terça-feira, 18 de outubro de 2022

ISABEL II - SELF MADE QUEEN

ISABEL II, "SELF-MADE QUEEN" 1 - A morte de uma grande Rainha é apenas o início de uma outra forma de vida imortal. Os primeiros dez dias dessa outra vida foram pontuados por rituais e homenagens fúnebres a que incontáveis milhões de telespectadores assistiram no pequeno ecrã (estima-se que o número andou perto de mil milhões) e em que centenas de milhares de pessoas participaram, presencialmente. O passamento de Isabel II deixou muito poucos indiferentes, a nível planetário. A cobertura mediática exaustiva e intensiva mais não foi do que o reflexo de interesse e reconhecimento global. Sentimos essa perda como se fosse nossa... do nosso país, comunidade, família, e a tristeza e a comoção foram partilhadas sem fronteiras. Na hora da morte, esperada e inesperada, do ícone em que, há muito, se convertera, o mundo parou para a lembrar na sua estatura de estadista, num coro de elogios que incluiu, entre líderes de Estados de todas as geografias, Zelensky e Putin, Biden e Obama, Trump e Bolsonaro. Em Westminster Hall, a fila de quilómetros, que se formou, dia e noite, durante cinco dias,longa e lenta caminhada de 12 a 14 horas,foi, autenticamente, o que um jornal londrino chamou "peregrinação", reverencial e afetiva. O funeral de Estado, a 19 de setembro, reuniu um número jamais visto de representantes ao mais alto nível de Casas Reais e de Repúblicas (no nosso tempo, só comparável ao funeral de Nelson Mandela que, todavia, contou com bastante menos de metade da vasta panóplia de dignitários reunidos em Westminster Abbey). Uma cerimónia religiosa precedida por vertiginosa sucessão de eventos, transmitidos em direto pelas televisóes, em que iam alternando tributos à monarca falecida e a agenda do novo Rei, sua investidura e contactos com os Parlamentos e os Povos da Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda, com os líderes da "Commonwealth" e um sem número de personalidades estrangeiras. Foi uma fascinante aula prática de como funciona a transição monárquica no mais antigo dos regimes parlamentares - conjugação singular de modernidade democrática, e da "traditio", que se vai moldando a toda a espécie de transformações sociais. Por exemplo, no domínio das desigualdades de género, que, no debate sobre a alternativa Monarquia/República, poucas vezes é focado, apesar de ser evidente que as monarquias constitucionais têm dado (ao menos na Europa) mais chefes de Estado do que as Repúblicas... E se somarmos os anos de mandato, a diferença é ainda maior. Hoje, nas principais Casas Reais europeias, a igualdade dos sexos na linha de sucessão está constitucionalmente garantida, depois das mais conservadoras, como a britânica, e, mais ainda, a espanhola, terem seguido o paradigma nórdico. Um dos exemplos concreto de reivindicação da igualdade foi dado na chamada "vigília dos Príncipes", primeiro em Edimburgo e, depois, em Londres, pela Princesa Ana, que, em uniforme cerimonial, de medalhas ao peito, desfilou, a par dos irmãos, atrás do féretro real, tornando-se a primeira Mulher a fazê-lo. Abriu o precedente, ocupando um lugar antes sempre ocupado por homens! A opção da Princesa Real produziu resultados imediatos: na inovadora vigília dos netos da Rainha Isabel II, que terá inaugurado uma nova tradição a cumprir em futuras exéquias reais, (desde que haja essa geração...), as quatro netas da Rainha estiveram presentes, em posição idêntica à de irmãos ou primos. Foi como que uma "experiência laboratorial" bem sucedida, que logo prosseguiu, quando os bisnetos da Rainha foram, ao que parece por decisão de última hora, integrados no cortejo do funeral de Estado: não só Jorge, (o futuro Jorge VII), de nove anos, mas igualmente Carlota, com apenas sete anos. A princesa mais nova não foi deixada em casa - significativo pequeno sinal dos tempos. 