sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

UM PAÍS INVARIAVELMENTE AO CENTRO in Defesa de Espinho jan 2004

2022 - UM PAÍS INVARIAVELMENTE AO CENTRO 1 - Em 1975, era assistente da Faculdade de Direito, tinha residência obrigatória em Coimbra e encontrava-me em Lisboa. Fui e voltei no meu carro, por estrada quase deserta e, depois, esperei horas, por esse momento empolgante, numa fila interminável, de gente compenetrada e silente, como quem aguarda num templo o início de uma cerimónia religiosa. A taxa de abstenção foi insignificante, o povo estava em luta democrática para a Assembleia Constituinte, onde se inaugurou a arquitetura partidária em que assentou, até 30 de janeiro passado, a casa democracia portuguesa, com os quatro partidos que elegeram a maioria dos deputados. Ao fim de 47 anos, o CDS desapareceu do Parlamento e o PCP está reduzido a seis deputados… Pelo contrário, o PS e o PSD resistem, repartem entre si a maioria de 2/3, essencial a revisão constitucional, à aprovação das Leis fundamentais do regime, às reformas estruturais de que o país precisa para ter futuro. Já houve maiorias absolutas do PSD (duas, com Cavaco Silva) e do PS (duas, com José Sócrates e, agora, com António Costa). Uma impressionante constância do voto popular, não obstante o leque de escolha partidária ser, nessa fase de construção da democracia, extremamente alargado, com um acentuado pendor esquerdista (para além dos que sobrevivem num completo anonimato, como o MRPP, os extintos MDP/CDE, UDP, UEDS, MES, PT, OCMLP, PUP, FSP, PRT, PCP-ML, PSR, e POUS entre outros). A autoproclamada direita, como o MIRN de Kaúlza de Arriaga, reduzia-se a pequenos grupos marginais. O CDS de Freitas do Amaral dizia-se "rigorosamente ao centro", (vocação de que, há muito, mais não resta do que o logótipo original) e assumia a tarefa patriótica de converter a direita ao seu programa cristão democrata - feito histórico que lhe é, sem dúvida, reconhecido. Seria, curiosamente, o primeiro partido a apoiar Mário Soares num governo de coligação PS/CDS, e, poucos anos depois, parceiro do PSD de Sá Carneiro na coligação AD, que conquistou a primeira maioria absoluta, em 1980. O PPD apresentara-se, em maio de 1974, ideologicamente na esquerda reformista, com um carismático Sá Carneiro, que já no início da década de setenta, em tempos de ditadura, ousava afirmar-se publicamente “social-democrata à sueca". Mas, quer a maioria dos militantes, quer a maioria dos dirigentes que se seguiram, embora invocando perpetuamente o seu nome, foram resvalando para o centro-direita, e apenas alguns históricos resistem ainda no centro-esquerda. Sá Carneiro tudo tentou para que o PPD fosse aceite na Internacional Socialista, o que só a oposição do PS, (já antes de 1974 membro dessa Internacional), inviabilizou. Para integrar outra família europeia, a Liberal, Sá Carneiro exigiu que adotasse, também, a designação “reformista”. O PSD já abandonou a Internacional “Liberal e Reformista”, mas esta, suponho, mantém o título, por inércia. E para onde foi, no dealbar do novo século, o PSD? Para o PPE, onde hoje convive, não só com o CDS, como com os duvidosos representantes húngaros do partido do Senhor Órban…). Talvez muitos já tenham esquecido o nome do presidente do PSD que protagonizou essa viragem à direita, a meu ver, errada. Aqui fica o nome: Marcelo Rebelo de Sousa! Note-se, porém, que, nesses tempos primordiais, nem o PS escapou à necessidade de proceder a correções de vulto do seu esquerdismo inicial, abandonando, pouco a pouco, o "slogan "Partido Socialista, Partido Marxista" e tornando-se, com Mário Soares, a grande barreira democrática à ofensiva do PCP de Cunhal e, da extrema.esquerda, e um grande paladino da nossa adesão à CEE. Só o PCP permaneceu imutável, marxista, leninista, eterno saudosista da URSS pré-Gorbatchev e simpatizante da distopia norte-coreana. Por muito simpáticos que nos sejam o Jerónimo de Sousa e os seus jovens heterónimos – e até são! – há que de admitir esta verdade. 2 - Quarenta e sete anos depois, as eleições legislativas não tiveram, nem podiam ter, a mesma força mobilizadora. Foram, contudo, em plena pandemia, com mais de um milhão e meio de portugueses confinados, uma enorme surpresa em termos de participação popular e, mais ainda, de resultados! O mais surpreendido terá sido, porventura, o Presidente da República, único e exclusivo responsável pela dissolução da Assembleia da República e convocação de eleições antecipadas, que o chumbo do OE não implicava. O Governo fez questão de não se demitir, mostrou-se pronto a apresentar um segundo orçamento e nessa atitude começou a sua vitória - na qual só foi acompanhado, à distância, pelos dois outros únicos beneficiados pela antecipação de eleições, a direita inteligente da Iniciativa Liberal e a abominável extrema-direita do Chega. Perdedores houve muitos - o PSD, o BE, a CDU, o PAN, e o CDS, desaparecido em combate. E, “last but not least”, o Presidente da República, que utilizou, pela derradeira vez, o seu trunfo maior, que é a prerrogativa de dissolver o Parlamento. No nosso sistema político, a autoridade presidencial avulta em situações de instabilidade ou de crise, e foi nesse quadro que até agora alardeou a sua influência, através de uma superabundância de atos e palavras. A partir de 30 de janeiro, o poder deslocou-se de Belém para São Bento. Veremos se, após a inversão de posições entre Marcelo e Costa, o seu relacionamento se mantém como dantes... E veremos se a vitória do PS, alavancada nos fundos da UE que estão para vir, se converte, como desejamos, na vitória do País, na recuperação do seu atraso económico. 3 - Aparentemente, estamos perante uma radical reconfiguração parlamentar, com a hecatombe de algumas formações partidárias e a emergência de outras. Não vejo as coisas assim, recuperando aquela frase célebre de Pinheiro de Azevedo, gritada em situação bem mais dramática: "o povo é sereno!". É mesmo!... António Costa não deverá continuar uma política de adiamento de reformas de fundo, que aconselham, sempre e, em muitos casos, exigem mais do que a maioria absoluta, a maioria de 2/3. Esta maioria foi, desde 1975, dada ao chamado "bloco central'' - PS e PSD. E permanece em 2022, já que ficou praticamente inalterada a expressão dos partidos que se opõem ao modelo de democracia ocidental perfilhado por Mário Soares e Sá Carneiro. Houve apenas uma dança de cadeiras no hemiciclo. Há 12 extremistas que se sentam na bancada da direita e apenas 11 na da esquerda. Ao todo, 23 em 230. Somos um País invariavelmente ao centro!

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

PREFÁCIO CAMINHOS DA POESIA

Prefácio
Prefaciar a nova coletânea galaico portuguesa de poemas e de lendas,
narradas numa toada poética, foi convite inesperado, que recebi como uma honra, e
aceitei como meio de me associar, em simples prosa, a um projeto tão conseguido
nos seus vários propósitos, confluindo harmonicamente na finalidade maior de
fazer futuro de duas comunidades geradas numa mesma língua antiga. Gente há quase
 um milénio separada pelos acasos da História, e por uma mera fronteira política,
sem que se haja desfeito a magma de uma unidade antecedente... Aqui, em cada folha, vem
impressa a voz livre e impetuosa dos Poetas, assumindo o papel de atores sociais
de uma reaproximação pela amizade, renascida e reforçada, de encontro em
encontro, pelos Caminhos da Poesia, assentes no mais recôndito, amplo e consensual
denominador comum, que é sempre a Cultura!
Mulheres e homens, portugueses e galegos, qualquer que seja lugar onde
nasceram ou habitam, as suas ocupações ou títulos académicos,estão juntos na
consciência de pertença a um mesmo universo cultural em expansão. Cada um se
apresenta de uma forma livre, alguns preferindo falar quase só pelos versos, outros
dando-nos a síntese de “curricula” profissionais, breves traços biográficos ou uma
simples saudação para irmãos. Partilham, essencialmente, a vontade de
intervenção num mesmo movimento de fraternidade, institucionalizado, ou não, numa
significativa pluralidade de grupos e tertúlias - movimento que das Letras, numa
amável luta, parte para os afetos, e neles redimensiona, afinal, a própria identidade.
Como diz a Poeta: “Veño dunha estirpe/guerreira, como a gran Boudice/levo no
sangue a loita/as minhas armas são pluma e tinta”
No “país lendário, que começou a norte e se estendeu a sul”, o caminho
do meu próprio sentimento de identidade galaico-portuguesa, fez-se em dois
andamentos, primeiro nas visitas à Galiza, onde tudo me parecia familiar, veredas
das aldeias, casas de pedra, a hospitalidade, a confraternização nas esplanadas,
 nos cafés e nas ruas da cidade, os rostos das pessoas e até a forma de falar, que entendia,
espontaneamente .
Mais tarde, rumando a sul, ao Algarve. encontrei, (Infinita surpresa...), pinceladas de
exotismo na cor ocre das falésias, nas casas brancas de barras azuis ou
amarelas, nos pátios mouriscos, nos modos de estar... E, assim, ainda menina, num
simples olhar em volta, me apercebi de que Portugal, tal como a Espanha, (e não ao
invés, como pretende uma certa corrente), é um todo multicultural, de tradições, de
reminiscências muito diversas (admirável diversidade!), que se constitui numa outra
unidade, singular e indestrutível, indelevelmente, no seu território e na sua
Diáspora. Todavia, de facto, mil anos de fronteiras, em que a Nação Portuguesa se forjou
 em Estado, não lograram esbater as eternas afinidades naturais do norte com a
Galiza, ou do Algarve com a Andaluzia...Sintonias que se somam sem antagonismo... E é
(e, nesta ordem de ideias porque não haveria de ser?) um poeta andaluz, Manuel
Machado, que vemos proclamar a Galiza como “Espanha madre de la Espanha
entera”... E nós acrescentamos: da Espanha, sim, e, ainda mais, de Portugal.
 Caminhamos tendo “por lema a poesia dunha mátria sen fronteiras”... Ou, como diz outro Poeta:
“que Galícia sexa luz en Lisboa”/Luz que ven dos fillos das terras nosas”
Um dos aspetos mais salientes e inovadoras desta terceira coletânea, é a
incursão nos domínios do nosso riquíssimo património lendário e mitológico, via
privilegiada de demanda identitária que anima o projeto poético coletivo. Aos Autores foi
proposto que recriassem as nossas lendas, em versão de autor e linguagem
de uma beleza e melopeia poética, e não admira que a ideia fosse tão apelativa
e alcançasse tão abundante e excelente materialização! E, com ela, o caminho se
inicia mais atrás, mais perto das origens, em diálogo com a ancestralidade profunda
da cultura popular, suas crenças, memórias, valores, enigmaticamente envoltos na
penumbra do fantástico e do mistério pressentidos e tangíveis.. Foram, assim,
convocados os Poetas na sua veste de mediadores da intelecção de uma vida
primordial, que nos oferece um cortejo de deusas, espíritos, sereias, mouras encantadas,
mágicas metamorfoses de homens e animais, trocando de pele ou de condição, o
sobrenatural enlace dos vivos e dos mortos... Vestígios de histórias intangíveis que,
sob a aparência do irracional e do absurdo, guardam a Verdade de outras idades. Há
Poetas que nesse relance retrospetivo se interrogam: “Como teria sido essa outra vida/
vida que foi a nossa em outro tempo?”... E há os nos dotam de certezas: “Somos o Povo
que fomos em tempos ancestrais”... Filhos da Suévia e do Miño co mar por
padrinho”.E, antes e suevos, nos redescobrimos celtas, lusitanos, “querreiras e
guerreiros, filhos da Deusa de que emana a vida”, no imaginário, entrevendo as
 “Xacias” que: “Lapexan na Auga/no Miño e nos regueiros/bañandose nas pozas
 frías/enxugandose ao vento”.
Tal como Navia, a Deusa lusitana, e astur- galega, que se acolhe nas
pontes, nas lagoas e rios... Presentes se fazem, vindos da Natureza, os espíritos:
“materializados em chovia arribam nos vales /multitudes de espíritos a conviver aos
mortais” E os mortos, por instantes, reunidos aos seus, na súbita diafania das
dimensões ocultas ou espectrais: “abrense as portas entre o Alén e este mundo/e veñen as
ánimas dos devanceiros/ camiñar entre os vivos… E, tão temidas e malignas, a norte
e a sul do Minho, eis as bruxas, com seus “talismáns diabólicos”: “Chegarón as
bruxas vellas/ nas suas vassoiras rápidas como lóstregos/os gatos negros, as curuxas,
os sapos”.
Quando não o diabo em pessoa, o “picaro diaño”, um dia aparecido nas
terras de Becerreá...
Nas ingénuas estórias do ilógico e do improvável pode assomar o lobo bom
que fala à menina assustada, a jovem que é transmutada numa “serva
branca”.e só na morte recuperará forma humana, a moura capaz de comer, todos os dias,
um boi inteiro, e a outra mulher que, com o filho ao colo, transporta, uma
pedra colossal, a “pedra má”…Ou a xacía, que “ergue castelos na area”, e aquela outra
“loira e fermosa, que vive nas augas do Miño”...
Muitos dos nossos “Poetas-contadores-de-lendas” buscaram inspiração no
legado mitológico das suas terras: Teixido, de onde trarás, com o amuleto, a “maxia
por sempre contigo”, Béade e a sua moura Mariña, que ali toma marido, a
Feira, e o castelo da Princesa Lia, enamorada de um gentil alcaide mouro,
Serradelo e o seu São Caetano, pronto a castigar os ímpios com a desgraça dos temporais,
Tabuado, onde se lembra como San Cristovo perdeu a capela votiva, Silvalde e a
Bicha das sete cabeças, pelo povo cortadas, uma a uma, ou ali perto, em Esmojães,
o vilão Catafula,herói improvável, morrendo em glória, na resistência ao invasor
gaulês. Do mesmo modo, mais remotamente, o domínio romano em terras galaico-
portuguesas permaneceu viveiro de Imortais, os bravos de Castro de Medeiros, o
insubmisso Viriato. a merecer alturas de epopeia, a ardilosa donzela de Monsanto
sitiado, qual outra Deu-la-Deu, a derrubar a força pela astúcia. Na luta hábil contra
um Poder maior e perverso, o mesmo alcançam as duas padeirinhas, no fogo do seu
“forno sagrado” sacrificando o vil alcaide... No sulco histórico de uma
religiosidade bárbara se insere a Lenda do Ferro em brasa, e, também, numa trama de contornos
singulares, a Lenda do Galo de Barcelos, em ambas as ordálias, a justiça divina
sobrevindo pelo milagre. Mais milagres revisitamos numa variante da saga arturiana da
procura do Santo Graal, acontecida na capela de Cebreiro, onde se guarda “o cáliz e
o relicário/ dentro de duas ampolas/ feitas de vidro e de prata”. E o suave “milagre
das rosas” da Rainha Santa, que por ele, é mais venerada do que por feitos muito
concretos, justificativos da mesma consagração de uma grande mulher política
epaladina da Igreja dos pobres e dos puros de coração.
Do espaço lendário desta coletiva, referência ainda à singeliza e à
força narrativa da vida e da morte da “Vella Maruxa” , que vai em demanda do mar: “Marucha
silente no seu camiñar/passiño a passiño achega-se al mar”...
Tantas mulheres viventes neste outro universo!...Bem se podem dizer que, no
feminino, sobejam as figuras mais extraordinárias em crónicas mitificadas, e, mais
latamente, no imaginário poético, que faltam, afinal, nos anais da História, de
onde andam desaparecidas...
Numa antologia tão original, onde a Verdade, os mitos, o fantástico, os
anseios e os medos se abraçam em versos, que percorrem séculos ou milénios, num
virar de páginas, a actualidade sofrida no planeta inteiro, o ano
fatídico de 2020, é assinalada com a curiosa introdução da palavra COVID, no léxico poético: a
peste do século que leva os homens como “bolboretas” deixadas no
«almacén dos mortos»), o apocalipse: «feche-se a gente e todos os eventos serão
cancelados»... «Vinte dias do ano vinte vinte/Vinte dias sem abraços...».quedando-se
«os amantes em quarentena»... 
Dividem-se estes Poetas da distopia entre sentimentos de finitude
(«Suspende-se a vida. Vive-se a morte»), e a sua denegação:(«Confinado
fisicamente/ mas livre como uma ave»)...
De semelhantes contrastes se vai compondo o roteiro de uma variada viagem,
entre paisagens, que podem ser do mundo exterior ou interior - paisagens
de alma...
Há os que conseguem «atravessar o mundo inteiro/nesta, mais uma, página
do diário da vida» e os não encontram o seu rumo: «Perdi-me num ir e vir de
sentimentos, vividos, sufridos». E aqueles que vão além dos limites da perda porque a
sua lhes  deixa «tão pouco que torna o nada enorme»...Os que à noite pedem: «abreme a
friesta/que quero ver as estrela», Os que nela se quedam: solitários «O
silêncio tomou conta da noite»... E os que tomam conta do quietude: «Não quero
ruído que destrua a voz deste meu silêncio»
Falam a muitas vozes os poetas...ouçamo-los!.
Os Poetas do Mar...
Mar, fonte inesgotável de inspiração no «mundo de marinheiros», que é o
nosso... «E o mar! Miña querida/ Noiva de sal e espuma (...) Cántate
cual sereia/ en rocha firme retida», assim começa o dolente poema dedicado "aos que no mar
ficaram".. E em mar se volver é anseio de grandeza que em verso se
permite: “Eu nacín sendo regato/Soñando com ser u mar/Dormir contando as estrelas/ E
vendo a lúa brillar” (...) ninguém podera parar/os soños e a fantasia/ e ainda
muito menos/ se istos son poesia». Mais triste é o mar sem horizontes, no
claro-escuro de areia e bruma: «macera este mar...a areia e a bruma que encerra noites longas».
São muitas as formas de o cantar...

