terça-feira, 18 de outubro de 2022

ISABEL II - SELF MADE QUEEN

ISABEL II, "SELF-MADE QUEEN" 1 - A morte de uma grande Rainha é apenas o início de uma outra forma de vida imortal. Os primeiros dez dias dessa outra vida foram pontuados por rituais e homenagens fúnebres a que incontáveis milhões de telespectadores assistiram no pequeno ecrã (estima-se que o número andou perto de mil milhões) e em que centenas de milhares de pessoas participaram, presencialmente. O passamento de Isabel II deixou muito poucos indiferentes, a nível planetário. A cobertura mediática exaustiva e intensiva mais não foi do que o reflexo de interesse e reconhecimento global. Sentimos essa perda como se fosse nossa... do nosso país, comunidade, família, e a tristeza e a comoção foram partilhadas sem fronteiras. Na hora da morte, esperada e inesperada, do ícone em que, há muito, se convertera, o mundo parou para a lembrar na sua estatura de estadista, num coro de elogios que incluiu, entre líderes de Estados de todas as geografias, Zelensky e Putin, Biden e Obama, Trump e Bolsonaro. Em Westminster Hall, a fila de quilómetros, que se formou, dia e noite, durante cinco dias,longa e lenta caminhada de 12 a 14 horas,foi, autenticamente, o que um jornal londrino chamou "peregrinação", reverencial e afetiva. O funeral de Estado, a 19 de setembro, reuniu um número jamais visto de representantes ao mais alto nível de Casas Reais e de Repúblicas (no nosso tempo, só comparável ao funeral de Nelson Mandela que, todavia, contou com bastante menos de metade da vasta panóplia de dignitários reunidos em Westminster Abbey). Uma cerimónia religiosa precedida por vertiginosa sucessão de eventos, transmitidos em direto pelas televisóes, em que iam alternando tributos à monarca falecida e a agenda do novo Rei, sua investidura e contactos com os Parlamentos e os Povos da Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda, com os líderes da "Commonwealth" e um sem número de personalidades estrangeiras. Foi uma fascinante aula prática de como funciona a transição monárquica no mais antigo dos regimes parlamentares - conjugação singular de modernidade democrática, e da "traditio", que se vai moldando a toda a espécie de transformações sociais. Por exemplo, no domínio das desigualdades de género, que, no debate sobre a alternativa Monarquia/República, poucas vezes é focado, apesar de ser evidente que as monarquias constitucionais têm dado (ao menos na Europa) mais chefes de Estado do que as Repúblicas... E se somarmos os anos de mandato, a diferença é ainda maior. Hoje, nas principais Casas Reais europeias, a igualdade dos sexos na linha de sucessão está constitucionalmente garantida, depois das mais conservadoras, como a britânica, e, mais ainda, a espanhola, terem seguido o paradigma nórdico. Um dos exemplos concreto de reivindicação da igualdade foi dado na chamada "vigília dos Príncipes", primeiro em Edimburgo e, depois, em Londres, pela Princesa Ana, que, em uniforme cerimonial, de medalhas ao peito, desfilou, a par dos irmãos, atrás do féretro real, tornando-se a primeira Mulher a fazê-lo. Abriu o precedente, ocupando um lugar antes sempre ocupado por homens! A opção da Princesa Real produziu resultados imediatos: na inovadora vigília dos netos da Rainha Isabel II, que terá inaugurado uma nova tradição a cumprir em futuras exéquias reais, (desde que haja essa geração...), as quatro netas da Rainha estiveram presentes, em posição idêntica à de irmãos ou primos. Foi como que uma "experiência laboratorial" bem sucedida, que logo prosseguiu, quando os bisnetos da Rainha foram, ao que parece por decisão de última hora, integrados no cortejo do funeral de Estado: não só Jorge, (o futuro Jorge VII), de nove anos, mas igualmente Carlota, com apenas sete anos. A princesa mais nova não foi deixada em casa - significativo pequeno sinal dos tempos. 2 - Com um olhar sempre atento aos desiquilíbrios de sexo na ocupação do espaço público, anotei a enorme predominância masculina nas impressionantes exéquias, particularmente visível na componente militar (fantástico espetáculo de coreografia, em que os britânicos são inexcedíveis). Apenas um pouco superior era a percentagem de mulheres entre os membros do clero, (na Igreja anglicana, há mulheres Bispos e, ao menos uma estava na Abadia). A tendência para o equilíbrio desenhava-se nas instituições políticas e, na outra componente maior das celebrações - a popular - talvez tenha havido predominância feminina, ainda que não muito acentuada. De qualquer modo, era à volta de uma mulher que tudo girava: a mulher mais famosa do nosso tempo, que, do outro lado do planeta, (em Pequim), admiradores apelidaram de "Rainha do mundo", tal como o fazia, na CNN, um dos maiores nomes do jornalismo internacional, Christiane Amanpour, (embora lhe colocasse um ponto de interrogação). O que, inquestionavelmente, poderemos afirmar, é que Isabel II, no fim do reinado, era muito maior do que a Grã-Bretanha, ou os 16 Reinos sob a sua coroa, ou a Commonwealth de 56 Estados, na maioria Repúblicas, com uma população que perfaz um terço da humanidade. E, também, muito maior do que era no momento em foi chamada a ocupar o trono, com apenas 25 anos, por morte prematura do pai. Quem ousaria, então, prever o destino que foi traçando, a pulso, com uma aprendizagem feita no dia a dia de tantos dias, de tantos anos, de sete décadas... Começou por convencer às suas (insuspeitadas) qualidades um cético Winston Churchill, que não via nela mais do que a sua aparência de jovem inexperiente e tímida. E acabou por convencer líderes e povos à escala universal. Não de imediato, nem de forma fácil. Bem pelo contrário, teve de afrontar, em conjunturas adversas, uma infinidade de obstáculos, muitos dos quais colocados no seu caminho pelo simples facto de ser mulher. E teve ainda de conjugar os papeis de família e de Estado, reinventando o cargo ao seu exercício no feminino. Tudo isso, num tempo concreto, tão diverso da era Vitoriana como da realidade do pós guerra no século XX. Não tinha um modelo a seguir, mas a criar... Na maioria das análises e comentários em que a recordam esta singularidade tende a ser menorizada. Camila, a Rainha Consorte, foi uma exceção ao valorizar a assertividade e intrepedez de Isabel II no momento da sua entrada num "mundo de homens" (ainda hoje é, mas não tanto...), obrigada a fazer um percurso solitário, único e irrepetível, de início, não espetacular ou fulgurante, mas sempre consistentemente ascensional. Nos primeiros anos, terá prevalecido a imagem que eu própria tinha dela - a de uma monarca distante, conservadora, refém de rígidos protocolos e remetida a um papel meramente simbólico. Muito diferente das Rainhas reinantes nas nações nórdicas... Tal como o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, vi Isabel II, pela primeira vez, em 1957, de relance, alinhada numa rua cheia de gente. No meu caso, não em Lisboa, mas na Avenida, em Gaia, que o carro oficial desceu lentamente, em direção à ponte sobre o Douro. Estava com muitas dezenas de colegas do Colégio do Sardão, envergando uniforme de festa. Formávamos uma longa mancha azul marinho na primeira fila do passeio. Ensaiadas pela nossa professora Madre Mary King, entoávamos, alto e bom som, o “God save the Queen”. Ouvindo o hino, a jovem Rainha terá mandado o carro parar, por uns segundos, à nossa frente, enquanto o casal sorria e nos acenava. Ele mais próximo. Tínhamos feito, habilmente, a escolha pelo lado da rua onde melhor poderíamos ver Filipe, o formidável Duque de Edimburgo. Estávamos bastante mais interessadas nele do que nela... Quase três décadas depois, a Rainha voltou ao nosso País, em visita oficial. Dessa vez, eu era Secretária de Estado da Emigração, e tive diversas ocasiões de cumprimentar Sua Majestade, numa delas em vestido de gala, cruzado pela faixa larga de uma condecoração britânica, que acabara de receber. Foram breves e formais saudações, de que não guardo recordação emotiva… Quem mais me impressionou, foi, de novo, o Príncipe Filipe, numa inesperada e divertida conversa a dois (suscitada pela minha OBE...). 3 – Sem mais contactos pessoais, fiz a “estrada de Damasco”, em relação à Isabel II nas últimas duas décadas, à medida que me fui apercebendo, não só da sua surpreendente capacidade para compreender o espírito do tempo, (parecendo, paradoxalmente, mais jovem de mentalidade na velhice), como, sobretudo, a importância da sua figura enquanto “Mulher de Estado”. Ou seja, enquanto "mais valia" no infindo combate contra os preconceitos e as discriminações de género. Redescobri Isabel II como autêntico trunfo para causas que há muito coloquei no topo das prioridades: a erradicação de discriminações, que asfixiam as nossas sociedades, de forma clara ou larvada, como o idadismo e o sexismo. No caso da Raínha, a idade tornou-a mais sábia, respeitada e consensual. Foi, pois, com cabelos brancos e rugas naturais que o mundo a aceitou como a mais convincente imagem de empoderamento feminino. Com um poder situado acima do plano partidário e das querelas do quotidiano - um poder que não se exprime de forma direta, em números e slogans políticos, e não é quantificável, nem tangível, por um lado, nem meramente simbólico, por outro. A informação confere poder e ela dispôs de sete décdas de acesso a todos os dossiers secretos, leu-os, atentamente, e tudo conservou na sua espantosa bagagem de conhecimento. Saber usá-lo, com sageza e sem alarde público, só podia contribuir para solidificar a sua autoridade, prestígio e influência. As opiniões da Rainha eram desconhecidas na arena política, mas não dos seus Primeiros Ministros que, como é do domínio público, preparavam cuidadosamente as frequentes reuniões com ela. Sabe-se, também, que era menos atraída pelas vicissitudes da política interna do que por matérias estratégicas no campo da Defesa e das Relações Internacionais. O mais provável é que tenha apoiado continuadamente o esforço que permitiu à Grã-Bretanha continuar a ser a primeira potência militar da Europa. E mais inequívoco ainda foi o seu papel absolutamente crucial e preponderante na transição do Império para a Commonwealth (o que chamamos "descolonização", no nosso caso, tardia e dramática...). Olhando retrospetivamente seu desempenho, na vida pública, em conjunto com a privada, não podemos deixar de o ver como uma extraordinária demonstração da capacidade feminina para responder aos maiores desafios e para exercer as mais exigentes funções. Um legado precioso, porque nos confere a certeza, ou, pelo menos, o pertinente questionamento sobre o que todos os Estados e sociedades ganhariam se permitissem às mulheres, que se nos afiguram pessoas comuns, o que lhes têm negado: uma oportunidade de mostrar o que valem! O exemplo de Elizabeth Alexandra Mary Windsor é particularmente sugestivo, porque, ao contrário do seu marido, não tinha uma formação académica, brilhantemente concluída, nem alardeava invulgar inteligência, ambição ou arrojo. Viu-se, involuntariamente, catapultada para um cargo que não queria, e cumpriu, sem hesitação... Não foi menos impressionante a sua gestão da vida privada, antes de mais, ao fazer um casamento de amor, coisa, então, rara, em famílias reinantes - primeiro sinal de uma fortíssima personalidade. Contra a vontade dos pais e cortesãos, casou com Filipe, príncipe da Grécia e da Dinamarca, primo afastado - como ela trineto da rainha Vitória - órfão solitário, sem fortuna, estrangeiro, demasiado atraente (segundo os detratores...), um mero, embora distinto, oficial da"Royal Navy". Contrariando presságios e vaticínios, o casamento duraria uma vida inteira de cumplicidade, apesar de ser um exemplo da inversão da tradicional divisão de trabalho: ela foi a Chefe de Estado, e reinou sozinha, com um poder indivisível, ele ocupou-se, em primeira linha, da família, abdicou dos seus próprios título reais, sacrificou uma promissora carreira militar, que adorava, e ficou “desempregado”. Viu-se compelido a reinventar ocupações e fê-lo, inteligentemente, em projetos e tarefas de enorme importância, mas, as mais das vezes, discretas, quase invisíveis, sempre preocupado em deixar o palco à Rainha. O seu contributo para a afirmação de Isabel II, terá tido uma importância que a História possivelmente vai omitir. Contributo, que ela, em anos recentes, com a autoconfiança que a idade acrescenta, haveria de reconhecer publicamente, mas que permaneceram na sombra (e não é essaa sorte normal das consortes de grandes vultos que marcam cada época, em qualquer domínio?). 