segunda-feira, 28 de março de 2022

AS ARTES ENTRE AS LETRAS - notícia sobre a homenagem a Maria Archer

No próximo dia 23 de janeiro completam-se quarenta anos sobre a morte de Maria Archer. É uma data que será comemorada, no Porto, pelo Círculo de Culturas Lusófonas Maria Archer, ao longo do ano, com uma programação de atividades focada nas múltiplas facetas da sua vastíssima obra, e na sua vida, repartida no espaço da lusofonia, num constante cirandar entre realidades culturais de que se tornaria intérprete e mensageira privilegiada. A sessão de abertura terá lugar no sábado, dia 22, na Galeria da Biodiversidade – Centro de Ciência Viva, às 16.00, com uma conferência de Deolinda Adão (Universidade da Califórnia, Berkeley) sobre “Sussurros de vozes no silêncio – o caso de Maria Archer”, seguida da inauguração de uma exposição de pintura comissariada por Ester de Sousa e Sá, em que os artistas são convidados a falar da sua relação com Maria Archer, tal como a expressam nas sua telas A 22 de fevereiro, o Instituto de Línguas Comparadas Margarida Losa e o Círculo de Culturas Lusófonas Maria Archer, (com uma Comissão Organizadora de que fazem parte Marinela de Freitas, Lurdes Gonçalves, Nassalete Miranda e eu própria), convocam uma audiência internacional de interessados para um colóquio "on line" de homenagem a Maria Archer, que reúne investigadores portugueses e estrangeiros dedicados ao estudo da obra de mulheres portuguesas que se destacaram no panorama das Letras e Artes e nos movimentos proto feministas e feministas, de finais do século XVIII aos nossos dias. Com o título, "Maria Archer e outras Mulheres de Referência e (Ir) reverência", se pretende sublinhar o que, para além da diversidade de épocas, lugares e contextos sócio-culturais, todas têm em comum. Durante o primeiro trimestre deste ano, no lugar e no período de abertura ao público da Exposição de Homenagem a Maria Archer, que vai até 31 de março, está previsto um ciclo de colóquios presenciais, com regularidade quinzenal, subordinado ao tema " Mulheres que mudaram o mundo dos homens". Na incerteza que a crise pandémica traz ao nosso quotidiano, não está ainda fechada a planificação do ano, que, assim, continua aberta a novas propostas e sugestões à volta das grandes causas de Maria Archer: a criação literária e artística das mulheres como expressão de liberdade e dimensão de cidadania ,a compreensão da alteridade, a aproximação dos povos da lusofonia, no trânsito da dominação colonial num novo espaço policêntrico, o feminismo como humanismo, as fronteiras do feminino e a desocultação do seu lugar na História. Maria Archer viveu num presente de que ela já era o futuro, foi incompreendida, perseguida pelo regime, exilada, e, mais ainda, como escreveu Maria Teresa Horta "deliberadamente apagada da História". No ocaso de uma brilhante trajetória que a doença encurtou, já não encontrava ânimo para combater o esquecimento a que fora sentenciada, mas acreditava que novos tempos lhe fariam justiça. Primeiro nos meios académicos do Brasil, agora também já em Portugal, uma plêiade de investigadores veio dar-lhe razão, cumprir a sua esperança. A comemoração desta efeméride, no Porto, em Lisboa, em São Paulo, e um pouco por todo o lado, é uma etapa do seu percurso de retorno. Quarenta anos após a sua partida, Maria Archer está de volta, para ficar na História das Letras e do jornalismo, da literatura colonial, da democracia, pela qual luta na primeira linha de intervenção, e do feminismo, cujo bandeira, com raras mulheres, empunhou em meio século de ditadura e obscurantismo. Os portugueses vão descobrir que tão fascinante é a obra como a vida de Maria Archer
TÓQUIO - OS JOGOS DO NOSSO CONTENTAMENTO DESCONTENTE 1 - A participação portuguesa nos últimos jogos olímpicos é incensada pela generalidade dos políticos e dos comentadores desportivos, como "a melhor de sempre". Dir-se-ia que marcou a transição para um patamar de desenvolvimento qualitativo. Pura ilusão... Na realidade, continuamos na cauda da Europa, em matéria de investimento nas diversas modalidades desportivas (menos de metade da média europeia). de formação escolar e universitária - a Educação Física é menorizada nos "curricula", a compatibilização da vida desportiva e académica continua a ser negligenciada, só no desporto federado se pode verdadeiramente fazer carreira e o exercício físico para todos os jovens e em todas as idades é mínimo, em termos comparativos. É esta gritante falta de cultura desportiva que, fundamentalmente, determina o medíocre lugar que ocupamos no "ranking" europeu e mundial de alta competição. Mais um sinal inequívoco desta mentalidade dominante na sociedade portuguesa do século XX, nos foi dado, recentemente, pela despreocupação com que a DGS e o Ministério da Educação, durante a pandemia, nas escolas e nos clubes, encararam a suspensão da atividade física, em absoluto contraste com o alarme provocado pelo encerramento das aulas das demais disciplinas ou pela necessidade de recorrer a ensino não presencial... Com o que teremos perdido mais futuros campeões do que doutores ou engenheiros. 