Os Poetas da Terra...
Os Poetas da Terra, de Natureza fecunda e graciosa, estão hoje mais a
norte do que a sul do Minho - labregos, filhos de labregos (no sentido nobre da
palavra, que se desvirtuou num Portugal a abandonar, na miragem da cidade ou na dura
aventura da emigração, os seus campos e as suas aldeias). Na Galiza muito do que
viram os olhos da Poeta, que é a maior de todos, ainda hoje nós poderemos ver e
sentir ::
«Cheira a ti, Rosalia/Cheira a tua presença/ á tua vida, ao teu leito/ É
tudo teu, é tudo nosso!» 
São aldeias ainda vividas, não apenas conservadas na memória : “terra,
terra/eco da vida que nos guarda a auga/que âncora as nosas árbores/e
que espera a fin dos nossos corpos/ terra/lugar/orige/pátria/terra/terra/terra” .
“Aldeia/de choros e risas”. Campos onde a vista se espraia em contemplação: “baixo 
un arbore cansado/ de corroída corteza/sintome enamorado/de toda a Natureza”. A Galiza,
para sempre “chea de sacras ribeiras regadas pela auga dos deuses/ a reverter de
arte, de música e de grandes festas”. Desta vida não se apartam: «non me leves/ ao teu
mundo/ que nel/ non quero ficar»,
À mulher se pede : «nunca marches da terra/porque tu eres a terra/
da nossa amada terra Galega».Mulher, Mãe:: “Serás madre, emerxente de
súa raiz/ ncherás os espaços ocos, os movementos /de sempre, as formas, o recanto
no fogar

Os Poetas do Amor
O amor em que se gerou a lírica galaico-portuguesa: “Non me pídas a lúa
a que non chego/ Pídeme amor, amor sinxelo”. Amor que se quer reviver: “Tenho
saudade do amor que era/ Mas quem sabe possa ainda ser” ..Ou de que se morre:
“cando vexo que se morre/ por a pessoa querida/xa sei que é poesia”.Amor sem
limites:.”Amar, só amar-te a construir/amor e mais amor no amor já feito”. E amor
universal: “querer amar os outros, com o amor que nos temos”.

Os Poetas do Caminho
“Posso mostrar-te o instante para além do instante?” A caminhada não
terá fim: “A ponte que me leva/ é infinita/ando correndo nela/mais non chego”: A
ideia do longe que não se alcança é força que nos leva em frente: “vagabundo de
sonhos/quanto mais os estreito/mais deles me aparto”..E é, sobretudo, preciso é dar ao
caminho o sentido das nossas causas: “O Poeta olha-se ao espelho e vê o
mundo/Veste-o com os sonhos replicados dos seus”. Causas crenças, ambições,
 utopias: : «creo firmemente que a poesia transforma o mundo e faino muito mellor»...

Citações colhidas um pouco ao acaso, que mais não pretendem do que
salientar  riqueza, a originalidade e a pluralidade de leituras a que a coletânea
nos chama - não apenas a puramente literária, que não pretendeu estar no centro
destas breves considerações, também a etnográfica, a política, (na sua sede eminentemente
cultural), a feminista (ou humanista, na integralidade), a histórica - no seu duplo
olhar retrospetivo e prospetivo - no que acompanhamos os que pensam que a
história que mais importa é a do futuro. E, por isso, queremos sublinhar
o papel que vem assumindo, a publicação anual das coletâneas, sempre lançadas, com a
mesma periodicidade, em magnas assembleia de Poetas, realizadas,
alternadamente, na Galiza e em Portugal. Para dizer que existimos,em todo o espaço de
uma língua genesíaca, espaço sem fronteiras, que cresce na poesia, («mar de letras,
sonho de ideias) e na amizade. É um projeto que vai em frente, no caminho que
se faz, juntando a força matriz da Galiza e, (como diria Pessoa), um Ímpeto de
Portugal.

CCP paridade - proposta das Conselheiras

Senhora Conselheira

Agradeço imenso a informação e muito me regozijo com esta histórica iniciativa das Conselheiras do CCP,  
 Estou inteiramente de acordo com as propostas e quero felicitá-las pela forma tão objetiva e tão convincente como a defendem. É chocante e, como salientam, incompatível com a própria definição de democracia, a situação de discriminação de género subsistente quase 40 anos depois da criação do 1º CCP (um Conselho associativo, eleito por sufrágio direto de entre dirigentes das instituições das Comunidades Portuguesas) e 23 anos depois da adoção de um novo modelo de Conselho eleito por sufrágio direto e universal, ou seja um órgão de representação dos cidadãos portugueses do estrangeiro. Acompanhei de perto a evolução do CCP e participei nos seus trabalhos, na qualidade de membro do Governo e de Deputada da emigração, desde o seu primeiro encontro mundial, em abril de 1981 até 2005 e sempre considerei que a falta de representação feminina afetava a imagem, a credibilidade e,  em dúvida, também, a funcionalidade e a eficácia do Órgão. 
No 1ª Conselho, o de 1981, não havia uma única mulher eleita!... Em 1983 havia apenas duas, ambas jornalistas, uma de Paris, outra de Toronto. A esta se deveu a recomendação que levou à convocatória do 1º Encontro de Mulheres no Associativismo e no Jornalismo, em 1985. Um encontro de extraordinário nível, graças à qualidade da intervenção e à capacidade de construir consensos dessas grandes mulheres vindas da diáspora portuguesa, Confesso que fiquei surpreendida  . Excederam todas as minhas expetativas e deram-me, desde essa altura, a noção exata da falta que a sua voz fazia no CCP,,,
É claro que a imposição de quotas, no Conselho como na Assembleia da República, foi decisiva nos progressos que se registaram na última década, ainda que tenham ficado aquém do que se esperava. Infelizmente mais aquém ainda no CCP do que no nosso parlamento, na representação nacional no parlamento europeu ou no governo...
Sempre fui uma adepta declarada do sistema de quotas, consolidados há décadas, no interior dos partidos da social democracia nórdica e  vejo, com satisfação, a sua crescente aceitação até em países do sul, tradicionalmente pouco sensíveis`ás questões de igualdade de género. 
Quanto maior é a resistência à participação feminina, mais importante é reforçar a aplicação de quotas. Em Portugal a discriminação é particularmente visível no CCP e nas Autarquias locais (a percentagem de mulheres presidente de Câmaras é baixíssima!). Há. pois, que detetar e impedir os desvios ao espírito da lei, verificados nestes universos específicos,
Permitam-me, em tão  difícil contexto, felicitá-las pelos resultados já alcançados  a nível regional.. É um sinal de esperança. no futuro
Pela minha parte, tudo farei para divulgar esta relevante decisão conjunta das Conselheiras

RUI LACERDA - O SEU MODO DE VER E CONVIVER in Defesa de Espinho

RUI LACERDA - O SEU MODO DE VER E DE CONVIVER  Rui Lacerda ficará sempre presente na memória de Espinho. Pertence à história da cidade, onde deixou marcas que a tornaram mais moderna, maior e melhor. Como arquiteto -  um grande arquiteto! - mas não só, também como exemplo de intervenção cívica, de  convivialidade, de partilha de ideias e saberes.As suas realizações no campo da arquitetura falam de uma dimensão humana que envolve a profissional e a acrescenta, e a transporta aos mais altos patamares. Referirei apenas três que aqui, na sua terra, podemos  admirar e usar no quotidiano (três entre tantas outras, dispersas pelo país e por outros países):  - O Auditório de Música, que dá ao público uma rara proximidade com o palco e os artistas, para além de um ambiente e uma acústica esplêndidos. Quando vou à Casa da Música do Porto, penso sempre: é interessante por fora e labiríntica e até, de certa forma, inóspita no interior .Falta-lhe a harmonia do todo que encontramos no "nosso" auditório... - A Escola Manuel Laranjeira, cuja remodelação pude, há alguns anos, apreciar detalhadamente, numa visita guiada pela sua Diretora,  que, igualmente, prima pela conjugação de arte e funcionalidade. No fim, ao agradecer à anfitriã, inclinada como sou a ter em mente paradigmas nórdicos, exclamei:  "Parece um liceu da Suécia!". - A Biblioteca Municipal José Marmelo e Silva, que é o orgulho de todos os Espinhenses. Foi sobre ela que mais longamente conversei com o Arquiteto Riu Lacerda e sou testemunha do seu entusiasmo, da sensibilidade com que pensava as componentes simbólicas do projeto, com uma enorme atenção aos mínimos pormenores, ao mobiliário,à decoração, e com uma absoluta eficácia na supervisão das coisas concretas, a garantir uma execução rigorosa nos diversos aspetos e fases do processo. O resultado é uma Biblioteca diferente de todas as demais, cheia de luz, nas salas de leitura que ladeiam o jardim interior, o tão original jardim das oliveiras. Cheia de portas que se abrem para aumentar as áreas de comunicação e encontro. Entre as duas entradas principais, a da rua 24 e a do jardim João de Deus,o átrio tem a largura de uma rua, é mais uma via de passagem, paralela à rua 23, um convite à população inteira e aos turistas para que a usem como tal, em visitas mais ou menos demoradas. Essa foi a explicação que me deu e me encantou!.     Traço comum na conceção destas obras primas é, portanto, uma perfeita compreensão dos objetivos, que começa na compreensão das pessoas para quem os espaços foram criados e existem - num caso os estudantes, nos outros, os melómanos, os amantes das Letras. Julgo que nunca procurava apenas a beleza da construção, como valor em si. embora a conseguisse, com facilidade, porque tinha alma de artista  A sua arquitetura é profundamente humanista, como ele próprio era. Reflete o seu "modo de ver" - o título que deu à inesquecível exposição de fotografia sobre Espinho e a sua gente.A terminar, umas breves palavras  sobre o Cidadão, o voluntário de muitas causas, movimentos e iniciativas de cultura, de desporto e de solidariedade, sempre pronto a colaborar e a participar ativamente. Foi na" Liga dos Amigos da Biblioteca José Marmelo e Silva", que mais privei com ele. A prova de que não olhava a Biblioteca, apenas como  trabalho bem conseguido e  finalizado, antes a sentia no seu dia a dia de Homem de Cultura e de cultor de amizades. No seu modo de ver e de conviver foi, assim, o mais perfeito exemplo do velho e sempre novo espírito desta cidade dialogante e fraternal.A inauguração da seu último projeto, o que não teve tempo para ver concluído - a requalificação da zona que foi, e quer ser no futuro, a grande sala de visitas de Espinho -  constituirá certam

