segunda-feira, 2 de novembro de 2020

A LIBERDADE DE SER AMÁLIA in "Defesa de Espinho"

A LIBERDADE DE SER AMÁLIA 1 - Amália, no ano do seu centenário, esteve presente em inúmeros programas de rádio e de televisão, na imprensa, na literatura, (através de alguns livros interessantes, de pendor biográfico, que procuram desvendar os seus "mistérios", fazer ou refazer a sua história), e, ainda, pelo enriquecimento da sua discografia, com edição de inéditos, incluindo alguns ensaios com Alain Oulman. Amália é e será, para sempre, fonte inesgotável de inspiração! Sobre ela nunca será escrito o livro definitivo, nem dita a última palavra, mesmo que essa palavra seja a sua. Os melhores programas de televisão, que vimos (ou melhor, revimos), foram espetáculos ao vivo, pequenos depoimentos pessoais. e o melhor livro é. aquele em é convidada a traçar um retrato intimista do seu trajeto. A transcrição integral da longuíssima entrevista concedida a Manuel da Fonseca, em 1973. é um documento espantoso, lançado 47 anos depois de decorridas as sessões de conversa entre o escritor e a Diva. Ela  recusara escrever uma autobiografia, em troca relutantemente aceitando falar de si para uma narrativa biográfica que teria a assinatura de Manuel da Fonseca, escritor de renome, militante (na altura forçadamente clandestino) do Partido Comunista. Amália está inteira nas respostas que dá ou, com mais frequência, não dá... Percorri as cerca de trezentas páginas de transcrições  -  fascinante leitura! -  sem vislumbrar que tipo de biografia poderia Manuel da Fonseca extrair do um diálogo que, tantas vezes, se espraia em divagações, se ramifica em novos encadeamentos, e em que ele, não raro, é levado a alongar-se sobre um e outro tema...Quase se poderia dizer que os dois ocupam, em rotação, os papéis de entrevistador e entrevistado, à medida em que, entre ambos, a cordialidade e genuína empatia se acentuam. Tudo isso, sendo esplêndido, explica que as cassetes tenham ficado, por quase meio século, arrumadas num canto... Resgatá-las do esquecimento assim, como "happening", é um fantástico achado, que carreia, porventura, mais do que a projetada biografia, pois nos abre portas a um encontro com Amália, tal qual era em convívio de amigos, informal, espontânea nas certezas, hesitações, estados de alma, dos quais emanava, quer quisesse, ou não (e não quereria...), a aura luminosa e enigmática da sua genialidade... "Amália nas suas próprias palavras" é um título perfeito para essa edição, que por si só teria bastado para assinalar, com brilho, a grande efeméride. .2 - Tive a sorte de estar com ela em ambientes semelhantes. Foi nos caminhos da emigração que a conheci. Se bem se lembram, Amália fora emigrante, depois que, para surpresa geral, casou com um Engº Seabra, português do Brasil, e anunciou que deixaria os palcos.  Custava a acreditar que trocasse pela felicidade dos seres comuns o dom divino de cantar. Felizmente aos palcos e à Pátria voltou, trazendo consigo o marido de quem só a morte a separou..Em 1980, quando iniciei um trabalho, ainda inacabado, com as comunidades do estrangeiro, conheci o Dr Adriano Seabra da Veiga, nosso Cônsul Honorário em Connecticut, prestigiado cirurgião e personalidade influente. Na sua magnífica mansão em Waterbury acolheu muitos compatriotas, como Zeca Afonso (em busca de tratamento), Spínola, Veiga Simão e Victor Crespo (exilados), Sá Carneiro (de passagem), e Amália, de quem havia fotos, na biblioteca da casa e no gabinete do Consulado, onde o seu retrato era maior do que o do Presidente da República. A dimensão simbólica de Amália, na Diáspora, justificava isso e muito mais e eu não imaginava que este Seabra, médico e filantropo, era primo direito e amicíssimo de Seabra, o engenheiro, consorte de Amália, ambos sobrinhos do falecido Comendador Seabra, que fora o português mais rico do Brasil. Tomei conhecimento do