quinta-feira, 30 de junho de 2022

2021 A PINTURA DE BALBINA MENDES – O LUGAR DAS MULHERES NAS ARTES Balbina Mendes ocupa um lugar de primeiro plano na Arte pictórica em Portugal, através de um trajetória feita de originalidade e de inovação, numa constante travessia de fronteiras artísticas - sempre em movimento, numa viagem de procura sem fim, pelo gosto de lançar a si própria desafios, um depois de outro, através da experimentação de ideias, de temáticas, de técnicas, de materiais, com a ousadia de sempre, a segurança dada pela maturidade, e a invariável insatisfação, essência de uma obra em que o talento inato se expressa, reinventando-se. Um percurso raro nos vários ângulos em que o podemos considerar, desde logo porque começou numa pintura de matriz etnológica, que recuperava arquétipos primordiais emergindo, revistos e recriados em toda a sua magia, em telas de grande dimensão e impacto. A Natureza, as vivências, os costumes da sua terra são, assim, transpostos, num universo de interlocução que foi crescendo, à medida que a própria Balbina ganhou notoriedade e reconhecimento, em exposições individuais nas mais prestigiadas Galerias. As suas espantosas “Máscaras Rituais do Douro e de Trás-os-Montes “ fizeram história, simultaneamente a do lugar da sua infância, a das suas gentes e tradições, perdidas e achadas no tempo, e a dela própria, inconfundível intérprete e narradora de memórias e rituais identitários. Não menos importante é sublinhar a sua capacidade de se impor em grande mostras individuais, o que é, por ora, entre nós, coisa que só está ao alcance de um escol de mulheres pintoras. Embora a perceção comum não o reconheça mantém-se, ao nível de mega exposições com um só nome no cartaz, um largo predomínio masculino, enquanto nas coletivas, ou nas que são exibidas, mais modestamente, em pequenos redutos, elas ultrapassam já os homens, num avançar gradual, como se estivessem, ainda, em difícil transição do espaço privado para o público… É um exemplo que poderemos extrapolar, em muitas outras áreas, a nível nacional e internacional, constatação eficazmente determinante na criação do movimento pela Arte no Feminino, que, no último quartel do século XX, teve uma das suas líderes mais insignes e arrojadas em Paula Rego, símbolo máximo da nossa pintura, cujo recente passamento foi ocasião de a enaltecer e entronizar no panteão dos imortais. Nas suas próprias palavras: "As minhas pinturas são pinturas feitas por uma artista mulher. As histórias que eu conto são histórias que as mulheres contam. O que é isso de uma arte sem género? Uma arte neutra?". [...] "Há histórias à espera de serem contadas, e que nunca o foram antes. Têm a ver com aquilo em que jamais se tocou-as experiências de mulheres". Uma tomada de consciência e um discurso com que a vanguarda feminista dessa época incorporou o plano da expressão artística na globalidade da sua luta - discurso que, diga-se, neste como em qualquer outro campo, é tudo menos pacífico. Mais consensual será, certamente, a exortação de Gisele Breitling em favor de "uma nova e verdadeira universalidade em que o feminino assuma o seu lugar de direito e o masculino as suas verdadeiras proporções". Guardo-me, aqui, de entrar na complexa questão do modo como o "género" se exprime, (com caraterísticas próprias ou comuns e indistintas), ficando-me pelo que não pode ser contestado: o masculino avulta, desde tempos imemoriais e permanece como autêntico "padrão", enquanto o feminino é visto como "alteridade". Por outro lado, o sucesso das "mulheres-exceção" não deve deixar no esquecimento a persistente desigualdade de uma maioria, que as estatísticas, na fria linguagem dos números, denunciam. Como escrevia Armando Bouçon, no catálogo da 1ª Exposição de “Mulheres d’ Artes”: "Uma análise correta de toda a história da Arte dá-nos uma perceção muito transparente de como o campo das artes plásticas foi ocupado durante muitos