REPENSAR A HISTÓRIA DA NOSSA DEMOCRACIA 0ut 2021 /ETC e TAL

REPENSAR A HISTÓRIA DA NOSSA DEMOCRACIA 1 - Não conhecemos ainda qualquer esboço do programa das anunciadas comemorações dos 50 anos da revolução de 25 de Abril, que ocorrem em 2024. Bem à portuguesa, só sabemos para já dois nomes: o de quem as vai presidir, simbólica e honorificamente - o General Ramalho Eanes, que há muito devia ser o Marechal Ramalho Eanes, e é absolutamente indiscutível - e o de quem chefiará o Executivo, um jovem professor da área política do Governo, cuja notoriedade enquanto comentarista de vários "media" em muito suplanta o seu (ainda) modesto currículo universitário. Apesar da sensatez e moderação com que, a meu ver, sempre intervém, representa, face à escolha da personalidade do Presidente, o 8 perante o 80. O perfil de académico será o ideal para um coordenador da "comissão organizadora" das celebrações, se, como me parece fundamental para o seu êxito, se vierem a centrar em aprofundadas investigações interdisciplinares. Para fazer história e para "fazer futuro" - na linguagem de setenta, para "cumprir Abril", ou para dar a dimensão da modernidade às "conquistas da revolução". O que por tal se entende está longe de ser inequívoco ou consensual em todos os quadrantes, mas, da equidistância dos cientistas se espera que os considerem todos. Como escreveu Agostinho da Silva, o filósofo que adorava gatos, a história que mais interessa é a do futuro. Porém, não é menos verdade que o ponto de partida e a fonte de ensinamentos e de inspiração é a do passado... Os trabalhos vão, supõe-se, começar em breve e prolongar-se por vários anos, antes e depois da efeméride nuclear. Nada a opor a um tão extenso período de preparação e de continuidade de esforços se eles envolverem abertura às diversas universidades e especialistas, (não se fechando em "lobbies"" ou capelinhas), se servirem a pesquisa académica rigorosa, a recolha de documentação, a reflexão e a divulgação da história, que as gerações mais novas não viveram. Num certo sentido, essa tarefa já teve o seu início no segmento particularmente importante da preservação da memória, com o testemunho direto de muitos dos protagonistas dos acontecimentos de 1974 e da construção da democracia - ou seja, o seu "dia seguinte" da Revolução, na meia década de setenta e na de oitenta. Refiro-me, em especial, a autobiografias políticas, que não eram propriamente uma boa tradição nacional, e que estão a tornar-se coisa comum entre os nossos contemporâneos. Cavaco Silva contribuiu com dois volumes, meticulosamente documentados, e mais os seus "diários" da presidência, na esteira de Jorge Sampaio. Mário Soares deixou-nos uma riquíssima coleção de publicações, tocando várias épocas e domínios, até o literário. Bons exemplos! As últimas publicações do género que tive a oportunidade de consultar, foram as de Diogo Freitas do Amaral, em 2019, - "Mais de 35 anos de Democracia Um Percurso singular" Memórias Políticas III (1982-2017) - e de Francisco Pinto Balsemão, intitulada, simplesmente, "Memórias". Ambos nos oferecem a perspetiva diacrónica de uma fascinante e vertiginosa sucessão de eventos em duas décadas cruciais, tal como eles as atravessaram, dando o seu contributo individual para alicerçar a arquitetura do Estado democrático. E, não parando aí, trazem-nos com eles na viagem de décadas de democracia estabilizada, até à atualidade. Para muitos, sobretudo os que que nunca souberam como era o quotidiano de gente comum, mais ou menos passiva, ou de ativos contestatários sob a ditadura, é uma incursão num mundo desconhecido, regido por normas que hoje parecem estranhas, a tocar as raias do absurdo... Para outros, tem o encanto de uma saga seguida de perto, ou, até, em alguns momentos partilhada. Ao lado de Freitas do Amaral, no governo em que ele foi Vice-Primeiro Ministro de Sá Carneiro, como sua Secretária de Estado (para a Emigração), vivi o melhor ano da minha vida, o de 1980, até ao dia 4 de dezembro. Lembrá-lo, página a página, torna-se, assim, uma espécie de romagem de saudade. De Balsemão não posso dizer o mesmo, nunca fui amiga nem prosélita, mas, à distância de décadas, é um exercício estimulante constatar, porventura com mais objetividade, não só divergências de análise sobre casos e pessoas, mas concordâncias e algumas bem relevantes, como a relativa à atual filiação do PSD, a nível europeu - apontando o erro de trocar, em fins de século, a Internacional Liberal e Reformista por um PPE, cada vez mais conservador e menos cristão-democrata - ou a simpatia por um militar "presidenciável", que se chamava Mário Firmino Miguel. 2 - Embora abrangendo as vicissitudes da vida pública no decorrer do mesmo período de tempo e no mesmo espaço é muito distinta da de Balsemão a narrativa de Diogo Freitas do Amaral - reflexo natural das diferenças de personalidade, de pensamento, de formação académica, de objetivos na profissão e na política e de realizações concretas nestes dois sectores. Freitas do Amaral conjugou, na perfeição, a fulgurante carreira universitária, (muito novo ascendendo a Professor Catedrático de Direito), e a corajosa, determinada, e não menos brilhante política,caminhada política, ganhando o seu lugar entre os "pais fundadores" do regime nascido no do 25 de Abril - primeiro presidente do CDS. O "Homem de Estado", que, segundo Mário Soares, "ajudou a converter a direita portuguesa à democracia". Escreveu muitas páginas de história, que é não apenas sua, mas do País, e, por isso, de leitura obrigatória. Uma obrigatoriedade que a leveza e a naturalidade com que se exprime, numa linguagem em simultâneo precisa, simples e acessível sobre os temas mais complexos, torna especialmente grata e aliciante, não só para especialistas em questões de política nacional e internacional, mas para qualquer um de nós. Enquanto Balsemão apresenta aos leitores a sua "narrativa de vida" de mais de oito décadas, Freitas do Amaral optou pelo enfioque nas "memórias políticas", editadas ao longo de mais de 20 anos em 1995, 2008 e 2019. Neles vamos, fase a fase, seguindo o excecional trajeto de alguém que se preparou, com rigor, dedicação e muito talento, para chegar onde chegou. Numa expressão sua, lapidar. "Sonhei coisas grandes e, felizmente, vivi muitas"- Muito novo se viu a liderar um dos quatros grandes partidos do pós 25 de Abril e atingiu o topo da carreira académica. Excecional se revelaria em todos os cargos aos quais se candidatou e para os quais foi eleito, dentro e fora do país - Deputado, Vice Primeiro Ministro, Primeiro-Ministro interino, Ministro dos Negócios Estrangeiros e da Defesa, Presidente da União Europeia das Democracias Cristãs (o primeiro português eleito para a presidência de uma grande "Internacional"), Presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas, ou candidato à presidência da República, numa eleição que ganhou na 1ª volta e perdeu na 2ª, para Mário Soares, por escassos 138.000 votos... Paradigmática é a forma como analisa os vários factores determinantes dessa derrota, com uma objetividade de cientista político, e como aceita, democraticamente, o veredicto popular, não hesitando em afirmar: "O percurso e o currículo de Mário Soares eram nitidamente superiores aos meus". (Quase metade dos portugueses tinham mostrado, nas urnas, pensar o contrário...). Recusando contestar o resultado, como alguns queriam, o candidato vencido apressou-se a felicitar o vencedor. No dia seguinte, recebeu em casa "um enorme ramo de flores', com um cartão de cumprimentos, admiração e respeito do casal Maria Barroso e Mário Soares". Nas "Memórias", comenta: "Só o Mário Soares e a Maria de Jesus seriam capazes de fazer uma coisa destas". E eu acrescentarei: Só Freitas do Amaral seria capaz desta reação. A democracia portuguesa no seu melhor! Na era dos Trump e dos Bolsonaros, motivo, para nós, de renovado orgulho. 3 - Francisco Pinto Balsemão, em mil densas páginas, reúne, nos capítulos que sobre política se debruçam, um manancial de dados, desde os dias em que a revolução apenas se adivinhava, sem hora certa. Deputado da "ala liberal" na Assembleia Nacional, a convite de Marcelo Caetano, fundador de um semanário, que soube antecipar o tempo da democracia, ("O Expresso"), co-fundador de um partido político, que pesou decisivamente na mudança de regime, o PPD/PSD, Ministro, Primeiro Ministro por dois anos e meio (em dois governos), deputado europeu por 11 dias. E muitas coisas mais: milionário nato (ou seja, de fortuna herdada, que não dilapidou), jornalista, advogado, empresário da comunicação social, não lhe falta matéria de interesse para levar ao seu público. Passados os 80 anos, bem gozada a vida, satisfeitas as ambições, as que teve e as que nem tinha sonhado (nomeadamente ser Primeiro-Ministro, o que somente aconteceu por um trágico acaso), fala sem reservas nem resguardos. É ele próprio, retrata muitas figuras da "res publica", tal como as vê e, ao fazê-lo, retrata-se a si também. Poucos são os que se autobiografam assim, emitindo opiniões com o à vontade de quem está numa roda de amigos. O jornalista vem ao de cima", redige com desembaraço e espontaneidade, sem floreados, sem excessivas subtilezas, sem poupar os alvos, ainda que estes tenham ocupado, ou ocupem hoje os mais altos cargos de Estado. As passagens agrestes sobre Marcelo Rebelo de Sousa, não só no livro, mas em entrevistas laterais ao seu lançamento, fazem furor, e, talvez expliquem, pelo menos em parte, que a 1ª edição esteja já esgotada. Da Bertrand, em Espinho, trouxe comigo o último exemplar, que só terei conseguido, por estar ligeiramente amolgado - nada que afete o conteúdo. Em jeito de recomendação, terminarei confessando que fiquei a lê-lo pela noite dentro, refrescando lembranças, algumas já vagas, e confrontado as minhas com as suas interpretações sobre o encadeamento de ocorrências, de conflitos, polémicas, pessoas que os protagonizaram - exercício tão grato quando aquelas vão no mesmo sentido como quando são dissonantes. Em suma, mais um significativo subsídio para a história de uma então tão jovem e esperançosa democracia.

