domingo, 25 de fevereiro de 2024

LEMBRAR MARIA ARCHER E MARIA LAMAS NO 8 DE MARÇO

Mulheres que lutaram, pela palavra e pela ação no tempo em que em Portugal não podíamos comemorar o Dia Internacional da Mulher Uma excelente iniciativa dos nossos amigos franceses.

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Maria ARCHER - COMEMORAÇÕES 2024

MARIA ARCHER – UMA LEITURA FEMINISTA in "Jornal de Letras" 1 –Maria Archer, nascida no último ano do século XIX, era ainda criança, quando o movimento feminista e republicano dava os primeiros passos, e uma jovem, ausente nas terras do império, quando o seu ímpeto esmorecia, e o cerco da ditadura apressava a sua desagregação. Contudo, estava destinada a continuar, solitária e audaciosamente, esse legado de luta contra o obscurantismo, que condenava a metade feminina à incultura, ao enclausuramento doméstico, à subserviência. Ela própria cumpriu a utopia feminista da “libertação da mulher” pela Cultura e pela autonomia económica, ao fazer da escrita profissão e instrumento de denúncia da situação das suas contemporâneas numa sociedade anacrónica, desumanizada, misógina. Feminista assumida e praticante, ousou romper com o conservadorismo da família aristocrática, por fim a um casamento infeliz, e viver, sobre si, do jornalismo e das Letras - mulher livre num país sem liberdade! Em Portugal, como na Suécia, a atividade literária e jornalística foi um meio privilegiado de combate contra os preconceitos e desigualdades de sexo. Entre nós, teve a pré-história em oitocentos, a fulgurante afirmação coletiva na 1ª República, e um inesperado apogeu com Maria Archer durante o salazarismo. Ninguém melhor do que ela soube recriar, de uma forma realista, crua e eficaz, a atmosfera social e política que moldava o mundo segregado das mulheres. Como dizia Artur Portela, "a sua pena parece por vezes uma metralhadora de fogo rasante”. Ninguém melhor do que ela escrutinou e denunciou a violência velada dos brandos costumes da sociedade portuguesa, do relacionamento de sexo ou de classe, homens e mulheres imersos na nebulosa de estereótipos, dogmas e falso moralismo, de prepotência e submissão... Ninguém melhor do que ela desconstruiu a imagem da "fada do lar", laboriosamente erguida sobre a falácia da harmonia de desiguais (em que, noutro plano, se baseava a ideologia do regime corporativo), e dos apregoados bons costumes, assentes no autoritarismo e subjugação ao "pater familias" no pequeno universo caseiro, e ao ditador no círculo alargado do País. O rigor e a qualidade literária destes retratos de mulheres (e da sua circunstância), a densidade humana das personagens, potenciavam a força subversiva dos romances e contos de Maria Archer, e desencadearam o furor censório do regime…De todas as mulheres resistentes que a ditadura perseguiu, nenhuma pagou um preço tão alto como esta Maria, verdadeira precursora das “três Marias” da década de setenta. É Maria Teresa Horta quem no-lo diz, em 2001, no prefácio da reedição de “Ela é apenas Mulher”: “Com Maria Archer, a tática foi diferente: Apagaram-.na […] arrancaram o seu nome, pura e simplesmente, da História da Literatura Contemporânea Portuguesa”. Acusação de misoginia, que visando o regime, não deixa de abranger todos quantos não perdoavam à romancista o ter ultrapassado os limites que a própria História Literária, dominada por homens, reservava às mulheres escritoras… Maria Archer foi forçada a partir para um longo exílio em São Paulo, de onde retornaria, envelhecida e doente, para morrer, em Lisboa, no esquecimento geral, sem, todavia, ter perdido a esperança na “justiça do tempo”. Esse tempo chegou! E a justiça fez-se, primeiramente, pela via de uma leitura feminista da sua obra, que em nada prejudicou a descoberta da pura qualidade literária da sua escrita, aberta a uma pluralidade de abordagens. No ano do seu 125º aniversário, a segunda vida de Maria Archer desabrocha em comemorações que se cruzam com as do cinquentenário da revolução de Abril. Ela emerge, agora, como figura ímpar para contar a história de um passado opressivo, pautado por regras viciadas de jogo social e político – jogo que ela desvendou e se recusou a jogar. Dessa época nos dá, nas palavras de Maria Teresa Horta, “o único retrato autêntico, de corpo inteiro”, e, na nossa, ressurge como mulher de todos os tempos. De facto, escreveu história do feminismo com a própria vida: o seu exemplo vale para sempre e a história é interminável. Manuela Aguiar

Maria ARCHER Nota sobre o programa de comemorações - 2022 in "As Artes ebtre as Letras"

No próximo dia 23 de janeiro completam-se quarenta anos sobre a morte de Maria Archer. É uma data que será comemorada, no Porto, pelo Círculo de Culturas Lusófonas Maria Archer, ao longo do ano, com uma programação de atividades focada nas múltiplas facetas da sua vastíssima obra, e na sua vida, repartida no espaço da lusofonia, num constante cirandar entre realidades culturais de que se tornaria intérprete e mensageira privilegiada. A sessão de abertura terá lugar no sábado, dia 22, na Galeria da Biodiversidade – Centro de Ciência Viva, às 16.00, com uma conferência de Deolinda Adão (Universidade da Califórnia, Berkeley) sobre “Sussurros de vozes no silêncio – o caso de Maria Archer”, seguida da inauguração de uma exposição de pintura comissariada por Ester de Sousa e Sá, em que os artistas são convidados a falar da sua relação com Maria Archer, tal como a expressam nas sua telas A 22 de fevereiro, o Instituto de Línguas Comparadas Margarida Losa e o Círculo de Culturas Lusófonas Maria Archer, (com uma Comissão Organizadora de que fazem parte Marinela de Freitas, Lurdes Gonçalves, Nassalete Miranda e eu própria), convocam uma audiência internacional de interessados para um colóquio "on line" de homenagem a Maria Archer, que reúne investigadores portugueses e estrangeiros dedicados ao estudo da obra de mulheres portuguesas que se destacaram no panorama das Letras e Artes e nos movimentos proto feministas e feministas, de finais do século XVIII aos nossos dias. Com o título, "Maria Archer e outras Mulheres de Referência e (Ir) reverência", se pretende sublinhar o que, para além da diversidade de