quinta-feira, 30 de agosto de 2018

RITA GOMES CAUSAS DE UMA VIDA




RITA GOMES 
CAUSAS DE UMA VIDA 

 A Rita deixou-nos no momento em que a Associação Mulher Migrante, (AMM), comemora os seus 25 anos, tantos quantos ela dedicou da sua vida à vida de uma instituição que se impôs, progressivamente, no domínio das migrações, da luta pelos direitos  humanos e pelos direitos das mulheres. Não podemos, por isso, deixar, com o nosso silêncio ou inércia, perder-se no esquecimento geral a memória da sua admirável intervenção cívica, e a própria organização a que tão apaixonadamente se dedicou.
 Para Rita, a emigração nunca se resumiu a burocracia rotineira, a trabalho em gabinete fechado, ou a elaboração teórica. Teve sempre em conta os rostos de  pessoas, traduzindo-se em gestos sinceros e espontâneos de solidariedade. Uma intervenção que principiou no exercício de funções profissionais, décadas antes do seu envolvimento em puro voluntariado. Foi nessa outra faceta que a conheci no Palácio das Necessidades, em janeiro de 1980. Durante cerca de sete anos e através de quatro governos, colaborámos com entusiasmo na procura de soluções para os problemas muito concretos dos nossos expatriados, assim como de fórmulas mais eficazes de diálogo institucional com a Diáspora.
Naquele 1980 particularmente intenso - um ano, um governo, um programa pensado e articulado em cinco continentes - tudo era novo para mim. A experiência de longos anos que a Rita já contava foi preciosa para o êxito do que chamámos "as políticas de reencontro" com as comunidades entre si, e entre elas e o país.
Uma das primeiras certezas que me deram os diplomatas do meu gabinete foi a de que, dentro dos serviços da Secretaria de Estado, um se distinguia e com ele poderia contar inteiramente: o núcleo dirigido pela Dr.ª Rita Gomes. Uma Direção de Serviços chamada comummente o "Centro de Estudos" do Instituto de Emigração. Uma espécie de "think tank", que ganhara prestígio e autoridade, no meio de outros departamentos mais votados às tarefas administrativas do quotidiano - também imprescindíveis, mas de diversa natureza.
 O "Centro de Estudos" era formado por jovens muitos empenhados e intelectualmente brilhantes, que poderiam ter procurado lugares mais aliciantes e promoções mais rápidas, e que ali estavam e continuariam por vocação, à imagem da própria líder, que tão bem os sabia mobilizar e os tratava como família. Melhor do que eu, dirão certamente o que Rita Gomes representou para eles e para a obra realizada numa equipa unida, quer pelas causas, quer pelos afetos.
Em 1981, foi instituído e entrou em atividade o Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP), que era visto como sede estratégica, por excelência, de reflexão e coparticipação nas políticas e programas para as migrações e para a Diáspora. O CCP era, note-se, 100% masculino. Eleito no universo associativo, refletia a marginalização de que eram, então, objeto as mulheres emigrantes. As presenças femininas nessa primeira reunião mundial foram, quantitativamente, tão escassas quanto notáveis de um ponto de vista qualitativo. Eram todas dirigentes ou técnicas de diversos ministérios, que moderaram ou assessoraram comissões, com aplauso unânime..
 Entre essas pioneiras teve um papel central a Dr.ª Rita Gomes, que posteriormente seria Secretária-geral do "Conselho".
De destacar é igualmente a sua preponderância no domínio das negociações com os países de destino da emigração, nas comissões mistas para o acompanhamento dos acordos bilaterais, e, no plano multilateral, em organismos internacionais, como o Conselho da Europa ou a OCDE, onde se notabilizou em representação da Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas. Os êxitos que foi somando, incansavelmente, eram devidos, por um lado, à excecional competência e rigor no tratamento dos dossiês, e, por outro, à facilidade de fazer e conservar amizades, em qualquer contexto ou cenário transnacional.  
Tão espantosa trajetória profissional culminaria na nomeação para Vice-presidente e, seguidamente, Presidente do Instituto de Apoio à Emigração e às Comunidades Portuguesas, que a tornou uma das primeiras mulheres a ocupar um cargo hierarquicamente equivalente ao de Diretor-geral no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Em síntese, poderíamos, simplesmente, constatar que, em mais de quatro décadas de serviço público, subiu a pulso, por mérito universalmente reconhecido, todos os patamares hierárquicos de uma carreira, da base até ao topo!
A nossa relação pessoal manteve-se, naturalmente, depois desses tempos de convívio quotidiano na Secretaria de Estado. Lembro, com nostalgia, os convívios na sua casa da Alameda  Afonso Henriques, onde com o marido, Arquiteto Andrade Gomes, era a mais perfeita das anfitriãs. Do alto do 7.º andar de uma enorme varanda, assisti muitas vezes, no meio de um numeroso e alegre grupo de amigos, a grandes comícios partidários, que enchiam o terreiro da Fonte Luminosa e faziam história numa democracia jovem.
Em 1993, a aposentação da Função Pública não significou para  Rita um cessar ou abrandar de atividades, antes a sua prossecução ao mesmo ritmo e com o mesmo propósito, embora em enquadramento e condições muito diferentes. Convidada a aderir ao projeto da Associação Mulher Migrante, logo, conjuntamente com Fernanda Ramos, assumiu a liderança. Atravessávamos então, em Portugal, um período propício ao nascimento de quaisquer ONG. Contudo, se  muitas então surgiram, poucas foram as que sobreviveram. Ter um sonho, criar uma organização e conseguir adesões não é a coisa mais complexa. O difícil é assegurar sustentabilidade à aventura coletiva no dia-a-dia, ano após ano! A história do já longo percurso ascensional da AMM, a sua transformação em parceiro de uma rede de organizações internacionais e de sucessivos governos, na execução de políticas de género nas comunidades do estrangeiro, é a prova maior da capacidade de dar corpo e dimensão a um projeto consistente. Mulheres e homens, por igual agregados à volta da problemática tradicionalmente marginalizada das migrações femininas, em particular do objetivo da igualdade pela via da participação cívica e política das mulheres, têm conseguido dar continuidade e permanente renovação à ideia original da AMM.
Levar por diante a Associação, de que a Rita será sempre parte, é, a meu ver, a melhor forma de demonstrar, por atos  e não somente por palavras, a nossa estima e a nossa saudade - saudade do passado vivido com ela e movimento para o futuro, em que a sua memória há de viver.