séculos pelo género masculino". Foi. E, se atentarmos nas diferenças de visibilidade, segundo o sexo, continuará a ser, ao menos na medida de uma persistente desproporção. É um desequilíbrio que pode debelar-se de muitas e diversas maneiras… No panorama português, Balbina Mendes tem, a meu ver, contribuído, poderosamente, para que as mulheres acedam, na vida cultural do país, ao seu "lugar de direito". Fá- lo, ocupando, simplesmente, esse lugar, com força anímica e qualidade de sobra, sem em nada se julgar discriminada, sem se sentir diferente, isto é, do lado de lá de uma linha de separação... É um caso a seguir, no campo das exceções, que, na minha ótica, tão devagar se vai alargando. Balbina faz parte das mulheres que, à partida, se sentem consideradas como iguais, e cuja atitude de despreocupação com disparidades de género, contém, implícita, a intransigente exigência de tratamento igualitário! À margem de manifestos reivindicativos, alcançaram, por si, as metas que o movimento se propôs e propõe, e, assim, afinal, o reforçam. E será que a proclamação da especificidade de género, pode, no limite, paradoxalmente, dar azo à persistência de formas larvadas de discriminação?. É uma dúvida pertinente. A "arte com género" de que fala Paula Rego, pode, ou não, abaixo do patamar do génio universal a que ela subiu, transformar-se , de facto, não em sinal vanguardista de contracultura, mas em âncora de estereótipos de género, conotando o feminino com características convencionais que são, em sociedades ancestralmente misóginas, uma menos valia? O ponto de interrogação vale para qualquer setor... Recordo o crítico literário João Gaspar Simões, que, ao elogiar a força imanente da prosa de Maria Archer, o realismo puro e duro com que ela aborda temáticas ousadas, a qualificava não como uma grande escritora, mas como "um grande escritor" ... E não é verdade que a poetisas consagradas, como Sophia de Mello Breyner, ou Ana Luísa Amaral, preferimos chamar poetas? Ambíguo cumprimento, a que subjaz a conceção da masculinidade intrínseca do cânone... Certo é que, para esta escola de pensamento, Balbina é uma das grandes pintoras que merece, por inteiro o cumprimento, ainda que, pessoalmente, se não queira rever na categoria de "grande pintor". A sua arte não procura rivalizar com quem quer que seja, nem obedece a ditames ou limitações de qualquer espécie, segue numa trajetória ascensional de inovação da estética e policromia, do ensaio de técnicas, da fusão de materiais...É genuína e livremente Ela, transmutando para a pintura a experiência ganha nos muitos espaços geográficos e culturais que a sua vivência atravessa e o seu olhar penetra. É única e inconfundível. Se me é permitida uma outra adjetivação, direi: carismática! Uma palavra que tão perfeitamente se ajusta a Autora como à globalidade da sua obra. Balbina é uma admirável contadora de histórias de vários tempos, do tempo presente a tornar-se passado, ou do passado em dinâmicas e impulsos que o trouxeram até nós, num rasto longo de evocações de festividade populares, rituais, crenças, valores revividos e reconfigurados em toda a sua magia e em todo o seu mistério. No percurso imparável de Balbina, para mim, no princípio era o rio... porque a conheci na exposição em que nos oferecia uma verdadeira crónica pictural do Douro, deslizando entre margens, da nascente até à foz, incorporado na beleza encantatória de paisagens, onde as gentes apenas se pressentiam, sem se verem... . Reencontrei-a, depois, em outro e surpreendente ciclo temático, na exposição das Máscaras Rituais do Douro e Trás os Montes, em que os homens se faziam presentes, mas ainda sem se verem... Era o início de um tropo narrativo em torno da máscara, incursão às raízes ancestrais, entrelaçamento telúrico de emoções e saberes, recriados nos traços dos seus pincéis, em explosões de cor... Não resistindo a voltar a uma perspetiva feminista sobre