épocas, lugares e contextos sócio-culturais, todas têm em comum. Durante o primeiro trimestre deste ano, no lugar e no período de abertura ao público da Exposição de Homenagem a Maria Archer, que vai até 31 de março, está previsto um ciclo de colóquios presenciais, com regularidade quinzenal, subordinado ao tema " Mulheres que mudaram o mundo dos homens". Na incerteza que a crise pandémica traz ao nosso quotidiano, não está ainda fechada a planificação do ano, que, assim, continua aberta a novas propostas e sugestões à volta das grandes causas de Maria Archer: a criação literária e artística das mulheres como expressão de liberdade e dimensão de cidadania ,a compreensão da alteridade, a aproximação dos povos da lusofonia, no trânsito da dominação colonial num novo espaço policêntrico, o feminismo como humanismo, as fronteiras do feminino e a desocultação do seu lugar na História. Maria Archer viveu num presente de que ela já era o futuro, foi incompreendida, perseguida pelo regime, exilada, e, mais ainda, como escreveu Maria Teresa Horta "deliberadamente apagada da História". No ocaso de uma brilhante trajetória que a doença encurtou, já não encontrava ânimo para combater o esquecimento a que fora sentenciada, mas acreditava que novos tempos lhe fariam justiça. Primeiro nos meios académicos do Brasil, agora também já em Portugal, uma plêiade de investigadores veio dar-lhe razão, cumprir a sua esperança. A comemoração desta efeméride, no Porto, em Lisboa, em São Paulo, e um pouco por todo o lado, é uma etapa do seu percurso de retorno. Quarenta anos após a sua partida, Maria Archer está de volta, para ficar na História das Letras e do jornalismo, da literatura colonial, da democracia, pela qual luta na primeira linha de intervenção, e do feminismo, cujo bandeira, com raras mulheres, empunhou em meio século de ditadura e obscurantismo. Os portugueses vão descobrir que tão fascinante é a obra como a vida de Maria Archer

BALBINA - O LUGAR DAS MULHERES NAS ARTES

A PINTURA DE BALBINA MENDES – O LUGAR DAS MULHERES NAS ARTES Balbina Mendes ocupa um lugar de primeiro plano na Arte pictórica em Portugal, através de um trajetória feita de originalidade e de inovação, numa constante travessia de fronteiras artísticas - sempre em movimento, numa viagem de procura sem fim, pelo gosto de lançar a si própria desafios, um depois de outro, através da experimentação de ideias, de temáticas, de técnicas, de materiais, com a ousadia de sempre, a segurança dada pela maturidade, e a invariável insatisfação, essência de uma obra em que o talento inato se expressa, reinventando-se. Um percurso raro nos vários ângulos em que o podemos considerar, desde logo porque começou numa pintura de matriz etnológica, que recuperava arquétipos primordiais emergindo, revistos e recriados em toda a sua magia, em telas de grande dimensão e impacto. A Natureza, as vivências, os costumes da sua terra são, assim, transpostos, num universo de interlocução que foi crescendo, à medida que a própria Balbina ganhou notoriedade e reconhecimento, em exposições individuais nas mais prestigiadas Galerias. As suas espantosas “Máscaras Rituais do Douro e de Trás-os-Montes “ fizeram história, simultaneamente a do lugar da sua infância, a das suas gentes e tradições, perdidas e achadas no tempo, e a dela própria, inconfundível intérprete e narradora de memórias e rituais identitários. Não menos importante é sublinhar a sua capacidade de se impor em grande mostras individuais, o que é, por ora, entre nós, coisa que só está ao alcance de um escol de mulheres pintoras. Embora a perceção comum não o reconheça mantém-se, ao nível de mega exposições com um só nome no cartaz, um largo predomínio masculino, enquanto nas coletivas, ou nas que são exibidas, mais modestamente, em pequenos redutos, elas ultrapassam já os homens, num avançar gradual, como se estivessem, ainda, em difícil transição do espaço privado para o público… É um exemplo que poderemos extrapolar, em muitas outras áreas, a nível nacional e internacional, constatação eficazmente determinante na criação do movimento pela Arte no Feminino, que, no último quartel do século XX, teve uma das suas líderes mais insignes e arrojadas em Paula Rego, símbolo máximo da nossa pintura, cujo recente passamento foi ocasião de a enaltecer e entronizar no panteão dos imortais. Nas suas próprias palavras: "As minhas pinturas são pinturas feitas por uma artista mulher. As histórias que eu conto são histórias que as mulheres contam. O que é isso de uma arte sem género? Uma arte neutra?". [...] "Há histórias à espera de serem contadas, e que nunca o foram antes. Têm a ver com aquilo em que jamais se tocou-as experiências de mulheres". Uma tomada de consciência e um discurso com que a vanguarda feminista dessa época incorporou o plano da expressão artística na globalidade da sua luta - discurso que, diga-se, neste como em qualquer outro campo, é tudo menos pacífico. Mais consensual será, certamente, a exortação de Gisele Breitling em favor de "uma nova e verdadeira universalidade em que o feminino assuma o seu lugar de direito e o masculino as suas verdadeiras proporções". Guardo-me, aqui, de entrar na complexa questão do modo como o "género" se exprime, (com caraterísticas próprias ou comuns e indistintas), ficando-me pelo que não pode ser contestado: o masculino avulta, desde tempos imemoriais e permanece como autêntico "padrão", enquanto o feminino é visto como "alteridade". Por outro lado, o sucesso das "mulheres-exceção" não deve deixar no esquecimento a persistente desigualdade de uma maioria, que as estatísticas, na fria linguagem dos números, denunciam. Como escrevia Armando Bouçon, no catálogo da 1ª Exposição de “Mulheres d’ Artes”: "Uma análise correta de toda a história da Arte dá-nos uma perceção muito transparente de como o campo das artes plásticas foi ocupado durante muitos séculos pelo género masculino". Foi. E, se atentarmos nas diferenças de visibilidade, segundo o sexo, continuará a ser, ao menos na medida de uma persistente desproporção. É um desequilíbrio que pode debelar-se de muitas e diversas maneiras… No panorama português, Balbina Mendes tem, a meu ver, contribuído, poderosamente, para