4 - Uma história assim, teria fatalmente de chamar a minha atenção, enquanto defensora da igualdade e da partilha de funções entre homens e mulheres, no círculo familiar e no espaço público. É um caso concreto de inversão dos papéis de género, que me permite demonstrar como sempre apoio, espontaneamente, o parceiro menos valorizado, seja qual for. É, quase sempre, a mulher, mas, se, excecionalmente, for o homem, sinto-me, do mesmo modo, motivada a fazer-lhe justiça. Qual foi a parte de Filipe na vida de uma Rainha, que, ao contrário da sua antepassada Victoria, nunca sobrepôs as razões do coração aos seus deveres de Estado e nem sequer lhe deu o estatuto de "principe consorte"? Filipe terá sido o seu principal conselheiro, não por complacência ou favor, mas por confiança na sua mundivisão e audácia, que temperava com o filtro da sensatez e da prudência, que a caraterizavam. Sabia ouvir, julgar e decidir. Hoje, é do conhecimento geral, embora, como disse, continue a merecer insuficiente destaque, que o Príncipe Filipe foi “ghost writer” de discursos reais, que se lhe deve, por exemplo, a abertura a um novo relacionamento com os “media”, a começar pela transmissão em direto da cerimónia da coroação (vencendo um braço de ferro com Churchill, que era absolutamente contra). E, sobretudo, a reconfiguração da “Commonwealth”, voltada para as prioridades que eram as suas - a defesa da Natureza, do ambiente, do progresso tecnológico, da cultura e do desporto, a aposta na convivialidade e na juventude. Não foram coisas de somenos, se pensarmos na projeção mediática que transformou Isabel II em Rainha global (é evidente que por mérito próprio, pelo seu talento de grande diplomata) e agregou a "Commonwealth", cuja expansão foi notável, sob a sua égide (a nova "joia da Coroa"). Isabel II foi Chefe de Estado pelo acaso do nascimento, mas Chefe da Commonwealth de 56 Nações iguais em estatuto, por livre eleição dos seus pares, na sua maioria Presidentes de Repúblicas. Ao cumprir exemplarmente a sua missão, do primeiro ao último dia, (70 anos depois...) tornou-se um paradigma do exercício do poder no feminino, na "terceira idade" e num regime monárquico e mostrou as virtualidade das mulheres, dos idosos e das monarquias para darem futuro a um mundo melhor. Não admira que tantos lhe quisessem dizer adeus com um simples: "thank you!".
LÁ LONGE, A NAÇÃO CONSTRUÍDA SEM ESTADO 1 - Ao longo das últimas quatro décadas, participei em inúmeros colóquios e debates sobre a emigração portuguesa mas, quando olho para trás, consigo apenas recordar alguns, e raras vezes na integralidade. O processo seletivo da memória permanece um mistério. Há certas frases, minhas ou dos interlocutores que resistem, intactas, talvez por serem mais insólitas ou curiosas. Como é óbvio, recordo, com mais precisão, nas suas traves mestras, o discurso inspirado na realidade das migrações e nas políticas então desenvolvidas. Aliás, não me faltam para o relembrar, recortes de imprensa, artigos e publicações de época. Foi o associativismo e o seu papel na construção das comunidades portuguesas o tema que abordei em Ovar, numa tarde de Agosto de 83 ou 84, num encontro não muito diferente de tantos outros, que o simples comentário de um jovem jornalista tornou inesquecível. Disse-me: "A Senhora Doutora fala como se não fosse do Governo". O tom da afirmação não pretendeu ser crítico, negativa ou positivamente, mas sim factual. Ou assim me pareceu. E a afirmação era pertinente, porque eu acabava de descrever o universo das comunidades portuguesas da Diáspora, que deve a sua existência às instituições criadas e mantidas pelos cidadãos, não ao Governo. Assim se formou o que alguns chamam o "outro Portugal", nascido e preservado fora do território - fantástico espaço cultural, hoje, enfim, visto como parte da Nação. A Nação, sociedade civil sem Estado, que aí não teve o menor mérito e nem sequer deu pela sua importância, até data bem recente. Vários ilustres pensadores, (como Vitorino Magalhães Godinho, o General Eanes ou Sá Carneiro, por exemplo), no período pós revolução, vieram relacionar tão justo como tardio reconhecimento à perda do Império, que deixou um vazio, logo preenchido pela "descoberta" da Diásspora. Afinal, na geografia do antigo Império, o que desapareceu, de vez, foi o domínio do Estado, o projeto estatal, não a presença perene corporizada pelos emigrantes nos territórios onde, ao longo de séculos, escolheram viver. 2 - O caso do Brasil é, sem dúvida, o exemplo mais completo e elucidativo, porque foi, antes e depois da independência, e até meados do século XX, o destino favorito da esmagadora maioria da nossa gente. Todos os que partíam não eram demais para a colonização de um domínio tão extenso, mas o êxodo constante foi quase sempre considerado excessivo para um país com a nossa diminuta dimensão populacional. O despovoamento do território pátrio assustava os poderes públicos, que tentaram restringir os caudais migratórios, por todos os meios, nomeadamente uma vasta e ineficaz legislação proibitiva. Os homens faziam da Lei letra morta, e iam clandestinamente, (se necessário). E nem a independência brasileira, em 1822, travou o imparável movimento, antes pelo contrário... Na verdade, a emigração portuguesa foi, e é, na essência, uma aventura individual (ou familiar), multiplicada por milhões, e este seu carater voluntário, espontâneo, que a marginalizou face ao Poder, explica o singular relacionamento humano que a uniu a outros povos, numa convivência de igual para igual As únicas políticas públicas neste sector são as tentativas (falhadas) de controlar as saídas, através de regulamentação quase sempre limitativa. As pessoas persistiam no abandono a terra de origem, por razões económicas, mas levavam o país no coração e souberam unir-se para fundar e dar continuidade a comunidades organizadas à imagem e semelhança daquelas que conheciam no país, suprindo as omissões governamentais, no campo social (com uma rede de sociedades mutualistas e beneficentes) e cultural (com os gabinetes de leitura, as agremiações literárias, as escolas, os grupos de folclore, de teatro, os centros de convívio, os clubes desportivos...).. Isso aconteceu por todo o lado, com destaque para o Brasil, onde. ainda hoje, em diversos Estados da República Federativa os hospitais das Beneficências lusas são dos melhores, os mais modernos (o do Recife continua a ser, suponho, o maior de toda a América Latina), o mesmo se podendo afirmar dos clubes recretivos e desportivos, dos lares de idosos, dos "Gabinetes", com grandiosas sedes e bibliotecas (só a do Rio de Janeiro possui mais de 300.000 volumes e muitas edições raras!...). E o fenómeno repetiu-se onde quer que os portugueses se radicaram, sempre com extraordinário pendor associativo, que não cessa de nos maravilhar e supreender. Mas ainda agora, conhecemos melhor as histórias de vida dos emigrantes do que a história de vida das instituições geradoras de autênticas comunidades, que permanecem de geração em geração. 3 - Em Ovar, como fiz em tantas outras cidades (e ainda faço, se tenho oportunidade...), limitei-me a dar testemunho daquele universo, com um "saber de experiência feito". Quando, em janeiro de 1980, iniciei o trabalho no setor da emigração, conhecia casos concretos, antigos (na minha própria família) e mais recentes (residi em Paris, no final dos anos 60...). Nos primeiros três meses procurei não só compulsar os "dossiers" recebidos do meu antecessor (Mário Neves, notável jornalista e diplomata), e apresentados pelos serviços, como preparar projetos legislativos inovadores, como a criação do Conselho das Comunidades, e a estudar a história das nossas migrações. Nada disso me preparou para o "descobrimento" da Nação extra-territorial, através de contactos diretos com as comunidades das Américas, África e Europa. As minhas visitas centravam-se nesse nosso novo mundo, e, por isso, nem chegava a sentir-me no estrangeiro - regressava de um Portugal ao outro, com a fantástica sensação de ter percorrido milhares de quilómetros de voo, sem ultapassar as fronteiras humanas e culturais do meu país! Aprendi a ver o fenómeno associativo com outros olhos - lá fora, primeiro, e, depois, cá dentro também. Ganhei a consciência da importância do associativismos de cada terra. Sei que, por exemplo, Espinho não seria o que é, nem poderia manter as suas tradições, , o seu espírito e identidade sem o esplêndido conjunto de instituições de solidariedade, cultura, desporto e recreio de que tanto pode orgulhar-se. Exatamente como acontece com a presença portuguesa a que um forte movimento associativo deu, e dá, visibilidade em todos os continentes do mundo, à margem de quaisquer apoios do Estado. Se os governantes, em outras áreas, reconhecem os erros do passado e apresentam às vítimas, pedidos de desculpa, porque não ensaia-lo também no campo da emigração, constatado o abandono a que os compatriotas foram votados lá fora, desde tempos remotos? E mais: porque não reconhecer, também, que, apesar dos progressos registados desde a década de setenta, estamos ainda longe de tratar, em condições de igualdade, não só os cidadãos, individualmente, como o movimento associativo no estrangeiro? Nunca hesitei em fazê-lo, por dever de justiça. E não só... Como pressentiu o perspicaz jornalista de Ovar, também por gosto, por afetiva adesão a uma sociedade sem Estado... utopia obviamente irrealizável dentro do território onde o Estado deve exercer a sua soberania.