2 - Com um olhar sempre atento aos desiquilíbrios de sexo na ocupação do espaço público, anotei a enorme predominância masculina nas impressionantes exéquias, particularmente visível na componente militar (fantástico espetáculo de coreografia, em que os britânicos são inexcedíveis). Apenas um pouco superior era a percentagem de mulheres entre os membros do clero, (na Igreja anglicana, há mulheres Bispos e, ao menos uma estava na Abadia). A tendência para o equilíbrio desenhava-se nas instituições políticas e, na outra componente maior das celebrações - a popular - talvez tenha havido predominância feminina, ainda que não muito acentuada. De qualquer modo, era à volta de uma mulher que tudo girava: a mulher mais famosa do nosso tempo, que, do outro lado do planeta, (em Pequim), admiradores apelidaram de "Rainha do mundo", tal como o fazia, na CNN, um dos maiores nomes do jornalismo internacional, Christiane Amanpour, (embora lhe colocasse um ponto de interrogação). O que, inquestionavelmente, poderemos afirmar, é que Isabel II, no fim do reinado, era muito maior do que a Grã-Bretanha, ou os 16 Reinos sob a sua coroa, ou a Commonwealth de 56 Estados, na maioria Repúblicas, com uma população que perfaz um terço da humanidade. E, também, muito maior do que era no momento em foi chamada a ocupar o trono, com apenas 25 anos, por morte prematura do pai. Quem ousaria, então, prever o destino que foi traçando, a pulso, com uma aprendizagem feita no dia a dia de tantos dias, de tantos anos, de sete décadas... Começou por convencer às suas (insuspeitadas) qualidades um cético Winston Churchill, que não via nela mais do que a sua aparência de jovem inexperiente e tímida. E acabou por convencer líderes e povos à escala universal. Não de imediato, nem de forma fácil. Bem pelo contrário, teve de afrontar, em conjunturas adversas, uma infinidade de obstáculos, muitos dos quais colocados no seu caminho pelo simples facto de ser mulher. E teve ainda de conjugar os papeis de família e de Estado, reinventando o cargo ao seu exercício no feminino. Tudo isso, num tempo concreto, tão diverso da era Vitoriana como da realidade do pós guerra no século XX. Não tinha um modelo a seguir, mas a criar... Na maioria das análises e comentários em que a recordam esta singularidade tende a ser menorizada. Camila, a Rainha Consorte, foi uma exceção ao valorizar a assertividade e intrepedez de Isabel II no momento da sua entrada num "mundo de homens" (ainda hoje é, mas não tanto...), obrigada a fazer um percurso solitário, único e irrepetível, de início, não espetacular ou fulgurante, mas sempre consistentemente ascensional. Nos primeiros anos, terá prevalecido a imagem que eu própria tinha dela - a de uma monarca distante, conservadora, refém de rígidos protocolos e remetida a um papel meramente simbólico. Muito diferente das Rainhas reinantes nas nações nórdicas... Tal como o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, vi Isabel II, pela primeira vez, em 1957, de relance, alinhada numa rua cheia de gente. No meu caso, não em Lisboa, mas na Avenida, em Gaia, que o carro oficial desceu lentamente, em direção à ponte sobre o Douro. Estava com muitas dezenas de colegas do Colégio do Sardão, envergando uniforme de festa. Formávamos uma longa mancha azul marinho na primeira fila do passeio. Ensaiadas pela nossa professora Madre Mary King, entoávamos, alto e bom som, o “God save the Queen”. Ouvindo o hino, a jovem Rainha terá mandado o carro parar, por uns segundos, à nossa frente, enquanto o casal sorria e nos acenava. Ele mais próximo. Tínhamos feito, habilmente, a escolha pelo lado da rua onde melhor poderíamos ver Filipe, o formidável Duque de Edimburgo. Estávamos bastante mais interessadas nele do que nela... Quase três décadas depois, a Rainha voltou ao nosso País, em visita oficial. Dessa vez, eu era Secretária de Estado da Emigração, e tive diversas ocasiões de cumprimentar Sua Majestade, numa delas em vestido de gala, cruzado pela faixa larga de uma condecoração britânica, que acabara de receber. Foram breves e formais saudações, de que não guardo recordação emotiva… Quem mais me impressionou, foi, de novo, o Príncipe Filipe, numa inesperada e divertida conversa a dois (suscitada pela minha OBE...). 3 – Sem mais contactos pessoais, fiz a “estrada de Damasco”, em relação à Isabel II nas últimas duas décadas, à medida que me fui apercebendo, não só da sua surpreendente capacidade para compreender o espírito do tempo, (parecendo, paradoxalmente, mais jovem de mentalidade na velhice), como, sobretudo, a importância da sua figura enquanto “Mulher de Estado”. Ou seja, enquanto "mais valia" no infindo combate contra os preconceitos e as discriminações de género. Redescobri Isabel II como autêntico trunfo para causas que há muito coloquei no topo das prioridades: a erradicação de discriminações, que asfixiam as nossas sociedades, de forma clara ou larvada, como o idadismo e o sexismo. No caso