sexta-feira, 30 de setembro de 2016

BOAS TRADIÇÕES E MAUS COSTUMES (a propósito da "praxe" académica)

A minha opinião sobre a "praxe" é, devo dizê-lo, influenciada pela experiência vivida na Universidade de Coimbra (1960/65), há mais de meio século. Como as regras vinham dos tempos em que a Academia era integralmente masculina, quando as primeiras mulheres ingressaram nas Faculdades houve que as integrar - embora tão marginalmente quanto possível. Antes do mais, trataram da feminização do traje. O equivalente encontrado à capa e batina foi a capa e um sóbrio mas feminino fato de saia e casaco. A única sanção a que as estudantes estavam sujeitas, na prática, tinha a ver com o uso incorreto desse traje - por exemplo, ousar uma blusa às riscas, ou uns sapatos brancos, coisa que não lembrava a ninguém. Uma outra significativa adaptação se impunha no dia da formatura: à saída do último exame, o novo doutor era cercado pelos amigos que, no meio de festiva algazarra, lhe rasgavam a batina. À nova doutora, se estivesse trajada a preceito, apenas cortavam, gentilmente, a gravata preta. Galantes formas de sexismo! A menos amável de que me recordo aconteceu no ano em que pus fitas. A pasta com as fitas só podia usar-se com capa e batina (ou fato). Contudo, sempre se abrira uma exceção para o baile de gala da "Queima", permitindo às (quase) doutoras comparecerem de vestido comprido e a pasta na mão. Nesse ano, porém, o todo poderoso "Conselho de veteranos" decidiu acabar com o privilégio e as estudantes tiveram de ir à gala sem as insígnias... Todas, menos uma: eu. Fui ao baile com a capa e o fato de todos os dias, e a pasta com as fitas vermelhas. A trupe de veteranos, que vigiava a porta principal (qual "polícia de costumes" do Irão ou da Arábia Saudita), quis, em vão barrar-me a entrada, assim evidenciando que estava em curso uma golpada misógina, mais do que a pura defesa da ortodoxia do traje. Não esperavam que uma só colega teimasse em aparecer com o fato praxisticamente certo, embora socialmente incorreto. Claro que eu destoava no salão de festas, entre as sedas e as rendas das minhas amigas, mas sentia-me bem na veste da feminista que resistira ao "diktat" dos "veteranos". Globalmente, aliás, nem tudo era mau na vivência das tradições coimbrãs: gostava do fado, das serenatas, das "latadas", dos cortejos da "Queima", do sobe e desce das ruelas mediavais da cidade. E divertia-me com os rituais que via como essencialmente lúdicos, com a irreverência, a graça e o entusiasmo de viver os anos de juventude, em alegre companhia, na senda dos feitos que Trindade Coelho registou na melhor crónica que jamais se escreveu sobre Coimbra ( "In illo tempore"). Gostava da minha capa (tão confortável, salvo num salão de dança) como símbolo de pertença a um universo de sã camaradagem e amizade. E, para tanto, não precisei de percorrer a via iniciática de praxes, contra as quais me revoltava, mesmo contra aquelas que teriam um sentido pedagógico - caso da proibição dos caloiros andaram sozinhos, à noite, pela cidade, que, supostamente, visava protegê-los da vida boémia e obrigá-los a estudar. A partir do sol posto, começava a caça aos caloiros... As "trupes" escondiam-se nas sombras das vielas e, de repente, cercavam as vítimas, num círculo de vultos negros do qual não escapavam sem tesouradas fatais nas cabeleiras (a única solução era irem, depois, ao barbeiro rapar o cabelo, uniformemente...) . Escapavam, porém, se tivessem "proteção" de uma senhora, com quem andassem de braço dado. A senhora podia, curiosamente, ser uma caloira! Eu própria "salvei" muitos colegas, dando-lhes, momentaneamente, o braço, mal pressentia a movimentação das sinistras trupes ... 