2 - A proclamada excecionalidade da recente "performance" é relativa aos nossos próprios resultados olímpicos passados, que oscilaram, modestamente, entre as duas ou três e estas celebradas quatro medalhas de 2021 - limitadas ao atletismo, em modalidades individuais, a evidenciar o mérito de cada atleta (e, quando muito, também, dos seus clubes que os apoiam), muito mais do que o mérito de um projeto ou estratégia dos poderes públicos. Em boa verdade, na Europa, só estamos à frente de quatro países com populações entre três, seis ou cerca de vinte vezes inferiores à nossa (a Lituânia, com 2.794 milhões de habitantes, Chipre com 1, 224.216, o Luxemburgo com 643.196 e Malta com apenas 502, 633). Muito se realçou, igualmente, o caráter "inclusivo" da delegação portuguesa, com esse adjetivo querendo significar a presença de estrangeiros naturalizados e de cidadãos de origem africana na nossa delegação. Muito me regozijo com o facto haver neste domínio maior abertura para o reconhecimento da dupla nacionalidades e para a atribuição do passaporte português. do que há, por exemplo, no futebol profissional, onde tanta polémica causou a chamada de Deco e de Pepe à seleção, dois brasileiros natos, que sempre deram provas de excelência desportiva e de dedicação à camisola das quinas. Talvez, porém, o mesmo não tivesse ocorrido se representassem clubes de Lisboa, como é o caso dos atuais atletas Pedro Pablo Pichardo, Nelson Évora, Jorge Fonseca ou do inesquecível Francis Obikwelu. Esta dúvida não é afirmada contra esses clubes de Lisboa, cuja influência, a ter sido exercida, o foi por uma "boa causa" e que louvo por continuarem a dar medalhas e campeões de atletismo ao país, como, noutros tempos, o fez o FCP, com o seu áureo trio feminino - Aurora Cunha, Rosa Mota e Fernanda Ribeiro. Suscita, igualmente, espanto e admiração, o fenómeno da preponderância dos afro-portugueses da área metropolitana da capital, na vanguarda do nosso atletismo, com três em quatro das nossas medalhas de Tóquio, a exceção sendo a do canoísta Fernando Pimenta, com raízes nortenhas em Ponte de Lima, (embora, do ponto de vista clubístico, se tenha mudado para sul). E só de Pedro Pichardo se pode dizer que foi formado no estrangeiro e se naturalizou já com um brilhantíssimo palmarés. Jorge Fonseca veio de São Tomé para Portugal com 11 anos, e Nelson Évora, nascido em Abijan, de pais cabo-verdianos, também muito cedo aqui se integrou. Patrícia Mamona é portuguesa, de ascendência angolana, A única mulher neste histórico quarteto de grandes campeões, ganhou uma medalha de prata que vale mais do que o ouro. Ela é a pura encarnação do espírito olímpico, da vontade de se transcender, a cada novo dia. Teimou, desde menina, em praticar o triplo salto e em atingir o Olimpo numa modalidade para a qual, sendo uma predestinada, lhe faltava, diziam-lhe todos, uma característica física: a altura. Mede apenas 1,66 e, note-se, perdeu o ouro para uma gigante cubana de quase dois metros (mais precisamente 1, 92). O que motiva, num país de mentalidade tão avessa ao fomento da atividade física na escola, na infância - que é onde, por todo o lado, se começa - os futuros campeões, rapazes e, igualmente, raparigas, (feito maior, numa sociedade ainda tão misógina)? O que leva crianças de minorias étnicas, em quase todos os outros setores marginalizadas, assim como outras de meios rurais, não menos desprivilegiadas, a superarem o destino pela glória desportiva? É uma história que se vai fazendo de comparações nas semelhanças e nas diferenças de circunstâncias, e que precisava de ser bem melhor contada, sem deixar nenhum nome para trás. Talvez, um dia, possam, todos, figurar num grande museu nacional do desporto...Até lá, cada terra vai homenageando os seus heróis, como Espinho muito bem tem conseguido, guardando a memória de António Leitão. 3 - Tóquio 2021 deixa-nos, por um lado, contentes com todos os atletas, em concreto, com os medalhados, com os que só não o foram por uma questão de menos sorte num momento fatal, e com os que trouxeram diplomas olímpicos - bem mais numerosos do que os pódios, e significativos, como indicadores de qualidade e de potencial, logo de esperança para 2024 - mas, por outro lado, descontentes com a falta de progresso geral, com o imenso desperdício de talentos que, para sempre, se perderam ou estão por encontrar. Quando Aurora Cunha começou a sua meteórica carreira, com uma primeira grande vitória nacional, o "Mundo Desportivo", de 9 de junho de 1976, escrevia: "Quantas Auroras em potência haverá neste país?". 45 anos depois, a pergunta mantém toda a pertinência, porque nem as mentalidades, nem o condicionalismo para a revelação de valores e vocações, nomeadamente a partir das escolas, se alterou de forma substancial. O caso da campeoníssima Aurora Cunha é paradigmático. Aos 14 anos, a oitava de uma família numerosa de 10 filhos, uma menina franzina e irrequieta, que gostava de correr, sozinha, por montes e vales, era operária na maior fábrica têxtil dos arredores da sua pequena comunidade rural de Ronfe. Um domingo, à saída da Igreja, depois do Terço das 15.00, alguém se lembrou de animar o fim de tarde com uma corrida popular para rapazes e raparigas, no estádio da terra. Aurora lá foi, com o sua saia de malha domingueira e sapatos de cabedal, e ganhou, destacadamente, à frente de todos os rapazes, alguns deles equipados a rigor. O Clube Juventude de Ronfe logo ali a convidou para treinar e competir. Depois, viria o contrato com o FCP, o seu clube de coração. E, assim, os horizontes se abriram para a menina de Ronfe, que, no meio fundo e fundo, havia de acumular recordes e medalhas de ouro, ser tricampeã mundial e vencedora das mais prestigiadas maratonas. Vale a pena ler, na sua inspiradora autobiografia "Uma vida de paixões" (prefaciada pelos Presidentes Ramalho Eanes e Rebelo de Sousa), os ensinamentos de uma carreira fenomenal, que começou, num convívio minhoto, por puro acaso.