parentesco, por acaso, uma vez em mencionei Amália, a artista, com imensa admiração. Depois disso, quando visitava Lisboa, com a mulher, Rita, convidava-me sempre para os jantares de família com os primos, em que os mais extrovertidos, Amália, Adriano e eu tomávamos conta da conversa, e Rita e César Seabra ouviam e sorriam, divertidos. No primeiro encontro, Amália teria 65 anos, estava vestida de preto, discretamente chique, bem disposta, com uma grande vivacidade e um invariável toque de humor, qualquer que fosse o assunto em questão - a sua conhecida paixão pelos filmes de Fred Astaire, o Brasil polifacetado nas nossas tão diferentes vivências, uma certa América, sobretudo a de Adriano, cheia de peripécias extraordinárias... Encantada, com a sua versatilidade e simpatia, custava-me, a acreditar que aquela senhora, com uma postura tão simples e "familiar", fosse Amália Rodrigues... Parecia-me, sim, uma das minhas próprias tias, da mesma idade e quase tão bonitas e engraçadas como ela. Só estranhei que, antes de um qualquer comentário, repetisse "eu tenho pouca cultura", ou "eu sou muito ignorante", após o que se lançava em acutilantes observações, que revelavam ser precisamente o oposto. Porquê? Talvez porque conotasse classe política a snobismo... Como depois, não mais voltou a reivindicar a pretensa "incultura", concluí que tinha passado no teste... E continuei a conviver, ano após ano, com a Amália, não a Rodrigues, mas a do círculo Seabra.   Muitas faces ela tinha, mas, na sua tão original heteronímia, eram todas genuínas, todas refletindo a sua verdade. não mais do que expressões diversas, condizentes com cada mundo que atravessava e em que sabia estar perfeitamente, com intuitiva compreensão dos outros, usando a sua linguagem... O ambiente que partilhamos foi de risos e alegrias, não o das suas mágoas e melancolia - digamos que foi o das canções ligeiras de Alberto Janes, não o dos fados de Alain Oulman, com que alcançou a eternidade. Convivemos mais no país do que nas rotas da emigração, onde só recordo duas ocasiões em que estivemos juntas em Connecticut, na casa de Adriano, os festejos do Dia 10 de junho, em Newark, no ano em que, com a faixa de "Grand Marshal" encabeçou a parada, aplaudida por cerca de 100.000 pessoas na "Ferry Street"/Avenida de Portugal, e uma viagem transoceânica para o Brasil em que coincidimos numa executiva da TAP sem muitos passageiros, quase só para nós. Fomos conversando na longa travessia para que esquecesse estar longe de terra firme - detestava andar de avião, e de avião andou, constantemente, uma vida inteira. Ia atuar ao Canecão e convidou-me para assitir. Eu, que tantas vezes a ouvia, no gira-discos, desde que a conhecera, há uma década, ainda não a tinha visto em espetáculo público. Foi impressionante!. No palco do Canecão, entrou, mais alta do que na vida, num deslumbrante vestido negro. Aos 74 anos, cantava, transfigurada, para uma audiência em delírio. Era a outra, a Amália Rodrigues! Depois, no camarim, entre muitas flores, que adorava, e champanhe, que nos oferecia, reencontrei a Amália tangível, radiante, descontraída, à vontade no meio de amigos, de gente comum.   3 -Entre uma e outra Amália, está a que conversou com Manuel da Fonseca, retraída perante um gravador a girar, indiscreto, escolhendo o fugidio caminho de questionar mais do que assumir a singularidade e a grandeza do seu destino. Quando o escritor lhe  pede por fim, (na página 292) , "Diga lá agora coisas que queira dizer".ela afirma, com amaliana franqueza:: "Eu não quero dizer nada". Ao argumento de que não pode menorizar uma vida tão extraordinária, contra.argumenta: "Há trinta e tal anos que estou tão habituada a tanta coisa que me acontece, tanta, tanta, tanta, que deixei de marcar as coisas, Talvez seja por isso. No fundo é porque não me marcaram": Amália e a sua liberdade de se sentir mais pessoa do que mito.