AS REPÚBLICAS AUTÁRQUICAS DOS HOMENS in Defesa de Espinho out 2021

MULHERES NAS REPÚBLICAS AUTÁRQUICAS DOS HOMENS 1 - Que título dar a um comentário sobre a questão de género nas eleições locais, onde o desequilíbrio é mais ostensivo e muito mais persistente do que no Governo e na Assembleia da República? Há tantas maneiras de dizer o mesmo...Poderia citar Célia Marques, que fala de "mundo masculino", ou Sandra Ribeiro (uma voz "oficial", presidente da "Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género" (CCIG), a apontar o obstáculo de "meios masculinizados", ou Luís de Sousa (ICS da Universidade de Lisboa) na mesma linha de pensamento a responsabilizar a "envolvente masculina", ou António Barreto que chega à mesma conclusão , escrevendo sobre a "invisibilidade - feminina - no país das autarquias". Alguns exemplos, entre muitos, que guardei na memória. Finalmente, decidi "plagiar-me" a mim própria, lembrando um colóquio que, como vereadora, organizei em Espinho, em 2010, durante as comemorações do centenário 5 de outubro: "Mulheres na República dos Homens". A realidade, que os números e estatísticas revelam, é que as autarquias são, em Portugal, o último reduto do (quase) absoluto poder masculino. A lei da Paridade veio criar nos lugares secundários a ilusão de um crescente equilíbrio de género, mas deixou intocado o cargo onde reside todo o poder - a presidência das Câmaras, em sistema presidencialista. Os homens estão à frente de mais de 90% dos concelhos do continente e das Regiões Autónomas. A paridade que, na economia do diploma original, de 2006, era atingida com uns modestos 33% subiu, em reforma recente, para 40%. Subiram, com ela, as expetativas de um progresso que nos deixaria perto da barreira das quarenta presidências femininas. Desde 1985, vínhamos a registar um crescimento pequeno mas consistente. Na meia década de oitenta, contávamos apenas 4 mulheres presidentes, em 2017 já eram 32. Pouco ultrapassando os 10%, não se tratava de um resultado excelente, mas alimentava a convicção de uma caminhada irreversível. Por isso, 2021 foi verdadeiramente dececionante. Pela primeira vez, em décadas, esse número desceu (de 32 para 29), continuando a deixar de fora as principais cidades do País - Lisboa, Porto, Coimbra, Braga, e por aí adiante... . 2 -Há em Portugal, a meu ver, uma crença excessiva nas virtualidades do Direito para resolver os problemas do nosso atraso social e económico, de desequilíbrios e assimetrias herdados do passado. No que, em especial, se refere à discriminações de género não penso diferentemente. Sou favorável à Lei da Paridade, considero que há muito deveríamos ter aperfeiçoado disposições a que falta caráter vinculativo, e enquanto Deputada, na Assembleia da República, sempre me manifestei nesse sentido, pela palavra e pelo voto, em oposição a teses então indiscutíveis do meu partido, o PSD (onde apenas Leonor Beleza e Marcelo Rebelo de Sousa, que não era deputado. estavam do meu lado da barreira). Tenho, todavia, a consciência de que é preciso lutar também com outras armas, para alcançar a igualdade efetiva. Há muito - logo após a Revolução de 1974, com a Constituição democrática de 1976 - está, em Portugal, consagrada a plena igualdade entre mulheres e homens. Nesse tempo histórico da meia década de setenta, terminou, assim, facilmente, pela pena do legislador, o longo e difícil combate das (e dos) sufragistas, que se centrava, e se ganhou, na esfera jurídica. Porém, removido o obstáculo que a própria Lei constituía, logo outros se levantaram nos domínios, em que a força vinculativa e sugestiva ou pedagógica do Direito tem as suas limitações. Podemos, é certo, ainda corrigir na legislação ordinária imperfeições ou desconformidades constitucionais, criar mecanismos de controle da aplicação dos comandos legais e da promoção de oportunidades iguais, do tipo da CITE (Comissão para a Igualdade do Trabalho e Emprego) , ou da CCIG. Contudo, o centro estratégico de uma mudança profunda de mentalidades e de práticas deslocou-se, definitivamente, do terreno da legiferação para o da vivência das leis. Não basta impor juridicamente a igualdade salarial, as mesmas oportunidades de progressão profissional ou de participação cívica e política para que elas aconteçam de facto. Não podemos ignorar os expedientes generalizadamente usados para manter o "status quo" - ou seja, 91% de homens presidentes de Câmara no todo nacional e uma percentagem superior, a rondar os 100%, nas capitais de distrito, nas mais importantes cidades. Se a questão fosse, sobretudo, de "mentalidade", de "aceitação social", de "socialização", como pretendem alguns doutos investigadores, caso de Luís de Sousa (Instituto de Estudos Sociais), ou de "tradições preconceituosas", como defende Sandra Ribeiro, a Presidente da CCIG, o fenómeno deveria sentir-se muito mais no mundo rural do que nas grandes urbes cosmopolitas! Aquelas condicionantes terão, sem dúvida, algum peso, mas verdadeiramente determinante é a organização partidária, o "baronato" instalado nas estruturas locais, que se defende "com unhas e dentes" da abertura desejada pelas cúpulas de Lisboa (e não em todos os quadrantes, como sabemos, mas, pelo menos, em alguns). Di-lo, claramente, um sociólogo, um académico com grande experiência de governo e parlamento, António Barreto: "o sistema político e social está organizado de forma a favorecer os homens. O menu de escolha, de oferta, está enviesado a favor dos homens. Mantém o predomínio masculino". A palavra chave é "menu de escolha". A nível nacional, para o Parlamento e para o Governo, têm poder decisivo nas escolhas os órgãos máximos dos partidos, o Secretário-Geral ou Presidente do Partido, as Comissões Políticas, o Primeiro Ministro, no seu Executivo e, por isso, a Lei da Paridade é, mais ou menos, respeitada, e o progresso tem sido constante. A nível local, não , pois no "menu de oferta" as mulheres estão (quase) sempre colocadas nas listas o mais abaixo que o "diktat" legal permite. E são cabeças de lista (quase) só em circunscrições onde esse partido não tem perspetivas de vencer... Nas últimas eleições, o PCP escolheu 80 mulheres cabeças de lista, o PS 44, o PSD 31, o Chega 30, o BE 27, o CDS 17, o PAN 13, a IL 6, o Livre 3. Contas finais elucidativas: mais de 250 candidatas à presidência da Câmara e apenas 29 eleitas... 3 - No Porto e arredores, como vamos, neste campo? Tal como em Lisboa, nunca no Porto se elegeu uma mulher para a presidência da Câmara, E, nas cidades vizinhas, a notável exceção é Matosinhos. Espinho constitui, também, caso raro, pois no seu historial já conta com uma antiga Presidente, Elsa Tavares, que a partir da Vice- presidência ascendeu ao cargo e, com um brilhante desempenho, abriu caminhos ainda não trilhados por nenhuma outra senhora. E, atualmente, apresenta um Executivo camarário que cumpre plenamente os ditames da Lei da Paridade, com 4 homens e 3 mulheres. Em termos da maioria socialista, é rigorosamente paritário - dois homens e duas mulheres. E, embora, na dimensão qualitativa, os homens ocupem os lugares cimeiros, as Vereadoras possuem currículo que permite esperar um desejável equilíbrio na obra a fazer pela terra. No "ranking" da Igualdade de género em Executivos camarários (num pequeno, mas significativo círculo de concelhos que considerei neste levantamento (para além de Porto e Espinho, Gaia, Gondomar, Matosinho e Maia),só Gondomar apresenta uma maioria de mulheres, 6 em 11. Segue-se Espinho, com 3 mulheres em 7. Os restantes ficam aquém de expetativas e regras, se não nas listas, nos resultados finais, que são os seguintes: Porto - 5 mulheres em 13; Matosinhos - 4 em 11; Gaia - 3 em 9: Maia - 3 em 11.` Uma referência é também devida ao contributo de cada partido no combate à desigualdade de género. O PS, que tem sido o grande paladino do sistema de quotas, levará alguma vantagem neste campo, mas diga-se, ao contrário do que se passa nas eleições nacionais, irregular e globalmente escassa. Neste quadro parcial, a ele se deve o bom posicionamento de Gondomar e Espinho, mas na Maia, em Matosinhos, em Gaia e no Porto de outro tanto se não pode vangloriar.. Uma última nota para uma incontornável comparação Norte/Sul, ou melhor, Porto/Lisboa. Na capital, o PSD não só venceu a Câmara, como respeitou a quota (3 vereadoras em 7). E no total, o resultado estatístico é de quase paridade - 8 mulheres e 9 homens. Temos de reconhecer que, neste aspeto, a capital fica bem melhor no retrato...

TÓQUIO AS AURORAS POR DESCOBRIR in ETC e TAL jornal agosto 2021

TÓQUIO 2021 AS AURORAS QUE FALTA DESCOBRIR 1 - A participação portuguesa nos últimos jogos olímpicos é incensada pela generalidade dos políticos, dos comentadores desportivos, como "a melhor de sempre". Dir-se-ia que marcou a transição para um patamar de desenvolvimento qualitativo. Pura ilusão... Na realidade, continuamos exatamente aonde estávamos antes - na cauda da Europa, em termos de investimento nas diversas modalidades desportivas (menos de metade da média europeia). de formação escolar): A Educação Física é menorizada nos "curricula" escolares, a compatibilização da vida desportiva e académica nas Universidades é descurada. É mínima a prática do exercício físico na infância, na juventude e em todas as idades é mínimo, como mostram as tabelas de comparação a nível internacional. Em suma, vivemos pouco acima do grau zero, no domínio da cultura desportiva, cuja falta é revelada pelo somatório de todas as referidas e muitas mais deficiências, com inevitável repercussão na "performance" global em alta competição. Mais um deprimente sinal nos foi dado, recentemente, pela despreocupação com que a DGS, o Ministério da Educação, os próprios professores encararam a rotura da prática desportiva durante a pandemia, dentro e fora das escolas, em absoluto contraste com o alarme provocado pelo encerramento das aulas e a necessidade de recorrer a ensino não presencial...Ora, num balanço final, o que terá feito dano maior? Ter-se-ão perdido mais futuros doutores e engenheiros do que futuros campeões? E provocado mais insucesso escolar ou mais abandono desportivo? Perguntas para as quais não tenho resposta - só uma certeza: o desporto amador, o desporto para todos e até o desporto profissional foram altamente negligenciados e prejudicados. Há no governo um denominado "Secretário de Estado do Desporto", que não se sabe para o que serve, nem o que faz. 2 - A proclamada excecionalidade da participação nacional em Tóquio é relativa aos nossos próprios resultados olímpicos recentes, que, quando positivos, oscilam modestamente entre as duas ou três e estas celebradas quatro medalhas - parcas e limitadas ao atletismo em modalidades individuais, a evidenciar o mérito de cada atleta (e, eventualmente, dos seus clubes), muito mais do que o mérito de um projeto ou estratégia dos poderes públicos. Em boa verdade, na Europa, só estamos à frente de quatro países com populações entre três, seis ou cerca de vinte vezes inferiores à nossa (a Lituânia, com 2.794 milhões de habitantes, Chipre com 1, 224.216, o Luxemburgo com 643.196 e Malta com apenas 502, 633). Muito se realçou, igualmente, o caráter "inclusivo" da delegação portuguesa, com esse adjetivo querendo significar a presença de estrangeiros naturalizados e de cidadãos de origem africana. Muito me regozijo com o facto de haver nesta modalidade maior abertura para o reconhecimento da dupla nacionalidades e para a atribuição do passaporte português. do que há, por exemplo, no futebol profissional, onde tanta polémica causou a justíssima chamada de Deco e de Pepe à seleção - dois brasileiros natos, que sempre deram provas de excelência desportiva e de dedicação à camisola das quinas (enfim, penso que o mesmo talvez não tivesse acontecido se representassem clubes de Lisboa, como é o caso de Pedro Pablo Pichero, de Nelson Évora, de Jorge Fonseca e como foi o do inesquecível Francis Obikwelo...). Digo-o com todo o apreço pelos clubes que continuam a oferecer, hoje, medalhas e campeões de atletismo ao país, caso do SCP e o SLB, como, noutros tempos, o FCP o conseguiu, com os seus históricos títulosno feminino - o ouro de Aurora Cunha, Rosa Mota e Fernanda Ribeiro. E saúdo, naturalmente, o fenómeno de preponderância dos afro-portugueses na vanguarda do atletismo nacional, com três em quatro das nossas medalhas de Tóquio, a exceção sendo a do canoísta Fernando Pimenta, com fundas raízes nortenhas em Ponte de Lima, embora. do ponto de vista clubístico, se tenha mudado para sul. E só de Pedro Pichardo se pode afirmar que foi formado no estrangeiro (em Cuba) e se naturalizou já com um brilhantíssimo palmarés. Jorge Fonseca veio de São Tomé para Portugal com 11 anos e Nelson Évora, nascido em Abijan, de pais cabo-verdianos, também muito cedo aqui se integrou. É portuguesa de ascendência angolana, Patrícia Mamona, a única mulher neste glorioso quarteto de campeões, com uma medalha de prata que vale mais do que o ouro. Ela é a pura encarnação do espírito olímpico, da vontade de se transcender a cada novo dia. Teimou em praticar o triplo salto e em atingir o Olimpo numa modalidade para a qual, sendo uma predestinada, lhe faltava, diziam-lhe todos, uma característica física, a altura. Mede apenas 1,66 e, não é demais destacá-lo, e só perdeu para uma gigante de quase dois metros (mais precisamente 1, 92). Há uma outra medalha que Portugal não pode reclamar oficialmente, mas que é um pouco sua. Uma medalha de ouro, de que pouco se falou; a de Júlia Grosso, jogadora de 20 anos (da Universidade do Texas), que apontou, na final, de "penalty", o golo decisivo para fazer da equipa de futebol feminino do Canadá campeã olímpica! 3 - O que motiva, num país de mentalidade tão avessa ao fomento da atividade física, na infância, na escola - que é onde, por todo o lado, se começa - os futuros campeões, rapazes e, igualmente, raparigas, (feito maior numa sociedade ainda tão misógina)? O que leva crianças de minorias étnicas, em quase todos os outros domínios marginalizadas, assim como outras de meios rurais, não menos desprivilegiadas, a superarem horizontes estreitos pela glória desportiva? É uma investigação que está por aprofundar no meio académico... O historial vai.se escrevendo, casuisticamente, por comparação de semelhanças e diferenças de circunstâncias, e precisa de ser bem melhor analisado, melhor contado, sem deixar nenhum nome para trás.Talvez, um dia, possam, todos esses percursos e personalidades figurar num grande museu nacional do desporto (um "hall of fame" português). Até lá, cada terra vai homenageando os seus heróis, como faz Espinho, ao guardar a memória de António Leitão no seu Fórum, Ponte de Lima com o projetado Museu Pimenta, o Porto com o Pavilhão Rosa Mota ou a Madeira na denominação do Aeroporto Cristiano Ronaldo ... Tóquio 2021 deixa-nos, pois, contentes com os atletas, em concreto, com os medalhados, com os que só não o foram por uma questão de má fortuna num momento decisivo, e com os que trouxeram diplomas olímpicos - indicadores bastante mais numerosos, promissores de qualidade e de potencial, - mas, bem vistas as coisas, globalmente descontentes com a falta de progresso geral, com o imenso desperdício de génios por achar. Lembremos o exemplo da campeoníssima Aurora Cunha, que, por sinal, nunca foi feliz nas suas várias participações olímpicas, mas ganhou ouro de igual valor em campeonatos da Europa e do Mundo (tricampeã mundial, na década de oitenta) e muitas maratonas importantes, com a camisola azul e branca do FCP ou com a da seleção nacional. A sua biografia, "Uma vida de paixões" é de leitura obrigatória. Aurora Cunha é um exemplo raro e intemporal, na sua trajetória de desportista e de cidadã, defensora dos valores do Desporto. Foi uma menina nascida com talento inato, uma jovem que teve a oportunidade de o cultivar graças a inexcedível energia e coragem, e, com o passar dos anos, cada vez mais é uma mulher de causas - o outro nome das suas paixões. . Sabem como foi descoberta para uma tão fantástica carreira? Por mero acaso, quando à saída da igreja, numa tarde de verão, alguém se lembrou de chamar adolescentes de ambos os sexos, para uma corrida popular, no estádio da terra. Aurora, de saia de malha e sapatos de cabedal, ganhou, destacadamente, à frente dos rapazes, muitos deles equipados a rigor. Tinha 14 anos, era operária fabril e sempre gostara de correr, sozinha, por montes e vales. O Clube Juventude de Ronfe logo ali a convidou para treinar e levar a competições, e, pouco depois, veio o contrato com o FCP. Após a sua primeira grande vitória oficial, o "Mundo Desportivo" de 9 de junho de 1976 escrevia: "Quantas Auroras em potência haverá por esse país fora?" Quase meio século volvido, em Portugal, a pergunta mantém toda a sua pertinência