da Raínha, a idade tornou-a mais sábia, respeitada e consensual. Foi, pois, com cabelos brancos e rugas naturais que o mundo a aceitou como a mais convincente imagem de empoderamento feminino. Com um poder situado acima do plano partidário e das querelas do quotidiano - um poder que não se exprime de forma direta, em números e slogans políticos, e não é quantificável, nem tangível, por um lado, nem meramente simbólico, por outro. A informação confere poder e ela dispôs de sete décdas de acesso a todos os dossiers secretos, leu-os, atentamente, e tudo conservou na sua espantosa bagagem de conhecimento. Saber usá-lo, com sageza e sem alarde público, só podia contribuir para solidificar a sua autoridade, prestígio e influência. As opiniões da Rainha eram desconhecidas na arena política, mas não dos seus Primeiros Ministros que, como é do domínio público, preparavam cuidadosamente as frequentes reuniões com ela. Sabe-se, também, que era menos atraída pelas vicissitudes da política interna do que por matérias estratégicas no campo da Defesa e das Relações Internacionais. O mais provável é que tenha apoiado continuadamente o esforço que permitiu à Grã-Bretanha continuar a ser a primeira potência militar da Europa. E mais inequívoco ainda foi o seu papel absolutamente crucial e preponderante na transição do Império para a Commonwealth (o que chamamos "descolonização", no nosso caso, tardia e dramática...). Olhando retrospetivamente seu desempenho, na vida pública, em conjunto com a privada, não podemos deixar de o ver como uma extraordinária demonstração da capacidade feminina para responder aos maiores desafios e para exercer as mais exigentes funções. Um legado precioso, porque nos confere a certeza, ou, pelo menos, o pertinente questionamento sobre o que todos os Estados e sociedades ganhariam se permitissem às mulheres, que se nos afiguram pessoas comuns, o que lhes têm negado: uma oportunidade de mostrar o que valem! O exemplo de Elizabeth Alexandra Mary Windsor é particularmente sugestivo, porque, ao contrário do seu marido, não tinha uma formação académica, brilhantemente concluída, nem alardeava invulgar inteligência, ambição ou arrojo. Viu-se, involuntariamente, catapultada para um cargo que não queria, e cumpriu, sem hesitação... Não foi menos impressionante a sua gestão da vida privada, antes de mais, ao fazer um casamento de amor, coisa, então, rara, em famílias reinantes - primeiro sinal de uma fortíssima personalidade. Contra a vontade dos pais e cortesãos, casou com Filipe, príncipe da Grécia e da Dinamarca, primo afastado - como ela trineto da rainha Vitória - órfão solitário, sem fortuna, estrangeiro, demasiado atraente (segundo os detratores...), um mero, embora distinto, oficial da"Royal Navy". Contrariando presságios e vaticínios, o casamento duraria uma vida inteira de cumplicidade, apesar de ser um exemplo da inversão da tradicional divisão de trabalho: ela foi a Chefe de Estado, e reinou sozinha, com um poder indivisível, ele ocupou-se, em primeira linha, da família, abdicou dos seus próprios título reais, sacrificou uma promissora carreira militar, que adorava, e ficou “desempregado”. Viu-se compelido a reinventar ocupações e fê-lo, inteligentemente, em projetos e tarefas de enorme importância, mas, as mais das vezes, discretas, quase invisíveis, sempre preocupado em deixar o palco à Rainha. O seu contributo para a afirmação de Isabel II, terá tido uma importância que a História possivelmente vai omitir. Contributo, que ela, em anos recentes, com a autoconfiança que a idade acrescenta, haveria de reconhecer publicamente, mas que permaneceram na sombra (e não é essaa sorte normal das consortes de grandes vultos que marcam cada época, em qualquer domínio?). 4 - Uma história assim, teria fatalmente de chamar a minha atenção, enquanto defensora da igualdade e da partilha de funções entre homens e mulheres, no círculo familiar e no espaço público. É um caso concreto de inversão dos papéis de género, que me permite demonstrar como sempre apoio, espontaneamente, o parceiro menos valorizado, seja qual for. É, quase sempre, a mulher, mas, se, excecionalmente, for o homem, sinto-me, do mesmo modo, motivada a fazer-lhe justiça. Qual foi a parte de Filipe na vida de uma Rainha, que, ao contrário da sua antepassada Victoria, nunca sobrepôs as razões do coração aos seus deveres de Estado e nem sequer lhe deu o estatuto de "principe