o ineditismo das suas escolhas -perspetiva que, não sendo certemente a de Balbina, me permito ousar - noto a esplêndida audácia com que se apodera, para a eternizar em arte, da tradição masculina da máscara, símbolo, por excelência, da superioridade e camaradagem de sexo, da festa e do cerimonial rigorosamente interditos à mulher... É um prenúncio, um sinal da força subversiva e libertária da sua aventura artística. Logo depois, vai ultrapassar uma última barreira, no momento em que a fragmentação ou transparência das máscaras põe a descoberto... rostos femininos! Uma definitiva ruptura com o interdito. Transgressão, que Paula Rego, sem dúvida, saudaria com “o gozo pela inversão e pelo desalojar da ordem estabelecida". Por isso, Balbina Mendes poderia estar, se quisesse, entre as referências do movimento emancipatório de contracultura feminina nas Artes, na senda da emblemática Paula sobre quem Ana Gabriela Macedo afirma: [...] ela questiona continuamente os chamados "corolários naturais" da diferença de sexos, bem assim como a suposta "ordem natural das coisas", que se traduz na passividade, dependência e submissão, desmistificando o discurso estético e desmascarando o seu papel eminentemente ideológico e as relações do poder, que aí se encontram camufladas [...]. Na sua mais recente exposição, intitulada "Segunda pele", o engenho narrativo de Balbina não nos revela, antes adensa o segredo dos jogos entre as faces desocultada e as suas máscaras, mas revela-a, definitivamente, como assombrosa retratista, do rosto, das suas metamorfoses, do tangível e do intangível. Confirma o seu incessante questionamento sobre o ser, as suas mutações e aparências. É, agora, na Literatura que busca inspiração, glosando, em enigmáticas efígies, motes Pessoanos. As respostas que encontra na tela são sempre fonte de sucessivas interrogações, de demandas inspiradas na heteronímia do Poeta, ou até, talvez, simplesmente na duplicidade do “eu” de cada um de nós . Como dizia Maria Anderson; "Qualquer pessoa ficciona a sua própria identidade, Não nos ficcionamos sempre da mesma maneira. Vamos mudando o guião". Ou, secundando Maria Velho da Costa, nos poderemos interpelar: "Quem sou? Talvez seja quem vou sendo..." A pessoa. A persona… Para onde vai, Balbina Mendes? Para onde nos levará , no ímpeto de romper limites, a grande cultora de saberes arcanos e enigmas do espírito, em diálogo introspectivo com as Artes, com a Vida, connosco, nas suas cada vez mais fascinantes mensagens visuais? Maria Manuela Aguiar Espinho, junho de 2022

O MEU VERÃO EM ESPINHO

O MEU VERÃO EM ESPINHO 1 - Tenho saudades do verão em Espinho, nos anos da minha infância. Esse verão, essa cidade (que ainda não o era), tinha a sua mítica Avenida bordejada de palmeiras gigantes, sempre cheia de multidões cosmopolitas, nos seus trajes de passeio, sentadas em mesas coloridas nas esplanada dos cafés, ou desfilando num vaivém infindável, vagaroso, quase solene. Tinha quiosques graciosos - daqueles que Maluda gostava de pintar - , e onde eu, desde que aprendi as primeiras letras, comprava, às terças e sextas, "O Mosquito", e mais a sul, diariamente, chocolates. Chocolates sorteados...Éramos convidadas a perfurar a superfície de papelão de bonitas caixas retangulares, libertando bolinhas de cores, que tombavam, em baixo, num mostrador de vidro. A cada cor correspondia um diferente tamanho da mesma marca. Uma espécie de máquinas de jogo para crianças - o nosso doce casino... Minha irmã acertava, muitas vezes, no prémio maior, que correspondia à pequena esfera dourada. Eu jamais! Ao Casino, é claro, só íamos ver cinema, alternando com as sessões do Teatro São Pedro. Ambas as salas de espetáculos eram enormes, esplêndidas, e ofereciam um filme por dia - o que elevava a programação mensal a uns fabulosos 60 títulos! O cartaz era divulgado quinzenalmente, em mini- livrinhos colecionáveis, que se desfolhavam como livros