas eram mulheres de esquerda, daquela esquerda genuinamente generosa, da qual não tenho divergências. Sempre do lado dos imigrantes - Anita em palcos internacionais, como o Conselho, o OSCE, a Comissão Europeia, Georgina com uma mete´rica carreira política no país de imigração mais importante para Portugal. Trabalhámos num ambiente de total franqueza e confiança, nas muitas reuniões que tivemos, em Paris, Estrasburgo, Lisboa. A informalidade surpreendeu sucessivos embaixadores de Portugal em França - e o mesmo aconteceria na Suécia, nas conversas com Anita Gradin. Era mundo da solidariedade feminina, onde imperava o pragmatismo, o entusiasmo em resolver problemas, com a mesma visão das coisas. E as três, éramos (somos!) igualmente, feministas. Recordo-me de uma visita do 1º Ministro francês a Lisboa, com uma larga comitiva de Ministros, entre eles, naturalmente, Georgina. Estávamos nas vésperas de uma comissão mista luso-francesa sobre migrações e, por isso, Georgina e eu, depois do longo debate geral, reunimos, ao fim da tarde, para tratar dessa agenda no Palácio das Necessidades, na "sala dos Embaixadores". Resolvemos tudo o que havia para resolver nuns escassos 15 minutos, em matéria de agenda, de apreciação sintética das soluções viáveis para as principais questões a debater, dias depois, em Paris. À saída, Georgina comentou a diferença entre a nossa breve e produtiva análise dos "dossiers", em comparação com as morosas e menos conclusivas negociações masculinas... Era bem verdade, mas devo acrescentar que, também com alguns homólogos masculinos tinha negociações diretas e francas, sem subterfúgios, compreendendo rapidamente até onde se podia ir, sabendo que contava com eles e com a sua simpatia para com os nossos emigrantes - o caso de Jean-Claude Juncker, no Luxemburgo, de Klaus Hug e de Hunzicker, na Suiça, de JL This, Secretário de Estado da Região de Bruxelas, e até também, embora numa relação pessoal de menor familiariedade, dos alemães da RFA, onde conseguimos alguns muito bons resultados no eixo bilateral - aí devidas ao trabalho técnico do Conselheiro Social em Bona, que compilava números, estatístas, factos, a que a mentalidade germânica, é, justamente, muito sensível... Não esqueço que no Luxemburgo e, sobretudo na Suiça, tudo começou também, não propriamente nessa Conferência de Roma, de boa memória, mas em diligências da nossa diplomacia. O quadro de contactos na Europa passava ainda por relações muito cordiais com os colegas britânicos, mas a emigração em Londres, que se distinguia pelo alta proporção de mulheres, não era, então, tão problemática como é hoje. No levantamento de questões sociais, contei, sobretudo, com os Conselheiros das Comunidades. Entre os países de emigração, o diálogo e concertação ficou, a meu ver, sempre aquém do desejável - com a Espanha, a Itália e a Irlanda. A expeção foi o mais improvável e distante destes países, a Grécia, que mostrava especial interesse na avaliação das soluções por nós encontradas. Numa das várias visitas que fiz a Atenas, encontrei a então Ministra da Cultura, Melina Mercouri, responsável pelas politicas para os gregos no estrangeiro, que são, fundamentalmente, centradas no domínio da Cultura- e muito bem, a meu ver. Melina era uma mulher majestosa - é o mínimo que dela posso dizer. A visita foi de cortesia, as conversações ficavam a cargo do operacional era o Secretário de Estado. Pensando bem, de Portugal se poderia dizer outro tanto, com um ministro de porte menos impressionante, mas que delegava, do mesmo modo, os seus poderes em questões de emigração, dando ampla autonomia aos Secretários de Estado-que agradecem... Fora da Europa, na RAS, o trabalho da Embaixada era excelente (na secção consular, Mário Silva tinha mais contactos com o Governo e Diretores-gerais