AMM Um percurso singular - in FACES DE EVA, 2021

ASSOCIAÇÃO "MULHER MIGRANTE" - UM PERCURSO SINGULAR 1 - NASCIDA COM AS PRIMEIRAS POLÍTICAS DE GÉNERO PARA A EMIGRAÇÃO A Mulher Migrante Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade" (AMM), foi criada em 1993, por escritura pública de 8 de outubro de 1993 e tem, estatutariamente. por objetivos principais aqueles que a sua própria designação sintetiza: o estudo da problemática das migrações femininas; a cooperação com mulheres profissionais e dirigentes de associações das comunidades portuguesas do estrangeiro e das comunidades de imigração em território nacional: o apoio à integração das mulheres nas sociedades de acolhimento, através de uma ativa participação em todos os domínios, e dá igual destaque ao combate às "idéias e movimentos xenófobos" (Gomes, 2014, p 46). . É uma colectividade que se vê como integrante dos movimentos de reivindicação da igualdade de sexos, no particular domínio das migrações, o mais esquecido não só pelos governos como pelas diferentes correntes do sufragismo novecentista. O que confere à AMM a sua identidade no universo associativo português não é tanto o seu escopo, mas o modo como o desenvolve na área concreta em que interage, e as alianças através das quais o prossegue. Entre as suas singularidades poderemos enumerar: o ser uma associação mista, formada por mulheres e homens irmanados nos mesmos objetivos;.o estar sediada no país, mas voltada para a Diáspora, (em particular, a feminina), embora atenta, também, a fenómenos de discriminação em território nacional - em relação a imigrantes e a emigrantes regressadas e suas famílias; promover, através das fronteiras, um "encontro de mundos" que tendem a isolar-se - os de emigrantes e não emigrantes, de mulheres e homens, de académicos e gente com experiência vivencial do fenómeno migratório ou de diferentes gerações; o combinar, estrategicamente, a actividade de estudo com a ação concreta, a mobilização para a igualdade, pela via de um “congressismo”, renovado à medida de realidades atuais de discriminação sexista; a filiação num projeto anterior à sua criação, que ainda por cumprir, visando, por um lado, mobilizar as portuguesas para a intervenção cívica e, por outro, reclamar a implementação de políticas públicas para a igualdade das comunidades do estrangeiro. A vontade expressa de lançar uma organização internacional de Portuguesas da Diáspora havia sido anunciada, nas conclusões no "1º Encontro de Mulheres no Associativismo e no Jornalismo", promovido, em 1985, pela Secretaria de Estado da Emigração, em Viana do Castelo (Centro de Estudos da Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas, 1986, p 138). Veio a ser concretizada, decorrida quase uma década, pela "Mulher Migrante", fundada por mais de um terço das participantes do 1º Encontro. Encontro pioneiro com que o nosso "antecipou, assim, em 10 anos, o que haveria de ser uma das principais recomendações da IV Conferência Mundial sobre as Mulheres organizada pelas Nações Unidas, em Pequim, em 1995: a indispensabilidade do empoderamento das mulheres, de que são pressupostos a visibilidade e o reconhecimento" (Cunha Rego, 2015, p 24). Portugal era um protagonista improvável deste iniciativa, dada a constância de políticas discriminatórias de interdição ou forte limitação da emigração feminina, antes da revolução de 1974, e, seguidamente, em democracia, a mera proclamação formal da Igualdade, desacompanhada, nas comunidades do estrangeiro, de qualquer ação positiva, A verdade é que o início do processo se deve ao rasgo de uma das primeiras mulheres a ter assento no Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP), órgão consultivo do Governo. O CCP era composto por conselheiros eleitos em colégio eleitoral associativo e por jornalistas - todos homens, em resultado do sufrágio, de 1981. Ficava, assim, gritantemente evidenciada a marginalização a que estavam votadas as mulheres no universo associativo das comunidades. Idêntico foi o resultado das eleições de 1983 exclusão, mas na quota do jornalismo surgiram as primeiras mulheres, apenas, duas. E bastou uma, a jornalista de Toronto, Maria Alice Ribeiro, para fazer a diferença, com a sua proposta da realização de um congresso de mulheres, onde pudessem ter a presença e a voz, que lhes faltava no "Conselho". A Secretária de Estado da Emigração, por inerência Presidente do CCP, encetou, de imediato, a preparação do Encontro, que reuniu, no ano seguinte, dirigentes associativas e jornalistas, num formato de audição semelhante ao do CCP, o que permitiu às participantes fazer amplo e inovador levantamento da situação das diferentes comunidades e dirigir ao Governo um conjunto de significativas recomendações. Estava dado o primeiro passo na implementação de políticas de género. A convocatória anual de uma "Conferência para a Participação das Mulheres", prevista na órbita do CCP, foi inviabilizada pela queda do Governo, seguida, a curto prazo pela do CCP. E, por isso, o segundo passo das políticas públicas, neste campo, que pareceria fácil, tardou 20 anos e seria, novamente, impulsionado, de fora, por proposta da "Mulher Migrante", justamente a coletividade que se considera herdeira da inesperada modernidade desse passado. 2 - Cumprir O PROJETO A associação fundada em 1993, integrava mais de um terço das intervenientes do Encontro de Viana, e apresentava-se como o fórum interassociativo para a cooperação das mulheres da Diáspora, nos termos ali delineado, com exceção da já assinalada singularidade de uma plena abertura a participação masculina, que se deseja tendencialmente paritária (muito embora seja ainda minoritária) e que, de modo algum, se pretendeu impor nas comunidades, onde se reconhece,não haver as mesmas condições para operacionalizar a opção. As mulheres portuguesas nas Comunidades do estrangeiro quase sempre responderam à sua exclusão no associativismo masculino ou com a criação de estruturas próprias, de fins predominantemente beneficentes e de entreajuda (de que são exemplo as grandes sociedades fraternais femininas da Califórnia, a Sociedade Beneficente das Damas Portuguesas de Caracas, a Liga da Mulher da África do Sul), ou aceitando participar no movimento associativo misto "a latere", em departamentos femininos (situação muito comum, sobretudo, na América do Sul). É um quadro em mudança, com a gradual e lenta ascensão das mulheres ao dirigismo, que outrora lhes era vedado num associativismo que impunha na "casa coletiva" que é o centro de convívio, a mesma divisão de tarefas, tradicional no interior de cada família... Organizações focadas na reivindicação da igualdade, que prolonga, adaptando-a a novas realidades o "congressismo" feminista da primeira metade do século passado, eram praticamente inexistentes antes do Encontro de Viana, e, posteriormente, da ação da AMM, nascida dessa dinâmica, em rutura com o passado (note-se, porém que não só o Estado, mas também o movimento sufragista ignorou, um pouco por todo o lado, a situação específica das mulheres expatriadas). . A AMM desempenhou ao longo de mais de 25 anos esse trabalho de mobilização, em duas fases distintas: na primeira década de atividades, com ação mais centrada dentro de fronteiras, em articulação com a Comissão para a Igualdade e os Direitos das Mulheres (CIDM), e em coordenação com delegações e congéneres do estrangeiro (cada qual atuando no seu círculo territorial), na segunda, iniciada em finais de 2005, convertida em parceiro privilegiado de sucessivos governos na implementação de políticas de promoção da Igualdade de género na Diáspora portuguesa. A PRIMEIRA DÉCADA 1995-.2005 A AMM tem existência jurídica desde 1993, mas só no ano seguinte, se apresenta em Barcelos, conjuntamente com a Associação Comercial e Industrial num colóquio sobre a problemática do regresso, ciente de que, para as mulheres, as mais das vezes significa "regressão", perda de estatuto consolidado no estrangeiro, com a independência económica de um salário, e a frequente liderança do processo de integração de toda a família. Em março de 1995, firma a sua imagem com a organização, do maior congresso da Diáspora feminina até hoje levado a cabo no País, sob o lema "Diálogos de género e geração". Contou com apoios de grandes Fundações, a Gulbenkian, a Luso Americana, e a Oriente, e, também do Governo, central e local, traz a Espinho, personalidade dos cinco continentes e os grandes nomes na investigação da emigração, estudantes, técnicos, ex. emigrantes, políticos, representantes das Autonomias, num debate de uma intensa semana de trabalho. Com o acento posto na intergeracionalidade, a sessão inicial foi presidida pela Secretária de Estado da Juventude, a de encerramento pela Drº Maria Barroso, que, desde então, aderiu ao projeto e nele viria a ter papel de primeiro plano. O Encontro Mundial "serviu para dar a conhecer a nossa Associação, foi também a concretização de uma das recomendações do "Encontro de Viana" (Graça Guedes, 2015, p 27), foi prova das virtualidades da novíssima associação, permitindo-lhe o enorme alargamento da sua rede de cooperação e matriz de futuro. Desta década, a AMM chamaria à interlocução sobre a facticidade das migrações femininas, as suas congéneres da Diáspora, associações de imigrantes lusófonos, políticos, nomeadamente autarcas e serviços regionais, administração pública e investigadores (muitos dos quais se tornaram seus ativos membros). A sistemática publicação de atas e comunicações de conferências e colóquios era seguida de apresentação em vários pontos do país, dava, assim, azo à multiplicação dos debates sobre as migrações, femininas e globais. O país estava a converter-se em polo de atração maciça de migrantes vindos do leste europeu, e revelava impreparação no seu acolhimento e legalização. A AMM foi das primeiras ONG' a promover junto do poder local, ações de sensibilização e de esclarecimento. A CIDM continuava a ser parceiro privilegiado e na presidência de Maria Amélia Paiva, tomou a iniciativa (inédita no historial da instituição) de promover um colóquio sobre: "Mulheres Migrantes - Duas faces de uma realidade". A AMM, representada pela presidente Rita Gomes, fez parte da organização O décimo aniversário da AMM, comemorado em 2004, num grande encontro internacional, seria patrocinado pela FLAD e pelo SECP Carlos Gonçalves, num envolvimento que prenunciava já o recomeço de preocupações com a problemática da igualdade.. UM NOVO CONGRESSISMO PARA A IGUALDADE Dos "Encontros para a Cidadania" (2005.2009) aos Encontros Mundiais de 2011 e 2013 Em 2005, a AMM entrou, numa segunda fase, marcada pela estreita cooperação com a SECP, para a execução de um ambicioso plano governamental para a promoção da igualdade. De facto, foi a Associação que desencadeou o processo, ao propor ao Secretário de Estado António Braga a comemoração do 20º aniversário do mítico Encontro de Viana, em novo Encontro para fazer o ponto de situação das desigualdades subsistentes. O Secretário de Estado quis ir além de um grande evento isolado, e, inesperadamente, convidou uma pequena (embora singular) associação, como "parceiro privilegiado para o desenvolvimento de políticas de género" (Aguiar, 2011, p 109), incumbindo-a de organizar, ao longo do seu mandato (2005-2009), reuniões de mobilização para a vivência da Igualdade, Governo e AMM optaram pelo modelo de "congressismo" com que fizeram história as organizações feministas do começo de novecentos, adaptando-o a novos tempo e contextos. Com a designação de "Encontros para a Cidadania - a Igualdade entre Mulheres e Homens, esses "fora" de livre análise, diálogo e mobilização para a mudança, tiveram sempre a presença de um membro do Governo, António Braga ou Jorge Lacão (Secretário de Estado da Presidência, com o pelouro da Igualdade), e de Maria Barroso, Presidente de Honra, e assumiram caráter internacional (com representação das comunidades de cada uma das grandes Regiões: América do Sul, (Buenos Aires, em 2005), Europa, (Estocolmo, em 2006), América do Norte, costa Leste, (Toronto, em 2007), África (Joanesburgo) e América do Norte costa Oeste, (Berkeley), em 2008. A organização esteve a cargo de Associações locais - a AMM da Argentina, a Federação das Mulheres Lusófonas (PIKO), a Cônsul- Geral, antiga presidente da CIDM, Maria Amélia Paiva, coadjuvada por várias associações luso-canadianas, a Liga da Mulher da África do Sul e Deolinda Adão da Universidade da Califórnia-Berkeley (também associada da AMM). É de realçar o facto de todos os eventos terem tido, em proporção variável, significativa participação de homens, do mundo associativo, académico e político, um positivo sinal dos tempos e, em alguns casos, também de políticos daqueles países. Em 2009, em Espinho, o" Encontro dos Encontros", com a intervenção dos relatores de cada um dos "congressos" e muitas dezenas de participantes (predominantemente investigadores), permitiu fechar ciclo, em jeito de balanço, e olhar em frente, com a propositura de outras medidas Em 2011, logo após tomar posse, o Secretário de Estado José Cesário chamou a AMM á co- participação no seguimento das políticas encetadas pelo predecessor, com aceleração de ritmo e de frequência das acções, essenciais à mobilização imparável e crescente. Com ele (2011-.2015), o "congressismo" atingiu o seu ponto alto, com a alternância bienal de congressos no País (em 2011, na Maia, lançando um olhar retrospetivo e prospetivo sobre as nossas migrações, começou por uma homenagem a Maria Archer e Maria Lamas, mulheres da diáspora e da resistência, e 2013, no Palácio das Necessidades, falando de novas expressões de cidadania, para além da política e do voluntariado, á cultura, às artes e á economia) e de múltiplos encontros e conferência nas várias comunidades da Diáspora (em 2012, ano europeu do envelhecimento, com o lançamento do Projecto ASAS - Academias Seniores de Artes e Saberes) e em 2014, a comemoração sobre 40 anos de migrações em liberdade – seu significado no Direito e na Vida - um ciclo de conferências, que teve a abertura presidida pelo SECP por Maria Barroso, no Palácio das Necessidades e prosseguiu, nas comunidades da Europa e das Américas, e, através de docentes, que são associadas da AMM na universidades de Berkeley, Toronto, Sorbonne, UAB- Lisboa… O enfoque colocado no associativismo, a partir dos debates do 1º Encontro, justifica-se pela simples constatação de que é, em regra, mais fácil às emigrantes afirmaram o seu estatuto de cidadania nas sociedades de acolhimento, quando regidas por normas e costumes mais igualitários, do que no interior das comunidades portuguesas, e suas instituições, onde continuam a ver-se segregadas. E, por isso, se entendeu que a ação governamental, deveria incidir nesse terreno, onde não necessitava de diálogo bilateral com outro governo porque tudo se passava - e se passa - entre portugueses.Tem sido esse, também, o domínio prioritário de ação da AMM, cuja vocação matricial é a cooperação interassociativa e transnacional e uma das constantes da sua atuação tem sido a criação de oportunidades para reflexão e debate sobre a reformulação dos papéis de género ou o reconhecimento do papel das mulheres em cenários improváveis onde, afinal se conclui que tem todo s cabimento, apesar de nunca antes haver sido tentado. Por exemplo nos festejos de 10 de junho, que, em muitas comunidades, são manifestações de vulto, com programação cultural variada durante dias, quando não semanas. As primeiras experiências ocorreram em Newark, nas grandes comemorações organizadas pela Fundação Coutinho, e em Montreal, em conjunto com o Consulado, o CCP e o Carrefour Lusophone, uma associação de jovens. O mesmo aconteceu em outros eventos das comunidades, em que outras são normalmente as temáticas tratadas: os Encontros (anuais) das comunidades do Cone Sul da América, a Convenção da Associação dos Portugueses Estrangeiros (APE), Bienais de Artes Plásticas, como as de Espinho (em 2013) e a de Gaia (em 2019), as celebrações do Dia Internacional da Mulher, onde, em Portugal, raras vezes as emigrantes têm visibilidade - e a a AMM trouxe ao presente a memória de Maria Archer, de Maria Lamas ou do do sucesso coletivo de toda uma geração que partiu "a salto" para França. Inédito foi, também, envolver a Federação das Associações Portuguesas de França num colóquio em que foram homenageadas mulheres presidentes de associações na região de Paris, (tendo o êxodo desse primeiro colóquio levado a "Federação" integrar na sua agenda anual a efeméride, como ocasião de balanço sobre o estado das discriminações). Na mesma linha de desocultar o papel real das mulheres migrantes, ou de denunciar a distorção da sua imagem, se integraram os seminários sobre "Mulheres Migrantes - os multimédia enquanto espaços de ação e representação", realizados, no Canadá e EUA, para audiências de jornalistas, investigadores, e estudantes, na U Massachusetts-Dartmouth, na Rutgers University, de Newark e em Toronto. Não menos importante tem sido, como é óbvio, o trabalho de cooperação com ONG's e movimentos femininos, como "A vez e a voz da Mulheres" , "A voz das Avós", "Mulheres em Movimento", para além dos já mencionados e, naturalmente, da rede de instituições e individualidades associadas à AMM. A preocupação de pôr o acento tónico nas questões de cidadania e a de valorizar todas as formas de militância feminina mais tradicionais somaram-se sempre na trajetória da AMM. Em 2015, a fraca proporção de mulheres eleitas para o CCP, ainda longe da meta da paridade, mostra, agora, como em 1985, onde estão, ou não estão, as mulheres da Diáspora, mas a vitória retumbante das dirigentes da AMM nas eleições da Argentina e da Venezuela é reveladora da importância da vertente do associativismo que vem fomentando. Mais do que enumerar a longa lista de realizações e publicações da "Mulher Migrante", os muito nomes que a marcaram, desde a fundação - lembraremos só a memória de Maria Barroso, Rita Gomes e Alice Ribeiro - procuramos aqui focar momentos-chave de uma caminhada, mostrar o espírito que a animou, os meios a que recorreu, que foram afinal, a forma como fez valer as causas nas circunstâncias que se lhe ofereceram.