que as mulheres acedam, na vida cultural do país, ao seu "lugar de direito". Fá- lo, ocupando, simplesmente, esse lugar, com força anímica e qualidade de sobra, sem em nada se julgar discriminada, sem se sentir diferente, isto é, do lado de lá de uma linha de separação... É um caso a seguir, no campo das exceções, que, na minha ótica, tão devagar se vai alargando. Balbina faz parte das mulheres que, à partida, se sentem consideradas como iguais, e cuja atitude de despreocupação com disparidades de género, contém, implícita, a intransigente exigência de tratamento igualitário! À margem de manifestos reivindicativos, alcançaram, por si, as metas que o movimento se propôs e propõe, e, assim, afinal, o reforçam. E será que a proclamação da especificidade de género, pode, no limite, paradoxalmente, dar azo à persistência de formas larvadas de discriminação?. É uma dúvida pertinente. A "arte com género" de que fala Paula Rego, pode, ou não, abaixo do patamar do génio universal a que ela subiu, transformar-se , de facto, não em sinal vanguardista de contracultura, mas em âncora de estereótipos de género, conotando o feminino com características convencionais que são, em sociedades ancestralmente misóginas, uma menos valia? O ponto de interrogação vale para qualquer setor... Recordo o crítico literário João Gaspar Simões, que, ao elogiar a força imanente da prosa de Maria Archer, o realismo puro e duro com que ela aborda temáticas ousadas, a qualificava não como uma grande escritora, mas como "um grande escritor" ... E não é verdade que a poetisas consagradas, como Sophia de Mello Breyner, ou Ana Luísa Amaral, preferimos chamar poetas? Ambíguo cumprimento, a que subjaz a conceção da masculinidade intrínseca do cânone... Certo é que, para esta escola de pensamento, Balbina é uma das grandes pintoras que merece, por inteiro o cumprimento, ainda que, pessoalmente, se não queira rever na categoria de "grande pintor". A sua arte não procura rivalizar com quem quer que seja, nem obedece a ditames ou limitações de qualquer espécie, segue numa trajetória ascensional de inovação da estética e policromia, do ensaio de técnicas, da fusão de materiais...É genuína e livremente Ela, transmutando para a pintura a experiência ganha nos muitos espaços geográficos e culturais que a sua vivência atravessa e o seu olhar penetra. É única e inconfundível. Se me é permitida uma outra adjetivação, direi: carismática! Uma palavra que tão perfeitamente se ajusta a Autora como à globalidade da sua obra. Balbina é uma admirável contadora de histórias de vários tempos, do tempo presente a tornar-se passado, ou do passado em dinâmicas e impulsos que o trouxeram até nós, num rasto longo de evocações de festividade populares, rituais, crenças, valores revividos e reconfigurados em toda a sua magia e em todo o seu mistério. No percurso imparável de Balbina, para mim, no princípio era o rio... porque a conheci na exposição em que nos oferecia uma verdadeira crónica pictural do Douro, deslizando entre margens, da nascente até à foz, incorporado na beleza encantatória de paisagens, onde as gentes apenas se pressentiam, sem se verem... . Reencontrei-a, depois, em outro e surpreendente ciclo temático, na exposição das Máscaras Rituais do Douro e Trás os Montes, em que os homens se faziam presentes, mas ainda sem se verem... Era o início de um tropo narrativo em torno da máscara, incursão às raízes ancestrais, entrelaçamento telúrico de emoções e saberes, recriados nos traços dos seus pincéis, em explosões de cor... Não resistindo a voltar a uma perspetiva feminista sobre o ineditismo das suas escolhas -perspetiva que, não sendo certemente a de Balbina, me permito ousar - noto a esplêndida audácia com que se apodera, para a eternizar em arte, da tradição masculina da máscara, símbolo, por excelência, da superioridade e camaradagem de sexo, da festa e do cerimonial rigorosamente interditos à mulher... É um prenúncio, um sinal da força subversiva e libertária da sua aventura artística. Logo depois, vai ultrapassar uma última barreira, no momento em que a fragmentação ou transparência das máscaras põe a descoberto... rostos femininos! Uma definitiva ruptura com o interdito. Transgressão, que Paula Rego, sem dúvida, saudaria com “o gozo pela inversão e pelo desalojar da ordem estabelecida". Por isso, Balbina Mendes poderia estar, se quisesse, entre as referências do movimento emancipatório de contracultura feminina nas Artes, na senda da emblemática Paula sobre quem Ana Gabriela Macedo afirma: [...] ela questiona continuamente os chamados "corolários naturais" da diferença de sexos, bem assim como a suposta "ordem natural das coisas", que se traduz na passividade, dependência e submissão, desmistificando o discurso estético e desmascarando o seu papel eminentemente ideológico e as relações do poder, que aí se encontram camufladas [...]. Na sua mais recente exposição, intitulada "Segunda pele", o engenho narrativo de Balbina não nos revela, antes adensa o segredo dos jogos entre as faces desocultada e as suas máscaras, mas revela-a, definitivamente, como assombrosa retratista, do rosto, das suas metamorfoses, do tangível e do intangível. Confirma o seu incessante questionamento sobre o ser, as suas mutações e aparências. É, agora, na Literatura que busca inspiração, glosando, em enigmáticas efígies, motes Pessoanos. As respostas que encontra na tela são sempre fonte de sucessivas interrogações, de demandas inspiradas na heteronímia do Poeta, ou até, talvez, simplesmente na duplicidade do “eu” de cada um de nós . Como dizia Maria Anderson; "Qualquer pessoa ficciona a sua própria identidade, Não nos ficcionamos sempre da mesma maneira. Vamos mudando o guião". Ou, secundando Maria Velho da Costa, nos poderemos interpelar: "Quem sou? Talvez seja quem vou sendo..." A pessoa. A persona… Para onde vai, Balbina Mendes? Para onde nos levará , no ímpeto de romper limites, a grande cultora de saberes arcanos e enigmas do espírito, em diálogo introspectivo com as Artes, com a Vida, connosco, nas suas cada vez mais fascinantes mensagens visuais? Maria Manuela Aguiar Espinho, junho de 2022

SÉRGIO C - Há 5 anos, no Milénio, de Toronto....