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

A RAINHA in "Defesa de Espinho"

2022 A RAINHA 1 - Rainhas há muitas, mas quando dizemos, simplesmente, “a Rainha” falamos sempre de Isabel II. A sua desaparição deixou muito poucos indiferentes, a nível planetário – monárquicos e republicanos, por igual. Sentimos a perda como se fosse nossa – do nosso país ou comunidade, ou até da nossa família. Quem não tem, entre os seus parentes, alguém que envelheceu bem, como ela? As emissões televisivas ao longo dos últimos dias mostraram até que ponto a emoção e a tristeza são largamente partilhadas. Na hora da sua morte, objetivamente esperada, mas subjetivamente inesperada, o mundo parou para a homenagear num coro encomiástico, que abrangeu, entre inúmeros líderes de Estados de todas as geografias, Zelensky e Putin, Biden, Obama, Trump e até Bolsonaro (que decretou 3 dias de luto oficial no Brasil!). Em Londres, as duas Câmaras do Parlamento reuniram, prontamente, em sessão especial, para que todos os membros sobre ela dessem o seu testemunho, contando pequenos episódios pessoais, a que não faltou, em alguns casos, um toque de humor carinhoso - no que a antiga Primeira Ministra Theresa May foi, especialmente, exímia. É, afinal, o que é costume em qualquer velório, ou elogio fúnebre. E, tratando-se de uma figura enorme e ímpar, quem resiste à tentação de desfiar as suas próprias memórias de um encontro havido com ela, ou de um simples vislumbre da sua presença? Não serei exceção... Precisamente como o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, (sou da mesma geração), vi-a, pela primeira vez, em 1957, de relance, alinhada numa rua cheia de gente. No meu caso, não em Lisboa, mas ao fundo da Avenida de Gaia, que o cortejo de vistosas viaturas negras descia lentamente, a caminho da ponte sobre o Douro. Eu estava lá, no meio de dezenas de colegas do Colégio do Sardão, todas de uniforme de festa, formando uma longa mancha azul marinho na orla do passeio. Ensaiadas pela nossa professora de inglês, a muito britânica Madre Mary King, cantávamos, alto e bom som, o “God save the Queen”. Ouvindo o hino, a destinatária terá mandado parar o carro. Por uns segundos, olhou-nos, com simpatia, sorrindo e acenando, tal como o marido. Ele mesmo à nossa frente, a pouco mais de um metro de distância, pois, de comum acordo, tínhamos escolhido o lado da Avenida onde melhor o poderíamos ver. Estávamos, naturalmente, mais interessadas no formidável Duque de Edimburgo do que na sua discreta monarca. Quase três décadas depois, na meia década de oitenta, a Rainha voltou ao nosso País, em visita oficial, e eu, então no Governo, tive várias oportunidades de a cumprimentar - nada mais do que breves e formais saudações. Não guardo recordação particularmente emotiva da sua postura sereníssima e hierática … Foi, de novo, o Príncipe Filipe, quem mais me impressionou. Com ele, sim, aconteceu, no Palácio da Ajuda, uma inesperada e divertida conversa a dois, a propósito da vistosa faixa da condecoração (a OBE), que cruzava a metade superior do meu vestido comprido... 2 – Sem mais contactos pessoais, fiz a minha “estrada de Damasco”, em relação à Rainha, nas últimas décadas, à medida que fui reconhecendo, não só a sua surpreendente disponibilidade para acompanhar os novos tempos e as novas gerações, (conciliando progresso e tradição, como só os mais velhos podem fazer, quando mantêm o espírito bem aberto), mas também a sua importância enquanto “Mulher de Estado”, ou seja, enquanto trunfo na argumentação em favor da igualdade de género. Redescobri Isabel II como verdadeiro ícone para causas que, há muito fiz minhas, na luta contra discriminações, que dominam as nossas sociedades, de forma clara ou larvada: o sexismo e o idadismo. De facto, a idade tornou-a mais sábia e verdadeiramente venerada e permitiu-lhe ir, a seu modo, revelando a pessoa por trás da "persona". No início do século XXI, era já a mais poderosa e consensual imagem de empoderamento no feminino. E não se diga que o poder é meramente simbólico nas monarquias constitucionais, porque, tendo intrinsecamente essa componente, pode ir muito além dela, e, com Isabel II, foi! O seu poder era imaterial, derivado de um imenso prestígio e autoridade pessoal, exercido num plano superior ao da política partidária e das questões da governação concreta. E não cessava de crescer com o passar dos anos, e de irradiar no mundo sem fronteira dos afetos. Ela foi a perfeita representante, a grande diplomata ao serviço do Estado e do povo (ou povos). Soube encerrar o ciclo imperial e reerguer uma Commonwealth, animada pelo espírito dos novos tempos. Foi Rainha do Reino Unido pelo acaso do seu lugar numa linha de sucessão dinástica, mas líder da "Commonwealth", por mérito seu. Indiscutível, eleita e reeleita, enquanto aceitou sê-lo, por uma maioria de Chefes de Estado republicanos! A Commonwealth, refundada na época isabelina, no espaço de relacionamento do antigo império, é atualmente constituída por 56 países, que representam uma enorme fatia da população mundial. É um projeto voltado para o futuro, do domínio da cultura e dos afetos, muito orientado para a juventude, em programas de intercâmbio no campo da educação, da formação tecnológica e científica, do desporto e do convívio com a Natureza e da defesa do meio ambiente. É um aspeto que não tenho visto suficientemente salientado pelos nossos comentadores, apesar do relevo que lhe é atribuído na Grã-Bretanha, nos "media", na opinião pública, nas instituições políticas e, "last but not least", no discurso régio, como pudemos constatar nas primeiras declarações do Rei Carlos III (impossível comparar esta realidade com a de uma insignificante CPLP, que nunca "levantou voo", ainda à procura de uma identidade, de um "cimento", levando a que as relações de Portugal com as ex-colónias, e mais largamente, entre todos os países que a compõem, se vão processando, essencialmente, no eixo bilateral). O percurso de Isabel II foi verdadeiramente admirável, e permitiu-lhe contribuir poderosamente para o moderno reposicionamento do seu Reino (ou dos seus Reinos) no concerto das Nações. Em meados do século XX, ela era apenas uma jovem feliz no seu casamento e maternidade recente, que se via "obrigada" a entrar num mundo de homens, repentinamente, pela morte prematura do pai, sem ter preparação e experiência da coisa pública. Contudo, o seu desempenho, do primeiro ao último dia, foi uma extraordinária mostra da capacidade (feminina) para responder aos maiores desafios, para exercer, de forma superlativa, as mais exigentes funções e para as articular com a vida de família. Deste ponto de vista, o seu legado é precioso e inspirador, porque nos deixa a certeza, ou, pelo menos, uma pertinente interrogação sobre o que todos os Estados e todas as sociedades ganhariam se dessem às mulheres, mesmo àquela que parecem pessoas comuns, como de início parecia ser Elizabeth Alexandra Mary Windsor - que, ainda por cima, teve uma oportunidade que nem sequer desejava… 3 – Nesta leitura das lições do reinado de Isabel II , que alguns verão como"feminista", é particularmente interessante a forma como conjugou as esferas pública e privada em teve de repartir o seu múnus. O primeiro sinal da sua fortíssima personalidade, que a postura suave não deixava pressentir, foi o fazer, contra tudo e contra todos, um casamento de paixão, com um jovem e belo oficial da Marinha e príncipe grego no exílio, Filipe, um primo afastado, trineto da Rainha Vitória, que por ela abdicou dos seus títulos das Casas Reais da Grécia e da Dinamarca. Contrariando presságios e vaticínios, a união duraria 73 anos de esplêndida cumplicidade, apesar de subverter a tradicional divisão de papéis conjugais: ela era a chefe de Estado, e reinava sozinha, com um poder indivisível, e punha o interesse do Estado à frente do seu, enquanto ele assumia plenamente as responsabilidade familiares, sacrificava uma muito promissora carreira militar, e ficava publicamente “desempregado”. Em suma, assumia a condição de "grande homem atrás de uma grande mulher". Teve de reinventar ocupações e fê-lo, inteligentemente, em iniciativas e tarefas de enorme importância, embora, as mais das vezes, quase invisíveis, porque nunca quis tirar o palco à sua Rainha. Em anos recentes, com a autoconfiança que a idade permite, ela veio desvendar, publicamente, o seu contributo, por tanto tempo escondido na sombra, mas não é certo que a História lhe dê semelhante reconhecimento... Assim aconteceu com as mulheres consortes, ao longo dos tempos. Só agora, começa a repetir-se com alguns, ainda raros, homens. A injustiça é da mesma ordem e deve mover-nos, do mesmo modo, a denunciá-la... Ninguém fez o elogio fúnebre de Filipe Mountbatten sem o relacionar com a sua mulher - e, a meu ver, bem. Por isso, nessa lógica, eu não gostaria de escrever sobre Isabel II, sem lembrar o papel do marido, a seu lado. Sabe-se hoje (mas talvez isso seja esquecido amanhã), que ele foi o seu principal conselheiro, e até o seu "ghost writer" e, seguramente, não por complacência. Isabel II sabia ouvir, a fim de julgar e decidir depois. Tinha boas razões para confiar em Filipe, na sua mundivisão e audácia, que temperava com o filtro da sua proverbial sensatez e prudência. A ele se deve, por exemplo, a abertura a um novo relacionamento com os “media”, que começou pela inédita transmissão em direto da cerimónia da coroação da Rainha (vencendo um braço de ferro com Churchill, que era absolutamente contra), a modernização da monarquia (ele não acreditava, no que o acompanho inteiramente, que a realeza se banaliza se perder o seu "mistério" e se aproximar do "povo") e, note-se, a própria reconfiguração da “Commonwealth”, que reflete as suas causas culturais e ambientalistas, a sua aposta na força da convivialidade. A presença, as visitas da Rainha (muitas, que ele sempre acompanhou, e completou com as suas, a solo, que foram muitíssimas mais) constituíram as bases da sua construção e consolidação. O "fenómeno Isabel II" não teria, sem os extraordinários e constantes aportes do seu consorte, a dimensão universal, que celebramos em breves dias deste setembro de 2022, lembrando sete esplêndidas décadas de reinado. Penso, muito em especial, na mediatização da sua imagem de grande Rainha, que, muito para além das fronteiras da Grã-Bretanha, valorizou, nomeadamente, as virtualidades de todas as monarquias modernas, de todas as Mulheres, que conciliam carreira e família, de todos os idosos, a quem é permitido o bom uso societal da sua experiência e saberes até ao fim da vida. Thank you, Madam!