A AVÓ MARIA AGUIAR in Os avós e nós

A AVÓ MARIA A Avó Maria Aguiar era figura pública proeminente em Gondomar, vila antiga, na fronteira sudeste do Porto. Os seus sete filhos, incluindo minha mãe, e todos os netos eram referidos, falados e considerados em função dela, para sempre umbilicalmente ligados à aura e ao nome da matriarca, quase sem luz própria, por mais brilhantes que fossem. Nasci na sua casa, cercada de jardins murados, com um mirante florido na frente de rua e pomares e vinhedos a perder de vista, por detrás da mansão grande de "brasileiro", de cor rosada e venezianas verde escuro. A Vila Maria. Aí, com ela e meus Pais, fui tão feliz quanto se pode desejar, nos primeiros oito anos de vida. Com ela, aprendi a gostar de histórias, (e mais de narrativas engraçadas sobre si e a família do que de contos infantis), a declamar poemas de Guerra Junqueiro, exercitando a memória em alguns dos que parecem intermináveis ("O melro, eu conheci-o, era preto, brilhante e luzidio... ), a bordar pequenos quadrados de linho a ponto de cruz, com o mínimo possível de habilidade inata. E a comportar-me surpreendentemente bem, tanto em procissões e novenas de Igreja, como nos lanches das confeitarias portuenses, a Villares ou a Ateneia, onde lhe fazia boa companhia. Criança rebelde, com reputação de indomável, várias vezes, emboscada atrás de um móvel, ou de uma porta, ouvi a Avó levantar a voz para me defender, dizendo: "Ninguém compreende esta menina! É preciso explicar-lhe a razão das coisas. Se ela perceber, aceita tudo muito bem". Na verdade, eu gostava de satisfazer expetativas, era sempre muito capaz de corresponder, na ação imediata, ao pior ou ou melhor que esperavam de mim... A esta persuasiva pedagoga e querida Avó devo algumas das mais extraordinárias alegrias da infância, entre as quais se contam: a compra de uma carteirinha de verniz vermelho, usada a tiracolo, (a contragosto dos pais, naturalmente...), a oferta de um grande boneco pretinho, por muito tempo mirado e namorado na montra do bazar de Sá da Bandeira, e o traje de anjo amarelo, de grandes asas brancas, com que desfilei pelas ruas de São Cosme, em cortejo procissional, depois de vencida, uma vez mais, pela avó a relutância de mãe e pai em satisfazer tão ardente e desvalorizada ambição infantil. Todavia, à Avó devo, igualmente, a remota origem do meu feminismo - o que não era, de todo, resultado que ela desejasse. De uma família de mulheres fortes, as mais heterodoxas das quais pareciam saídas de romances de Agustina, herdeira da sua fibra, era, porém, ela própria, um assumido expoente de conservadorismo e da prática das virtudes consideradas femininas, primeiro durante um casamento de dezasseis felizes anos, e, depois, ao longo de uma sofrida viuvez de mais de meio século. A sua influência na "res publica", crescera circunscrita ao pequeno círculo bem frequentado e bem visto das obras paroquiais, onde debutou, e extravazou, numa dinâmica natural, para o da comunidade, como um todo, do campo da assitência e do atendimento de casos sociais, ao da cultura, organizando peregrinações, a par de récitas e concertos beneficentes, cujos ensaios, muitas vezes, decorriam na sua sala do piano (piano que era emprestado para os espetáculos, fazendo, entre a Vila Maria e o Cine Teatro Nun' Álvares, uma curta e improvável viagem em carros de bois, necessariamente seguida de intervenção de um afinador). Outras vezes, as arcadas e a espaçosa adega do piso térreo transformavam-se em estaleiros de produção de carros alegóricos, enfeitados de flores de papel, confecionadas, aos milhares, por ruidosos bandos de meninas, a que as netas tinham licença de se juntar. Para tudo havia regras, naquele mundo que se movia, sob o impulso de Maria Aguiar, a intransigente defensora do recato e das "boas maneiras" feminis, ao serviço das quais, tantas vezes, brandamente, me repreendia: "as meninas não fazem isso!". Isso sendo o que era permitido aos primos da minha idade, como subir às árvores do jardim, ou até aos telhados, saltar de carros eléctricos em andamento, jogar à bola com os garotos da rua... Enfeitar altares ou colar florinhas de papel colorido em painés, ao som de canções populares, sim, eram tarefas de meninas... O plural "as meninas" intrigava-me... A argumentação da Avó, neste capítulo, não me soava convincentemente, não respondia aos meus "porquês"... Achei por bem provar, a mim mesma e aos outros, pela "praxis", que "as meninas" podiam tornar-se, com o continuado exercitar, tão aptas como os rapazes a cumprir objetivos nosmuitos domínios interditos. E assim me converti, a partir dos seis ou sete anos, ainda que sem consciência clara da existência das questões de género, em feminista praticante... Por sinal, os homens da família, o pai e o avô paterno, o inequecível Avô Manuel, cedo me iniciaram na paixão pelo cinema, pelo teatro e pelo futebol, não mostrando partilhar as preocupações da avós, ambas a Avó Maria e a Avó Olívia, em completa sintonia nas suas teses sobre a construção cultural do feminino... . Numa altura em que tanto já ressentia, em causa própria, as discriminações de sexo, não me ocorreu, nunca, indagar o porquê da posição singular que a Avó Maria ocupava na sociedade local, a tal ponto a via como decorrente de uma autoridade natural, de um estatuto seu, inquestionável. Só muito mais tarde me apercebi de que o ganhara num trabalho incansável, e interminável, que, mais do que vocação, fora destino, fatalidade de se ver mulher só, ter de encontrar os modos de se realizar numa outra vida. Ela e a “sua circunstância”… Maria da Conceição Barboza Ramos era a mais nova de oito filhos de Carolina Ferreira Ramos, (de uma família enraizada, há séculos, em Gondomar) e de Joaquim Mendes Barboza, o tabelião, que viera do norte (Bitarães, Paredes), para nunca mais deixar a terra de adoção. Em tudo fora menina do seu tempo e condição social. Depois da escola primária, recebeu, em casa, os ensinamentos dos pais e professores, à espera de encontrar noivo. Das três raparigas, só uma, Glória, se formou na Escola do Magistério, no Porto, e nunca exerceu. A tuberculose levou-as aos 21 anos. O curso, pela raridade, bastou para que fosse uma das poucas mulheres biografadas na monografia “O Concelho de Gondomar”, ao lado do pai, irmãos e vários parentes masculinos, com largo “curriculum” de intervenção cívica e política. A Maria, jovem inteligente, prendada, e lindíssima, não faltaram pretendentes. A sua escolha recaíu num conterrâneo emigrado no Brasil. António Carlos Pereira de Aguiar, nas suas próprias palavras, pessoa “muito ilustrada”, homem bonito, com enormes e expressivos olhos verdes, como nunca vira outros. O Avô António partira para o Rio de Janeiro em 1996, com 16 anos, levado por um dos seus quinze irmãos, João, bastante mais velho, quase com idade para ser seu pai, e, por essa altura, já um muito próspero joalheiro. O jovem António Carlos, revelando-se exemplar discípulo do melhor mestre, numa época aurea de desenvolvimento do país, como foi, para o Brasil, o início de novecentos, fez fortuna rápida e honesta, e era, então, o dono de uma joalharia da moda, na rua do Ouvidor. Sendo a Avó Maria uma incondicional entusiasta de viagens e excursões, de muita movimentação e convívio social, até aos seus últimos dias dos seus mais de noventa anos, é possível que a perspetiva de viver, por uns anos, no mundo novo brasileiro, com frequentes visitas à sua terra, a bordo de esplêndidos paquetes, tenha sido fator de peso na aceitação daquele pedido de namoro, logo depois convertido em pedido de casamento. Da parte do Avô Aguiar, fora o "coup de foudre", "amor à primeira vista" e até que a morte os separou... No mais clássico modelo de papeis conjugais, com rígida divisão de tarefas, uma união perfeita! Dos oito filhos, só três nasceram no Rio. Maria preferia ter os meninos em São Cosme, no conforto da casa materna... Vinha o marido, de bom grado, trazê-la e buscá-la e, durante o tempo de separação, escrevia-lhe extensas cartas de amor, em tudo idênticas às dos tempos idos de noivado...O noivado durou dois anos e está documentado por uma preciosa sucessão de postais ilustrados, com breves mensagens, que diríamos uma espécie de “twits” do início do século passado, que serviam para troca de saudações amorosas e anuncio do próximo envio de longas cartas,infelizmente, quase todas desaparecidas.... A Gondomar regressaram em 1920, e viveram, por breves anos, na terra e na casa dos seus sonhos. A morte súbita do Avô António, aos 46 anos, deixou a viúva num estado de depressão profunda, que ameaçava eternizar-se. A senhora elegante e mundana das salas de festas transformou-se em vulto negro e austero (não menos elegante) dos salões paroquiais... Os retratos contam, sem necessidade de palavras, a tragédia da sua vida, pela forma e colorido dos chapéus, das abas imensas das "capelines" floridas da senhora casada aos pequenos chapéus de viúva, rentes à testa, enfeitados por uma simples "aigrette" (a que chamávamos, na sua ausência, "os quicos da Avó"). O momento da grande mutação foi o da perda do papel de esposa perfeita, em que teve de se assumir como mãe e o pai de sete crianças (difícéis e desafiantes...), com idades entre os dois meses e os catorze anos. Do torpor de muitos, muitos meses saiu, buscando orientação na fé, nas crenças e práticas religiosas, fonte inesgotável de novas energias, e razão de viver, intensamento, para a família e para os outros.. Fora a mulher do empresário António Aguiar, que o seu caráter extrovertido e generoso, tornara tão estimado e popular no Rio de janeiro, como em Gondomar. Enquanto a sua memória permanecia entre os daquela geração, foi a sua respeitabilíssima sua viúva. E, por fim, ela própria, Maria Aguiar, líder no feminino, universalmente querida e admirada. Protetora dos pobres, confidente e conselheira nas horas difíceis. Do seu apostolado de leiga, da organização de peditórios, peregrinações, festividades religiosas, passara aos domínios adjacentes da animação cultural, organização de récitas e concertos beneficentes, deixando, vir, de novo, à superfície o seu gosto pela música, poesia e teatro, num mesmo quadro de voluntariado socialmente aprovado para as senhoras. Latente, sempre, o culto do marido, simbolizado na sobriedade dos trajes escuros (em que se permitia o roxo e o cinza), ou no cuidado com que podava, por suas mãos, as rosas, com as quais ele se apresentava em exposições, (nunca filhos, netos nem os criados saídos das cadeias lhes puderam tocar). E no uso do seu apelido Aguiar. . O nome que, hoje, descendentes de quarta e quinta geração continuam a usar, preterindo outros, do ramo materno e paterno, apenas por ser o dela. E não só por ter sido essa notável cidadã. Mais ainda, por ter sido a nossa Avô, a prodigiosa contadora de histórias, a grande matriarca, a força que reunia à volta da mesa na casa, que, sendo dela, era de todos, a família inteira, uma família enorme, na intimidade das ceias de Natal ou nas festivas visitas do compasso pascal, em casamento e batizados e em todas as festas que se inventavam para estarmos juntos. Na mais completa fragmentação familiar, que se seguiu ao seu tempo, é ainda, afinal, a memória da Avó Maria Aguiar, que nos reune, à volta do seu nome, numa árvore genealógica de afetos.