SÉRGIO, UM TREINADOR PORTISTA, UM TREINADOR À PORTO  1 - Para mim, festejar um título é sempre subir ao céu (ao céu muito azul), mas o campeonato ganho neste maio de 2018, foi especialíssimo! Fez renascer a esperança no recomeço de um longo ciclo de vitorioso, e acordou memórias da primavera de 1956, de um outro campeonato alcançado contra a predestinação, o impossível  - ou, talvez, afinal, simplesmente, forças mais ou menos ocultas. 1956! A primeira vitória azul e branca no meu tempo de vida, quando o centralismo nacional ditava o vencedor antecipado, com regras não escritas, mas cumpridas (como nas eleições em ditadura).  Só os da minha geração (privilégio da idade) podem comparar, em tudo o que têm de espantosamente semelhante, duas equipas separadas por mais de sessenta anos de história - a de Yustrich e a de Sérgio Conceição. Em ambas, sobressai o treinador, que as impulsiona à sua imagem, unindo um coletivo, em que todos são iguais. Ambas entram em campo de rompante, e partem para o ataque, com a intensidade que o líder lhes inculca, sem nunca vacilar ou desistir. Ambas se apresentam desfalcadas de nomes sonantes, parecendo de menos para o feito enorme que se lhes exige. De fora, poucos acreditavam que o conseguiriam, porém, eles - Sérgio, como Yustrich, e os seus  jogadores - não tiveram dúvidas, só certezas de alma! Se quisermos ir ao pormenor, poderemos ver no veloz gigante que é Marega um avatar de Jaburú, no artista que é Brahimi o de Hernâni, e em Sérgio Oliveira o de Monteiro da Costa, "quinta essência"  da entrega à luta e de orgulho nas cores da camisola. 2 - Um regresso ás origens... de resistência à adversidade e ao desfavorecimento dos poderes instalados. A primeira vida do FCP decorreu, invariavelmente, assim. Mais obstáculos, mais dificuldades, forjaram o seu  caráter. Triunfos com a dimensão da utopia, criaram a sua mística. O sumptuoso troféu que o Povo da cidade lhe ofereceu quando, num "match" particular, derrotou o nº 1 do mundo, um Arsenal no apogeu, era já o prenúncio de uma ambição sem limites, que havia de levá-lo ao patamar proibido  - o de campeão do mundo de clubes. A segunda vida do FCP começa, (como não poderia deixar de ser), numa revolução libertária, em 1974. A revolução chegou ao futebol, com uma inesperada "viragem a norte" e a marca de Jorge Nuno Pinto da Costa. [44 anos depois, note-se, semelhante rotura está ainda por fazer na política, onde o centralismo, herdado da ditadura, mantém o cerco às atividades económicas, culturais, sociais, fora de Lisboa].Em liberdade, o FCP pode ser igual, Em igualdade, pode ser superior. Do plano nacional ao internacional. Não era milagre, era organização, modernidade, rigor, liderança...  As estruturas organizacionais criavam valores, convertendo jovens desconhecidos, vindos de todo o lado, em estrelas, apostando em técnicos e treinadores portugueses, que ganharam fama universal - na senda de Artur Jorge e de Mourinho. Dir-se-ia o "toque de Midas"!  3 - A época de ouro teve o seu ocaso numa longa e dura a travessia do deserto de títulos. Em 2917, com o plantel depauperado e um orçamento zero para contratações, por imposição das regras de  "fair-play" financeiro, parecia não haver treinador de renome que aceitasse um convite do FCP. E eis que surge em cena um "voluntário", capaz de trocar o certo pelo incerto, disposto a reduzir a metade o valor do contrato que o ligava a um dos grandes de França e pronto para a missão impossível de salvar o Dragão - o seu clube. Sérgio, o resistente, que desde menino soube viver com pouco, conviver com a injustiça e nunca se dar por vencido. Não era, ao que consta, uma primeira escolha, mas foi, sem dúvida muito melhor do que qualquer outra teria sido.À chegada, deixou bem claro que vinha para ensinar, não para aprender. E assim foi. Consigo trouxe, de facto, não só o saber muito de futebol, em termos teóricos e práticos, mas também "a arte de ensinar a arte", de levar cada um a redescobrir-se, na sua capacidade de evolução, não apenas individual, mas como parte de um todo. Não é para qualquer um  - é só para génios! Como Mourinho, que, nas primeiras declarações, afirmou que, no ano seguinte, iria fazer da equipa do Porto campeão - e fez! -  para tal lhe bastando dois reforços do Leiria e um do Setúbal, contratados a custo reduzido, Chamavam-se Derlei, Paulo Ferreira e Nuno Valente, aos quais se juntou o incomparável Ricardo Carvalho, que andava emprestado.   Paradigmático, na tradição de Mourinho, o modo como, inteligentemente, conseguiu adaptar as disponibilidades à sua ideia de jogo (ou as táticas às disponibilidades...), como transformou em mais valias, jogadores " descartados" pelos seus diretos predecessores. Recuperação profissional, recuperação humana, numa rota de transcendência, de emoção, que, de imediato, passou às bancadas, e arrastou multidões no movimento imparável para a vitóriaAssombroso o ensinamento de Sérgio, que vale tanto para avaliar o passado recente, (nomeadamente, a "performance" dos seus antecessores) , como para preparar o futuro, de preferência com ele. Sérgio Conceição foi um jogador que admirei imensamente e um treinador em quem sempre acreditei  - o que, em tempos recentes, só com Villas Boas acontecera. No que estava bem acompanhada!, Antes de ser, nesta segunda veste, entronizado na história do FCP, já ele era o herói do povo. E o povo também jogou neste campeonato!  in Milénio, Toronto, maio 2018
