quinta-feira, 11 de agosto de 2022

AS INGLESAS QUE CONQUISTARAM O FUTURO DO FUTEBOL 1 - A final do Euro de futebol feminino levou a Wembley 87192 espectadores e teve 18 milhões de telespectadores em todo o mundo. Foi a maior assistência de sempre numa final europeia de futebol, masculina ou feminina. Não foi por acaso - a Inglaterra é a terra matricial de um desporto destinado a ultrapassar os demais em popularidade, a nível planetário. Mas, na verdade, parece que, ainda hoje, os seus inventores o amam mais do que todos os outros, e, por isso, não fazem questão de quem está em campo, homens ou mulheres, desde que o saibam jogar bem. Nem sempre foi assim. O "foot-bal", que é agora de toda a gente, no seu berço inglês, como nos países para onde ia sendo exportado, o “foot-ball” era privilégio de classe social e de homens de raça branca… Uma das glórias do Vasco da Gama, do Rio de Janeiro, fundado por imigrantes portugueses, foi a de ter sido o primeiro clube do Brasil a integrar atletas negros no seu plantel. Negros, sim, mujlheres, não! Estas teriam de esperar ainda largas décadas de rigorosa segregação, até serem admitidas num retângulo de jogo. Sei.o por experiência própria, Em meados do século XX, no Colégio do Sardão, que oferecia condições excecionais para a prática de todas as modalidades consideradas “próprias para meninas” – ginástica, ténis, ping-pong, patinagem, andebol, voleibol, basquete… - o futebol era, em absoluto, proibido. Nós jogávamos, mas clandestinamente, sob ameaça de pesados castigos, a que, com muita sorte, fomos escapando. Na única vez em que nos denunciaram, eu, como suspeita de ser a organizadora (e efetivamente era…), fui chamada à presença da “Mestra Geral”. Esperava o castigo máximo, todavia a nossa "abadessa" revelou um inesperado sentido de humor. Depois do sermão (“o futebol não é jogo apropriado para meninas”, etc. etc.), terminou, dizendo: “Bem, Manuela, como sei que gosta muito de futebol, a si, dou-lhe uma autorização especial para jogar, às outras, não…”. E ficou tudo como dantes – continuamos a transgredir, de bola no pé, em vez de bola na mão… É, todavia, justo reconhecer que as Doroteias do meu Colégio não estavam isoladas nos seus paradigmas de “desporto feminino”, antes partilhavam a mentalidade do tempo , a nível nacional e internacional. Longa era, então, por exemplo, a lista de desportos interditos ao sexo feminino nos Jogos Olímpicos. Agora, nem sequer se pode consagrar uma nova modalidade olímpica, se não for aberta aos dois sexos! O futebol há muito captou as mulheres e países há, onde é mais popular entre raparigas do que entre rapazes, como é o caso da América do Norte. Acredito que, num futuro próximo, haverá forte pressão sobre os clubes profissionais para se dedicarem ao futebol feminino. Já há seis anos, em 2016/17, a FPF instou os participantes da Liga principal a formarem equipas de ambos os géneros, tendo tido resposta positiva do SCP, SC Braga, Estoril Praia, Os Belenenses e Boavista, a que, depois, se juntaria o SLB. Hoje, três dos “quatro grandes”, SLB, SCP e Braga, curiosamente, repartem entre si os troféus no feminino. Só o FCP permanece de fora (é o meu clube, com muita pena o digo...). Cabe a honra de representar a cidade do Porto ao Boavista, a segunda equipa mais titulada de sempre do nosso futebol feminino, com 11 campeonatos (dez consecutivos, entre 1985 e 1995!). Perdido este ascendente no século XXI, o Boavista optou, recentemente, por apostar nos escalões de formação, para, a prazo, voltar ao topo. O SCP tem dois títulos, tal como o SLB (atual campeão), o Braga um... No ranking da UEFA, Portugal ocupa um modestíssimo 23º lugar, logo atrás da Ucrânia, mas a seleção esteve no Euro e bateu-se bem com as melhores. 2 – Qualquer que seja o domínio considerado, é sempre mais fácil proclamar a igualdade no campo jurídico do que vivê-la na realidade. É especialmente assim na área do desporto, e, em particular, do desporto-rei, porque, além de grande espetáculo é poderosíssimo negócio internacional, de perfil masculino (como todos os grandes negócios). E, para além dos talibãs e dos aiatolás, são ainda inúmeros os homens que, por todo o lado, consideram o futebol jogado por mulheres “contranatura”, desvirtuação do fenómeno original e autêntico, para eles intrinsecamente másculo, ao contrário de, por exemplo, o ténis, a natação, o andebol, ou o bilhar. Mas onde reside, de facto, a suposta especificidade do futebol? Sabe-se lá... Certo é que se consubstancia em preconceitos enraizados, inelutáveis, no curto e médio prazo. Os progressos são muito mais visíveis na qualidade de jogo interpretado por mulheres, do que em matéria de preconceitos sexistas... Mas eis que, se súbito, assistimos a uma espécie de milagre, que