Maria Archer - último colóquio no Porto

CONVITE O ciclo de colóquios "Maria Archer, eu e elas - Mulheres que irromperam no mundo dos homens" e a Exposição de homenagem à Escritora, promovidos, na cidade do Porto, pelo Círculo de Culturas Lusófonas Maria Archer, no 40º ano da sua morte, finaliza na 5ª feira, 31 de março. A sessão de encerramento tem lugar nesse dia, pelas 17.00, na Galeria da Biodiversidade - Centro de Ciência Viva, Rua do Campo Alegre, 1191. O colóquio final será centrado no percurso de vida e na obra da própria Escritora, com a apresentação presencial das comunicações "De olhos bem abertos - Nótulas sobre Maria Archer, em Eu e Elas" de Isabel Henriques de Jesus (Universidade Nova de Lisboa), e "Recordar Maria Archer" de Olga Archer, (sua sobrinha neta), as intervenções, "online" do Brasil, de Elisabeth Battista (UNAMAT) e de Blanche de Bonneval (amiga de Maria Archer), e a moderação de Maria Manuela Aguiar (Círculo Maria Archer) Seguir-se-á um convívio com os artistas participantes na Exposição, nesse último dia de abertura ao público, no belíssimo espaço arquitetónico, antiga casa de infância de Sophia de Mello Breyner, que Reitoria da Universidade do Porto pôs à nossa disposição, associando-se às comemorações evocativas da memória de Maria Archer". A sessão é igualmente acessível "online" Zoom meeting invitation - Reunião Zoom de Maria Manuela Aguiar Hora: 31 mar. 2022 05:00 da tarde Londres Entrar na reunião Zoom https://us02web.zoom.us/j/89161780144?pwd=bTRYZFZ3eDYwdzFOMm9uYzFyZUNEZz09 ID da reunião: 891 6178 0144 Senha de acesso: 050421

quinta-feira, 24 de março de 2022

PAI HISTÓRIA BREVE comentário da filha de Luísa e Prof Moreira

PAI - história breve e fotos JOÃO FERNANDES CAPELA DIAS MOREIRA Nasceu em Avintes, a 6 de Junho de 1918. O primeiro filho de Olívia Fernandes Capela e de Manuel Dias Moreira. Fez a primária e todo o liceu no Colégio dos Carvalhos, com a excepção do 6º ano, em que experimentou, sem sucesso, o Liceu Rodrigues de Freitas, no Porto - voltou, voluntariamente, para o internato. Onde, por sinal, foi feliz. Era popular, tinha muitos amigos, jogava bem futebol. E tocava violino (já não no meu tempo...). Era poeta repentista, como a Avó Francisca. Casou, uma 1ª vez, aos 19 anos, desistindo do seu curso de Letras em Coimbra. A noiva chamava-se Celina Viana. Era bonita e interessante. Mas estava tuberculosa, sem esperança de cura. Um casamento breve, romântico e feliz, tanto quanto podia ser. Contudo, Celina morreu poucos meses depois. Aos 22 anos, novo romance e novo casamento, que durou toda a vida - 55 anos! Com a Maria Antónia Barbosa Aguiar. Outra mulher bonita, de forte personalidade. Duas filhas, a Madalena e eu. Começo por ser funcionário da Câmara de Gaia, e, depois, da Associação de Ourivesaria do Norte, onde foi Secretário- Geral, durante muitos anos. Formou-se tarde, mas com gosto - dois bacharelatos e uma licenciatura, em Lisboa, no ISE e no ISCTE (Administração de Empresas, Política Social, Sociologia). Um livro de poemas de juventude, publicado post umamente ("Íntimo") Publicada por Maria Manuela Aguiar à(s) 16:36   1 comentário: Albertina Eudora T. da Silva7 de março de 2012 às 04:57Gostei muito de rever o passado! Recordo-me muito bem de seu pai!Parabéns pelo belo trabalho realizado! Sou a Tina filha da Maria Luísa e do Prof. Moreira:)

Intervenções sobre Maria Archer - Teatro da Trindade (2012) e Biblioteca Nacional (2022)

Lisboa, Biblioteca Nacional, 24 de janeiro de 2022 Sessão de abertura da colóquio "Reflexos e reflexões sobre Maria Archer" As minhas primeiras palavras serão de agradecimento à organização deste Colóquio, em especial à Profª Isabel Henriques de Jesus, pelo convite para participar numa grande jornada de reflexão em torno de Maria Archer, no 40º ano da sua morte. A celebração de uma efeméride é, por vezes, apenas cumprimento ritual de um calendário, mas também pode ser muito mais, se dela se faz um momento de salvaguarda da memória de figuras ou acontecimentos, um momento de reavaliação do seu papel, do seu significado no tempo presente. Assim sucedeu, por exemplo, na comemoração do 20º ano da convocatória do 1º Encontro Mundial de Mulheres Portuguesas na Emigração, de que resultou o reinício ou o verdadeiro início de políticas públicas naquele domínio, ou do centenário da República, em cujo programa de eventos foi dada enorme e bem merecida visibilidade a grande vultos da 1ª vaga do nosso movimento feminista. E assim poderá ser, e espero que seja, com as comemorações do cinquentenário da revolução de Abril, onde haverá lugar ao reencontro com a vida e a obra de grandes mulheres que a Ditadura e o chamado Estado Novo tentaram eliminar dos anais da República, do património imorredouro que é a memória coletiva. Sei que não há uma ligação direta entre essa aguardada agenda, e a iniciativa que aqui nos convoca, mas atrevo-me a dizer que pressinto nas linhas de investigação voltadas para as escritoras que resistiram às pressões e perseguição do regime ditatorial, de algum modo, uma espontânea decorrência do ambiente criado em torno dessa data marcante, que, no lapso de um século, separa 50 anos de ditadura e 50 anos de democracia. Separa o Portugal em que Maria Archer combateu e Portugal pelo qual incansavelmente se bateu. Maria Archer, essa portuguesa admirável, nascida num dia do último janeiro do século XIX, e, contudo, tão atual no pensamento e na mentalidade, que vem agora sendo redescoberta como exemplo inspirador de inconformismo e de coragem Nela vejo, sempre, antes de mais, a cidadã - cidadã de muitas cidades, num percurso repartido pela geografia do universo lusófono, em convívio, curioso e expectante, com as suas culturas e particularidade, empenhada em aprendizagens e partilhas, observadora e interveniente em tão variados domínios, invariavelmente movida por valores humanistas que são ainda hoje os nossos. Um destino de interminável itinerância, desde menina, poderia ter significado inadaptação e desenraizamento - mas não! Sendo quem era, bem pelo contrário, enraizou-a um pouco por todo o lado, com o seu olhar atento sobre a tudo o que era alteridade, fascinada pelo exotismo e pela beleza das pessoas, dos costumes e das paisagens.. Em estadas