do que qualquer dos nossos diplomatas - aliás, muito bons). O mesmo se pode dizer do Canadá, (primeiro com Góis Figueira, viva imagem de dinamismo, depois com vários sucessores), do Brasil (onde a boa relação Brasil/ Portugal estava no seu ponto mais alto) e da Venezuela (se esquecer, em 1980, o Embaixador político, que era mais político de oposição do que Embaixador). Os EUA eram outro "modus operandi" - nada corria fundamentalmente, por Washington, onde nem valia a pena ir, mas pelos Estados, ou seja, pelos consulados - os de carreira e os grandes Cônsules honorários, como o Dr Adriano Seabra da Veiga, em Connecticut, e Edmundo Macedo, na Califórnia do Sul. Idem, quanto à Austrália, onde o melhor dos diplomatas era o Dr. Carlos Lemos, de Melbourne, embora muitos dos nossos sucessivos representantes em Camberra e Sidney fossem muito competentes. Todavia, como exige a carreira, ficam em média dos três anos, nunca se enraízaram - a rotação destina-se a isso mesmo. Em síntese: fui conhecendo, cada vez melhor, os factos e as pessoas. À medida que ganhava em experiência, ia, porém, perdendo orçamento - uma coisa compensava, até certo ponto, a outra, mas muito mais teria conseguido com outros meios. Posso dizer que nunca fui fiz parte do alargado grupo de Secretários de Estado, que aceitam a pobreza de meios como uma fatalidade. Protestava sempre, dentro e fora de portas do Ministério, achava injusto que os emigrantes dessem tanto ao país, até materialmente, nas remessas, investimentos e benfeitorias, e recebessem tão pouco em retorno, apoiados por serviços de fundo da escala de prioridades do OE (orçamento de Estado). Em 81, no Governo Balsemão, tive companhia, nas queixas tornadas públicas - Bráz Teixeira, o Secretário de Estado da Cultura, outra das pastas menos contempladas pela fortuna... Ele disse que o seu orçamento era "ridículo", eu disse que o meu era "vergonhoso". A minha adjetivação fez título gordo no Diário Popular e mereceu destaque, um pouco menos vistoso, em outros jornais. "Obviamente, demito-os", terá pensado o Primeiro-Ministro, quando leu a imprensa naquele dia. E, na primeira oportunidade, demitiu-nos. No meu caso, por uma dupla ordem de motivos, sendo a segunda a que já referi, a suposta pertença à facção dos "críticos" ou "rurais do norte". Claro, que mal saí do governo perguntei logo: "Onde estão os críticos?" e juntei-me a eles, para dar póstuma razão ao chefe do Governo. Braz Teixeira, o filósofo de quem eu gostava muito, tivera da política experiência que lhe bastava para o resto da vida. Voltou ao mundo de onde viera. Eu "aterrei" em São Bento até 1983 e, depois, regressei ao Palácio das Necessidades por mais quatro anos e tal, repartidos por governos de perfil diverso. Neste primeiro, recuperei autonomia face ao ministro (Jaime Gama), talvez por ser do "outro partido", no contexto de uma aliança, tal como com a AD, vivida agradavelmente sem agruras por dentro, mas condenada, a prazo, por fatores exógenos - a oposição interna no PSD. Só na fase final, já sem Mota Pinto, este Executivo perdeu a unidade garantida pela harmoniosa diarquia que ele formava com Mário Soares. Sentia ter, de novo. a confiança plena das mais altas figuras do Estado. Foi um tempo de dias fastos, apesar da crise e da justificada austeridade. Retomei as normais visitas às comunidades, de Paris ao Hawai e a organizações internacionais (Conselho da Europa, OCDE, CIM), onde Portugal assumiu um "high profile". E pude ver o CCP fazer caminho, sem mais suspensões, ensaiando, pela força das maiorias, quando não dos consensos, novas configurações - as reuniões regionais, a Comissão Permanente, a aprovação, ano a ano, de um programa cultural, a preparação de "conferências temáticas", uma das quais sobre igualdade de género. Paridade