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

AS INGLESAS QUE CONQUISTARAM O FUTURO DO FUTEBOL 1 - A final do Euro de futebol feminino levou a Wembley 87192 espectadores e teve 18 milhões de telespectadores em todo o mundo. Foi a maior assistência de sempre numa final europeia de futebol, masculina ou feminina. Não foi por acaso - a Inglaterra é a terra matricial de um desporto destinado a ultrapassar os demais em popularidade, a nível planetário. Mas, na verdade, parece que, ainda hoje, os seus inventores o amam mais do que todos os outros, e, por isso, não fazem questão de quem está em campo, homens ou mulheres, desde que o saibam jogar bem. Nem sempre foi assim. O "foot-bal", que é agora de toda a gente, no seu berço inglês, como nos países para onde ia sendo exportado, o “foot-ball” era privilégio de classe social e de homens de raça branca… Uma das glórias do Vasco da Gama, do Rio de Janeiro, fundado por imigrantes portugueses, foi a de ter sido o primeiro clube do Brasil a integrar atletas negros no seu plantel. Negros, sim, mujlheres, não! Estas teriam de esperar ainda largas décadas de rigorosa segregação, até serem admitidas num retângulo de jogo. Sei.o por experiência própria, Em meados do século XX, no Colégio do Sardão, que oferecia condições excecionais para a prática de todas as modalidades consideradas “próprias para meninas” – ginástica, ténis, ping-pong, patinagem, andebol, voleibol, basquete… - o futebol era, em absoluto, proibido. Nós jogávamos, mas clandestinamente, sob ameaça de pesados castigos, a que, com muita sorte, fomos escapando. Na única vez em que nos denunciaram, eu, como suspeita de ser a organizadora (e efetivamente era…), fui chamada à presença da “Mestra Geral”. Esperava o castigo máximo, todavia a nossa "abadessa" revelou um inesperado sentido de humor. Depois do sermão (“o futebol não é jogo apropriado para meninas”, etc. etc.), terminou, dizendo: “Bem, Manuela, como sei que gosta muito de futebol, a si, dou-lhe uma autorização especial para jogar, às outras, não…”. E ficou tudo como dantes – continuamos a transgredir, de bola no pé, em vez de bola na mão… É, todavia, justo reconhecer que as Doroteias do meu Colégio não estavam isoladas nos seus paradigmas de “desporto feminino”, antes partilhavam a mentalidade do tempo , a nível nacional e internacional. Longa era, então, por exemplo, a lista de desportos interditos ao sexo feminino nos Jogos Olímpicos. Agora, nem sequer se pode consagrar uma nova modalidade olímpica, se não for aberta aos dois sexos! O futebol há muito captou as mulheres e países há, onde é mais popular entre raparigas do que entre rapazes, como é o caso da América do Norte. Acredito que, num futuro próximo, haverá forte pressão sobre os clubes profissionais para se dedicarem ao futebol feminino. Já há seis anos, em 2016/17, a FPF instou os participantes da Liga principal a formarem equipas de ambos os géneros, tendo tido resposta positiva do SCP, SC Braga, Estoril Praia, Os Belenenses e Boavista, a que, depois, se juntaria o SLB. Hoje, três dos “quatro grandes”, SLB, SCP e Braga, curiosamente, repartem entre si os troféus no feminino. Só o FCP permanece de fora (é o meu clube, com muita pena o digo...). Cabe a honra de representar a cidade do Porto ao Boavista, a segunda equipa mais titulada de sempre do nosso futebol feminino, com 11 campeonatos (dez consecutivos, entre 1985 e 1995!). Perdido este ascendente no século XXI, o Boavista optou, recentemente, por apostar nos escalões de formação, para, a prazo, voltar ao topo. O SCP tem dois títulos, tal como o SLB (atual campeão), o Braga um... No ranking da UEFA, Portugal ocupa um modestíssimo 23º lugar, logo atrás da Ucrânia, mas a seleção esteve no Euro e bateu-se bem com as melhores. 2 – Qualquer que seja o domínio considerado, é sempre mais fácil proclamar a igualdade no campo jurídico do que vivê-la na realidade. É especialmente assim na área do desporto, e, em particular, do desporto-rei, porque, além de grande espetáculo é poderosíssimo negócio internacional, de perfil masculino (como todos os grandes negócios). E, para além dos talibãs e dos aiatolás, são ainda inúmeros os homens que, por todo o lado, consideram o futebol jogado por mulheres “contranatura”, desvirtuação do fenómeno original e autêntico, para eles intrinsecamente másculo, ao contrário de, por exemplo, o ténis, a natação, o andebol, ou o bilhar. Mas onde reside, de facto, a suposta especificidade do futebol? Sabe-se lá... Certo é que se consubstancia em preconceitos enraizados, inelutáveis, no curto e médio prazo. Os progressos são muito mais visíveis na qualidade de jogo interpretado por mulheres, do que em matéria de preconceitos sexistas... Mas eis que, se súbito, assistimos a uma espécie de milagre, que pode apressar a longa caminhada para a meta da igualdade. Refiro-me, é claro, à vitória inglesa no Euro 2022, numa final espetacularmente disputada com a Alemanha. Passo a explicar porque considero que o êxito das alemãs não teria o mesmo efeito. No futebol masculino é costume dizer: "são onze contra onze e, no fim, ganha a Alemanha". Ora, na esfera feminina, o mesmo se pode afirmar: até 2022, as alemãs tinham ganho todas as oito finais que disputaram! Na nona, eram as grandes favoritas. Se o favoritismo se confirmasse, o que mudava? Não muito, à semelhança do que aconteceu nos anteriores oito campeonatos do avassalador domínio germânico. O país está demasiado habituado a vencer e valoriza, naturalmente, mais os sucessos masculinos. A Inglaterra, pelo contrário, perseguia um título europeu ou mundial de futebol há 56 anos - o seu último troféu fora erguido precisamente contra a Alemanha,e por coincidência no mesmo estádio, em 1966. Olharam a oportunidade do Euro 2022 em ambiente de verdadeira loucura coletiva, com multidões nos cafés, nos bares e nas ruas, desde a cidade de Londres à mais remota aldeia. E, como o sonho comanda a vida, gritavam todos, convictamente: "o futebol está de volta a casa". Num só dia de glória, a perfeita igualdade ao nível dos festejos, do delírio popular, do reconhecimento e orgulho nacional foi fulminantemente alcançada. A igualdade nos demais aspetos não é para já! Contudo, ao menos no universo de cultura anglosaxónica, que é imensamente mais vasto do que a Inglaterra, o ritmo vai, de imediato, acelerar, onde é crucial: nos escalões de formação dos clubes, na escola, no investimento do Estado (já está prometido pelo governo de Boris Johnson um primeiro reforço de 230 milhões de libras...). Na sua saudação, a Rainha Isabel II (conhecida adepta de futebol) apontava ao futuro: "O vosso sucesso vai muito além do troféu que tão merecidamente recebestes. Vós acabais de dar um exemplo que vai ser uma inspiração para as outras raparigas e mulheres". Exatamente o sentimento que exprimiu uma antiga campeã, Grace Vella, em entrevista à Sky News: "milhões de jovens vão agora querer jogar". Nos "media" a retumbância do feito foi extraordinária (coisa impossível por cá, em futebol feminino, como se prova pelo facto de um jogo com este impacte internacional ter sido transmitido na RTP 2 e ter, nos restantes canais, merecido pouco mais do que notícia de rodapé). A Sky News, a CNN Internacional ou a France 24 deram grande cobertura ao post match, em particular às celebrações. Na imprensa inglesa, este título europeu fez manchetes gigantes de primeira página inteira, tanto nos tablóides como nos mais prestigiados jornais. Nunca se vira nada de semelhante! O "Times", por exemplo, escreveu em letras garrafais: "Leoas trazem-no para casa" e no artigo de fundo "Mulheres que emocionaram a Nação". O "Guardian"salientava, do mesmo modo, o "momento de viragem" ("Game changers"). 3 - Vi a emocionante final, a torcer pela Inglaterra, porque antevi as consequências da uma vitória das "leoas" - embora não esperasse tanto, tinha plena consciência de que o seu contributo para a história do futuro do futebol feminino seria incomparável. Elas não seriam as melhores do mundo, mas representavam a pátria-mãe da modalidade e do "fair-play", a nível de clubes, uma superpotência, e, no plano das seleções, um país cronicamente derrotado, cheio de fome de títulos. A final, com a equipa da casa, batia recordes na assistência presencial, e contava com uma impressionante audiência televisiva - fantástico cartaz de propaganda da arte feminina de desenhar jogadas no retângulo. Este meio de propaganda tem sido vital para o reconhecimento da sua qualidade, das suas virtualidades. Uma imagem vale mais do que mil palavras, não é verdade? Contra a evidência das imagens não há argumentos... há homens que fazem a sua estrada de Damasco. Homens e mulheres. É o meu caso: confesso que nunca assisti a um desafio ao vivo entre mulheres. Ao ver a televisão me converti, há já muitos anos. O Inglaterra-Alemanha não foi, evidentemente, o mais deslumbrante jogo do século- as finais, quer femininas, quer masculinas, em regra, não o são - não o aconselha a prudência, não o permite o espartilho tático. Mas a mestria esteve lá... o fabuloso golo de Toone (fuga em velocidade e "chapéu" à guarda redes) e, depois, o golo do desespero das alemãs, marcado, numa insistência, por Chloe Kelly, e menos notório, mas não menos decisivo, o precioso corte da luso-britânica Lucy Bronze ao minuto 111, a impedir o empate (Bronze, a nº 2, é considerada uma das melhores jogadoras do mundo). Em suma, mais do que ganharem um campeonato para o seu país, as (chamadas) "leoas" inglesas terão dado um novo futuro ao futebol feminino no mundo

domingo, 17 de julho de 2022

UM RIO DE SANGUE E DE LÁGRIMAS in Defesa de Espinho

UM RIO DE SANGUE E DE LÁGRIMAS 1 – De um dia para o outro, esquecemos todos a pandemia, a repetição de eleições no Círculo da Europa, a formação do novo Governo, a liderança da oposição - assuntos que desapareceram dos noticiários e desapareceram das nossas vidas… Pela força e o poder dos “media” que regem, mais do que nos apercebemos, o que pensamos e sentimos… No lugar que era o de coisas presentemente vistas como menores está uma guerra! A guerra que entra, continuamente, noite e dia, em nossa casa num ecrã de televisão, como um imenso e trágico “reality show”. Portugal acordou para o horror sem limites, que não pode conter, com uma angústia sincera, de coração aberto. Não se via nada de comparável desde que as imagens sangrentas do cemitério de Santa Cruz nos trouxeram aquele momento paradigmático da vivência de Timor Leste, sob o jugo de um Putin asiático – um povo vítima do verdadeiro crime de genocídio que agora se repete, ante os nossos olhos em solo europeu. Hoje é domingo. Em Mariupol os cadáveres juncam as ruas, as casas ardem, não há água, nem comida, nem luz. Não sabemos se na próxima 5ª feira, quando estivermos a ler o jornal, o mesmo se poderá dizer de Odessa ou de Kiev… É o inferno, minuto a minuto, visto por dentro, como nunca antes acontecera. “Um rio de sangue e de lágrimas”, nas palavras do Papa Francisco. Um êxodo bíblico através das fronteiras abertas da Polónia, da Hungria, da Roménia, da Moldova e da Europa inteira. Como num filme histórico de atrocidades, que conotamos com tempos remotos e a uma moral bélica desconhecedora dos rudimentos do Direito Humanitário, mas que, na verdade se passa em 2022, com gente vestida como nós, a contar dramas pessoais num inglês, que falam como nós… São quase somente mulheres, com os filhos pequenos pela mão, e, pormenor comovente, em muitos casos, também o cão, ou o gato, que trazem consigo em vez de uma mala com bens materiais. Para trás deixaram tudo, a vida de família, de trabalho, de convívio, a vida igual à nossa, que tinham na semana anterior… Subitamente, ocorre-nos a pergunta: e se fossemos nós? A resposta é dada numa mobilização geral da sociedade civil, multiplicada numa infinidade de gestos concretos de apoio e cooperação com quem está no terreno e de manifestações de pública solidariedade. São as pessoas a título individual, as organizações humanitárias, as internacionais do desporto, ou as grandes empresas, secundando as sanções, sem precedentes de uma comunidade de Estados que, de imediato, isolaram esta Rússia abusivamente imperial e a transformaram de um dia (o dia da invasão), para o outro (o dia seguinte) num Estado pária. É uma constatação que tem tanto de surpreendente, como a própria aventura Putinista de anexar pela força das armas, e através de banhos de sangue, do verdadeiro genocídio, que já se adivinha, uma grande Nação independente e pacífica. 2 - Países que, ou ergueram muros arame farpado aos infelizes refugiados do Médio Oriente, igualmente sobreviventes de uma guerra dantesca, ou os aprisionaram em miseráveis campos de internamento, estão hoje na primeira linha do acolhimento generoso e exemplar a todos os que escapam à barbárie russa. Temos tendência a ver neste fenómeno a pura emergência de uma fraternidade europeia que há muito andava adormecida. É isso, e é muito mais do que isso. Uma agressão desta natureza, perpetrada por uma potência nuclear, representa uma ameaça que muda o nosso mundo para sempre. É uma ameaça civilizacional – e, consequentemente, suscita reação planetária! A Europa está muito perto da fonte do perigo, que se chama Putin, e em particular naquela zona de fronteira com a guerra atual, conhece bem demais o “czarismo soviético” que a dominou, e a uma maior distância temporal, a intimidatória vizinhança do czarismo propriamente dito… Putin, visando obviamente o contrário, promoveu a unidade europeia e ressuscitou a NATO – dizê-lo já lugar comum. Essa foi a primeira a batalha que perdeu. A segunda e a definitiva será a da frente económica. Os milhares de corruptos bilionários que sustentam a Rússia capitalista vão sofrer um pouco o efeito das sanções, mas muito mais sofrerá o povo, condenado à miséria pelo sonho imperialista de um déspota enlouquecido. Mas, pelo meio, o que restará da Ucrânia, para além da Diáspora? 3 - A Europa acreditou, sempre, na racionalidade de Putin. Porém, ao ter pactuado com ele, em demasiados crimes e desmandos, ao ter aceite o dinheiro sujo dos seus oligarcas, ao submeter-se à sua dependência no campo energético, deu-lhe a falsa sensação de não haver limites ao que poderia suportar. Enganou Putin na sua eventual racionalidade… A invasão da Ucrânia não começou há dias, mas há oito anos… Primeiro, com muitos milhares de mortos, tomou a Crimeia, Donetsk, Donbass, perante a passividade europeia e norte-americana. Agora preparava-se para anexar o resto da Ucrânia, sem significativa resistência interna e externa. Enganou-se – ou foi enganado pelas facilidades do passado - e deparou com uma gigantesca onda de reação, tanto no quadro das relações internacionais, como no terreno militar. A possível vitória militar na Ucrânia não se fará sem a derrota financeira na Rússia. E um governo fantoche em Kiev , a prazo, será derrubado, porque o maior engano de Putin é pensar, se é que pensa, que a identidade ucraniana não existe. Existe e é europeia. Basta ver onde procuram refúgio os ucranianos: não é nos braços da Rússia, é no Ocidente. Nós, na UE, vamos também pagar um preço elevado para resistir pela economia, para afrontar a chantagem de Putin, hoje, ou a de um outro Trump, amanhã. Ou seja, para garantir a nossa própria defesa, enquanto pilar europeu da NATO. É o preço do Estado de Direito, da Liberdade, da nossa Civilização