de contos - com sínteses de guiões muito chamativas. Ainda tenho vários, guardados como relíquias. Felizmente, os pais e os avós eram cinéfilos declarados, pelo que, em Espinho, raro era o dia em que, ou uns ou outros, não nos levavam ao seu e nosso entretimento favorito. Semanalmente, pelo menos uma vez (talvez à 4ª ou 5ª-feira, já não tenho a certeza), o Casino oferecia um bónus extraordinário, num dos dois intervalos mediante um ligeiro aumento do preço do bilhete: a exibição de um cantor ou cantora dos mais famosos do País - dos que, habitualmente, davam concertos nos seus salões. Recordo-me bem, por exemplo, de Tony de Matos ou das rivais Madalena Iglésias e Simone de Oliveira, ainda em início de carreira, mas já famosos e com vozes fantásticas... Os intervalos eram obrigatórios, para ir ao barzinho tomar uma bebida, comer um bolo, porque os baldes de pipocas ainda não tinham sido inventados. E, no casino - que era um edifício claro, luminoso, de bela traça, luminoso - - até podíamos vir às varandas gozar a maresia e olhar, do alto, o movimento da Avenida.. 2 - No que respeita à cronologia da minha agenda de férias espinhenses, devo dizer que comecei pelo meio, ou mesmo pelo fim, porque tanto os passeios no que alguns chamavam “o picadeiro” (termo que em minha casa não se usava). como as sessões da Sétima Arte ou eram noturnas, ou, quando muito, as “matinées” das 15.00. A alternativa era uma corrida de bicicletas ou um jogo de dominó ou damas nos cafés – o Café Palácio, ou o Costa Verde, os nossos favoritos. O Chinês já não existia – era ainda do tempo de juventude dos pais, não do nossa. Mas a tradição das tertúlias e do jogo no café, estavam bem vivas! Pedíamos uma limonada e uns pasteis, mais um tabuleiro de damas…nada de Coca-cola, note-se, que fora banida pelo “Estado Novo” salazarista… De manhãzinha, com bom ou mau tempo, o destino era a Praia Azul, com as barracas de riscas azuis e brancas, à FCP. Ainda mantenho o prazer de nadar com sol ou chuva - tanto me faz. Água por baixo, e água caindo do céu ligam bem – cedo aprendi isso com meu pai. Não que chuva fosse coisa frequente, em agosto ou setembro. A ventania, sim, todavia, as mais das vezes, só levantava a partir do princípio da tarde. E o “nosso mar” nem sempre se mostrava hospitaleiro, mas quando se encrespava em vagas altas, e a corrente arrastava demais, à hora do banho íamos à piscina, que era a quinta essência da modernidade. Para os frequentadores habituais, com preços convidativos (lembro-me de comprar senhas de entrada em pacotes), e, em qualquer caso, nunca lhe faltava uma abundante e sofisticada clientela. Não tinha, ainda, a concorrência da verdadeira “piscina natural”, que é a praia da baía, formada mais tarde pelo novo paredão, um mais eficiente quebra-mar… No plano atmosférico, Espinho continua obviamente na mesma – com um clima que é, para mim, uma das suas simpáticas invariáveis, porque detesto o excessivo calor estival do nosso interior - e, neste aspeto, o interior começa a poucos quilómetros da costa. E à vista, à superfície, havia o comboio, que chegava a apitar e atravessava o centro da vila com as suas máquinas negras, lançando nuvens de fumo para o ar. Os comboios de passageiros paravam, todos, na estação, e logo seguiam viagem, mas os comboios de mercadorias, não poucas vezes, sabe-se lá porquê, na Rua 7, suspendiam a marcha e bloqueavam a passagem para a praia por tempo indeterminado, o que nos levava, com juvenil imprudência, a atravessar as carruagens, pelo corredor de uma das extremidades, saltando em andamento, quando necessário.. Ponte sobre a linha férrea só havia na Rua 19 – e bem pitoresca! Adorava os comboios, como quase todas as crianças e muitos adultos, entre os quais me conto ainda… Imaginava Espinho, com uma série se pontes, sobre a linha, entre o Rio Largo e o bairro piscatório – pontes de desenho variável, que poderiam tornar-se um original cartaz