pode apressar a longa caminhada para a meta da igualdade. Refiro-me, é claro, à vitória inglesa no Euro 2022, numa final espetacularmente disputada com a Alemanha. Passo a explicar porque considero que o êxito das alemãs não teria o mesmo efeito. No futebol masculino é costume dizer: "são onze contra onze e, no fim, ganha a Alemanha". Ora, na esfera feminina, o mesmo se pode afirmar: até 2022, as alemãs tinham ganho todas as oito finais que disputaram! Na nona, eram as grandes favoritas. Se o favoritismo se confirmasse, o que mudava? Não muito, à semelhança do que aconteceu nos anteriores oito campeonatos do avassalador domínio germânico. O país está demasiado habituado a vencer e valoriza, naturalmente, mais os sucessos masculinos. A Inglaterra, pelo contrário, perseguia um título europeu ou mundial de futebol há 56 anos - o seu último troféu fora erguido precisamente contra a Alemanha,e por coincidência no mesmo estádio, em 1966. Olharam a oportunidade do Euro 2022 em ambiente de verdadeira loucura coletiva, com multidões nos cafés, nos bares e nas ruas, desde a cidade de Londres à mais remota aldeia. E, como o sonho comanda a vida, gritavam todos, convictamente: "o futebol está de volta a casa". Num só dia de glória, a perfeita igualdade ao nível dos festejos, do delírio popular, do reconhecimento e orgulho nacional foi fulminantemente alcançada. A igualdade nos demais aspetos não é para já! Contudo, ao menos no universo de cultura anglosaxónica, que é imensamente mais vasto do que a Inglaterra, o ritmo vai, de imediato, acelerar, onde é crucial: nos escalões de formação dos clubes, na escola, no investimento do Estado (já está prometido pelo governo de Boris Johnson um primeiro reforço de 230 milhões de libras...). Na sua saudação, a Rainha Isabel II (conhecida adepta de futebol) apontava ao futuro: "O vosso sucesso vai muito além do troféu que tão merecidamente recebestes. Vós acabais de dar um exemplo que vai ser uma inspiração para as outras raparigas e mulheres". Exatamente o sentimento que exprimiu uma antiga campeã, Grace Vella, em entrevista à Sky News: "milhões de jovens vão agora querer jogar". Nos "media" a retumbância do feito foi extraordinária (coisa impossível por cá, em futebol feminino, como se prova pelo facto de um jogo com este impacte internacional ter sido transmitido na RTP 2 e ter, nos restantes canais, merecido pouco mais do que notícia de rodapé). A Sky News, a CNN Internacional ou a France 24 deram grande cobertura ao post match, em particular às celebrações. Na imprensa inglesa, este título europeu fez manchetes gigantes de primeira página inteira, tanto nos tablóides como nos mais prestigiados jornais. Nunca se vira nada de semelhante! O "Times", por exemplo, escreveu em letras garrafais: "Leoas trazem-no para casa" e no artigo de fundo "Mulheres que emocionaram a Nação". O "Guardian"salientava, do mesmo modo, o "momento de viragem" ("Game changers"). 3 - Vi a emocionante final, a torcer pela Inglaterra, porque antevi as consequências da uma vitória das "leoas" - embora não esperasse tanto, tinha plena consciência de que o seu contributo para a história do futuro do futebol feminino seria incomparável. Elas não seriam as melhores do mundo, mas representavam a pátria-mãe da modalidade e do "fair-play", a nível de clubes, uma superpotência, e, no plano das seleções, um país cronicamente derrotado, cheio de fome de títulos. A final, com a equipa da casa, batia recordes na assistência presencial, e contava com uma impressionante audiência televisiva - fantástico cartaz de propaganda da arte feminina de desenhar jogadas no retângulo. Este meio de propaganda tem sido vital para o reconhecimento da sua qualidade, das suas virtualidades. Uma imagem vale mais do que mil palavras, não é verdade? Contra a evidência das imagens não há argumentos... há homens que fazem a sua estrada de Damasco. Homens e mulheres. É o meu caso: confesso que nunca assisti a um desafio ao vivo entre mulheres. Ao ver a televisão me converti, há já muitos anos. O Inglaterra-Alemanha não foi, evidentemente, o mais deslumbrante jogo do século- as finais, quer femininas, quer masculinas, em regra, não o são - não o aconselha a prudência, não o permite o espartilho tático. Mas a mestria esteve lá... o fabuloso golo de Toone (fuga em velocidade e "chapéu" à guarda redes) e, depois, o golo do desespero das alemãs, marcado, numa insistência, por Chloe Kelly, e menos notório, mas não menos decisivo, o precioso corte da luso-britânica Lucy Bronze ao minuto 111, a impedir o empate (Bronze, a nº 2, é considerada uma das melhores jogadoras do mundo). Em suma, mais do que ganharem um campeonato para o seu país, as (chamadas) "leoas" inglesas terão dado um novo futuro ao futebol feminino no mundo