quinta-feira, 30 de junho de 2022

2021 A PINTURA DE BALBINA MENDES – O LUGAR DAS MULHERES NAS ARTES Balbina Mendes ocupa um lugar de primeiro plano na Arte pictórica em Portugal, através de um trajetória feita de originalidade e de inovação, numa constante travessia de fronteiras artísticas - sempre em movimento, numa viagem de procura sem fim, pelo gosto de lançar a si própria desafios, um depois de outro, através da experimentação de ideias, de temáticas, de técnicas, de materiais, com a ousadia de sempre, a segurança dada pela maturidade, e a invariável insatisfação, essência de uma obra em que o talento inato se expressa, reinventando-se. Um percurso raro nos vários ângulos em que o podemos considerar, desde logo porque começou numa pintura de matriz etnológica, que recuperava arquétipos primordiais emergindo, revistos e recriados em toda a sua magia, em telas de grande dimensão e impacto. A Natureza, as vivências, os costumes da sua terra são, assim, transpostos, num universo de interlocução que foi crescendo, à medida que a própria Balbina ganhou notoriedade e reconhecimento, em exposições individuais nas mais prestigiadas Galerias. As suas espantosas “Máscaras Rituais do Douro e de Trás-os-Montes “ fizeram história, simultaneamente a do lugar da sua infância, a das suas gentes e tradições, perdidas e achadas no tempo, e a dela própria, inconfundível intérprete e narradora de memórias e rituais identitários. Não menos importante é sublinhar a sua capacidade de se impor em grande mostras individuais, o que é, por ora, entre nós, coisa que só está ao alcance de um escol de mulheres pintoras. Embora a perceção comum não o reconheça mantém-se, ao nível de mega exposições com um só nome no cartaz, um largo predomínio masculino, enquanto nas coletivas, ou nas que são exibidas, mais modestamente, em pequenos redutos, elas ultrapassam já os homens, num avançar gradual, como se estivessem, ainda, em difícil transição do espaço privado para o público… É um exemplo que poderemos extrapolar, em muitas outras áreas, a nível nacional e internacional, constatação eficazmente determinante na criação do movimento pela Arte no Feminino, que, no último quartel do século XX, teve uma das suas líderes mais insignes e arrojadas em Paula Rego, símbolo máximo da nossa pintura, cujo recente passamento foi ocasião de a enaltecer e entronizar no panteão dos imortais. Nas suas próprias palavras: "As minhas pinturas são pinturas feitas por uma artista mulher. As histórias que eu conto são histórias que as mulheres contam. O que é isso de uma arte sem género? Uma arte neutra?". [...] "Há histórias à espera de serem contadas, e que nunca o foram antes. Têm a ver com aquilo em que jamais se tocou-as experiências de mulheres". Uma tomada de consciência e um discurso com que a vanguarda feminista dessa época incorporou o plano da expressão artística na globalidade da sua luta - discurso que, diga-se, neste como em qualquer outro campo, é tudo menos pacífico. Mais consensual será, certamente, a exortação de Gisele Breitling em favor de "uma nova e verdadeira universalidade em que o feminino assuma o seu lugar de direito e o masculino as suas verdadeiras proporções". Guardo-me, aqui, de entrar na complexa questão do modo como o "género" se exprime, (com caraterísticas próprias ou comuns e indistintas), ficando-me pelo que não pode ser contestado: o masculino avulta, desde tempos imemoriais e permanece como autêntico "padrão", enquanto o feminino é visto como "alteridade". Por outro lado, o sucesso das "mulheres-exceção" não deve deixar no esquecimento a persistente desigualdade de uma maioria, que as estatísticas, na fria linguagem dos números, denunciam. Como escrevia Armando Bouçon, no catálogo da 1ª Exposição de “Mulheres d’ Artes”: "Uma análise correta de toda a história da Arte dá-nos uma perceção muito transparente de como o campo das artes plásticas foi ocupado durante muitos séculos pelo género masculino". Foi. E, se atentarmos nas diferenças de visibilidade, segundo o sexo, continuará a ser, ao menos na medida de uma persistente desproporção. É um desequilíbrio que pode debelar-se de muitas e diversas maneiras… No panorama português, Balbina Mendes tem, a meu ver, contribuído, poderosamente, para que as mulheres acedam, na vida cultural do país, ao seu "lugar de direito". Fá- lo, ocupando, simplesmente, esse lugar, com força anímica e qualidade de sobra, sem em nada se julgar discriminada, sem se sentir diferente, isto é, do lado de lá de uma linha de separação... É um caso a seguir, no campo das exceções, que, na minha ótica, tão devagar se vai alargando. Balbina faz parte das mulheres que, à partida, se sentem consideradas como iguais, e cuja atitude de despreocupação com disparidades de género, contém, implícita, a intransigente exigência de tratamento igualitário! À margem de manifestos reivindicativos, alcançaram, por si, as metas que o movimento se propôs e propõe, e, assim, afinal, o reforçam. E será que a proclamação da especificidade de género, pode, no limite, paradoxalmente, dar azo à persistência de formas larvadas de discriminação?. É uma dúvida pertinente. A "arte com género" de que fala Paula Rego, pode, ou não, abaixo do patamar do génio universal a que ela subiu, transformar-se , de facto, não em sinal vanguardista de contracultura, mas em âncora de estereótipos de género, conotando o feminino com características convencionais que são, em sociedades ancestralmente misóginas, uma menos valia? O ponto de interrogação vale para qualquer setor... Recordo o crítico literário João Gaspar Simões, que, ao elogiar a força imanente da prosa de Maria Archer, o realismo puro e duro com que ela aborda temáticas ousadas, a qualificava não como uma grande escritora, mas como "um grande escritor" ... E não é verdade que a poetisas consagradas, como Sophia de Mello Breyner, ou Ana Luísa Amaral, preferimos chamar poetas? Ambíguo cumprimento, a que subjaz a conceção da masculinidade intrínseca do cânone... Certo é que, para esta escola de pensamento, Balbina é uma das grandes pintoras que merece, por inteiro o cumprimento, ainda que, pessoalmente, se não queira rever na categoria de "grande pintor". A sua arte não procura rivalizar com quem quer que seja, nem obedece a ditames ou limitações de qualquer espécie, segue numa trajetória ascensional de inovação da estética e policromia, do ensaio de técnicas, da fusão de materiais...É genuína e livremente Ela, transmutando para a pintura a experiência ganha nos muitos espaços geográficos e culturais que a sua vivência atravessa e o seu olhar penetra. É única e inconfundível. Se me é permitida uma outra adjetivação, direi: carismática! Uma palavra que tão perfeitamente se ajusta a Autora como à globalidade da sua obra. Balbina é uma admirável contadora de histórias de vários tempos, do tempo presente a tornar-se passado, ou do passado em dinâmicas e impulsos que o trouxeram até nós, num rasto longo de evocações de festividade populares, rituais, crenças, valores revividos e reconfigurados em toda a sua magia e em todo o seu mistério. No percurso imparável de Balbina, para mim, no princípio era o rio... porque a conheci na exposição em que nos oferecia uma verdadeira crónica pictural do Douro, deslizando entre margens, da nascente até à foz, incorporado na beleza encantatória de paisagens, onde as gentes apenas se pressentiam, sem se verem... . Reencontrei-a, depois, em outro e surpreendente ciclo temático, na exposição das Máscaras Rituais do Douro e Trás os Montes, em que os homens se faziam presentes, mas ainda sem se verem... Era o início de um tropo narrativo em torno da máscara, incursão às raízes ancestrais, entrelaçamento telúrico de emoções e saberes, recriados nos traços dos seus pincéis, em explosões de cor... Não resistindo a voltar a uma perspetiva feminista sobre o ineditismo das suas escolhas -perspetiva que, não sendo certemente a de Balbina, me permito ousar - noto a esplêndida audácia com que se apodera, para a eternizar em arte, da tradição masculina da máscara, símbolo, por excelência, da superioridade e camaradagem de sexo, da festa e do cerimonial rigorosamente interditos à mulher... É um prenúncio, um sinal da força subversiva e libertária da sua aventura artística. Logo depois, vai ultrapassar uma última barreira, no momento em que a fragmentação ou transparência das máscaras põe a descoberto... rostos femininos! Uma definitiva ruptura com o interdito. Transgressão, que Paula Rego, sem dúvida, saudaria com “o gozo pela inversão e pelo desalojar da ordem estabelecida". Por isso, Balbina Mendes poderia estar, se quisesse, entre as referências do movimento emancipatório de contracultura feminina nas Artes, na senda da emblemática Paula sobre quem Ana Gabriela Macedo afirma: [...] ela questiona continuamente os chamados "corolários naturais" da diferença de sexos, bem assim como a suposta "ordem natural das coisas", que se traduz na passividade, dependência e submissão, desmistificando o discurso estético e desmascarando o seu papel eminentemente ideológico e as relações do poder, que aí se encontram camufladas [...]. Na sua mais recente exposição, intitulada "Segunda pele", o engenho narrativo de Balbina não nos revela, antes adensa o segredo dos jogos entre as faces desocultada e as suas máscaras, mas revela-a, definitivamente, como assombrosa retratista, do rosto, das suas metamorfoses, do tangível e do intangível. Confirma o seu incessante questionamento sobre o ser, as suas mutações e aparências. É, agora, na Literatura que busca inspiração, glosando, em enigmáticas efígies, motes Pessoanos. As respostas que encontra na tela são sempre fonte de sucessivas interrogações, de demandas inspiradas na heteronímia do Poeta, ou até, talvez, simplesmente na duplicidade do “eu” de cada um de nós . Como dizia Maria Anderson; "Qualquer pessoa ficciona a sua própria identidade, Não nos ficcionamos sempre da mesma maneira. Vamos mudando o guião". Ou, secundando Maria Velho da Costa, nos poderemos interpelar: "Quem sou? Talvez seja quem vou sendo..." A pessoa. A persona… Para onde vai, Balbina Mendes? Para onde nos levará , no ímpeto de romper limites, a grande cultora de saberes arcanos e enigmas do espírito, em diálogo introspectivo com as Artes, com a Vida, connosco, nas suas cada vez mais fascinantes mensagens visuais? Maria Manuela Aguiar Espinho, junho de 2022