de paisagem urbana, fazendo da nossa cidade, digamos, uma Veneza ou uma Paris “ferroviária”. Por baixo, em vez do rio, corria o comboio… Um amigo arquiteto, a quem eu, já muito depois de consumado o fatal enterramento da linha, descrevia o meu projeto mirabolante, disse-me que não era tão mirabolante como eu julgava, e que teria, de facto, sido equacionado por uma minha alma gémea… 3 -Com o meu olhar nostálgico sobre outra época, não pretendo sequer esboçar um julgamento da evolução que nos trouxe ao presente. Compreendo que Espinho se transformou, em larga medida, como parte de um todo, (o país, o mundo...). Esteve na vanguarda do turismo balnear, quando oferecia tudo quanto o veraneante esperava dos areais, do mar, de distrações lúdicas. O próprio conceito entretanto mudou, deslocando geograficamente a massa de visitantes, os mais e menos ricos, por igual, para os “paraísos” de sol escaldante e águas tépidas. E, assim, até os mais bairristas dos espinhenses natos, no verão, rumam aos Algarves, tal como o comum dos nortenhos – coisa que eu só faria por penitência!. Contudo, Espinho permanece uma terra perfeita para residir e não como “cidade-dormitório, mas como verdadeira comunidade, que mantém o seu caráter identitário, com os costumes populares, as tradições de convivialidade, o comércio, o admirável tecido associativo e institucional e, com ele, uma vida cultural invejável, que anima a rede de excelentes infraestruturas, públicas e privadas – de que são “ex-libris”, nomeadamente, a programação musical, os festivais de cinema, o ballet, o teatro, a Academia de Música, as Escolas, a Universidade Sénior, o desporto, que nos trazem outro perfil de visitantes… Nesta vertente cultural devo, porém, apontar a mais estranha e injustificável das lacunas: a falta de sessões regulares de cinema, apesar da existência de duas salas, que são das melhores do país - a do Casino e a do Multimeios. Não se lhes pede que abram quotidianamente as portas para oferecer 60 filmes por mês… só o mínimo de quatro, um por semana! Na verdade, da terra do Cinanima e do FEST, quase só tenho de sair para o Porto ou Gaia em demanda de cinema, em centros comerciais onde são exíguas as instalações e grandes as escolhas… in DEFESA DE ESPINHO, 29 de junho

COMBATER O CENTRALISMO PORTUGUÊS: O PARADIGMA PINTO DA COSTA

COMBATER O CENTRALISMO PORTUGUÊS: O PARADIGMA DO FUTEBOL NA ERA DE PINTO DA COSTA 1 - Há um FCP antes e outro depois de Pinto da Costa. Como portista de nascença, aos 80 anos, posso dizer que vivi 40 com cada um deles... O FCP, que vai da minha infância à meia idade, era um dos clubes grandes de um país pequeno no mundo do futebol. Tinha eu já uns 13 ou 14 anos quando, pela primeira vez, em 1956, vi o Porto ser campeão nacional. O Porto de Dorival Knipel, brasileiro de origem alemã, oriundo de Minas Gerais. O mítico Yustrich! Quanto à Seleção Nacional, digamos que o seu forte, por essa altura, eram as chamadas "vitórias morais". A exceção, que confirma a regra, foi um 3º lugar no Mundial de 1966, sob o comando de um outro famoso treinador brasileiro, Otto Glória. Os escolhidos de Otto, entre eles o fantástico Eusébio (os "Magriços", como foram chamados, ou não fosse a fase final do torneio jogada na Inglaterra...) exemplificam bem a profunda desigualdade Norte/Sul, desejada e imposta no antigo regime: Dos 23 convocados, 19 eram do sul (mais exatamente,18 de Lisboa, que ainda se sentia capital do Império, e um dos arredores, de Setúbal) e só 4 eram do norte (3 do FCP e 1 do Leixões). E, na realidade, o fosso era ainda maior, pois desse quarteto nortenho, composto pelo guarda-redes Américo, por Custódio Pinto e Festa, do FCP, e por Manuel Duarte do Leixões, apenas o defesa Festa era titular. Para os mais jovens, há que dizer que, nessa remota época, não havia substituições de jogadores durante os noventa minutos, nem sequer por lesão, e que poucas alterações se registavam