longas, que perfizeram 14 anos de África, a sua infância e a juventude decorreu numa sucessão de idas e voltas, de Lisboa para Bissau e Bolama, para a Ilha de Moçambique, com os pais, depois, já casada, para a mítica ilha de Ibo com o marido, e após o divórcio, ainda sob teto paterno, para Luanda. Divorciar-se, no ano de 1931, foi um ato de enorme ousadia, com que encerrou um ciclo e começou outro, finalmente livre para transpor a fronteira do espaço privado, onde as jovens da burguesia se deixavam emparedar, em vitalícia dependência como filhas ou esposas, para o espaço público, onde se tornou verdadeiramente Maria Archer Em 1935, em Luanda, fazia a sua estreia literária com uma obra sobre três mulheres, de seguida, publicava, em Lisboa, "África Selvagem", uma primeira e fulgurante incursão nos domínios da literatura colonial. Era o início da aventura solitária de subsistir pela escrita, como Autora reconhecida pela crítica e pelos leitores, que esgotavam edições e reedições dos seus romances e novelas, e como reputada articulista nas páginas de jornais e revistas de referência. Num breve relance sobre a sua trajetória de escritora, vemo-la por pouco mais de duas décadas, destacar-se nos meios intelectuais de Lisboa, onde se impôs pelo talento literário – como a grande revelação da década de trinta – encantou pela elegância do porte, pela cultura e pela vivacidade do espírito e desafiou os poderes constituídos usando a escrita como arma na luta pelas causas que a moviam. Causas que permanecem, tantas décadas depois, impressionantemente atuais: a criação literária e artística das mulheres como expressão de liberdade e dimensão de cidadania, o feminismo como humanismo, e a aproximação dos povos da lusofonia - ultrapassando a visão eurocêntrica tradicional, herdada da 1ª República, no policentrismo dos seus escritos mais tardios, da que podemos chamar a fase brasileira. . A ditadura assente na repressão das Liberdades e no conservadorismo misógino, não tolerava a subversão da sua ideologia e da sua "ordem" e não podia, sobretudo, admitir a transgressão no feminino, que Maria Archer encarnava. Entre nós, ninguém levara tão longe, tão militantemente, a denúncia, pela recriação realista de uma atmosfera social e política, do quotidiano num país anacrónico em que as mulheres eram confinadas pelas normas impostas no relacionamento dos sexos, pela educação para a desigualdade e pela censura dos costumes. É esse mundo segregado das mulheres que desoculta - mulheres s queão sempre as personagens principais nas suas obras... E fá-lo, com o implacável rigor de uma etnóloga por vocação e a arte consumada de manejar a língua, em toda a sua riqueza e plasticidade. Nas suas próprias palavras, "moldava o retrato sobre modelo vivo". Um retrato com muitos rostos, muitos enredos... A Ditadura não gostou do retrato, que desconstruía, pelo ímpeto iconoclasta da obra, e pelo seu exemplo de independência da Autora , o ideal tipo feminino da ideologia salazarista. E não lhe perdoou. Condenou-a ao ostracismo não só no seu espaço espaço geográfico, como no no tempo. Quis, como disse Maria Teresa Horta, "deliberadamente apagá-la da história". Maria Archer foi obrigada a partir para um exílio de 24 anos em São Paulo, de onde regressaria, em 1979, num regresso obscuramente, diminuída na debilidade física irreversível, desaparecida na memória do país, mas, no seu íntimo, confiante no julgamento do futuro.. . Esse futuro é agora. Somos nós! Estamos hoje aqui, a dizer, com a nossa presença e a nossa palavra, que queremos, deliberadamente, restituí-la à História. O movimento começou nos meios acadêmicos do Brasil, com uma plêiade de investigadores, que desde há alguns anos, vem cumprindo essa esperança, no reencontro com a obra intemporal de escritora e jornalista. O eco desses passos vem, agora, repercutindo em Portugal. Ela é a cronista, por excelência, de uma época que, nos seus livros, pode ser, estudada, compreendida, reconstruída, num campo interdisciplinar, em múltiplas leituras, todas atuais. É, também, a militante, a mulher de ação, a protagonista da luta pelo direito de pensar, de falar e de viver livremente em Portugal, a continuadora da 1ª vaga do feminismo português, a que a ditadura quis pôr termo, com a barreira da censura e da polícia, e a antecessora da 2ª vaga, que nasceu e cresceu no declínio do Estado Novo, nas vésperas da revolução. Uma mulher moderna – moderna por padrões atuais . No 40º ano da morte de Maria Archer, celebramos o seu retorno definitivo do exílio, para preencher o lugar a que tem direito na história da literatura, da democracia e do feminismo em Portugal e na da construção de um espaço alargado de diálogo entre os povos e as culturas da lusofonia. . Maria Archer podia ter sido personagem de um romance de Maria Archer! Falta contar é a história que escreveu dramaticamente com a sua vida. Talvez, por altura de celebração de outra efeméride, em 2024, nos 125 anos da escritora, haja quem queira e possa dar-lhe e dar-nos essa biografia. Valerá a pena, porque tão singular é a escrita como o percurso de Maria Archer. Maria Manuela Aguiar - Lisboa, Teatro da Trindade, 29 de março de 2012 ANDAMOS NA SAUDADE DE MARIA ARCHER Poderão perguntar porque se envolveu a Associação de estudos MM na evocação de Maria Archer, em sucessivas iniciativas - no Encontro Mundial da Mulheres Portuguesas da Diáspora, em Novembro de 2011, na comemoração do Dia Internacional daMulher, 2012, na cidade de Espinho e, agora, em Lisboa, nesta sessão que nos reúne no Teatro Nacional da Trindade. Responderemos que razões não nos faltam para justificar o empenhamento cívico com que o fazemos. Uma primeira razão tem evidentemente a ver com o facto de Maria Archer ter sido uma portuguesa expatriada. Uma grande Portuguesa da Diáspora, que, desde a sua juventude, passou largos anos em cinco países da lusofonia, e em 3 continentes, olhando sempre em volta, com uma inteira compreensão das pessoas, dos ambientes, dos meios sociais, que soube traduzir em dezenas de escritos de incomensurável valor literário e, também, de muito interesse etnológico, sociológico e político....Seria motivo bastante para nos lançarmos na aventura de partir à procura desse legado multifacetado