consorte"? Filipe terá sido o seu principal conselheiro, não por complacência ou favor, mas por confiança na sua mundivisão e audácia, que temperava com o filtro da sensatez e da prudência, que a caraterizavam. Sabia ouvir, julgar e decidir. Hoje, é do conhecimento geral, embora, como disse, continue a merecer insuficiente destaque, que o Príncipe Filipe foi “ghost writer” de discursos reais, que se lhe deve, por exemplo, a abertura a um novo relacionamento com os “media”, a começar pela transmissão em direto da cerimónia da coroação (vencendo um braço de ferro com Churchill, que era absolutamente contra). E, sobretudo, a reconfiguração da “Commonwealth”, voltada para as prioridades que eram as suas - a defesa da Natureza, do ambiente, do progresso tecnológico, da cultura e do desporto, a aposta na convivialidade e na juventude. Não foram coisas de somenos, se pensarmos na projeção mediática que transformou Isabel II em Rainha global (é evidente que por mérito próprio, pelo seu talento de grande diplomata) e agregou a "Commonwealth", cuja expansão foi notável, sob a sua égide (a nova "joia da Coroa"). Isabel II foi Chefe de Estado pelo acaso do nascimento, mas Chefe da Commonwealth de 56 Nações iguais em estatuto, por livre eleição dos seus pares, na sua maioria Presidentes de Repúblicas. Ao cumprir exemplarmente a sua missão, do primeiro ao último dia, (70 anos depois...) tornou-se um paradigma do exercício do poder no feminino, na "terceira idade" e num regime monárquico e mostrou as virtualidade das mulheres, dos idosos e das monarquias para darem futuro a um mundo melhor. Não admira que tantos lhe quisessem dizer adeus com um simples: "thank you!".
LÁ LONGE, A NAÇÃO CONSTRUÍDA SEM ESTADO 1 - Ao longo das últimas quatro décadas, participei em inúmeros colóquios e debates sobre a emigração portuguesa mas, quando olho para trás, consigo apenas recordar alguns, e raras vezes na integralidade. O processo seletivo da memória permanece um mistério. Há certas frases, minhas ou dos interlocutores que resistem, intactas, talvez por serem mais insólitas ou curiosas. Como é óbvio, recordo, com mais precisão, nas suas traves mestras, o discurso inspirado na realidade das migrações e nas políticas então desenvolvidas. Aliás, não me faltam para o relembrar, recortes de imprensa, artigos e publicações de época. Foi o associativismo e o seu papel na construção das comunidades portuguesas o tema que abordei em Ovar, numa tarde de Agosto de 83 ou 84, num encontro não muito diferente de tantos outros, que o simples comentário de um jovem jornalista tornou inesquecível. Disse-me: "A Senhora Doutora fala como se não fosse do Governo". O tom da afirmação não pretendeu ser crítico, negativa ou positivamente, mas sim factual. Ou assim me pareceu. E a afirmação era pertinente, porque eu acabava de descrever o universo das comunidades portuguesas da Diáspora, que deve a sua existência às instituições criadas e mantidas pelos cidadãos, não ao Governo. Assim se formou o que alguns chamam o "outro Portugal", nascido e preservado fora do território - fantástico espaço cultural, hoje, enfim, visto como parte da Nação. A Nação, sociedade civil sem Estado, que aí não teve o menor mérito e nem sequer deu pela sua importância, até data bem recente. Vários ilustres pensadores, (como Vitorino Magalhães Godinho, o General Eanes ou Sá Carneiro, por exemplo), no período pós revolução, vieram relacionar tão justo como tardio reconhecimento à perda do Império, que deixou um vazio, logo preenchido pela "descoberta" da Diásspora. Afinal, na geografia do antigo Império, o que desapareceu, de vez, foi o domínio do Estado, o projeto estatal, não a presença perene corporizada pelos emigrantes nos territórios onde, ao longo de séculos, escolheram viver. 