foi coisa que nunca houve no Conselho, bastião masculino, presidido, porém, por uma mulher (que era eu, por inerência de funções). E dele saiu, feita por uma das outras raras mulheres que aí tiveram voz, a jornalista Málice Ribeiro, uma proposta para a realização de um encontro mundial de mulheres emigrantes. Ninguém se opôs e eu registei a recomendação - a que tão pouca importância terão dados os relatores, que não a encontrei nas atas finais. Nem por isso a esqueci, e convoquei, como devia, essa espécie de "Conselho no feminino", que excedeu largamente as expetativas - as gerais e , até, confesso, também, as minhas. E foi a origem das políticas de emigração com a componente de género! (numa tese de doutoramento de um jovem académico luso-canadiano é o que ele salienta dos meus vários mandatos. Surpreendeu-me - era aspeto que, até aí, nunca tinha sido salientado - nem sequer por mim! Não por desvalorizar as questões de género na emigração, mas porque aquele primeiro passo não teve continuidade, durante duas décadas - até ao início dos "Encontros para a Cidadania". Estes "Encontros" nasceram de uma proposta que, em nome da Associação "Mulher Migrante", apresentei a António Braga, em 2005, precisamente no 20º aniversário do pioneiro Encontro Mundial de Junho de 1985. Nessa data, já o governo já entrara num plano inclinado, depois da saída de Mota Pinto, forçada pela "Nova esperança". Para Rui Machete - um amigo de antes da Revolução, que muito admiro - tudo era mais difícil, até porque estava mais próximo daquele movimento. A ascensão de Cavaco Silva foi o ponto final. Soares e Cavaco - uma dupla impossível... Estava eu em Cabo Verde, quando se deu a rotura oficial. De qualquer modo, essa viagem, a primeira a um PALOP, na área da cooperação, não da emigração portuguesa, que aí, então, não existia, foi um momento especial: a descoberta de um povo fantástico, de uma perpetiva de outras migrações e de outras maneiras de ser lusófono. Correu, como dizem os brasileiros "bem demais"! Tudo: o encontro com o 1º Ministro Pedro Pires, as conversações sobre políticas globais de emigração, a assinatura de um acordo de segurança social, de muito interesse para os Cabo-verdianos de Portugal, os contactos com cabo verdianos retornados, as visitas ao Mindelo, a Santiago e à Ilha do Fogo e até outros aspetos, como o intercâmbio cultural - levei comigo, a pedido do Embaixador Baptista Martins, o grupo de fados de Coimbra de António Bernardino. Foi um sucesso retumbante! Quem assistiu ao duplo concerto de Travadinha e Bernardino na ilha do Fogo, nunca esquecerá três ou quatro horas de música sublime, que acabou em ambiente de tertúlia. A terminar, experimentaram os instrumentos musicais uns dos outros e cantaram em coro. Que belo fim de ciclo, ao som dessas violas, guitarras e vozes inegualáveis. A coligação rompeu, de vez, começou o processo eleitoral, que daria a vitória ao PSD, com menos de 30%. Nesse preciso dia estava em Lisboa uma delegação de luso-americanos da Assembleia e do Senado do Estado da Califórnia, a meu convite, intermediado pelo Cônsul- Geral Gabriel de Brito, também presente. Já tínhamos visitado o PR Eanes e a AR, o Porto e o Alto Minho (sempre incluídos nos roteiros dos meus convidados mais ilustres), e achamos interessante mostrar-lhes como se vive, em Portugal, uma noite eleitoral. Todos os partidos aceitaram recebe-los, visitamos, sucessivamente, as diversas sedes das campanhas eleitorais. Foi divertido! A minha presença causava espanto, nada mais, e como logo apresentava os americanos, tudo ficava claro. Eles estavam um pouco perplexos, achavam o ambiente muito mais morno do que na América. "Esperem até ver o quartel-general dos vencedores!". Era o PSD, no Méridien. Aí se fazia a festa toda! A Delegação juntou-se à festa.