Maria Manuela Aguiar

Espinho, 27 de agosto de 2018

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

APOSENTAÇÃO COMPULSIVA AOS 70

APOSENTAÇÃO COMPULSIVA AOS 70 ANOS. UM CASO DE INCONSTITUCIONALIDADE? 

 1- Vejo a aposentação compulsiva dos servidores do Estado, (em sentido lato), como uma espécie de sentença de "morte profissional" aos 70 anos, e considero a sua imediata abolição uma forma de restituir a plena dignidade humana aos trabalhadores do setor público. Nunca compreendi o "porquê" deste regime excecional e discriminatório, que contrasta, em absoluto, com a regra da liberdade de trabalho, sem limite etário, aceite tanto no setor privado, como na política, não obstante a sua natureza de serviço público. É, a meu ver, uma limitação atentatória do princípio de igualdade entre todos os cidadãos, consagrado no nº 1 do artº13º da Constituição da República, em tudo semelhante ás que vêm expressamente mencionadas no seu nº 2 (ascendência, sexo, raça, instrução, condição social, etc, etc ). Bom bom seria que, em próximo processo revisional em São Bento , o fator de discriminação "idade" fosse acrescentado a essa enumeração.. Só a falta de capacidade física e mental para o exercício do cargo pode ser fundamento da cessação do vínculo laboral pois, como sabemos, a presunção de incapacidade aos 70 anos choca com a verdade da vida e da ciência! E não se invoque o argumento da necessidade de renovação geracional, pois esse valeria, do mesmo modo, para a política, aos vários níveis, e para o setor privado.. A renovação é precisa, mas acontece, naturalmente, como comprovam estes dois domínios.

 2 - Não estamos a falar, como alguns com grosseira demagogia têm insinuado, de aumento da idade de reforma/aposentação. O prolongamento forçado ( sublinho, "forçado") da vida ativa vem sendo imposto por motivos essencialmente economicistas, para retardar a passagem dos contribuintes a beneficiários do sistema de pensões, como expediente para assegurar a sustentabilidade, ao que dizem posta em causa, do edifício da segurança social, e, com ele, do futuro das pensões dos atuais contribuintes, A questão que nos ocupa não é do foro da economia ou da contabilidade - para a qual a opção de continuar para além dos 70 será até positiva . É, sim, uma questão de princípio, de fundo humanista, personalista e libertário, que recoloca a pessoa no centro da decisão, dando-lhe a escolha de retardar a data do fim da carreira. Para tal, bastará revogar uma medida, que foi instituída há cerca de um século, quando a esperança média de vida era, de facto, inferior à da barreira estabelecida. Uma atualização para o equivalente a essa média, no presente, elevaria a fasquia da aposentação compulsiva, em cerca de uma década, ao menos no nosso país. Não é o que propomos, em nome dos direitos de cidadania dos seniores. A mera dilatação do prazo continuaria a corporizar o mal de uma imposição arbitrária, desde logo, porque o processo de envelhecimento não é uniforme. Nada há de mais relativo do que o peso da idade no declínio efetivo de faculdades de pensamento e de ação. O prematuro "abate" ao ativo de funcionários, ainda pujantes de sabedoria e experiência, é um perfeito paradigma de desperdício.
 
 3 - Há, ainda os que invocam como decisivo para, sem mais discussão, se manter o "status quo" a simples constatação de serem poucos, (três ou quatro centenas em muitos milhares), os que, atualmente, permanecem em funções até ao preciso momento de "expulsão" do serviço público. Expulsão - não tenhamos medo de palavras tão contundentes quanto verdadeiras! Ora, o número é coisa totalmente irrelevante, quando se trata de fazer justiça. Reconheçamos que uma esmagadora maioria tem pressa de ir para casa, ou porque sente o fardo da idade ou do labor em si mesmo, ou do ambiente em que é exercido. Admitamos, também, que a maioria dessa maioria é facilmente substituível por uma nova vaga, e que muitos dos que a integram, teriam gostado de se retirar aos 40 ou 50 anos. Não é desses que curamos, é dos outros - para lhes garantir a livre opção por saída mais tardia. Só dela aproveita quem quer. Serão, sobretudo, elites académicas, professores, cientistas, diplomatas, médicos... Médicos! Talvez esta iniciativa do governo tenha sido desencadeada pela recente aposentação compulsiva do famoso cirurgião de Coimbra, Doutor Manuel Antunes, que tudo disse e tudo fez para continuar a sua missão e foi obrigado a sair para o setor da medicina privada, certamente, em relutante competição com o serviço público de excelência, que ele próprio criou. Um absurdo, que constituindo drama pessoal, semelhante a outros menos conhecidos, ganhou particular visibilidade