e vasto, que guarda experiências e segredos de tanta gente e de tantas terras. Mas há mais. Maria Archer é uma daquelas figuras do passado, que é intemporal, por ter sabido captar as constantes da natureza humana, por se constituir na memória crítica de um tempo português, que foi opressivo e cinzento, pautado por estreitos conceitos e por regras de jogo social e político, que ela inteligentemente desvenda e que põe em causa, sem contemplação Ninguém como ela retrata a vida quotidiana desse Portugal estagnado e anacrónico, avesso a qualquer forma de progresso e de modernidade, em que os mais fracos, os mais pobres não têm um horizonte de esperança, e as mulheres, em particular, são dominadas pela força das leis, pelo cerco das mentalidades, pela censura dos costumes, depois de terem sido deformadas pela educação. Tendo por pano de fundo os estereótipos impostos para o relacionamento de sexos, a entronização rígida dos papéis de género dentro da família e as consequentes desigualdades, distâncias e preconceitos sociais, num doloroso e longo impasse da nossa história colectiva. Maria Archer retrata suas contemporâneas, tal como elas foram, com realismo, que traduz a busca e a evidência da verdade - doa a quem doer e para que se saiba e as gerações futuras não esqueçam. Maria Archer, talvez a mais feminista escritoras portuguesas, é uma "feminista muito feminina", que ousou ser um ícone de beleza e de distinção, fazer uma carreira no jornalismo e nas Letras, e, em simultâneo, e lutar pela dignidade e pela afirmação das capacidades intelectuais e profissionais então negadas à mulher Ousou fazer um nome no mundo fundamentalmente misógino da cultura portuguesa. Ousou ser Maria Archer, sem pseudônimos..Por tudo isto, julgo que podemos dizer que ela é mais do nosso tempo do que do seu tempo - uma afirmação que podemos generalizar às mais notáveis feministas do princípio do século XX. Maria era, então, demasiado jovem para poder participar nos movimentos revolucionários em que estiveram a Liga Republicana das Mulheres Portuguesas e o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, mas iria ser uma das poucas que, no período de declínio desses movimentos e de desaparecimento de uma geração incomparável, continuou, a seu modo, solitariamente, um combate incessante contra o obscurantismo,que condenava a metade feminina de Portugal á subserviência, à incultura e ao enclausuramento doméstico. Foi uma inconformista, consciente das desigualdades e da injustiça em geral, e, em particular, das que condicionavam o sexo feminino, na sociedade portuguesa. A sua escrita, servida pelo talento, pela capacidade de observação e pela coragem foi uma arma de combate político - como dizia Artur Portela "a sua pena parece por vezes uma metralhadora de fogo rasante". Uma saga em que vida e arte se fundem - norteadas por um declarado propósito de valorização do feminino, da libertação da Mulher, e, com ela, da sociedade como um todo. Ela é já uma pessoa livre num país ainda sem liberdade, o que lhe custou o preço de um longo e doloroso exílio ... Maria Archer é uma grande escritora (ou "um grande escritor", como João Gaspar Simões preferia dizer, alargando o campo de comparação possível). Uma escritora de causas! Ninguém como ela conseguiu corroer a imagem da "fada do lar", meticulosamente construída sobre a ideia falsa da harmonia de desiguais (em que, noutro plano, se baseava a ideologia corporativa do regime), da não menos falsa brandura do autoritarismo no pequeno círculo da família ou no país inteiro. É uma retratista magistral da mulher e da sua circunstância... O regime respondeu em força. Primeiro, tentou desqualificá-la. Sintomática é a opinião de um homem do regime, Franco Nogueira, que, em contra-corrente, num texto com laivos misóginos, a apresenta como apenas uma mulher a falar de coisas ligeiras e desinteressantes, como o destino das mulheres. Não tendo conseguido, no campo da crítica literária os seus intentos, o Poder passou à acção direta: alguns dos seus livros foram apreendidos, os jornais onde trabalhava ameaçados de encerramento. Maria Archer viu-se forçada a partir para o Brasil - uma última e infindável aventura de expatriação, de onde só viria, envelhecida e fragilizada, para morrer em Lisboa. Contudo, o desterro não era pena bastante... Teresa Horta, no prefácio da reedição de "Ela era apenas mulher" afirma que Maria Archer foi deliberadamente apagada da História. O ser emigrante é já, entre nós, factor comum de esquecimento, como que natural, na memória da Pátria, mas o seu caso foi mais grave, deliberado, doloso, implacável... Dá-nos razão e força suplementar para intervirmos, ainda a tempo de neutralizar o ato persecutório, executado há décadas, restituindo a Maria Archer o lugar que lhe é devido no mundo vivo da cultura portuguesa... Lendo a sua obra em momentos mágicos de reencontro com ela, com a lucidez da sua análise e a elegância do seu estilo, acompanhando-a em incursões ao universo cinzento e confinado em que conviveram as portuguesas e os portugueses durante meio século... Elegância é uma palavra que quadra com Maria Archer, que a caracteriza na maneira como pensou, como escreveu, como se vestiu e apresentou em sociedade, como atravessou uma rua de Lisboa ou de São Paulo, como atravessou uma vida inteira, até ao fim... Ou melhor, até ao seu regresso! Estamos aqui reunidos para a trazermos a uma uma segunda vida, no sentido em que falava Pascoaes: "Existir não é pensar, é ser lembrado" Este não é o primeiro nem será o nosso último encontro sobre a sua personalidade, o seu exílio, o seu retorno... Sobre a obra e a pessoa - qual delas a mais interessante... Dizia Mariana, a inesquecível personagem de "Bato às portas da vida"; "Ando na saudade de mim, mesmo perdida no tempo", Nós andamos na saudade de Maria Archer, reencontrada em nosso tempo, e em qualquer tempo. A leitura de tantas páginas fulgurantes que nos deixou são, para sempre, porta de entrada na sua intimidade. Maria Manuela Aguiar

domingo, 13 de março de 2022

O ERRO DE PUTIN in A Defesa de Espinho, 10 de março