2 - Voltei a Coimbra, para dar aulas na Faculdade de Direito, na década seguinte, em 1974, nas vésperas do 25 de abril, e lá fiquei durante dois anos de boa memória. Agitação havia bastante, no interior e exterior da universidade, mas não relacionada com a praxe, que fora totalmente abolida pelos ventos da Revolução, como vestígio do fascismo. Sei que o epíteto de "fascista" foi, então, utilizado a torto e a direito, mas neste domínio, por sinal, com alguma propriedade, porque há, nas hierarquias em que a praxe se organiza como corporação, nos ritos de obediência que impõe, cegamente, afinidades com o "ancien régime". O pós revolução era a altura ideal para repensar a praxe antiga, para separar o que ela continha de trigo e de joio. Infelizmente, veio a ser reinstalada com facetas incomparavelmente mais malignas, um pouco por todo o lado, em universidades sem passado, sem tradições próprias, onde constituem meros jogos de imitação - e jogos perigosos, reinventados com uma brutalidade sádica que fazem mortos e feridos. Se a prática continuada os converte em costumes, são certamente, maus costumes, quando não crimes. A proibição das praxes violentas é, a meu ver, um imperativo numa sociedade democrática. Muito bem anda o Ministro do Ensino Superior ao tomar posição neste sentido. 3 - A dificuldade maior, no que respeita à proibição, é traçar a fronteira entre ações livremente consentidas e lícitas, de caráter lúdico e o que é "bullying", comportamento degradante, indigno, criminoso. Por isso, para além da corajosa e lúcida intervenção do Ministro, uma outra boa notícia é o anúncio de uma investigação científica sobre a realidade atual do universo das praxes , no seio de uma universidade, em Lisboa. Espero que uma tal análise interdisciplinar, ampla e rigorosa, possa lançar nova luz sobre as sombras que envolvem a evolução do fenómeno. (em "A Defesa de Espinho", 29 de setembro)

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

O SISTEMA DE QUOTAS PARA A IGUALDADE - GÉNESE E LIMITES (a propósito do "caso Guterres") 1 - O sistema de quotas, como instrumento para a igualdade de género, nasceu nos países nórdicos, em meados do século passado - concretamente no interior do Partido Social Democrata sueco, por iniciativa de um grupo de mulheres, com Anita Gradin como porta-voz. Sou, há muitos anos, amiga da Embaixadora Anita Gradin, que foi Ministra dos governos de Olaf Palme, Presidente da Internacional Socialista de Mulheres, Comissária da União Europeia e ocupou um extenso rol de outros cargos cimeiros. Conhecia-a quando fomos, conjuntamente, eleitas Vice- Presidentes da Conferência dos Ministros do Conselho da Europa responsáveis pelas migrações, na cidade de Roma, em 1983. A nossa sintonia de posições no campo da igualdade, quer para os imigrantes quer para as mulheres, cimentou, de imediato, uma aliança em torno de causas comuns e uma amizade duradoura. Anos mais tarde, quando presidi, em Lisboa, à Comissão Parlamentar da Condição Feminina, convidei Anita para ir a São Bento falar do processo de implementação da paridade de género no seu país e, seguidamente, em muitos outros, à volta da Terra. Como aí nos contou, essa história não se fez sem resistência, dentro do seu partido, onde a coutada masculina das listas eleitorais para o parlamento era preservada com o argumento, ainda hoje corrente em Portugal, de que não havia mulheres interessadas, com o necessário "curriculum". A jovem Gradin levou à reunião decisiva, em Estocolmo, um "dossier", com dezenas de nomes de candidatas, todas detentoras de elevadas qualificações. Na realidade, mais qualificadas do que a maioria dos homens presentes. Surpreendidos, vencidos e convencidos, os líderes partidários tiveram de as aceitar e nunca mais houve um passo atrás. As regras da paridade, que visam garantir representatividade política equivalente às duas metades da Humanidade, mulheres e homens, continuam, porém, a ser, entre nós, objeto de suspeições e polémicas, por parte dos que não se apercebem que imposições semelhantes existem em outros domínios, desde tempos imemoriais, vistas como coisa natural e, por isso, tão invisíveis como o ar que se respira. Dois exemplos: a distribuição de deputados por círculos territoriais, em função do número de habitantes de cada círculo, ou a alternância da chefia das Forças Armadas, entre o Exército, a Marinha, a Força Aérea. Dentro do meu partido há quotas para comissões concelhias ou distritais, há quotas para jovens, há quotas para sindicalistas, mas para mulheres, nem pensar! Raríssimos eram os militantes que, até recentemente, as defendiam - Marcelo Rebelo de Sousa, Leonor Beleza, José Miguel Júdice, eu própria... Agora suponho que haverá mais, mas, para a maioria, as "quotas femininas" ainda são depreciadas como uma forma de promoção forçada, apressada e imerecida. 