no onze base de qualquer equipa, ao longo de cada época. E havia mais e pior: todos os cargos das instâncias dirigentes do futebol português eram repartidos, em exclusivo, entre os clubes dominantes da capital (Sporting, Benfica e Belenenses), que, assim, tinham de ser vistos como decisores e juízes em causa própria - com fama e proveito, jogando dentro e fora do campo. Lisboa tratava as colónias e as províncias, da mesma maneira, ou, pelo menos, com a mesma sobranceria - na política, na economia, no desporto, etc, etc, etc... Em suma, na capital estava o Poder absoluto, em todos os setores. Mandava, sem preocupação de equilíbrio, sem controle, sem oposição... A Revolução de 1974 trouxe aos Portugueses a Liberdade e a Igualdade, deu-lhe direitos proclamados na letra da Constituição e das Leis. Os progressos, não seriam, porém, alcançados, ao mesmo ritmo, por todo o lado, em todos os aspetos. Não basta declarar a igualdade, é sempre preciso conquistá-la contra o "status quo", contra interesses instalados. E em nenhum campo foi mais e melhor conseguido do que no futebol. Não porque fosse mais fácil, mas porque houve quem fizesse a revolução no terreno: Jorge Nuno Pinto da Costa. Podemos pensar, como eu penso, que sem revolução democrática não teria havido Pinto da Costa, com o seu inigualável currículo de vitórias, em termos universais E sem Pinto da Costa não teria havido revolução no futebol português! Por tal entendo, antes de mais, a criação de todo um condicionalismo para a igualdade, que permitiu a afirmação pelo mérito, pela qualidade, em qualquer ponto do território onde houvesse o que era preciso para a desenvolver. Geograficamente, o país do futebol, que antes era Lisboa, ficou maior, mais rico e mais competitivo, descobriu novas formas de gestão, muitos talentos e capacidades, até então atrofiados. Significou, também, uma aproximação ao panorama dos outros campeonatos da Europa- uma "europeização" do nosso futebol. De facto, se olharmos em volta, constatamos que a França, (antigo paradigma de centralismo político) não de limita ao Paris St Germain, conta com o Bordéus, o Lyon, o Marselha, o Mónaco... a Inglaterra não é só os clubes londrinos, pois também Liverpool, Manchester, Leicester, etc etc. podem ser a terra do campeão. Na Alemanha, a hegemonia tem estado, por acaso, bem longe de Berlim, na sulista Munique, com o Bayern a justificar, pelo seu jogo, títulos nacionais e internacionais. Dos nossos vizinhos espanhóis se pode dizer o mesmo - apesar de uma rivalidade maior entre os colossos de Barcelona e Madrid, há vida e campeões em outras cidades - como Valência ou Sevilha... E em Madrid, nem sempre é o Real, mas o Atlético, a levar o troféu para o museu. Uma situação, deste ponto de vista, algo semelhante entre os países peninsulares, se lembrarmos, entre nós, para além da alternância entre os grandes de Lisboa e o grande FCP, o título, relativamente recente, do Boavista e a existência de outros clubes muito competitivos a nível internacional, como vem sendo, sobretudo, o Braga. (o senão é, ainda, a subrepresentação do interior, que nem só no futebol é desfavorecido...). 2 - Pinto da Costa lutou para alcançar, não só a igualdade teoricamente proclamada nos diplomas legais, mas a efetiva igualdade de oportunidades. E, em condições de abertura à competitividade, alcandorou o FCP ao topo do mundo do Desporto (do Desporto-Rei) e, por natural repercussão, levando o País, num segundo tempo, anos depois, a um protagonismo crescente. Portugal, os Portugueses: os nossos Mourinhos, (que hoje ganham títulos em todos os continentes do planeta); os Decos, os Ronaldos, os Pepes.. .as equipas técnicas, os gestores, os agentes das estrelas, os dirigentes federativos... A primorosa organização de competições internacionais... O que era, antes do 25 de Abril, uma impossibilidade, e, mesmo depois, coisa extremamente improvável Não estou com isto a dizer que