2 - O caso do Brasil é, sem dúvida, o exemplo mais completo e elucidativo, porque foi, antes e depois da independência, e até meados do século XX, o destino favorito da esmagadora maioria da nossa gente. Todos os que partíam não eram demais para a colonização de um domínio tão extenso, mas o êxodo constante foi quase sempre considerado excessivo para um país com a nossa diminuta dimensão populacional. O despovoamento do território pátrio assustava os poderes públicos, que tentaram restringir os caudais migratórios, por todos os meios, nomeadamente uma vasta e ineficaz legislação proibitiva. Os homens faziam da Lei letra morta, e iam clandestinamente, (se necessário). E nem a independência brasileira, em 1822, travou o imparável movimento, antes pelo contrário... Na verdade, a emigração portuguesa foi, e é, na essência, uma aventura individual (ou familiar), multiplicada por milhões, e este seu carater voluntário, espontâneo, que a marginalizou face ao Poder, explica o singular relacionamento humano que a uniu a outros povos, numa convivência de igual para igual As únicas políticas públicas neste sector são as tentativas (falhadas) de controlar as saídas, através de regulamentação quase sempre limitativa. As pessoas persistiam no abandono a terra de origem, por razões económicas, mas levavam o país no coração e souberam unir-se para fundar e dar continuidade a comunidades organizadas à imagem e semelhança daquelas que conheciam no país, suprindo as omissões governamentais, no campo social (com uma rede de sociedades mutualistas e beneficentes) e cultural (com os gabinetes de leitura, as agremiações literárias, as escolas, os grupos de folclore, de teatro, os centros de convívio, os clubes desportivos...).. Isso aconteceu por todo o lado, com destaque para o Brasil, onde. ainda hoje, em diversos Estados da República Federativa os hospitais das Beneficências lusas são dos melhores, os mais modernos (o do Recife continua a ser, suponho, o maior de toda a América Latina), o mesmo se podendo afirmar dos clubes recretivos e desportivos, dos lares de idosos, dos "Gabinetes", com grandiosas sedes e bibliotecas (só a do Rio de Janeiro possui mais de 300.000 volumes e muitas edições raras!...). E o fenómeno repetiu-se onde quer que os portugueses se radicaram, sempre com extraordinário pendor associativo, que não cessa de nos maravilhar e supreender. Mas ainda agora, conhecemos melhor as histórias de vida dos emigrantes do que a história de vida das instituições geradoras de autênticas comunidades, que permanecem de geração em geração. 3 - Em Ovar, como fiz em tantas outras cidades (e ainda faço, se tenho oportunidade...), limitei-me a dar testemunho daquele universo, com um "saber de experiência feito". Quando, em janeiro de 1980, iniciei o trabalho no setor da emigração, conhecia casos concretos, antigos (na minha própria família) e mais recentes (residi em Paris, no final dos anos 60...). Nos primeiros três meses procurei não só compulsar os "dossiers" recebidos do meu antecessor (Mário Neves, notável jornalista e diplomata), e apresentados pelos serviços, como preparar projetos legislativos inovadores, como a criação do Conselho das Comunidades, e a estudar a história das nossas migrações. Nada disso me preparou para o "descobrimento" da Nação extra-territorial, através de contactos diretos com as comunidades das Américas, África e Europa. As minhas visitas centravam-se nesse nosso novo mundo, e, por isso, nem chegava a sentir-me no estrangeiro - regressava de um Portugal ao outro, com a fantástica sensação de ter percorrido milhares de quilómetros de voo, sem ultapassar as fronteiras humanas e culturais do meu país! Aprendi a ver o fenómeno associativo com outros olhos - lá fora, primeiro, e, depois, cá dentro também. Ganhei a consciência da importância do associativismos de cada terra. Sei que, por exemplo, Espinho não seria o que é, nem poderia manter as suas tradições, , o seu espírito e identidade sem o esplêndido conjunto de instituições de solidariedade, cultura, desporto e recreio de que tanto pode orgulhar-se. Exatamente como acontece com a presença portuguesa a que um forte movimento associativo deu, e dá, visibilidade em todos os continentes do mundo, à margem de quaisquer apoios do Estado. Se os governantes, em outras áreas, reconhecem os erros do passado e apresentam às vítimas, pedidos de desculpa, porque não ensaia-lo também no campo da emigração, constatado o abandono a que os compatriotas foram votados lá fora, desde tempos remotos? E mais: porque não reconhecer, também, que, apesar dos progressos registados desde a década de setenta, estamos ainda longe de tratar, em condições de igualdade, não só os cidadãos, individualmente, como o movimento associativo no estrangeiro? Nunca hesitei em fazê-lo, por dever de justiça. E não só... Como pressentiu o perspicaz jornalista de Ovar, também por gosto, por afetiva adesão a uma sociedade sem Estado... utopia obviamente irrealizável dentro do território onde o Estado deve exercer a sua soberania.