O MEU VERÃO EM ESPINHO

O MEU VERÃO EM ESPINHO 1 - Tenho saudades do verão em Espinho, nos anos da minha infância. Esse verão, essa cidade (que ainda não o era), tinha a sua mítica Avenida bordejada de palmeiras gigantes, sempre cheia de multidões cosmopolitas, nos seus trajes de passeio, sentadas em mesas coloridas nas esplanada dos cafés, ou desfilando num vaivém infindável, vagaroso, quase solene. Tinha quiosques graciosos - daqueles que Maluda gostava de pintar - , e onde eu, desde que aprendi as primeiras letras, comprava, às terças e sextas, "O Mosquito", e mais a sul, diariamente, chocolates. Chocolates sorteados...Éramos convidadas a perfurar a superfície de papelão de bonitas caixas retangulares, libertando bolinhas de cores, que tombavam, em baixo, num mostrador de vidro. A cada cor correspondia um diferente tamanho da mesma marca. Uma espécie de máquinas de jogo para crianças - o nosso doce casino... Minha irmã acertava, muitas vezes, no prémio maior, que correspondia à pequena esfera dourada. Eu jamais! Ao Casino, é claro, só íamos ver cinema, alternando com as sessões do Teatro São Pedro. Ambas as salas de espetáculos eram enormes, esplêndidas, e ofereciam um filme por dia - o que elevava a programação mensal a uns fabulosos 60 títulos! O cartaz era divulgado quinzenalmente, em mini- livrinhos colecionáveis, que se desfolhavam como livros de contos - com sínteses de guiões muito chamativas. Ainda tenho vários, guardados como relíquias. Felizmente, os pais e os avós eram cinéfilos declarados, pelo que, em Espinho, raro era o dia em que, ou uns ou outros, não nos levavam ao seu e nosso entretimento favorito. Semanalmente, pelo menos uma vez (talvez à 4ª ou 5ª-feira, já não tenho a certeza), o Casino oferecia um bónus extraordinário, num dos dois intervalos mediante um ligeiro aumento do preço do bilhete: a exibição de um cantor ou cantora dos mais famosos do País - dos que, habitualmente, davam concertos nos seus salões. Recordo-me bem, por exemplo, de Tony de Matos ou das rivais Madalena Iglésias e Simone de Oliveira, ainda em início de carreira, mas já famosos e com vozes fantásticas... Os intervalos eram obrigatórios, para ir ao barzinho tomar uma bebida, comer um bolo, porque os baldes de pipocas ainda não tinham sido inventados. E, no casino - que era um edifício claro, luminoso, de bela traça, luminoso - - até podíamos vir às varandas gozar a maresia e olhar, do alto, o movimento da Avenida.. 2 - No que respeita à cronologia da minha agenda de férias espinhenses, devo dizer que comecei pelo meio, ou mesmo pelo fim, porque tanto os passeios no que alguns chamavam “o picadeiro” (termo que em minha casa não se usava). como as sessões da Sétima Arte ou eram noturnas, ou, quando muito, as “matinées” das 15.00. A alternativa era uma corrida de bicicletas ou um jogo de dominó ou damas nos cafés – o Café Palácio, ou o Costa Verde, os nossos favoritos. O Chinês já não existia – era ainda do tempo de juventude dos pais, não do nossa. Mas a tradição das tertúlias e do jogo no café, estavam bem vivas! Pedíamos uma limonada e uns pasteis, mais um tabuleiro de damas…nada de Coca-cola, note-se, que fora banida pelo “Estado Novo” salazarista… De manhãzinha, com bom ou mau tempo, o destino era a Praia Azul, com as barracas de riscas azuis e brancas, à FCP. Ainda mantenho o prazer de nadar com sol ou chuva - tanto me faz. Água por baixo, e água caindo do céu ligam bem – cedo aprendi isso com meu pai. Não que chuva fosse coisa frequente, em agosto ou setembro. A ventania, sim, todavia, as mais das vezes, só levantava a partir do princípio da tarde. E o “nosso mar” nem sempre se mostrava hospitaleiro, mas quando se encrespava em vagas altas, e a corrente arrastava demais, à hora do banho íamos à piscina, que era a quinta essência da modernidade. Para os frequentadores habituais, com preços convidativos (lembro-me de comprar senhas de entrada em pacotes), e, em qualquer caso, nunca lhe faltava uma abundante e sofisticada clientela. Não tinha, ainda, a concorrência da verdadeira “piscina natural”, que é a praia da baía, formada mais tarde pelo novo paredão, um mais eficiente quebra-mar… No plano atmosférico, Espinho continua obviamente na mesma – com um clima que é, para mim, uma das suas simpáticas invariáveis, porque detesto o excessivo calor estival do nosso interior - e, neste aspeto, o interior começa a poucos quilómetros da costa. E à vista, à superfície, havia o comboio, que chegava a apitar e atravessava o centro da vila com as suas máquinas negras, lançando nuvens de fumo para o ar. Os comboios de passageiros paravam, todos, na estação, e logo seguiam viagem, mas os comboios de mercadorias, não poucas vezes, sabe-se lá porquê, na Rua 7, suspendiam a marcha e bloqueavam a passagem para a praia por tempo indeterminado, o que nos levava, com juvenil imprudência, a atravessar as carruagens, pelo corredor de uma das extremidades, saltando em andamento, quando necessário.. Ponte sobre a linha férrea só havia na Rua 19 – e bem pitoresca! Adorava os comboios, como quase todas as crianças e muitos adultos, entre os quais me conto ainda… Imaginava Espinho, com uma série se pontes, sobre a linha, entre o Rio Largo e o bairro piscatório – pontes de desenho variável, que poderiam tornar-se um original cartaz de paisagem urbana, fazendo da nossa cidade, digamos, uma Veneza ou uma Paris “ferroviária”. Por baixo, em vez do rio, corria o comboio… Um amigo arquiteto, a quem eu, já muito depois de consumado o fatal enterramento da linha, descrevia o meu projeto mirabolante, disse-me que não era tão mirabolante como eu julgava, e que teria, de facto, sido equacionado por uma minha alma gémea… 3 -Com o meu olhar nostálgico sobre outra época, não pretendo sequer esboçar um julgamento da evolução que nos trouxe ao presente. Compreendo que Espinho se transformou, em larga medida, como parte de um todo, (o país, o mundo...). Esteve na vanguarda do turismo balnear, quando oferecia tudo quanto o veraneante esperava dos areais, do mar, de distrações lúdicas. O próprio conceito entretanto mudou, deslocando geograficamente a massa de visitantes, os mais e menos ricos, por igual, para os “paraísos” de sol escaldante e águas tépidas. E, assim, até os mais bairristas dos espinhenses natos, no verão, rumam aos Algarves, tal como o comum dos nortenhos – coisa que eu só faria por penitência!. Contudo, Espinho permanece uma terra perfeita para residir e não como “cidade-dormitório, mas como verdadeira comunidade, que mantém o seu caráter identitário, com os costumes populares, as tradições de convivialidade, o comércio, o admirável tecido associativo e institucional e, com ele, uma vida cultural invejável, que anima a rede de excelentes infraestruturas, públicas e privadas – de que são “ex-libris”, nomeadamente, a programação musical, os festivais de cinema, o ballet, o teatro, a Academia de Música, as Escolas, a Universidade Sénior, o desporto, que nos trazem outro perfil de visitantes… Nesta vertente cultural devo, porém, apontar a mais estranha e injustificável das lacunas: a falta de sessões regulares de cinema, apesar da existência de duas salas, que são das melhores do país - a do Casino e a do Multimeios. Não se lhes pede que abram quotidianamente as portas para oferecer 60 filmes por mês… só o mínimo de quatro, um por semana! Na verdade, da terra do Cinanima e do FEST, quase só tenho de sair para o Porto ou Gaia em demanda de cinema, em centros comerciais onde são exíguas as instalações e grandes as escolhas… in DEFESA DE ESPINHO, 29 de junho

COMBATER O CENTRALISMO PORTUGUÊS: O PARADIGMA PINTO DA COSTA

COMBATER O CENTRALISMO PORTUGUÊS: O PARADIGMA DO FUTEBOL NA ERA DE PINTO DA COSTA 1 - Há um FCP antes e outro depois de Pinto da Costa. Como portista de nascença, aos 80 anos, posso dizer que vivi 40 com cada um deles... O FCP, que vai da minha infância à meia idade, era um dos clubes grandes de um país pequeno no mundo do futebol. Tinha eu já uns 13 ou 14 anos quando, pela primeira vez, em 1956, vi o Porto ser campeão nacional. O Porto de Dorival Knipel, brasileiro de origem alemã, oriundo de Minas Gerais. O mítico Yustrich! Quanto à Seleção Nacional, digamos que o seu forte, por essa altura, eram as chamadas "vitórias morais". A exceção, que confirma a regra, foi um 3º lugar no Mundial de 1966, sob o comando de um outro famoso treinador brasileiro, Otto Glória. Os escolhidos de Otto, entre eles o fantástico Eusébio (os "Magriços", como foram chamados, ou não fosse a fase final do torneio jogada na Inglaterra...) exemplificam bem a profunda desigualdade Norte/Sul, desejada e imposta no antigo regime: Dos 23 convocados, 19 eram do sul (mais exatamente,18 de Lisboa, que ainda se sentia capital do Império, e um dos arredores, de Setúbal) e só 4 eram do norte (3 do FCP e 1 do Leixões). E, na realidade, o fosso era ainda maior, pois desse quarteto nortenho, composto pelo guarda-redes Américo, por Custódio Pinto e Festa, do FCP, e por Manuel Duarte do Leixões, apenas o defesa Festa era titular. Para os mais jovens, há que dizer que, nessa remota época, não havia substituições de jogadores durante os noventa minutos, nem sequer por lesão, e que poucas alterações se registavam no onze base de qualquer equipa, ao longo de cada época. E havia mais e pior: todos os cargos das instâncias dirigentes do futebol português eram repartidos, em exclusivo, entre os clubes dominantes da capital (Sporting, Benfica e Belenenses), que, assim, tinham de ser vistos como decisores e juízes em causa própria - com fama e proveito, jogando dentro e fora do campo. Lisboa tratava as colónias e as províncias, da mesma maneira, ou, pelo menos, com a mesma sobranceria - na política, na economia, no desporto, etc, etc, etc... Em suma, na capital estava o Poder absoluto, em todos os setores. Mandava, sem preocupação de equilíbrio, sem controle, sem oposição... A Revolução de 1974 trouxe aos Portugueses a Liberdade e a Igualdade, deu-lhe direitos proclamados na letra da Constituição e das Leis. Os progressos, não seriam, porém, alcançados, ao mesmo ritmo, por todo o lado, em todos os aspetos. Não basta declarar a igualdade, é sempre preciso conquistá-la contra o "status quo", contra interesses instalados. E em nenhum campo foi mais e melhor conseguido do que no futebol. Não porque fosse mais fácil, mas porque houve quem fizesse a revolução no terreno: Jorge Nuno Pinto da Costa. Podemos pensar, como eu penso, que sem revolução democrática não teria havido Pinto da Costa, com o seu inigualável currículo de vitórias, em termos universais E sem Pinto da Costa não teria havido revolução no futebol português! Por tal entendo, antes de mais, a criação de todo um condicionalismo para a igualdade, que permitiu a afirmação pelo mérito, pela qualidade, em qualquer ponto do território onde houvesse o que era preciso para a desenvolver. Geograficamente, o país do futebol, que antes era Lisboa, ficou maior, mais rico e mais competitivo, descobriu novas formas de gestão, muitos talentos e capacidades, até então atrofiados. Significou, também, uma aproximação ao panorama dos outros campeonatos da Europa- uma "europeização" do nosso futebol. De facto, se olharmos em volta, constatamos que a França, (antigo paradigma de centralismo político) não de limita ao Paris St Germain, conta com o Bordéus, o Lyon, o Marselha, o Mónaco... a Inglaterra não é só os clubes londrinos, pois também Liverpool, Manchester, Leicester, etc etc. podem ser a terra do campeão. Na Alemanha, a hegemonia tem estado, por acaso, bem longe de Berlim, na sulista Munique, com o Bayern a justificar, pelo seu jogo, títulos nacionais e internacionais. Dos nossos vizinhos espanhóis se pode dizer o mesmo - apesar de uma rivalidade maior entre os colossos de Barcelona e Madrid, há vida e campeões em outras cidades - como Valência ou Sevilha... E em Madrid, nem sempre é o Real, mas o Atlético, a levar o troféu para o museu. Uma situação, deste ponto de vista, algo semelhante entre os países peninsulares, se lembrarmos, entre nós, para além da alternância entre os grandes de Lisboa e o grande FCP, o título, relativamente recente, do Boavista e a existência de outros clubes muito competitivos a nível internacional, como vem sendo, sobretudo, o Braga. (o senão é, ainda, a subrepresentação do interior, que nem só no futebol é desfavorecido...). 2 - Pinto da Costa lutou para alcançar, não só a igualdade teoricamente proclamada nos diplomas legais, mas a efetiva igualdade de oportunidades. E, em condições de abertura à competitividade, alcandorou o FCP ao topo do mundo do Desporto (do Desporto-Rei) e, por natural repercussão, levando o País, num segundo tempo, anos depois, a um protagonismo crescente. Portugal, os Portugueses: os nossos Mourinhos, (que hoje ganham títulos em todos os continentes do planeta); os Decos, os Ronaldos, os Pepes.. .as equipas técnicas, os gestores, os agentes das estrelas, os dirigentes federativos... A primorosa organização de competições internacionais... O que era, antes do 25 de Abril, uma impossibilidade, e, mesmo depois, coisa extremamente improvável Não estou com isto a dizer que tão extraordinária evolução se deva, por inteiro e diretamente, ao Presidente do FCP. Não tenho, porém, dúvidas de que tudo se seguiu à dinâmica que por ele criada, através de uma verdadeira "regionalização" do futebol e do seu dirigismo. Ou seja, o equilíbrio de poder de "fazer vencedores", em qualquer cidade ou região do País, de acordo somente com a força, visão e vontade de empreendimento dos cidadãos e das suas organizações. Pinto da Costa foi eleito presidente do FCP em 23 de abril de 1982, exatamente oito anos depois da Revolução (ano, por sinal, tão importante no futebol como na política, por ser o ano da primeira Revisão Constitucional, que consagrou a democracia plena, com a extinção do Conselho da Revolução). O clube tinha ganho, até então, meia dúzia de campeonatos... Este ano festejou o seu 30º título de campeão. O Presidente cumpriu, ao longo das últimas quatro décadas, o nosso sonho de sermos os melhores do País. E foi muito, muito mais longe, ao cumprir promessas, que, então, nos pareciam pura utopia: dar ao Clube notoriedade internacional, atingir o final das principais competições europeias. Cumpriu promessas muito para além dos nossos sonhos, e, talvez, até dos dele... Tornou o FCP campeão da Europa e campeão do mundo de futebol. Por duas vezes. Sete títulos internacionais só em futebol sénior... E é, ele mesmo, o presidente de clube mais titulado do mundo, um recordista absoluto e insaciável, à espera de mais e mais vitórias no futuro! O seu fabuloso legado inclui ainda um Estádio e um Pavilhão desportivo, que são obras de arte arquitetónicas, e um Museu como não há igual. 3 - Estou-lhe grata como portista, naturalmente, e, também, como portuense e portuguesa, por ter dado à Cidade e ao País a projeção internacional que lhes faltava, no domínio mediático, por excelência, do mais universal e popular desporto da atualidade. E não menos reconhecida lhe estou, por ter mostrado a Portugal como pode fazer a regionalização, se souber extrapolar para a política os exemplos e os resultados rápidos e extraordinários conseguidos nesse outro campo. Está provado que o centralismo, ao manter o contexto em que "uns mais iguais do que os outros", é sempre inimigo do progresso, favorece a ascensão dos medíocres, alimenta uma burocracia lenta e dispendiosa, distancia os decisores da realidade plural e diversa da vida das pessoas e instituições. A desigualdade gera desiguladade! Portugal é, porventura, hoje, o país mais desigual da Europa, porque é o mais centralizador. Vê-se, caso a caso, ultrapassado pelos diversos Estados que vão aderindo à UE...continua na cauda da Europa, de onde um emblemático "slogan" de Cavaco Silva prometia retirá-lo em 1985. Ai permanecemos, porém, ultrapassados por uns e por outros... Tal como estamos organizados, não temos saída. O ensaio de "descentralização" em curso é já um fracasso irremediável, porque mantém o poder de decisão sobre as políticas concretas, intacto, nas mãos dos homens da capital - na Saúde, como na Educação - transferindo para as autarquias pouco mais do que uma custosa gestão de equipamentos, qualquer que seja o setor. O nível municipal não tem, aliás, dimensão para protagonizar o projeto de mudança de que o País precisa. São muitas as Câmaras, como convém ao Poder constituído (dividir para reinar...), ainda por cima, representadas por uma liderança nacional autárquica da mesma cor partidária... Só com a partilha real do Poder - com autonomia política à semelhança das Regiões dos Açores e da Madeira - poderemos, a meu ver, ultrapassar o impasse em que estamos quase meio século depois da revolução de 1974. É urgente afrontar o Terreiro do Paço, criar dinâmicas regionais, abrir caminho à vitória dos melhores, para que todo o País, com eles, se torne melhor. A política portuguesa, de norte a sul do retângulo continental, precisa, urgentemente, de clonar Pinto da Costa!... in JORNAL ERC E TAL junho 2022