O ERRO DE PUTIN 1 – De um dia para o outro, esquecemos todos a pandemia, a formação do novo Governo, os congressos da oposição, os fundos comunitários - assuntos que desapareceram dos noticiários e desapareceram das nossas preocupações… em larga medida, pela força dos próprios “media” que regem, mais do que nos apercebemos, o que pensamos e sentimos. No lugar que era o de coisas presentemente secundarizadas como menores está a guerra! Uma guerra que entra, continuamente, noite e dia, em nossa casa num ecrã de televisão, como um horrendo e trágico “reality show”. Andamos numa angústia quotidiana, comparável à que nos afligiu durante o genocídio indonésio em Timor Leste, em especial, depois do massacre do cemitério de Santa Cruz,registado em imagens que chocaram o mundo e reequacionaram o destino de uma Nação. Hoje é domingo. Em Mariupol os cadáveres juncam as ruas, as casas ardem, não há água, nem comida, nem luz. Não sabemos se na próxima 5ª feira, quando estivermos a ler este jornal, o mesmo se poderá dizer de Odessa ou de Kiev… É o inferno, visto por dentro, minuto a minuto, como nunca antes visionaramos nos media e multimedia. “Rios de sangue e de lágrimas”, nas impressionantes palavras do Papa Francisco. já mais de dois milhões de refugiados atravessaram as fronteiras abertas de par em par pela Polónia, Hungria, Roménia, Moldávia, e pela Europa inteira. Aqui, no extremo oeste, mostramos disponibilidade igual - uma excelente e prestigiada comunidade de imigrantes aproximou-nos da Ucrânia, desde o fim do século passado. O Governo português tornou-se, nesta parte da Europa, pioneiro ao abater barreiras burocráticas e ao não pôr limites ao acolhimento de refugiados. E são muitas as autarquias que preparam, no terreno, a receção das famílias, e colaboram na recolha e transporte de bens essenciais para as vítimas da guerra que se encontram ainda no país ou nas fronteiras do leste. Espinho, está na vanguarda dessa campanha, numa colaboração entre a Câmara, a Paróquia, os Bombeiros e a Cruz Vermelha. Nas ruas, os portugueses protestam ao lado dos imigrantes ucranianos, mobilizam-se numa infinidade de gestos simbólicos e aderem a iniciativas de coletividades locais, associações cívicas e humanitárias - no meu círculo familiar, até as crianças quiseram participar e acompanharam os pais nas manifestações do Porto, algumas com a idade que eu tinha, quando os tanques russos entraram em Budapeste... Os Estados democráticos do Ocidente avançaram com sanções extraordinárias, que isolaram a Rússia e a transformaram de um dia (o dia da invasão), para o outro (o dia seguinte) num Estado pária (muito embora falte ainda, a maior de todas, o boicote total ao petróleo e ao gás russo...). É uma constatação que tem tanto de novo surpreendente, como a monstruosa aventura imperialista de subjugar, pelas armas, uma pacífica Nação independente. 2 - Nos canais noticiosos, a escolha é entre as imagens que mais parecem um apocalipse terror, filmado em Hollywood, do que terror na vida real, e as que mostram os corredores de fuga: um êxodo de proporções bíblicas, protagonizado por gente vestida como nós, a contar os seus dramas pessoais num inglês, que falam como nós… São quase somente mulheres, com os filhos pequenos pela mão, e, pormenor comovente, em muitos casos, também o cão ou o gato, que trazem consigo, em vez de uma mala com bens materiais. Para trás deixaram tudo, a vida de família, de trabalho, de convívio, a vida fundamentalmente igual à nossa, que tinham na semana anterior… E, ao olhar os que ficam ou os que partem, com a mesma coragem, há uma pergunta nos ocorre, constantemente: e se fossemos nós? Países que ergueram muros arame farpado contra os refugiados do Médio Oriente, igualmente sobreviventes de conflitos pavorosos, ou os aprisionaram em miseráveis campos de internamento, estão hoje a receber generosa e exemplarmente todos os que escapam à barbárie russa. Temos tendência a ver neste fenómeno a pura emergência de uma fraternidade europeia, que, há muito, parecia perdida. Será, em parte, uma verdade, que nos é grato descobrir (e talvez ajude a uma melhor compreensão outras vítimas inocentes de conflagrações, que vai haver mais tarde) , mas é muito mais do que isso. Uma agressão desta natureza, perpetrada por uma potência nuclear, que está nas mãos de um tirano omnipotente, cuja crueldade o situa nos patamares do estalinismo e cuja sanidade é discutível, representa uma ameaça civilizacional – e, consequentemente, suscita reação planetária. A Europa está muito perto da fonte do perigo, e, em particular na zona de fronteira, conheceu bem demais o “czarismo soviético” dominador, e, a uma maior distância temporal, a intimidatória vizinhança do czarismo propriamente dito… E assim Putin está a mudar o mundo, mas não em conformidade com os seus planos originais. Quis destruir a Ucrânia e recriou-a com uma alma heroica, mesmo que venha a derrotá-la, conjunturalmente, pela força bruta. Quis dividir e subverter a UE, e provocou o efeito contrário, promovendo a unidade europeia que tardava. Quis agitar o fantasma da NATO e ressuscitou uma velha aliança, classificada como obsoleta a anacrónica e deu-lhe uma razão de ser e um futuro. Essa foi a primeira batalha que perdeu. A segunda será a da frente económica. Os milhares de oligarcas que o sustentam, nas mais aviltantes formas de capitalismo, talvez consigam contornar algumas das sanções, habilidosamente, mas a Rússia não. O seu povo está condenado à miséria, por muito, muito tempo, talvez por gerações. A Ucrânia há-de levantar-se primeiro! 