2 - Bem pelo contrário, eu julgo que se fundamentam na procura de uma legítima partilha do poder (entre os sexos, exatamente como entre as diversas regiões, ou entre ramos das Forças Armadas). Ou seja, na procura de um equilíbrio, mais moroso e difícil de atingir por outras vias. Inadmissível é, obviamente, a aplicação de um sistema de quotas, onde quer que, através de testes ou exames, com critérios justos e objetivos, se possa proceder à seleção dos melhores - como acontece no acesso à universidade, ao emprego, assim como à progressão na carreira, através de prestação de provas. A este respeito, parece-me paradigmática a legislação que criou (dessa vez, por iniciativa de um partido conservador), na sempre pioneira Suécia , o "Ombudsman para a Igualdade" , o "Provedor de Igualdade", na tradução portuguesa. Trata-se de um normativo baseado na ideia de combater a segmentação sexista do mercado de trabalho, dando preferência ao sexo subrepresentado em cada uma das profissões, em condições de igualdade de competência. Só nesse condicionalismo, há lugar à precedência de mulheres nas profissões masculinas e de homens naquelas que são predominantemente femininas. No campo da política, isto não é viável - não há barreiras que se vençam por realização de exames ou pela apresentação de currículos, de obra feita - manda, acima de tudo, a subjetividade, o espírito de grupo, o companheirismo, para não dizer o compadrio masculino. Na verdade, os partidos nunca se abriram espontaneamente às mulheres. Elas permaneceram de fora, excluídas da participação igualitária, mesmo depois de terem dado amplas provas das suas capacidades em quaisquer outros domínios, na vida académica e cultural, nas mais diversas atividades e empregos. A disparidade dos níveis de participação feminina na política face à registada nesses outros setores da vida em sociedade era um índice seguro de discriminação e deu aso a que o legislador interviesse, impondo regras vinculativas para a sua inclusão. As quotas foram e são, neste contexto, a meu ver, legitimadas por uma presunção jurídica de discriminação, que não admite prova em contrário. 3- A aplicação das quotas não é, pois, incompatível com a exigência de mérito, antes o pressupõe. E é, também, compatível com provas de seleção, onde elas sejam possíveis, desde que respeitem, em absoluto, o critério da primazia ou da igualdade de competências - como o comprova a experiência de muitas décadas do Ombudsman sueco, de que falámos.. A ver vamos se a ONU saberá, como deve, cumprir aquele critério fundamental no preenchimento do cargo de Secretário- Geral da Organização... Tendo o cargo sido invariavelmente ocupado por homens, estamos de acordo que a escolha de uma mulher seria o ideal - desde que ela se apresentasse em condições de igualdade, quando não de superioridade, em relação aos concorrentes masculinos. Mas isso, neste ano de 2016, de facto, não acontecerá! O melhor, muito melhor do que todos os outros, chama-se António Guterres, um homem nascido no sul da Europa, em Portugal. Demonstrou-o já, sem deixar margem para dúvidas, de uma forma brilhante e convincente, em três sucessivas audições para avaliação das candidatas e dos candidatos. Se viesse a ser preterido, teria sido discriminado em função do sexo, ou da origem geográfica ou de um qualquer obscuro e ilegítimo interesse, vítima de uma autêntica desvirtuação ou transmutação do sistema de "quotas da igualdade" em "quotas da desigualdade"... Seria uma vergonha para o ONU,e uma perda para o mundo. Em "A DEFESA DE ESPINHO"