ENTREVISTA de A DEFESA DE ESPINHO dez 2020

1 – O Natal está a aproximar-se e a o coronavírus não se vai embora. Tem vivências de outros tempos tão difíceis e delicados? - Estamos a viver nesta quadra do Natal uma realidade de que não existe memória - nem mesmo há um século, durante a "gripe espanhola", no que respeita à mobilidade e paralisia da vida societária. Parece-nos irreal, como se estivéssemos dentro de um filme de ficção científica, não é? E o filme ainda vai a meio, não temos saída para breve e não podemos fazer, a meio, um pequeno intervalo, para conviver à volta de uma mesa. Se o fizéssemos, para gozar o Natal do costume em família alargada, as consequências seriam terríveis. Os responsáveis têm de dizer isto, sem titubear, em vez do discurso facilitista que faz de nós patetas ou crianças grandes - acenando com a miragem de livres celebrações natalícias se nos "portarmos bem" e baixarmos o número de contágios até ao fim da semana anterior. Melhor seria pensar no que vai acontecer na semana ou semanas seguintes, com mais um provável pico de contaminação! É preciso falar claro aos Portugueses, que têm sabido, bem melhor do que as autoridades, tomar as medidas que o bom senso recomenda. Acho que se pode confiar neles, que não é preciso impor as limitações pela força e controle policial, mas que se deve alertar para os perigos. Se me permite, aqui deixo votos de Feliz Natal para todos os espinhenses, este ano vivido mais em espírito do que em abraços... 2 – Ano velho, ano novo! O ano de 2020 será o fantasma de 2021? A pandemia (com maior ou menor dificuldade) será superada? Ou não será assim tão linear… - Infelizmente, já podemos ter uma certeza: uma parte significativa de 2021 será igual a 2020, com máscaras e distanciamento físico. A vacinação em massa é motivo de esperança, se correr pelo melhor. Um "se" complexo... De qualquer modo, como agora todos estamos convertidos em virologistas amadores, eu permito-me avançar a minha previsão: 2021 será dividido a meio, o primeiro semestre igual a este 2020 e o segundo a anunciar a normalização total de 2022! Que bom poder ir a estádios cheios de gente, a lançamento de livros e a exposições, ao cinema Trindade e aos alfarrabistas do Porto, andar sem máscara na rua e sem álcool-gel na carteira, pegar em criancinhas ao colo e viajar para Lisboa, Londres ou Toronto... A "grande vida", a liberdade! 3 – A culpa é do vírus ou é das pessoas? - Olhando o que se passou ao longo destes últimos 10 meses, eu diria que há culpas repartidas. Não somos culpados pelo súbito aparecimento do vírus (ao menos fora do país onde nasceu e cresceu), mas sê-lo-emos, em parte, pela sua persistência. Para já, ele está aí. Veio para ficar. Quando erguemos barreiras, não consegue espalhar-se. Quando baixamos a guarda , multiplica-se vertiginosamente. Culpa dos governos, em primeira linha, por terem tomado medidas ziguezagueantes e dado sinais confusos, como aconteceu em toda a Europa, e não só cá, mas também dos cidadãos, quando se descuidam, por cansaço e impaciência. As chamadas "vagas" da pandemia não se devem ao vaivém do vírus (que permanece, sem mutações de vulto), mas à alternância dos "confinamentos" e "desconfinamentos" apressados... Nada justificou a excessiva abertura no verão, porque o número de casos continuava muito alto. 4 – Tem saudades dos contactos com os emigrantes? A diáspora lusa ainda é o que era? - É verdade que tenho muitas saudades. Desde o início do meu trabalho na emigração, iniciado há exatamente 40 anos, por dever de ofício, no governo e no parlamento, e continuado, até hoje, em "voluntariado", este foi o primeiro ano em que não pude fazer uma só visita a comunidades da emigração! Ia partir, em março, para participar no Dia Internacional da Mulher, organizado pelo jornal "Luso-presse" de Montreal e tive de cancelar a viagem, no último momento. Vou mantendo contactos em debates e entrevistas por "zoom", "facebook", "skype"... São estas novas tecnologias que nos vão valendo! 5 – O que é “ganhou” enquanto secretária de Estado das Comunidades Portuguesas? E o que é ficou por fazer? - Ganhei uma outra visão do nosso País, da nossa gente, do modo como recria espaços de vivência e cultura nos cinco continentes do mundo. Quando dizemos que somos uma "Nação de comunidades", mais Povo do que território, estamos a fazer o retrato de uma realidade, que anda muito esquecida no nosso dia-a-dia, dentro de fronteiras. Raras vezes olhamos esta dimensão, o que ela nos acrescenta e engrandece. Os emigrantes, pelo contrário, são de uma dedicação e solidariedade sem limites para com a terra de origem, e é por isso que a transportam consigo e a recriam, visivelmente, no meio associativo, em manifestações coletivas ... A Diáspora não é uma estatística. Pouco importa, de facto, a quantidade, a mera soma de portugueses radicados numa determinada cidade ou região, o que mais conta é a capacidade de criar estruturas, instituições, e, através delas, assegurar o convívio, as festas, os rituais, os valores identitários, legados aos mais novos. Uma comunidade em sentido sociológico é isto. Não são números, são sentimentos e gestos concretos. Ficou muito por fazer nas ajudas concretas (os meios foram sempre poucos), na mobilização, no estabelecimento de redes de contacto e convívio entre comunidades que se ergueram por si, sem apoio do Estado... Este ano comemora-se o 40º aniversário da criação do Conselho das Comunidades (um projeto de Sá Carneiro, que me coube executar no seu Governo), que prossegue esse objetivo fundamental - promover o reencontro dos emigrantes entre si e com o País. 6 – Ser “portuga” por esse mundo fora enche a alma e dá alento para quem vai à procura de uma vida melhor? - Sim, dá, quase sempre, uma vida melhor! O sucesso dos que partiram incita os outros, família, vizinhos, a seguirem o seu exemplo. Esta é, em síntese, a história da nossa emigração! Os portugueses, aos milhões, ganharam essa aposta, individualmente, o País ganhou uma inesperada e espantosa componente extra-territorial, para além das esperadas e astronómicas remessas, mas continua na cauda da Europa, ao menos no que respeita a desigualdades, baixos salários, trabalho precário, inferiores expetativas de carreira - desfasamentos que são a causa mais eficaz da expatriação secular, imparável, até hoje... Já tenho dito, e repetido, que a revolução de 74 foi a única verdadeira revolução da Liberdade, aquela que veio , enfim, conceder o direito de emigrar, incondicionalmente, e, todavia, mais de quatro décadas depois, os governos ainda não conseguiram dar aos cidadãos o "direito de não emigrar", ou seja, de viver confortavelmente na sua terra... 7 – Já ninguém parte com uma mala de cartão… E nem todos cantam… - Não sei se estou inteiramente de acordo com a afirmação. De facto, embora o que mais chame a atenção seja a chamada "nova emigração" de jovens altamente qualificados (um autêntico "brain drain", que devia arrepiar os nossos governantes...), a maioria ainda é muito parecida à do passado longínquo, a tal da "mala de cartão", símbolo de pobreza e falta de bagagem académica e profissional. Em muitos casos, é apenas um movimento sazonal, como revelam as estatísticas oficiais. A presente crise vai ter consequências neste setor, mas não é fácil prever quais. Pode, suponho, travar, conjunturalmente, novos movimentos, sobretudo nas migrações de perfil tradicional, mas, depois, vai depender do ritmo de recuperação no nosso e nos outros países. Certo é, sim, que os candidatos mais qualificados, os médicos e enfermeiros que agora faltam no SNS, os engenheiros, ou os cientistas, encontrarão sempre menos obstáculos... 8 – Foi também um privilégio ter sido vereadora da Cultura de Espinho? Cidade que lhe diz tanto e que adotou para viver… - Foi uma experiência surpreendente. E eu gosto de surpresas - das boas surpresas, é claro... Nunca imaginei que o "governo local" revelasse potencialidades, que não ficavam atrás do governo central - mesmo para quem, como eu, vinha de um pelouro com ação "planetária", sem fronteiras. Não esperava encontrar tanta competência e tanto entusiasmo nos meus colaboradores - os melhores que tive, depois de ter estado em funções em cinco governos da República. Fiquei, contudo, com a ideia de que não será nada fácil encontrar funcionários de tanta qualidade humana e profissional em serviços municipais similares, de norte a sul do País... Aqui em Espinho, sei que me saiu a sorte grande! Era um verdadeiro prazer reunir com as chefias e pensar, em conjunto, o desenvolvimento dos programas culturais, dando continuidade ao que vinha de trás (não eliminei nada, era tudo válido e de qualidade) e preparando novos projetos, exigidos, desde logo, pela comemoração do centenário da República. Não tínhamos dinheiro para nada, mas não nos faltavam ideias e boa vontade . É incrível o que se conseguiu levar a cabo nessas condições, em 18 meses... Sentávamo-nos à volta da mesa redonda, o debate fluía, quando chegávamos ao fim, os projetos estavam totalmente reformulados e eram de todos -já nem sabíamos quem tinha proposto o quê... Dramático foi, porém, neste ambiente tão caloroso, a morte da Drª Isabel e, depois, da Drª Beatriz, duas grandes senhoras - inesquecíveis! Desse quarteto admirável, só a Drª Idalina e o Dr Bouçon continuam em plena atividade na Câmara. Naquele belo edifício da antiga conserveira, que eu sonhava ocupar com uma diversidade de núcleos de animação, como um museu do violino (o Engª Capela propunha-se montar ali uma autêntica oficina de "luthier"), um clube de jazz (com um grande nome à frente), um café, com vista para o mar... Falo do que não aconteceu. O que aconteceu é sabido. Gostei particularmente de dar uma contribuição para pôr "nomes às coisas", às Galerias Souza Cardoso, à Biblioteca José Marmelo e Silva... Se tivesse estado na Junta de Freguesia, lá teria sugerido que a bela galeria do 1º andar, se chamasse "Conde de Ferreira". Nada mais justo, pois o edifício foi doado por ele (para a escola primária) à cidade de Espinho... Compreende-se a reconversão dos edifícios a outras finalidades, mas não o esquecimento dos beneméritos, que em Portugal é a regra, não a exceção. 9 – Mas também tem orgulho em ser da dita terra do nabo e das nozes? Ainda lá estão as origens… - É verdade que sim. Até nisso me sinto identificada com os emigrantes, no duplo sentimento de pertença à terra de origem, Gondomar (onde morei apenas dez anos, mas onde a família materna remonta, nuns ramos, ao século XVI e, noutros, ao século XVIII), e a Espinho, que foi o meu paraíso de férias, desde a infância, e que escolhi para viver há mais de 45 anos. No verão de 1950, meus pais prolongaram a estadia na pequena casa de férias da Rua 7, que, há muito, pertencia aos meus bisavós, e eu cheguei a frequentar, ao longo do 1º trimestre, a Escola da Rua 23 . 10 – Em Gondomar não andaria tanto... e tanto a pé como em Espinho… Tem rio mas não tem mar. E o mar de Espinho o que é que lhe diz? - Em Gondomar, nem sequer tinha o Douro à vista, porque sou do centro de São Cosme... Mas nasci e vivi com os meus Pais em casa da Avó materna, um casarão, cercado de dezenas de árvores, de todas as formas e feitios, e com um extenso terreno nas traseiras, onde podíamos correr e brincar à vontade. Éramos terríveis, trepavamos às árvores, como se estivéssemos na nossa "selva" privativa, saltávamos das janelas do 1º andar, por cima de roseiras altas... Milagrosamente, nunca nos magoamos. Mas confesso que o mar me fazia falta. Era sempre uma alegria vir para Espinho no verão, os mergulhos nas ondas altas da praia azul, a natação na piscina, o vaivém na Avenida, os cinemas (60 filmes por mês, com a programação do S. Pedro e do Casino)... Que saudades! 