3 - A Europa acreditou, piamente, na racionalidade de Putin. Porém, ao ter pactuado com ele, fechando os olhos a desmandos e a crimes, ao ter-se submetido à sua dependência no campo energético, ofereceu-lhe uma aparência de não haver limites para o que estava disposta a suportar. Pela inércia, involuntária e leviana, iludiu o bárbaro, no seu jogo de ambição desmedida, sempre feito de frio cálculo… De facto, a invasão da Ucrânia não começou há dias, mas há oito anos, em 2014! Começou pela anexação da Crimeia, avançou por Donetsk, pela região de Donbass, deixando um rasto de milhares de mortos, sem que norte-americanos e europeus tomassem, atempadamente, as medidas aplicadas no presente. Nesse contexto, se preparou Putin para ocupar o resto da Ucrânia, em fevereiro de 2022, esperando uma insignificante resistência interna e externa. Enganou-se – levado pela experiência do passado recente... viu-se confrontado com uma gigantesca onda de reação, no quadro das relações internacionais, assim como no teatro de guerra. A possível vitória militar sobre a Ucrânia, como ele já aprendeu, não se fará sem a derrocada financeira da Rússia. E um governo fantoche em Kiev, será derrubado, a prazo, quando ele morrer ou talvez antes... O maior erro de Putin é pensar, se é que pensa, que a identidade ucraniana não existe. Existe e é europeia. Basta ver onde procuram refúgio mais de 95% dos ucranianos: não é nos braços da Rússia, é no Ocidente! Na UE, em Portugal, um pouco por todo o lado, vamos também pagar um preço elevado para resistir à intimidação nuclear de Putin, e pôr termo à dependência energética da Rússia. E, também, para acabar com a excessiva dependência militar da América - de Biden, hoje, de um eventual segundo Trump, amanhã - erguendo o braço europeu da NATO. Não para a guerra, mas para a PAZ. É o preço a pagar pelo valor da Liberdade. Espinho 6 de março de 2022

RUTH ESCOBAR, MULHER DO PORTO in Jornal Etc e Tal (2001)

RUTH ESCOBAR, MULHER DO PORTO, (QUE NÃO É NOME DE RUA...) 1 - Numa das minhas rondas pré-pandemia pelos alfarrabistas, fiz um pequeno achado - um interessante livro sobre a toponímia feminina do Porto, da autoria do historiador César Santos Silva, com um prefácio de Joel Cleto. A edição é de meados de 2012, não muito recente, mas receio que mantenha, no que respeita à gritante desigualdade de género neste domínio, toda a atualidade. Não parece ser tema de que as (e os) feministas façam bandeira, e de que os autarcas, poder eminentemente masculino, tenham consciência. O Autor apresenta 146 topónimos femininos, no Porto. mas entre eles, com boa vontade e simpatia, somando dezenas e dezenas dos mil e um nomes da Nossa Senhora, um bom número de Santas, a começar por Santa Catarina, cuja existência continua envolta numa nebulosa, e algumas, poucas, rainhas e princesas, entre outras ruas que pertencem, gramaticalmente, ao género feminino, mas não designam mulheres individuais. E, em alguns casos, nem se sabe, ao certo, o que designam... Se nos concentramos nas celebridades dos últimos dois séculos, o número desce, dramaticamente, para apenas 33... Entre estas, antes de 1974, apenas seis: Florinha da Abrigada, a Sãozinha (1948), Felicidade Browne (1949), Guilhermina Suggia, (1951), Aurélia de Sousa (1954), Cecília Meireles (1971) e Amália Luazes (1973). Carolina Michaelis já dava nome ao liceu, porém, só teve direito à sua rua em 2001. A partir de 1974, mais 27 senhoras ilustres receberam essa honra, sendo, maioritariamente, nascidas ou residentes na cidade. A percentagem de estrangeiras (sete, no total) é relativamente elevada, e maior seria se incluíssemos santas e rainhas. Entre as nacionais não portuenses se encontram - e muito justamente - figuras como Natália Correia, Maria Lamas, Sarah Afonso ou Vieira da Silva. Olhando os domínios em que se distinguiram, concluiremos que predominam a escrita, a música (de Suggia às nossas grandes pianistas), o professorado (universitário, sobretudo) e as Artes plásticas, algumas acumulando a excelência no campo artístico ou académico com a intervenção cívica e política. Mais raras são as mecenas (duas), as santas populares (duas) e aquela outra que alcançou a fama como modista (a Candidinha). Na área do Desporto, abundam campeãs do mundo, de Aurora Cunha a Fernanda Ribeiro. Contudo, só Rosa Mota mereceu destaque, e não numa pequena via citadina, mas num grandioso pavilhão polivalente. A década mais fausta ao reconhecimentos dos méritos femininos na toponímia foi a de noventa, (com um pico em 1991/1992), seguida dos primeiros anos do novo século - 2000/2006. Note-se que houve mulheres que foram, assim, homenageadas pelo poder municipal pouco após o falecimento, caso de Virgínia de Moura, Helena Sá e Costa, ou Sophia e outras que esperaram mais de um século para alcançarem o seu lugar na toponímia - por exemplo, Ana Plácido e a feminista e republicana Albertina Paraíso, de quem, felizmente, se lembraram, tardiamente embora, nas comemorações de 2010. Não há, neste seleto círculo, uma só portuense da Diáspora. Há mulheres que vieram do estrangeiro ou que lá, transitoriamente, estudaram ou viveram. O que não há é emigrantes não retornadas, pelo menos do Porto... longe da vista, longe do coração! A exceção que confirma a regra, a pintora Maria Helena Vieira da Silva, é lisboeta e, ao mesmo tempo, parisiense, o que lhe confere um grau particular de visibilidade e prestígio. La France!... Longe, verdadeiramente longe, fica o Brasil, para onde foi Maria Ruth do Santos, a menina de Campanhã, que morava na Rua do Bonjardim e se transformou, em São Paulo, na tão brilhante e mediática Ruth Escobar. 2 - Após a morte de Ruth, em 5 de outubro de 2017 - uma perda evocada em todo o Brasil, com eco em Nova Iorque, nas Nações Unidas - fez-se sobre ela, no país de origem, um estranho silêncio. Na sua terra, só uma associação, da qual sou fundadora, a Associação Mulher Migrante, lhe prestou a homenagem possível durante um colóquio sobre relações luso-brasileiras. Alguns meses depois, influenciada pela leitura do livro de César Santos Silva, que tivera apoio institucional da autarquia, tomei a iniciativa de me dirigir à Comissão de Toponímia da Câmara Municipal do Porto, lembrando a personalidade desta portuense, a sua ligação afetiva à cidade onde passou os primeiros dezasseis anos de vida e o extraordinário percurso que a tornou a portuguesa da sua geração mais conhecida e admirada no Brasil, como atriz, produtora teatral, mulher de Cultura e ativista dos Direitos Humanos. Uma imigrante singular, admirada pela inteligência, pela audácia e pelo modernismo, uma mulher que nunca receou desafiar os poderes constituídos, em ditadura, nem enfrentar grandes polémicas. Aos compatriotas impressionava o orgulho com que se afirmava portuguesa e portuense. A sua autobiografia, publicada em 1987, começa assim: "Lembro-me do trajeto invariável de todos os dias: da Rua do Bonjardim subo a João das Regras, atravesso a Praça da República, desço a Rua dos Mártires da Liberdade, e entro na Praça Coronel Pacheco - onde ficava o