CINEMA EM ESPINHO 1 – Não nasci em Espinho, mas, tudo somado, aqui passei a maior parte de uma já longa existência. Nos meus tempos de infância e juventude, Espinho era, para mim, sinónimo de lazer e de liberdade. E, na verdade, apesar de termos mudado muito, tanto eu como a cidade, esta continua a sê-lo…. Tenho uma paixão pelo "nosso mar",por um oceano de correntes fortes e águas frias. Ainda por cima, se há coisa que evoluiu pela positiva é precisamente… o mar, graças aos paredões, que criaram uma autêntica piscina natural, onde é, agora, mais seguro nadar, sempre com surfistas ao largo. A bonita piscina, inaugurada quando eu mal sabia andar, está como nova, e a marginal bem cuidada, do Rio Largo a Silvalde. Vão crescendo zonas de esplanada, restaurantes, cafés - cafés que, todavia, não fazem esquecer os antigos, os da Avenida, palcos perdidos de tertúlias memoráveis, e a própria movida de gente elegante no seu vaivém sob as palmeiras… Esse Espinho da nossa nostalgia não volta mais. É preciso, sim, valorizar o que é, talvez, ainda possível. O cinema, por exemplo. 2 - De entre todas as atrações que a vila, (depois, cidade) de Espinho nos disponibilizava, uma das mais extraordinárias era, certamente, o cinema! Nem o Porto, com tantas e tão boas salas de espetáculos, a suplantava. O Teatro São Pedro e o Cine Teatro do Grande Casino de Espinho ofereciam-nos sessenta filmes por mês, com renovação quotidiana de um cartaz destinado a todos os gostos, em instalações de luxo! No início do mês, cumpria-se o ritual de ir às bilheteiras do São Pedro e do Casino pedir o programa (quinzenal ou mensal). Muitas vezes, dois bons filmes coincidiam no mesmo dia e nós assistíamos à tarde a um, e ao outro à noite. À noite com os pais, que raramente estavam indisponíveis para nos levarem com eles. Éramos uma família de cinéfilos. Foi com meu avô Manuel que me “viciei”, desde cedo, na sétima arte. Lembro-me de ir pela sua mão, com cinco ou seis anos, ao Batalha recém-inaugurado. Via e apreciava tudo – comédias, dramas, operetas, “westerns” … Tudo exceto filmes infantis! Guardei alguns desses "Programas" espinhenses, em papel de variadas cores – azul ou rosa pálido, verde, laranja… - com sintéticas notas sobre cada filme. Do São Pedro encontrei um programa de agosto de 1962 e outro de setembro de 1981. Com duas décadas de diferença, nada se havia alterado, nem o estilo da sinopse de propaganda, nem o horário das sessões (3,30 da tarde e 9,45 da noite). Porém, talvez por mero acaso, o nível da programação não é semelhante. 1962 a ganha com filmes imperdíveis como “Esplendor na relva”, “Rocco e os seus irmãos”, “O Desconhecido do Norte Expresso” (do “genial Hitchcock”, diz a nota), “O Rosto” (do “mestre Ingmar Bergman” não se esquecem de salientar), “A quimera do Ouro” (“com o incomparável e genial Charlot”) e, em “cinemascope”, em grande ecrã, “A Colina da Saudade, “Topaze”, “Austerlitz”. Os realizadores, com a exceção de Hitchcock e de Bergman são omitidos - até Chaplin é apenas destacado como ator da sua obra prima!. Na primeira linha estão os atores (Audrey Hepburn, a deliciosa “Boneca de luxo”, ou Vittorio de Sica em “O inimigo de minha mulher” e “O mundo dos milagres”). Compreensível, pois eram, sobretudo, as grandes estrelas que chamavam as multidões às salas. Naquele agosto, a minha assiduidade no S. Pedro terá sido constante. Não assim em setembro de 81, com “Django”, “Mais forte que Bruce Lee” e similares… Mas terei visto, na muito musculosa seleção, Stuart Granger em “O grande atirador”, Sean Connery em “007 Só se vive duas vezes” e Steve Mc Queen em “Tom Horn”. Quanto ao Casino, de 1 a 10 de setembro de 1968, talvez não tenha perdido o anunciado “filme dos três óscares” com James Gardner, Eva Marie Saint e Yves Montand (“Grande Prémio”) e o Mr Solo “em ação, Implacável! Atrevido! Eletrizante”, segundo o anúncio. 3 - Espinho é hoje, praticamente, uma cidade sem cinema! O São Pedro foi demolido, barbaramente, na meia década de oitenta, e a moderna sala com que o Município garantia a sua continuidade, vendida, poucos anos depois, a uma dessas novas religiões… E o Casino, que possui uma das mais belas e confortáveis salas de cinema do país, também fechou portas, aparentemente, sem protestos de ninguém. Resta, hoje, o imponente espaço do “Centro Multimeios”, que, porém, na melhor das hipóteses, propicia aos espinhenses, um filme por semana - quatro por mês! Mas nem isso nos assegura, porque os hiatos na programação são frequentes e vistos como coisa normal. As prioridades são outras. O interesse pelo cinema parece limitar-se aos festivais – Cinanima, FEST - e ao cineclube. Neste mês de dezembro, o “FEST -cineclube de Espinho” exibiu, no Auditório do Casino seis filmes (nos dias 3, 7, 10, 14, 17 e 19). Foi muito mais do que o Multimeios! É de saudar e louvar, sem sombra de dúvida. Sou uma fã de cineclubismo, assim como dos Festivais, que mantêm Espinho no mapa. Todavia, isso não pode compensar a falta de regularidade e de diversidade da oferta, que são os fatores fundamentais de uma política cultural capaz de fomentar o gosto pela frequência das salas de espetáculos, a resistência ao declínio, para muitos fatal, das audiências. Eu estou entre os que não acreditam nessa fatalidade! E não vou longe buscar exemplos que provem o contrário. Não penso, obviamente, nos “shoppings”, com a sua multiplicidade de salas, que, finda a pandemia, vão recuperando público. Não são solução para a nossa cidade, que, neste campo, não vai além de supermercados do ramo alimentar. Mas há, aqui bem perto, no centro do Porto, paradigmas admiráveis, apostas em salas de dimensão modesta, perfeitamente ao alcance de Espinho – o cinema Trindade e, agora, neste final de 2022, o mítico Batalha ressuscitado. O futuro do Batalha está apenas a dar os primeiros passos. É cedo para celebrar o seu sucesso. Não o do Cinema Trindade, que, com duas pequenas e excelentes salas, apresenta, há anos, uma programação de qualidade. E, surpreendentemente, em quantidade! Hoje, 5ª feira, 29 de dezembro, jogando com diferentes horários, têm sete filmes em exibição: “Os Fabelmans” de Spielberg, os portugueses “O Natal de Bruno Aleixo”, e “Lobo e cão”, um filme premiado em Veneza (“Ossos e tudo”), a comédia “Ruído branco”, a evocação da Imperatriz Sissi em “Corsage” e o thriller sul-coreano “Decisão de partir”. Eu gosto muito de ir ao Trindade, mas confesso que gostaria mais de ver algumas dessas longas metragens, aqui, em Espinho. E nem peço sete por dia. Em 2023, para começo, apenas um ou dois....