11 – Sendo uma fervorosa adepta do Futebol Clube do Porto, já alguma vez sentiu uma indómita vontade de descer da bancada do antigo estádio das Antas ou do novo estádio do Dragão para entrar no relvado e mudar o “o jogo” ou rematar à baliza? - Como me compreende!... Fui uma fanática do futebol, desde pequena. De todos os desportos, mas mais do futebol e do ciclismo, por sinal, os mais populares. Agora, sou mais do género "treinador de bancada" e, em vez de querer entrar em campo, o que me apetecia era mandar para lá alguns dos "imortais" que não têm sucessor, como Baía na baliza, Gomes nos remates certeiros, ou Deco a jogar e a fazer jogar... Ou, se fosse um pouco mais atrás, Pedroto, depois Pavão, a darem jogo, e Jaburu a marcar golos. Jaburu, brasileiro de Minas Gerais, como Yustrich, era uma espécie de cruzamento entre Hulk e Jardel - mais Hulk, porque corria, velozmente, o campo todo... 12 – Jogava à bola quando era mais nova? Era tecnicista ou era bola para a frente? - A partir da 3ª classe, tornei-me aluna do Colégio do Sardão, que parecia um colégio inglês, cheio de recintos desportivos, ginásio,"court" de ténis, campos de basquete, volei, andebol. Pertenci às equipas de todas as modalidades (embora sem atingir o escalão da Graça Guedes que viria, depois, a ser campeã nacional de voleibol em Espinho). Só o futebol era proibido às meninas, mas eu organizava jogos clandestinos. Uma ve, fui apanhada e chamada à Mestra.Geral, com muito receio de apanhar o castigo máximo. Mas não, com muita graça, a normalmente severa e temida senhora disse-me;" Não é jogo próprio de meninas, mas como eu sei que és uma apaixonada, vou abrir uma exceção: tu podes jogar futebol, as outras não".. Como organizadora dos torneios proibidos, eu escolhia a minha posição de "avançado-centro" e marcava muitos golos, As minhas colegas ainda hoje dizem que era ótima, mas eu sei que não. Muita energia e velocidade,tinha!. Técnica ou visão do jogo em campo, não... Era, como diz, "bola para a frente". Às vezes, até me perdia e saía com bola pelo retângulo fora.. Note: não me limitava a adiantar a bola, saia, eu também, com a bola no pé... No andebol, o nosso treinador, Edgar Tamegão (o único homem, para além dos padres, admitido, em funções naquele colégio de Doroteias) fez um teste para guarda-redes, e mandou-me logo para a baliza. Aí, era surpreendentemente eficaz, tinha nascido para aquilo, mas não gostava nada... Sentia-me "confinada", na minha área. Para além de jogar, também fazia relatos imaginários, que entusiasmavam as minhas companheiras nos recreios. Nesses relatos, o FCP ganhava sempre, com inúmeros golos, tão gritados, que a pretensa locutora ficava rouca... E é tão feminista?! - Continuo igual ao que fui, sempre. Sabe, a minha avó materna, Maria Aguiar, cidadã e paroquiana muito interventiva e influente, mas extremamente conservadora, passava o tempo a interditar atividades: "uma menina não faz isso!". Não trepa às árvores, não joga a bola na rua, não anda pendurada nos elétricos... E eu pensava: "Mas porque não? Sou tão capaz como os primos, em qualquer dessas brincadeiras". Assim nasceu o meu feminismo. Não é nada contra os homens, é contra os preconceitos. Pela igualdade. 13 – A igualdade do género ainda conversa de treta nos tempos de hoje? - Para mim, é uma causa pela qual vale a pena lutar, num tempo em que não só tantas discriminações permanecem, como até se começa a negar a sua existência, ou, ainda pior, num verdadeiro retrocesso civilizacional, a justificá-las como sendo boas. Esse discurso de uma extrema direita agressiva e brutal, que grassa nos EUA de Trump e em outras partes do mundo, e já chegou cá, ainda em miniatura, constitui a maior ameaça ao futuro da democracia. Hoje, na Europa, o perigo vem da extrema direita. Antifeminismo, racismo e xenofobia andam a par, como se constata pelo discurso dessa extrema-direita. E têm de ser combatidos com as mesmas respostas, com os mesmos valores humanistas. O feminismo, como eu o vejo, é uma componente do humanismo perfeito, não é um machismo ao contrário. Apela ao bom entendimento e solidariedade entre os sexos, como entre nacionais e estrangeiros. Com esta visão das coisas, depressa compreendi os problemas centrais da emigração, porque defender os excluídos, os marginalizados, sejam as mulheres, os estrangeiros ou os negros, é missão da mesma natureza. 14 – A violência doméstica é sinal primitivo ou da sociedade que vive de aparências, silenciosa e inativa quando o problema é dos outros e de quem sofre? - Certamente que é um sinal primitivo, embora subsista em sociedades que se consideram avançadas. É sempre um sinal de cobardia exercer a violência sobre os fisicamente mais fracos. E é um comportamento inqualificável, qualquer forma de descaso ou a condescendência da parte de quem pode e deve intervir - o Poder. Quer se trate de mulheres ou homens, crianças ou velhos. O mais chocante e recente caso, em Portugal, foi o assassinato de Ihor, um indefeso estrangeiro por agentes do SEF. Chocante, o silêncio das autoridades neste caso, e a demissão da Diretora Geral só agora, dez meses depois. Não foi violência doméstica, mas foi um crime infame no interior de uma sala escondida e fechada, como são os espaços em que, quase sempre, se exerce a violência doméstica. 15 – A política faz parte da sua vida, ou a sua vida é que faz parte da política? - Vou mais pela primeira, no sentido de que a política pode e deve fazer parte da vida de todos nós - a política enquanto atividade cívica, exercício da cidadania... Tenho uma especial admiração pelos que se envolvem na sua comunidade, quer através de partidos, quer pelo trabalho nas instituições da chamada sociedade civil - dirigentes associativos, bombeiros, voluntários das mais diversas formas de solidariedade, seja na emigração, seja dentro do País. 16 – Era uma deputada respeitada por todas as bancadas na Assembleia da República, fosse à direita, ao centro ou à esquerda. E também havia “fait-divers” e momentos de convivência com outros quadrantes partidários? - Fui educada assim, na minha família, onde sempre conviveram os opostos, primeiro monárquicos e republicanos, depois, democratas e salazaristas, anglófilos e germanófilos durante a guerra, filiados ou simpatizantes de vários partidos, após o 25 de Abril. Depois, estudei em Coimbra, onde era normal a convivência entre colegas de esquerda e direita. Eu tinha quadrante ideológico, era Social democrata "à sueca", como Sá Carneiro, e PPD, desde 74, mas independente, sem filiação partidária. E foi isso que, paradoxalmente, em 1978, me levou a um governo de "independentes", chefiado pelo Doutor Mota Pinto. Por isso, depois de aderir ao PSD, em 1980, mantive, esontaneamente, esse tipo de comportamento, quer no governo, quer na Assembleia da República. Sei que não era muito comum, por exemplo, ser mais amiga de Miguel Urbano Rodrigues, do PCP, ou de Carlos Luíz, do PS-emigração, de Paulo Portas e Anacoreta Correia, do CDS, ou de Natália, do PRD, do que da maioria dos colegas de bancada. No hemiciclo de São Bento, em 1981, os meus primeiros debates foram com um especialista de emigração do PCP, Custódio Gingão, que era extremamente aguerrido. Eu respondia no mesmo tom e os nossos despiques eram tremendos! Até que um dia me lembrei de lhe agradecer, a meio de uma intervenção, dizendo que ele me estava a ajudar imenso no meu "tirocínio parlamentar". Era verdade... A partir daí, ficamos amigos, as discordâncias de fundo mantiveram-se, é óbvio, mas o tom esmoreceu bastante, de parte a parte... Histórias não faltam, falta-me o tempo para as contar... 17 – O filme “Snu” trouxe-lhe gratas recordações? - Vi-o mais do que uma vez, na sala de cinema e, depois, na televisão, Como filme é "assim-assim", não fica na história do cinema português, mas a intenção foi boa, é uma merecida homenagem a Snu, bem interpretada por uma excelente atriz e bem retratada (tanto quanto sei, só estive com ela em encontros breves). Já o Dr. Sá Carneiro é, no capítulo político, sem culpas para o ator, muito mal apresentado... Homem firme, capaz de rupturas, como se sabe, reagia, invariavelmente, como mandava uma esmerada educação: sem levantar a voz, com um perfeito controle de si, em qualquer situação. O tom podia ser frio e cortante, mas era, sobretudo, muito civilizado. Ver no ecrã um Sá Carneiro aos gritos, ou a bater com as portas, é inverossímil, é um disparate! Dele é, assim, dada uma imagem completamente distorcida, e ao gosto dos seus maiores inimigos. Estranhei que ninguém do PSD oficial o dissesse. 18 – Para além de Sá Carneiro, também nutria simpatia pessoal por Mário Soares e por Mota Pinto… E era uma das “mães” de Paulo Portas… - Sim, e, para completar o quadro, pode acrescentar o General Ramalho Eanes. Sei que todos estes grandes políticos, que tanto admiro, não se admiravam, necessariamente, entre si... Todos democratas, mas trilhando caminhos diferentes, com diferentes programas, estratégias e "timings" para atingir o mesmo fim - frequentemente, em oposição frontal, uns aos outros. Sá Carneiro tinha mais o sentido da urgência, queria uma democracia "à europeia", no imediato, acreditava na capacidade do Povo para a viver livremente, sem a tutela militar do "Conselho da Revolução". O General Eanes, como Presidente, estava à frente do Estado, das Forças Armadas e do Conselho da Revolução, cuja ação via como fundamental na construção progressiva da arquitetura democrática. Estive convictamente com Sá Carneiro e considero que a História lhe deu razão, porque o Povo estava preparado para a democracia, então tanto como hoje... Mas a História, quatro décadas depois, também mostra o General Eanes como um Português exemplar, que, afinal, queria tudo para o País, não para ele próprio. Não agia com um projeto de poder pessoal. Tivemos muita sorte com a qualidade destes "pais fundadores" da nossa democracia (não esquecendo Freitas do Amaral e Amaro da Costa, no quadrante da democracia cristã, centrista e soidária). Já não há políticos com essa estatura! E talvez nunca mais haja tantos, num mesmo cenário temporal. Foi um autêntico "milagre português". Pessoalmente, sentia por Sá Carneiro verdadeira fascinação, considerava Mota Pinto um homem de inteligência fulgurante e de uma imensa generosidade, e Mário Soares um político perfeito. E todos, incluindo o General, tinham uma virtude, para mim muito importante: o sentido de humor! Muito pessoal, em cambiantes muito diversos, mas no mesmo grau elevadíssimo! Com todos mantive um relacionamento amigo e tão descontraído quanto possível, tratando-se de altas figuras da Pátria e sendo todos mais velhos do que eu... Paulo Portas é outro caso, no sentido de que não é um pai, mas sim um filho, muito precoce, da democracia. Conheci-o, em reuniões do PSD, com 14 ou 15 anos, e logo o achei-o um rapaz super inteligente, vivíssimo, encantador. Não era a única das militantes do partido a pensar assim, e, por isso e, quando fui apresentada à Mãe, a Drª Helena Sacadura, não fiquei admirada com essa frase tão divertida: "Sei muito bem quem é. É uma das mães do Paulo!". Tal como o filho, é encantadora. 20 – Qual era o presente que gostaria de receber no Natal? No Natal confesso que prefiro dar presentes a recebê-los. Este ano, espero oferecer a toda a família e a alguns amigos um livro que está a ser ultimado na gráfica - um blogue, com histórias soltas de várias gerações de Aguiares. Um blogue transposto da internet para o papel... 21 – Figuras nacionais que mais admirou e/ou admira? E estrangeiras? - No campo político, as personalidades estrangeiras que mais me marcaram foram John Kennedy, Mandela, Trudeau (o pai do atual). Mais recentemente, Hillary Clinton... Portugueses, os que conheci de perto e de que já falei. Fora da política, onde é mais fácil encontrar grandes mulheres, Agustina, Amália, Natália Correia, Maria Barroso (que foi política também, mas não só). E as nossas feministas de novecentos, como Ana de Castro Osório, Maria Archer, Maria Lamas e as "sufragettes" inglesas, lideradas por Mrs Pankhurst (que nunca conseguiu ser eleita deputada, mas tem a sua estátua em frente ao Parlamento mais famoso da Europa). 22 – Quais são os livros preferidos? E os autores que mais aprecia ou quem melhor se identifica? - Tenho muita dificuldade em responder a esta questão, porque não há, para mim, uma predileção por um género literário que exclua os outros... Gosto de biografias e autobiografias, políticas ou não (li há pouco a de Woody Allen, vou começar a de Obama, sobre a sua presidência, e tenho em lista de espera a de Virginia Woolf, 1927/41). Também sou fã de livros policiais - Agatha Christie, Ruth Rendell, Sara Paretsky e outras -falo, assim, no feminino, porque é uma área hoje, surpreendentemente, dominada pelas mulheres... E de romancistas, os do passado, mais Eça do que Camilo, mais Marmelo e Silva do que Vergílio Ferreira, e os mais recentes, como Mário Cláudio ou a incomparável Agustina. Brasileiros como Luís Montello e Érico Veríssimo, e os da língua inglesa, a minha língua estrangeira favorita. São tantos! Ultimamente, ando entretida a ler Alice Munro, Julian Barnes, Philip Roth... Desde que abriu a Bertrand em Espinho, tenho os cantos da casa cheia de livros novos, em fila, à espera de vez... Comprar também é um prazer! 23 – E quais são os filmes da sua vida? E ainda vai ao cinema, mas sem pipocas… - A minha geração, como a dos meus pais e avós, ainda tem a paixão pelo cinema (e sem pipocas ...). Sou, aqui em Espinho, uma das pessoas mais assíduas nas sessões da tarde do Multimeios. Para dar uma resposta breve, direi que vejo tudo, só evito ficção científica e terror. Tenho muitos"filmes da minha vida"... de Orson Welles, de Ingmar Bergman, da "Nouvelle Vague" da minha juventude, Godard, Truffaut, Agnès Varda... Italianos, também. Revi agora, há pouco, os de Fellini na televisão. Mas o meu género preferido é, definitivamente, a comédia e o realizador Woody Allen... 24 – Quem é ou foi (ou é) o melhor treinador e o melhor futebolista? - Esta é uma pergunta de resposta mais fácil no que respeita a treinador do que a jogadores. Treinador: Yustrich! Venceu o primeiro campeonato da minha vida, em 1956, contra tudo e contra todos, e ficou para sempre no coração dos portistas dessa geração. Eu estava nas Antas, com o meu Pai (éramos ambos sócios), no jogo final e decisivo contra a Académica, que "pôs o autocarro em frente da baliza"! Tinha quase 14 anos... Sofri muitos desgostos, na fase anterior a Pinto da Costa. Jogadores fantásticos, são tantos! Se tenho de indicar um, só pode ser o DECO, o nosso Maradona. Genial...