Liceu Carolina Michaelis". Liceu, onde descobriu a vocação teatral, representando, um a um, todos os Diabos, dos Autos de Gil Vicente. Esse primeiro capítulo do livro "Maria Ruth" é, todo ele, dedicado à vivência na cidade, aos passeios ao Palácio de Cristal, ou à Foz, às sessões de cinema no Rivoli, às festas populares de São João. As boas recordações da adolescência são, sobretudo, desses ambientes com que se identifica. Como confessa: "só consigo lembrar os barulhos de fora, da rua, da cidade, dos outros. De dentro de casa, do dia a dia, nada..." . Até que, um dia, partiu à aventura: "quando embarquei para o Brasil, no Serpa Pinto, com a minha mãe, levava também a certeza de um destino, pois soube que tudo o que sucedeu na minha vida, mesmo antes do meu nascimento, estava moldado por uma força universal, cósmica, transcendente". E, de facto, foi cumprindo os seus sonhos de jovem imigrante, a ritmo vertiginoso. Aos 18 anos, editava uma revista "Ala Arriba" e, na qualidade de jornalista (amadora), corria o mundo, entrevistava uma longa lista de líderes famosos, como Foster Dulles, Kruschev ou Nasser, via as suas reportagens serem disputadas por revistas como a "Life", e por prestigiados jornais de S, Paulo e Lisboa, Entre os seus 20 e 30 anos, impôs-se como empresária e produtora de teatro e, depois, como atriz talentosa. No Teatro a que deu o nome, (já não Maria Ruth dos Santos, mas Ruth Escobar, apelido do segundo marido, o poeta, dramaturgo e filósofo Carlos Escobar), levou à cena tanto os prediletos autos Vicentinos como peças contemporâneas. Em 1963, criou o Teatro Nacional Popular, itinerante, que chegava às periferias do Estado, a muitos milhares de pessoas, com espetáculos de grande qualidade (Martins Pera, Suassuna...), em palco improvisado num velho autocarro. O seu terceiro marido, o arquiteto Wladimir Cardoso, viria a ser o cenógrafo de peças de enorme êxito artístico, como "Cemitério de automóveis" de Arrabal, com montagem do argentino Vitor Garcia e encenação da própria Ruth. Uma dupla que, em 1969, com "O balcão" de Jean Genet, venceria todos os prémios, no Brasil. A partir de 1964, ainda jovem, na casa dos 30 anos, durante a ditadura, converteu o seu teatro em forum de luta pela liberdade, resistindo a ameaças, interrogatórios, prisões, e ataques de comandos para-militares. E, nessa década, trouxe Portugal, vencendo obstáculos postos pela "Censura", alguns dos seus maiores sucessos, "Missa leiga" e "Cemitério de automóveis" . Em 1974, organizou o 1.º Festival Internacional de Teatro de S. Paulo, levando ao Brasil as melhores companhias do mundo e contribuindo para um movimento renovador das Artes dramáticas brasileiras, que prosseguiu com o 2.ª Festival, em 1976. Em Portugal, por influência das "três Marias", com quem conviveu, acrescentou o feminismo às suas causas, e, no Brasil, voltou a fazer história, como pioneira no terreno da política, tornando-se a primeira mulher eleita e reeleita deputada à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ao abrigo do Tratado de Igualdade de Direitos entre Portugueses e Brasileiros, pois teve sempre só uma nacionalidade, a portuguesa). Foi também a primeira Presidente do "Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres" e, durante anos, a Representante do Brasil nas Nações Unidas para o acompanhamento da Convenção contra a discriminação das Mulheres Depois de quase uma década nos palcos políticos nacionais e internacionais, regressou, nos anos noventa, aos palcos do teatro, como intérprete, empresária e promotora de festivais internacionais, em novos moldes, mais abrangentes de outras artes. A sua herança teatral, enraizada no Gil Vicente da juventude, e no vanguardismo em que projetou a sua criatividade, ao longo de décadas, mudou a face do moderno teatro brasileiro! Uma última grande produção foi uma encenação de "Os Lusíadas", que estreou em São Paulo e conseguiu, depois, trazer a Portugal. .Em vida, Ruth Escobar recebeu as maiores condecorações brasileiras, a "Legião de Honra" de França, e a "Ordem do Infante D Henrique" de Portugal. A sua morte, em 2017, foi notícia impactante no Brasil, onde fica vivo um legado de intelectual vanguardista, que revolucionou o teatro nacional e de feminista portuguesa, que abriu caminho à intervenção política das mulheres brasileiras. Percorro os nomes femininos da toponímia portuense e julgo que Ruth acrescentaria a essa lista tão reduzida, quanto significativa, a mais valia da singularidade. .3 - Estas considerações sobre Ruth Escobar são puramente objetivas, poderia tecê-las sobre alguém com quem nunca me tivesse cruzado, alguém, porventura, de um tempo passado ou de uma geografia desconhecida. Mas, num plano mais subjetivo, vou contar como a vi pela primeira vez, em São Paulo. Não consigo precisar a data, mas, sendo, então, deputada da emigração, entre uma saída e um regresso à Secretária de Estado das Comunidades Portuguesas, terá acontecido entre fins de 1981 e meados de 1983. Recordo que a minha visita foi organizada por um Cônsul-Geral muitíssimo simpático, que, por fim, me convidou para uma receção, na sua residência, com uma dezena de participantes, entre os quais Ruth, a deputada, que fazia furor. Na mesa redonda, o protocolo colocou-nos lado a lado e a sintonia foi imediata. A conversa começou e continuou centrada no Porto, no nosso Porto... Ela era uns anos mais velha do que eu, mas o país, nesses anos, não mudara, em nada... nem o liceu, nem as mentalidades, os costumes, a vida das adolescentes - que voltamos a ser, nas rememorações desse jantar, rindo e extravasando genuína e juvenil alegria. No dia seguinte, o Cônsul contou-me que ficara muito surpreendido ao constatar que Ruth e eu éramos amigas de infância. Acho que, de novo, muito o surpreendi, ao dizer-lhe que não, que tinha conhecido a famosa Escobar naquela noite... Pouco depois, segundo encontro inesquecível, também em São Paulo, com Natália Correia. Natália e Ruth.! A corrente passava entre ambas - qual delas a mais heterodoxa, a mais fulgurante, a mais carismática... Ruth, tal como Natália, parecia viver, sempre, vertiginosamente e em festa, cada momento, cada ideia, cada projeto...Bem gostaria de as ver, um dia, reunidas na toponímia do Porto.