VIII CONGRESSO INTERNACIONAL - VEZ E A VOZ DA MULHER IMIGRANTE PORTUGUESA: MOBILIDADES E INTERCULTURALIDADES Políticas públicas para a emigração feminina: o caso português - uma perspectiva diacrónica Manuela Aguiar Resumo Portugal é um país de emigração multissecular, cujas políticas tradicionalmente descuraram a proteção dos cidadãos fora de fronteiras e se caracterizaram pela prioridade de regular os fluxos de saída, com a quase constante imposição de restrições ao êxodo masculino e de proibição ou de limitação sistemática das migrações femininas, primeiro para Oriente, depois para o Brasil e outros destinos. As primeiras políticas públicas destinadas às mulheres são marcadas por uma misoginia sem paralelo na Península Ibérica e na Europa. A revolução de 1974 trouxe a todos os cidadãos portugueses a liberdade de emigrar e o desenvolvimento de medidas de apoio cultural e social, sem que, todavia, a situação específica das emigrantes fosse objeto de particular atenção. Em 1981, o recém criado Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP), Órgão representativo da emigração e instância consultiva do Governo, era composto por cerca de 60 membros, eleitos no âmbito associativo, todos do sexo masculino. Em 1983, nova eleição em colégio associativo trouxe à instituição as duas primeiras mulheres conselheiras, uma das quais, Maria Alice Ribeiro, de Toronto, avançou com a proposta da convocação de um encontro mundial das mulheres emigrantes portuguesas. O 1º Encontro Mundial veio a realizar-se em 1985, com o alto patrocínio da UNESCO, dando ao país um improvável lugar de pioneirismo europeu e mundial. No entanto, a sequência a dar às suas principais conclusões só viria a concretizar-se a partir de 2005, pela via dos “Encontros para a Cidadania - a igualdade entre homens e Mulheres”, uma iniciativa desenvolvida através de uma parceria entre a Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas e ONG’s, como a Associação Mulher Migrante e a Fundação Pro Dignitate. A descontinuidade dos “Encontros para a cidadania” (do “congressismo” como instrumento de luta pela igualdade) e a sub-representação feminina no interior do Conselho das Comunidades, eleito por sufrágio direto e universal, marcam o estado atual das políticas públicas com a componente de género nas nossas comunidades do estrangeiro. Abstract Public Policies for Female Emigration: The Portuguese Case - a Diachronic Perspective Portugal is a country of centuries-old emigration, whose policies traditionally neglected the protection of citizens outside borders and were characterized by the priority of regulating outgoing flows, with the almost constant imposition of restrictions on the male exodus and the systematic prohibition or limitation of female migration, first to the East, then to Brazil and other destinations. The first public policies aimed at women are marked by unparalleled misogyny in the Iberian Peninsula and Europe. The 1974 revolution brought all Portuguese citizens the freedom to emigrate and the development of cultural and social support measures, without, however, the specific situation of female emigrants being the object of particular attention. In 1981, the newly created Council of Portuguese Communities (CCP), the body representing emigration and a consultative body for the Government, was made up of around 60 members, all male, elected within associations. In 1983, a new election at an associative college brought the institution the first two women councillors, one of whom, Maria Alice Ribeiro, from Toronto, advanced with the proposal to convene a world meeting of Portuguese emigrant women. The 1st World Meeting took place in 1985, with the high patronage of UNESCO, giving the country an unlikely place of European and world pioneerism. However, the followup to be given to its main conclusions would only materialize from 2005 onwards, through the “Meetings for Citizenship - equality between men and women”, an initiative developed through a partnership between the State of Portuguese Communities and NGOs, such as Associação Mulher Migrante and Fundação Pro Dignitate. The discontinuity of the “Meetings for Citizenship” (of “congressism” as an instrument of struggle for equality) and the female under-representation within the Council of Communities, elected by direct and universal suffrage, mark the current state of public policies with the gender component in our communities abroad. 33 Nas políticas públicas para as migrações femininas distinguiremos três períodos, com base nos seus princípios norteadores, na sua trave mestra: - as políticas de proibição, no tempo longo que se inicia com a Expansão e vai até à Revolução de 1974. - as políticas de indiferença, a partir da proclamação na Constituição de 1976 da plena liberdade de emigrar e dos direitos de cidadania aos emigrantes, sem que o Estado promovesse ativamente a igualdade de sexos. - as políticas para a igualdade –desde o início do século XXI, dando cumprimento à tarefa fundamental do Estado de promover a participação cívica e política da mulher no espaço das comunidades do estrangeiro. 1. As políticas proibitivas ou limitativas da emigração de mulheres Sobre estas direi apenas umas breves palavras, abarcando séculos de discriminação. Charles Boxer, um dos académicos que mais e melhor analisou o período histórico da colonização dos dois Estados peninsulares e um dos poucos que, no contexto global, se debruçou sobre a presença feminina na Expansão ibérica, considera as práticas de interdição da saída das mulheres portuguesas como o mais acabado exemplo de misoginia, comparando-as, negativamente, com as leis e os usos castelhanos. A colonização promovida pela Coroa portuguesa foi, desde o começo, concebida como aventura exclusivamente para homens, com a contrapartida da tolerância, ou mesmo do incentivo, à miscigenação, ao contrário da política castelhana, que sempre privilegiou a emigração familiar, obrigando os homens a levarem consigo as esposas, ou a regressarem a casa, para cumprirem os deveres conjugais. No nosso caso, entre as exceções conhecidas à posição dominante conta-se a que terá envolvido o maior número de mulheres viajantes para Oriente, as chamadas “órfãs d’el Rei”, jovens dadas em casamento a soldados e outros colonizadores, com um dote por recompensa. Foram tentativas mais ou menos irregulares e limitadas de reforçar, nas colónias, a cultura do reino. As restrições impostas às portuguesas na Carreira da Índia tinham uma eficácia praticamente total, devido aos elevadíssimos custos e riscos de uma demorada viagem de muitos meses. Não assim nos trajetos para Ocidente, para o Brasil, onde a componente