tão extraordinária evolução se deva, por inteiro e diretamente, ao Presidente do FCP. Não tenho, porém, dúvidas de que tudo se seguiu à dinâmica que por ele criada, através de uma verdadeira "regionalização" do futebol e do seu dirigismo. Ou seja, o equilíbrio de poder de "fazer vencedores", em qualquer cidade ou região do País, de acordo somente com a força, visão e vontade de empreendimento dos cidadãos e das suas organizações. Pinto da Costa foi eleito presidente do FCP em 23 de abril de 1982, exatamente oito anos depois da Revolução (ano, por sinal, tão importante no futebol como na política, por ser o ano da primeira Revisão Constitucional, que consagrou a democracia plena, com a extinção do Conselho da Revolução). O clube tinha ganho, até então, meia dúzia de campeonatos... Este ano festejou o seu 30º título de campeão. O Presidente cumpriu, ao longo das últimas quatro décadas, o nosso sonho de sermos os melhores do País. E foi muito, muito mais longe, ao cumprir promessas, que, então, nos pareciam pura utopia: dar ao Clube notoriedade internacional, atingir o final das principais competições europeias. Cumpriu promessas muito para além dos nossos sonhos, e, talvez, até dos dele... Tornou o FCP campeão da Europa e campeão do mundo de futebol. Por duas vezes. Sete títulos internacionais só em futebol sénior... E é, ele mesmo, o presidente de clube mais titulado do mundo, um recordista absoluto e insaciável, à espera de mais e mais vitórias no futuro! O seu fabuloso legado inclui ainda um Estádio e um Pavilhão desportivo, que são obras de arte arquitetónicas, e um Museu como não há igual. 3 - Estou-lhe grata como portista, naturalmente, e, também, como portuense e portuguesa, por ter dado à Cidade e ao País a projeção internacional que lhes faltava, no domínio mediático, por excelência, do mais universal e popular desporto da atualidade. E não menos reconhecida lhe estou, por ter mostrado a Portugal como pode fazer a regionalização, se souber extrapolar para a política os exemplos e os resultados rápidos e extraordinários conseguidos nesse outro campo. Está provado que o centralismo, ao manter o contexto em que "uns mais iguais do que os outros", é sempre inimigo do progresso, favorece a ascensão dos medíocres, alimenta uma burocracia lenta e dispendiosa, distancia os decisores da realidade plural e diversa da vida das pessoas e instituições. A desigualdade gera desiguladade! Portugal é, porventura, hoje, o país mais desigual da Europa, porque é o mais centralizador. Vê-se, caso a caso, ultrapassado pelos diversos Estados que vão aderindo à UE...continua na cauda da Europa, de onde um emblemático "slogan" de Cavaco Silva prometia retirá-lo em 1985. Ai permanecemos, porém, ultrapassados por uns e por outros... Tal como estamos organizados, não temos saída. O ensaio de "descentralização" em curso é já um fracasso irremediável, porque mantém o poder de decisão sobre as políticas concretas, intacto, nas mãos dos homens da capital - na Saúde, como na Educação - transferindo para as autarquias pouco mais do que uma custosa gestão de equipamentos, qualquer que seja o setor. O nível municipal não tem, aliás, dimensão para protagonizar o projeto de mudança de que o País precisa. São muitas as Câmaras, como convém ao Poder constituído (dividir para reinar...), ainda por cima, representadas por uma liderança nacional autárquica da mesma cor partidária... Só com a partilha real do Poder - com autonomia política à semelhança das Regiões dos Açores e da Madeira - poderemos, a meu ver, ultrapassar o impasse em que estamos quase meio século depois da revolução de 1974. É urgente afrontar o Terreiro do Paço, criar dinâmicas regionais, abrir caminho à vitória dos melhores, para que todo o País, com eles, se torne melhor. A política portuguesa, de norte a sul do retângulo continental, precisa, urgentemente, de clonar Pinto da Costa!... in JORNAL ERC E TAL junho 2022