quinta-feira, 12 de maio de 2022

COLETÂNEA COMEMORATIVA DO 40° ANO DE MORTE DE MARIA ARCHER “É o esquecimento e não a morte que nos faz ficar fora da vida". Mia Couto Há uma intensa movimentação nos centros envolvidos com a dinamização da Cultura, da Literatura, da Ciência e das Artes em torno da homenagem ao 40° aniversário da morte da autora e jornalista portuguesa Maria Archer (1899-1982). O Círculo de Culturas Lusófonas Maria Archer se institui como espaço para a dinamização das culturas, literaturas e da produção de conhecimentos dos países que se comunicam através da língua Portuguesa, promovendo as bases para um ambiente fecundo na valorização da vivência democrática, aproximação entre povos, de comunicação inter, trans, pluri e multicultural, muito em particular os do universo da lusofonia e suas diásporas. O Lançamento do referido Círculo deu-se em 11 de outubro de 2019, na sessão de lançamento do livro "Sem o direito de voltar a casa" Maria Archer - uma jornalista portuguesa no exílio", de Elisabeth Battista, na da Casa da Beira Alta, na cidade do Porto. Desde o seu lançamento, o Círculo, em parceria com a Associação Mulher Migrante, deu início a um roteiro de reflexões, debates e uma série de jornadas e colóquios, que nesta coletânea temos a satisfação de disponibilizar no apêndice desta publicação. Quais as principais razões que nos levam a fazer de Maria Archer uma companheira de jornadas e de diálogos sobre as temáticas de género? Da Diáspora Portuguesa e do mundo plural da Lusofonia ela é um nome que se destaca, como intelectual, jornalista e romancista, e como precursora na observação e registo, em preciosos textos,sobre os usos e costumes das gentes com as quais, por largas décadas, tanto gostou de conviver, em Moçambique, na Guiné-Bissau, em Angola, (nos anos de juventude acompanhando os pais e, depois, o marido), e, já sexagenária, no solitário exílio brasileiro de mais de duas décadas. O Círculo Maria Archer tem por assumida finalidade recolocar o nome de Maria Archer no lugar vazio que é seu na história da nossa Literatura e do feminismo português, e, também, na história do pioneirismo na construção de pontes entre as culturas lusófonas. Revisitar a obra desta Mulher de Letras, através da divulgação e do debate dos seus escritos, visa desocultar o passado, lançar luz sobre a realidade insuficientemente analisada e realçada da sociedade portuguesa de 40 e 50, e fazer futuro com a modernidade do seu pensamento e das prioridades da sua luta cívica e cultural. A coletânea intitulada "Maria Archer e a Partilha do Sensível" perfaz uma reunião de textos sob o signo do encontro e seus prolíficos desdobramentos. De certa forma, a vida de cada autor deste livro foi tocada pela vida e obra de Maria Archer. A autora promoveu aproximação de pessoas de lugares e áreas diferentes, pessoas que antes nem imaginavam se encontrar. O título foi inspirado no ensaio "A Partilha do Sensível", do filósofo Jean Jacques Rancière[1]. "Uma Leve Matéria", poema que abre a coletânea, é de autoria da poeta coimbrã Maria Albertina Mitelo. Um poema para celebrar oencontro e os laços que nos unem desde o início da jornada quanto, em 2005,trilhamos os primeiros passos, na cidade do Porto, em busca de elementos para o corpus da pesquisa sobre Maria Archer. Maria Albertina Mitelo foi professora de História durante alguns anos e, desde cedo, se interessou por Arte, com relevo para a Poesia e a Pintura a Óleo. Possui seis livros publicados: Entre Pássaros e o Mar, (2002), O Corpo das Aves (2004), Uma Leve Matéria (2007), Matéria Brevíssima (2009). O Tempo das Aves (2015) e Lugar das Rosas (2019). A sua poesia é marcadamente voltada ao transcendente, o mesmo se podendo dizer da sua pintura, de tal maneira que é possível considerar uma como extensão da outra. “Maria Archer e o Retorno Definitivo 40 anos depois”, de Maria Manuela Aguiar. Trata-se de texto para a Sessão de abertura do Colóquio Internacional "Maria Archer Reflexos e Reflexões", que aconteceu em 24 de janeiro de 2022, na Biblioteca Nacional, por ocasião das homenagens à Maria Archer no 40° ano de sua morte. Manuela Aguiar traça um elucidativo roteiro sobre o percurso da autora e assinala o movimento iniciado nos meios acadêmicos do Brasil, com uma plêiade de investigadores, que, desde há alguns anos, vem dando visibilidade à obra intemporal da escritora e jornalista, protagonista da luta pelo direito de pensar, de falar e de viver livremente em Portugal. Nesta direção afirma quão imperioso se faz restituí-la à História da Literatura, da democracia e do feminismo em Portugal e na construção de um espaço alargado de diálogo entre os povos e as culturas da lusofonia. “Musa entre Medusas – Maria Archer e a Partilha do Sensível”, de Elisabeth Battista, ao selecionar romances representativos da obra ficcional de Maria Archer, no lapso de duas décadas, indo de sua estreia em Luanda com a novela Três Mulheres (1935), passando por Ela é Apenas Mulher (1944); Filosofia duma Mulher Moderna,(1950); A primeira Vítima do Diabo,(1954); vemos que a autora lança mão de incontáveis elementos para descrever a vida social nos vilarejos, colocando em cena figuras subalternas nas casas de família e o seu cotidiano. A reflexão indaga qual a influência do meio social sobre os seus textos ficcionais? O que a construção dos perfis femininos fornece de elementos para a compreensão da maneira como estas estão condicionadas social e culturalmente à vida portuguesa em meados do Século XX? Como a autora abordou e compartilhou em sua escrita as situações que observou? Como a análise crítica e historiográfica levou à profundas reflexões sobre opercurso crítico e criativo da autora que circulou entre Portugal, África e oBrasil? “Só Quero um Futuro” da autoria de sua sobrinha-neta Olga Archer Moreira. Trata-se do texto relativo à sua intervenção na mesa de abertura do Colóquio Internacional "Maria Archer Reflexos e Reflexões", que aconteceu em 24 de janeiro de 2022, na Biblioteca Nacional de Portugal por ocasião das homenagens à Maria Archer no 40° aniversário de morte da sua tia-avó. Olga Archer apresenta o testemunho da vida e obra de Maria Archer, assinalando que esta sempre considerou que “valia a pena correr riscos para fazer aquilo que sonhava. Ficar em silêncio não era solução. Existia um futuro. Maria queria um futuro.” Revela o percurso oneroso e os desafios enfrentados pela da autora sempre em busca de um horizonte, de estabilidade econômica, tranquilidade financeira e um alvissareiro futuro pela contribuição à cultura e literatura lusófonas. “Maria Archer: Uma Preceptora Singular”, de autoria de Blanche de Bonneval relata as suas experiências no convívio com Maria Archer pelo período aproximado de cinco anos, quando fora preceptora desta, desde os 11 anos idade. Blanche relata o fascínio exercido pela mulher alta e robusta, pitoresca, sempre bem vestida e pintada, Maria Archer deixava a todos impressionados pela sua vastíssima cultura e personalidade forte. Nessa altura, escreveu África sem Luz, (1962);Brasil Fronteira d´África, (1963). Além de também escrever artigos para grandes jornais e revistas paulistas. Nesta época, Blanche tinha começado a escrever poesia e, com a ajuda da preceptora, chegando a publicar várias delas. Revela que Maria Archer era uma costureira de “mão cheia”. Ela mesma confeccionava suas roupas e as pintava (assim como sapatos e bolsas). Blanche guardou muito tempo um broche que era de sua autoria representando um belíssimo buquê de rosas. “Associação Mulher Migrante Versus Maria Archer”, de Maria da Graça Sousa Guedes, atuante presidente da Associação que tem sido um “fórum” interassociativo de reflexão e debate, que toma para si o papel e a função de colocar na ordem do dia as questões da emigração feminina e a repensar o papel das mulheres na diáspora a fim de repensar estratégias e desencadear dinâmicas de mobilização para a mudança. O texto recupera a história do percurso da Associação, ao tempo em que sintetiza elucidativo panorama de contribuição à divulgação do percurso da vida e obra de Maria Archer. Da diáspora portuguesa e do mundo plural da Lusofonia Maria Archer é,sem dúvida, um nome maior, como intelectual, jornalista e romancista, e como precursora na observação e registo da cultura dos países que viveu e tem o português como língua de comunicação. "Maria Lamas e Maria Archer: Síntese de Discursos Diversos na Unidade de Acção",de autoria do Professor Salvato Trigo, Reitor da Universidade Fernando Pessoa. O texto é o resultado da intervenção na abertura do 3º Encontro Mundial de Mulheres Portuguesas da Diáspora, promovido pela Associação Mulher Migrante.A abordagem elege como fio condutor as confluências entre os percursos das autoras e traça um paralelo entre os percursos notáveis: “a odisseia da nossa diáspora da qual estas duas mulheres, agentes ativas do resgate português da cidadania feminina, foram símbolos maiores.” Neste sentido assinala: “[...] só na pseudonímia Maria Archer não acompanhou Maria Lamas; na militância pelos direitos cívicos das mulheres, sim.” Chama atenção para a forma audaciosa como Maria Archer militava a favor da causa da dignificação da mulher portuguesa. O estudo dos primeiros passos da autora no campo da literatura de ficção encontra-se em “Três Mulheres (1935): Maria Archer – Primeiros Passos de Romancista”, de autoria de Elisabeth Battista e Rosane Alves da Silva. Neste ensaio, a novela Três Mulheres examina aspectos da vida social, as relações entre o amor, o casamento, a felicidade e o sucesso profissional. Lançado em período de intensa instabilidade social no cenário político, econômico e cultural, a década de 30, não só deixa marcas profundas no cotidiano, como estampa as transformações ocorridas dentro e fora das mentes femininas. Indaga-se: é possível inferir que a novela seria um veículo das aspirações individuais, mas profundas de um determinado coletivo de mulheres do seu tempo? Como se define a posição social da mulher que quer seguir carreira artística? Qual o seu lugar na sociedade altamente estratificada? Maria Archer e a Seara Nova (1937): sobre “Tradução e Tradutores” de autoria de Dagoberto Rosa de Jesus volta-se para o texto veiculado na imprensa periódica portuguesa Seara Nova, editado em 1937 e, faz notar que este possui o carimbo de “visado pela censura” posto que Portugal, neste período, estava sobre a égide do Estado Novo. O artigo faz apontamentos a respeito do texto “Tradução e Tradutores”, em resposta ao comentário de Castelo Branco Chaves inserto no número 527 do periódico Seara Nova. O texto de Archer em resposta foi publicado em 9 de outubro de 1937, no número 530 deste periódico. Neste texto a jornalista Maria Archer debate com Castelo a questão da tradução de obras e da publicação de autores portugueses. Ao examinar o artigo, evidencia-se a agilidade discursiva do argumento e a contundência do posicionamento de Archer que se coloca francamente em favor de uma produção local, fazendo esta ponderação que maior que o interesse de uma ou outra pessoa é preciso pensar no coletivo e na cultura do povo. O artigo “Eu e Elas” (1945) – Maria Archer e a Vocação para Sherazade, de autoria de Suelen dos Santos Silva Aburaya e Elisabeth Battista toma como ponto de partida o ano de lançamento da coletânea ocorre-nos indagar em que medida é possível captar, a partir da organização textual das narrativas breves, a crise na vida social e a condição feminina no contexto pós-guerra? Levando-se em conta o nível de elaboração estética da realidade, o seu registro literário, gestado no clima de destruição, poderá ser significativo para entender as complexidades da década perante as devastadoras consequências da Guerra Mundial na estrutura social,econômica e política e o embrião de um amadurecimento crítico do esboço do perfil de uma nova mulher? O ensaio intitulado “Da Dominação à Resistência – Percursos de Maria Archer”, de Elisabeth Battista tem como objetivo fundamental colher elementos que possibilitem a captação de momentos cruciais que permitam a compreensão, no âmbito de sua atuação intelectual de Maria Archer, como se dá o trânsito da arte para dominar à arte para resistir? O artigo “Maria Archer Cronista: Modo de Ver, Viver e Narrar a Condição Feminina” elaborado por Janaina Aparecida da Silva Cruz Barbosa e Elisabeth Battista, volta-se para a atuação da escritora Maria Archer em periódicos e tem como objetivo fundamental a leitura de narrativas breves de sua autoria produzidas para a imprensa periódica. Como a prática intelectual da autora portuguesa, produtora de literatura, põe em circulação dadas ideias, fazendo funcionar uma espécie de (re)visão de conceitos sobre a condição feminina? “Andamos na Saudade de Maria Archer”, título da intervenção de Maria Manuela Aguiar que refere-se à evocação de Maria Archer, em sucessivas iniciativas - no Encontro Mundial da Mulheres Portuguesas da Diáspora, em Novembro de 2011, na comemoração do Dia Internacional da Mulher, 2012, na cidade de Espinho e, em Lisboa, nesta sessão solene que teve como palco o Teatro Nacional da Trindade. Maria Archer, de acordo com Manuela Aguiar, a mais feminista escritoras portuguesas, é uma "feminista muito feminina", que ousou ser um “ícone de beleza e de distinção”, fazer umacarreira no jornalismo e nas Letras, e, em simultâneo, e lutar pela dignidade epela afirmação das capacidades intelectuais e profissionais então negadas à mulher. A sua escrita servida pelo talento, pela capacidade de observação e pela coragem foi uma arma de combate político - como dizia Artur Portela "a sua pena parece por vezes uma metralhadora de fogo rasante". O texto depoimento intitulado Maria Archer: O encontro com uma escritora viajante, de Elisabeth Battista foi elaborado para apresentação e posteriormente integrou a publicação do Colóquio dedicado às Memórias de Maria Archer e Maria Lamas,promovido pela Associação Mulher Migrante. O texto narra o percurso desde oprimeiro contato com a obra, a vida, os familiares e o acesso ao espólio da autora. Considerando o seu percurso extraordinário, solicitamos dos familiares em Portugal maiores informações sobre a produção crítica de e sobre o autora, recolhida durante toda sua vida.Tal trabalho culminou com a publicação: Maria Archer – O Legado de Uma Escritora Viajante (2015). A organização desta coletânea em homenagem ao 40° aniversário de morte de Maria Archer traduz-se na atualização da memória vem, de certa forma, colmatar uma falha que pesa sobre o nome da autora que não merece ser deixada ao abandono dos investigadores, uma vez que é amplamente reconhecida pelo público-leitor. Elisabeth Battista (Brasil) Maria Manuela Aguiar (Portugal) Organizadoras