feminina foi sempre mais significativa, quer fosse autorizada, ou não, e cresceu, enormemente, com a navegação a vapor, o substancial embaratecimento do transporte transoceânico. Sobre a saída em massa de mulheres, o Prof. Emygdio da Silva falava de “tremenda constatação” e o Prof. Afonso Costa de “depreciação do fenómeno migratório”. Constatamos, assim, que não só os decisores da “res publica”, fossem eles monárquicos ou republicanos, como a “intelligentzia” nacional perfilhavam a mesma conceção sobre o conceito de “boa emigração”: aquela que era posta ao serviço dos interesses do Estado, com total prevalência sobre interesses e os projetos individuais. Expatriação útil e conveniente para o equilíbrio das contas externas e para o combate à miséria do mundo rural, era a de homens sozinhos, que, nessas condições, trabalhavam duramente e enviavam vultosas remessas para sustentos das famílias e, por fim, porventura velhos e cansados, regressavam à terra. A argumentação evidencia o reconhecimento da influência da presença da mulher no curso do projeto migratório e no seu destino final, com maior probabilidade de uma bem-sucedida integração e de não retorno - tendências que se viriam a confirmar. Não adivinharam, porém, outro tipo de ganho, maior e o mais duradouro: em vez da temida “desnacionalização” o surgimento de comunidades, portuguesas de língua, cultura e afeto, que são indissociáveis de uma forte componente feminina. Ao longo do século XX, as portuguesas continuaram a emigrar, e, quando as fronteiras se fecharam aos trabalhadores ativos, na década de setenta, ultrapassaram-nos em número, porque eram admitidas a título de reunificação familiar. Estatisticamente, são atualmente cerca de metade das nossas comunidades na Europa e no mundo. 34 2. As políticas de indiferença Uma fase inteiramente nova se abre com a Revolução do 25 de Abril e a inteira liberdade de emigrar. A revolução de 1974 é a única a romper com a tradição de controlo estatal dos fluxos migratórios, que atravessara todos os regimes, da monarquia absolutistas ou constitucional, à República e à Ditadura. A Constituição de 1976 veio reconhecer aos expatriados os seus direitos de cidadania e proclamar a plena igualdade entre mulheres e homens. Porém, como a história das sufragistas nos ensina, o abater das barreiras jurídicas que, na conceção patriarcalista, excluíam as mulheres da vida pública, foi apenas o primeiro passo numa caminhada onde barreiras de outra natureza lhes opõem não menor resistência. E, por isso, o próprio legislador constitucional não se limitara a consagrar o princípio e impusera ao Estado, no art.º 9º,(reforçado, na revisão de 1989 pelo normativo do art.º 109º) a tarefa fundamental de promover a igualdade entre homens e mulheres no que respeita à participação cívica e política. Nada na letra ou no espírito da lei permite a interpretação restritiva de limitar essa incumbência ao território nacional. Contudo seria essencialmente no território que os Governos centraram o olhar, através da criação da Comissão para a Igualdade (com esse ou outro título). As mulheres migrantes foram esquecidas nos programas e na ação dos governos durante três décadas. À Comissão para a Igualdade não foi dado mandato para intervenção nas comunidades portuguesas, e a Secretaria de Estado da Emigração não criou uma instância própria para o mesmo fim. Na relação com as comunidades migrantes a inércia dos governos, porventura a coberto da sobrevalorização do plano jurídico formal, foi permitindo a diluição das caraterísticas e da realidade do feminino no todo da emigração, sempre padronizada no masculino. Os problemas, os contributos, o papel das mulheres em cada comunidade, permaneciam na sombra. Até em períodos de acentuada feminização do fenómeno migratório se manteve essa atitude de descaso, não obstante serem consideradas mais vulneráveis, e, quando acediam ao mercado de trabalho, duplamente discriminadas, como mulheres e como estrangeiras. Preconceitos que vieram a ser infirmados pela investigação académica pioneira de Engrácia Leandro sobre as famílias da região de Paris, na década de noventa. A emigração constituiu para as famílias, desde logo graças ao duplo salário, um forte impulso ao bem-estar económico e para as portuguesas da geração do “salto”, oriundas da ruralidade e da pobreza, quase sempre, uma via de emancipação, pela autonomia do trabalho remunerado, e por uma vivência mais igualitária dentro da família e em sociedades onde se integraram, quase sempre, mais rapidamente e melhor do que os homens. Porém, dentro das comunidades portuguesas, o seu papel regredia em obrigatória conformidade de estereótipos ancestrais. Nas associações, nos centros de convívio, na “casa portuguesa coletiva” a divisão de trabalho reproduz os papeis masculinos e femininos tradicionais na casa tradicional. Os clubes são repúblicas masculinas, onde as mulheres não têm voz nem voto, estão na cozinha, ou nos bastidores da festa. A sua influência pode ser significativa, mas não é para ser vista. 3. As políticas para a igualdade Neste contexto, o meio associativo não podia deixar de ser considerado o principal campo de combate às discriminações de género. Em 1980, o Governo, reconhecendo, globalmente, a importância do fenómeno associativo na autoconstrução e desenvolvimento das comunidades portuguesas, quis estabelecer com as suas organizações uma parceria para diálogo e a coparticipação nas políticas públicas, onde as questões de género não seriam marginalizadas. Para tal foi criado, pelo DL nº 372/80 de 12 de setembro, o Conselho das Comunidades Portuguesas, como fórum representativo dos portugueses do estrangeiro e órgão de consulta governamental. O espírito da revolução de 1974 chegava à Emigração, com seis anos de atraso, rompendo com o paternalismo do “ancien regime”, aceitando o diálogo para uma atuação concertada. Todavia, no tocante à problemática da participação feminina, o 1º Conselho 35 (1981/1990) começou por frustrar expetativas. Em 1981, os eleitos eram todos homens! O grau zero de representação feminina no CCP, nas duas áreas que o formavam, o associativismo e jornalismo, levantava um problema de democraticidade, mas espelhava, afinal, fielmente, a realidade das lideranças associativas. O que fazer, num tempo português em que era impensável a imposição do sistema de quotas, em que a proporção de mulheres na AR era diminuta, nas autarquias insignificante e nos Governos, a nível ministerial, inexistente, com a exceção de Maria de Lurdes Pintasilgo? No segundo ato eleitoral, em 1983, as duas primeiras Conselheiras do CCP ganharam o seu lugar no setor do jornalismo. E foi uma