quinta-feira, 28 de abril de 2022

2012 ANDAMOS NA SAUDADE DE MARIA ARCHER

Andamos na Saudade de Maria Archer Maria Manuela Aguiar* Porque se envolveu a Associação de Estudos Mulher Migrante – AMM, na evocação de Maria Archer, em sucessivas iniciativas - no Encontro Mundial da Mulheres Portuguesas da Diáspora, em Novembro de 2011, na comemoração do Dia Internacional da Mulher, 2012, na cidade de Espinho e, agora, em Lisboa, nesta sessão que nos reúne no Teatro Nacional da Trindade. Responderemos que razões não nos faltam para justificar o empenhamento cívico com que o fazemos. Uma primeira razão tem evidentemente a ver com o facto de Maria Archer ter sido uma portuguesa expatriada. Uma grande Portuguesa da Diáspora, que, desde a sua juventude, passou largos anos em cinco países da lusofonia, em 3 continentes, olhando sempre em volta, com uma inteira compreensão das pessoas, dos ambientes, dos meios sociais, que soube traduzir em dezenas de escritos de incomensurável valor literário e, também, de muito interesse etnológico, sociológico e político. Seria motivo bastante para nos lançarmos na aventura de partir à procura desse legado multifacetado e vasto, que guarda experiências e segredos de tanta gente e de tantas terras. Mas há mais. Maria Archer é uma daquelas figuras do passado, que é intemporal, por ter sabido captar as constantes da natureza humana, por se constituir na memória crítica de um tempo português, que foi opressivo e cinzento, pautado pela estreiteza dos preconceitos e por regras de jogo social e político, que ela inteligentemente desvenda e que põe em causa, sem contemplação. Ninguém como ela retrata a vida quotidiana desse Portugal estagnado e anacrónico, avesso a qualquer forma de progresso e de modernidade, em que os mais fracos, os mais pobres não têm um horizonte de esperança, e as mulheres, em particular, são dominadas pela força das leis, pelo cerco das mentalidades, pela censura dos costumes, depois de terem sido deformadas pela educação. Tendo por pano de fundo os estereótipos impostos para o relacionamento de sexos, a entronização rígida dos papéis de género dentro da família e as consequentes desigualdades, distâncias e preconceitos sociais, num doloroso e longo impasse da nossa história colectiva. Maria Archer retrata suas contemporâneas, tal como elas foram, com realismo, que traduz a busca e a evidência da verdade - doa a quem doer e para que se saiba e as gerações futuras não esqueçam. Maria Archer, talvez a mais feminista escritoras portuguesas, é uma "feminista muito feminina", que ousou ser um ícone de beleza e de distinção, fazer uma carreira no Jornalismo e nas Letras, e, em simultâneo, e lutar pela dignidade e pela afirmação das capacidades intelectuais e profissionais então negadas à mulher Ousou fazer um nome no mundo fundamentalmente misógino da cultura portuguesa. Ousou ser Maria Archer, sem pseudônimos... Por tudo isto, julgo que podemos dizer que ela é mais do nosso tempo do que do seu tempo - uma afirmação que devemos generalizar às mais notáveis feministas do princípio do século XX. Maria era, então, demasiado jovem para poder participar nos movimentos revolucionários em que estiveram a Liga Republicana das Mulheres Portuguesas e o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, mas iria ser uma das poucas resistentes que, no período de declínio desses movimentos e de desaparecimento de uma geração incomparável, continuou, a seu modo, solitariamente, um combate incessante contra o obscurantismo, que condenava a metade feminina de Portugal à subserviência, à incultura e ao enclausuramento doméstico. Uma inconformista, consciente das desigualdades e da injustiça em geral, e, em particular, das que condicionavam o sexo feminino, na sociedade portuguesa. A sua escrita, servida pelo talento, pela capacidade de observação e pela coragem foi uma arma de combate político - como dizia Artur Portela "a sua pena parece por vezes uma metralhadora de fogo rasante". Uma saga em que vida e arte se fundem - norteadas por um declarado propósito de valorização do feminino, da "libertação" da Mulher, e, com ela, da sociedade como um todo. Ela é já uma pessoa livre num país ainda sem liberdade, o que lhe custou o preço de um longo e doloroso exílio ... Maria Archer é uma grande escritora (ou "um grande escritor", como João Gaspar Simões preferia dizer, alargando o campo de comparação aos dois géneros). Uma escritora de causas, determinada a corroer a imagem da "fada do lar", meticulosamente construída sobre a ideia falsa da harmonia de desiguais (em que, noutro plano, se baseava a ideologia corporativa do regime), e da não menos falsa brandura do autoritarismo no pequeno círculo da família ou no país inteiro. É uma retratista magistral da mulher e da sua circunstância... O regime respondeu em força. Primeiro, tentou desqualificá-la. Sintomática é a opinião de um homem do regime, Franco Nogueira, que, em contra-corrente, num texto com laivos misóginos, a apresenta como apenas uma mulher a falar de coisas ligeiras e desinteressantes, como o destino das mulheres. Não tendo conseguido, no campo da crítica literária os seus intentos, o Poder passou à acção direta: alguns dos seus livros foram apreendidos, os jornais onde trabalhava ameaçados de encerramento. Maria Archer viu-se forçada a partir para o Brasil - uma última e infindável aventura de expatriação, de onde só viria, envelhecida e fragilizada, para morrer em Lisboa. Contudo, o desterro não era pena bastante... Maria Teresa Horta, no prefácio da reedição de "Ela era apenas mulher" afirma que Maria Archer foi "deliberadamente apagada da História". O ser emigrante é já, entre nós, factor comum de esquecimento, como que natural, na memória da Pátria, mas o seu caso foi mais grave, doloso, implacável... Dá-nos razão e força suplementar para intervirmos, ainda a tempo de neutralizar o ato persecutório, executado há décadas, restituindo a Maria Archer o lugar que lhe é devido no mundo vivo da cultura portuguesa. Lendo a sua obra em momentos mágicos de reencontro com ela, com a lucidez da sua análise e a elegância do seu estilo, acompanhando-a em incursões ao universo cinzento e confinado em que conviveram as portuguesas e os portugueses durante meio século... Elegância é uma palavra que quadra com Maria Archer, que a caracteriza na maneira como pensou, como escreveu, como se vestiu e apresentou em sociedade, como cruzou uma rua de Lisboa ou de São Paulo, como atravessou uma vida inteira, até ao fim... Ou melhor, até ao seu regresso! Estamos aqui reunidos para a trazermos a uma segunda vida, no sentido em que falava Pascoaes: "Existir não é pensar, é ser lembrado" Este não é o primeiro nem será o nosso último encontro sobre a sua personalidade, o seu exílio, o seu retorno... Sobre a obra e a pessoa - qual delas a mais interessante... Dizia Mariana, a inesquecível personagem de "Bato às portas da vida"; "Ando na saudade de mim, mesmo perdida no tempo", Nós andamos na saudade de Maria Archer, reencontrada em nosso tempo, em qualquer tempo. A leitura de tantas páginas fulgurantes que nos deixou são, para sempre, porta de entrada na sua intimidade. Lisboa, Teatro da Trindade, 29 de março de 2012