delas, Maria Alice Ribeiro, representante de Toronto, a autora da recomendação para a convocatória de um encontro mundial de mulheres da Diáspora. O Governo deu a maior prioridade à organização desse congresso, e, assim, o mais improvável dos países, pelo registo misógino de políticas multisseculares, e o CCP, uma instituição de rosto masculino, fizeram história, em termos europeus e mundiais, com a primeira iniciativa para o empoderamento de mulheres emigrantes, antecipando em dez anos as decisões da Conferência de Pequim, como afirma Maria do Céu Cunha Rego. O Encontro Mundial de Viana foi uma espécie do Conselho das Comunidades no feminino, em que, pelo nível das intervenções e pelo aprofundamento das questões da emigração feminina e, globalmente, das migrações, as mulheres demonstraram quanto a sua ausência pesava negativamente no CCP. Entre as principais conclusões das participantes do Encontro de Viana estava o projeto de criação de uma associação mundial de mulheres da Diáspora, que não chegaria a concretizar-se. Por seu lado, a SEE, face à continuada sub-representação feminina no CCP, instituiu, em 1987, uma “Conferência para a Promoção e Participação de Mulheres Portuguesas do Estrangeiro”, a funcionar, anualmente, na órbita do Conselho. A queda do X Governo e a tomada de posse do novo Executivo levou ao abandono das políticas para a Igualdade, de imediato, e á extinção do próprio Conselho associativo, em 1990. Seguiu-se um impasse de duas décadas. Só em 2005, por proposta dirigida ao SECP António Braga pela “Mulher Migrante, Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade”, que se considerava, enquanto fórum internacional, herdeira dos projetos sufragados no Encontro de Viana, são assumidos, de forma sistemática e consistente, os deveres constitucionais do Estado neste campo, através da organização dos “Encontros para a Cidadania – a igualdade entre homens e mulheres, realizados nos quatro cantos do mundo ao longo do mandato do XVII Governo Constitucional, entre 2005 e 2009, sob a presidência inspiradora de Maria Barroso. No 1º Encontro, o da América do Sul, em Buenos Aires, com a coorganização da AMM da Argentina, o SECP António Braga falou do “desígnio de retomar da questão de género, que tem andado esquecida ao longo dos anos”, admitindo que “Portugal não tem tratado do papel da mulher nas comunidades de acolhimento à luz dos seus direitos de participação cívica, cultural e política”. Os Encontros Regionais seguintes foram realizados em Estocolmo (2006), em colaboração com o PIKO (Federação de Mulheres Lusófonas), em Toronto (2007), organização conjunta da CônsulGeral Maria Amélia Paiva e de várias ONG’s locais, em Joanesburgo (2008), em parceria com a Liga da Mulher, e em Berkeley (2008), com a participação do Departamento de Estudos Europeus da U Berkeley. No Encontro da América do Norte, em Toronto, o SE da Presidência, Jorge Lacão, reconheceu explicitamente que “ para a promoção da igualdade se não podem limitar à ação junto das portuguesas e dos portugueses residentes no território, citando o Programa do XVII Governo Constitucional e salientando a importância das políticas da igualdade não só para as próprias mulheres, mas para as 36 comunidades e para o aprofundamento da estratégia de aproximação entre estas e o país”. As mulheres, disse, “encontram-se sub-representadas nas instâncias de decisão dos movimentos associativos, pelo que os seus pontos de vista e necessidade se arriscam a não ser tidos em conta”. 4. O ciclo do “congressismo” (2011/2015) A via de conferências e debates, que fora privilegiada pelo XVII Governo, liderado pelo PS, veio em ser prosseguida num crescendo de iniciativas, pelo Governo PSD/CDS, com o Secretário de Estado José Cesário, numa linha de continuidade, que é, infelizmente rara na nossa vida política. A AMM foi, de novo, solicitada a uma colaboração de primeiro plano, e propôs ao Secretário de Estado um plano de alternância entre Congressos Mundiais, a realizar no país, e os Encontros Regionais nos moldes anteriores. Este quadriénio foi, no quadro das políticas para a igualdade, o período áureo do “congressismo”, com dois Encontros Mundiais, no Fórum da Maia, em 2011, e em Lisboa, no Palácio das Necessidade, em 2013 e quase uma trintena de conferências, colóquios e debates, em diversos países e regiões, sempre com parcerias locais, de associações, de universidade e centros de investigação, juntando a vertente académica à da militância ativa. Para José Cesário “o papel da Mulher é absolutamente decisivo para essa mudança” em comunidades com “grande défice de participação política! 5. O diálogo para a igualdade e o papel do CCP (2015-2019) As legislativas de 2015 levam a nova alternância no poder, do PSD para o PS, com José Luís Carneiro a assumir a pasta da emigração e a manter a problemática da Igualdade nas suas preocupações. Procurou novas formas de cooperação com a Secretaria de Estado da Igualdade, com ONG’s das comunidades e, em particular, com a AMM. Só condicionantes de ordem financeira e burocrática, decorrentes de novo modo de funcionamento da DGACCP, inviabilizaram a realização de um novo Encontro Mundial. A via alternativa foi apostar no Conselho das Comunidades. Pela primeira vez, na Reunião Mundial do CCP, órgão onde as mulheres se mantinham (e se mantêm…) sub-representadas, houve um longo debate sobre estas questões, para o qual me convidou, enquanto sua antecessora e dirigente da AMM, juntamente com a Secretária de Estado da Igualdade. Poderão futuros Executivos da República cumprir os seus deveres neste domínio, através de uma parceria com o CCP, na estratégia de Governos da década de oitenta, retomada por José Luís Carneiro? É a interrogação que aqui deixo. As próximas eleições para o CCP, o mais tardar em 2024 poderão dar indícios seguros. Será este Órgão representativo capaz de acompanhar a evolução das próprias comunidades, onde é, hoje, muito maior, embora longe da paridade, a presença das mulheres no dirigismo associativo, refletindo esse visível progresso na sua composição e funcionamento mais igualitário? Ou será mais fácil às mulheres terem oportunidades iguais na vida das comunidades do estrangeiro do que no próprio CCP? Nunca saberemos, ao certo, quanto as políticas públicas no seu esforço conjunto com organizações feministas, contribuiu para chegar ao ponto em que estamos, mas sem menosprezar a parte do Estado, sabemos que a resposta, hoje, mais do que ontem, está nas mãos das mulheres. O que, nas vésperas de eleições para o CCP não iliba o governo da sua tarefa de mobilização de todos, e, em particular da minoria que as mulheres têm sido. Palavra de ordem: Participem!