terça-feira, 7 de agosto de 2012

Breve testemunho sobre as Academias do Bacalhau

As Academias de Bacalhau estão hoje espalhadas no mundo, cumprindo a  vocação matricial de convivialidade, 
que vem marcando o seu trajecto  de várias décadas, sempre a irradiar alegria, a expandir a nossa cultura
e os nossos costumes e a oferecer solidariedade a quem precisa.
A ideia que lhes deu origem é, em si mesma, uma ideia felicíssima e singular: partir de uma simples tertúlia de amigos, reunidos num almoço habitual, e juntar-lhe - numa fórmula que faz toda a diferença - as componentes essenciais da cultura e da beneficência.
Mas por muito interessante que fosse este "achado", ao colocar uma forma de associativismo lúdico ao serviço
 dos mais altos objectivos da sociedade, os seus autores não terão, com certeza, imaginado a assombrosa aventura humana em que haveria de se traduzir!
O mundo da Diáspora portuguesa era formado por um sem número de comunidades engendradas pela mesma vontade de preservar a identidade nacional e de conservar os laços afectivos de ligação à Pátria, mas que, não obstante o que as unia, permaneciam distantes e incomunicáveis entre si.
Era preciso dar um passo em frente para formas mais englobantes de cooperação entre  instituições congéneres, entre Portugueses dispersos no espaço geográfico dos cinco continentes. Uma meta que, face à experiência do passado, se julgava praticamente inatingível. Pareciam os portugueses, ao invés de tantos outros povos europeus
 da emigração, definitivamente, avessos ao envolvimento num amplo movimento de convergência... As Academias 
do Bacalhau  vieram  provar que não. Ao longo de mais  de quatro décadas, mostraram tanto uma enorme capacidade plástica de se moldarem à situação e características das sociedades em que se inseriam, como uma surpreendente facilidade de vencer as distâncias geográficas, estabelecendo a ligação permanente entre todas, pontuada por congressos mundiais, que juntam centenas e centenas de "compadres", em sessões de trabalho e em convívio. Do acolhimento se encarrega, com invariável eficiência, a Academia anfitriã.
Este movimento converteu-se, assim, em paradigma de diálogo e articulação de projectos a nível intercontinental, e é também o único actuante, em simultâneo, com o mesmo espírito e as mesmas regras, na Diáspora e em Portugal.
E pensar que tudo começou, em Março de 1968, num restaurante de Joanesburgo, durante um almoço oferecido por quatro amigos a Manuel Dias, o mítico jornalista portuense!
 Aí surgiu a ideia, segundo nos conta o fundador e presidente honorário das Academias, Dr. Durval Marques. Depois, os quatro (Dr. Durval Marques, Eng.º José Ataíde, Ivo Cordeiro e Rui Pericão) suscitaram adesões e trabalharam em
conjunto para dar configuração ao projecto, definindo os princípios informadores, as particularidades e formato original da futura agremiação. A Academia do Bacalhau de Joanesburgo seria  lançada logo a 10 de Junho desse ano, durante a primeira grande comemoração do Dia Nacional na capital do Gauteng. Estava bem gizada e pronta a dinamizar acções mobilizadoras em seu redor, com o seu exemplo, promovendo,  a disseminação das Academias em outras cidades.
A designação "Academia"  não tem conotações elitistas - as regras  de tratamento no seu interior excluem, aliás, o uso de quaisquer títulos universitários ou profissionais - antes apela à camaradagem e à união, sem excluir a dose certa de irreverência, que quadra na perfeição com as praxes e rituais adoptados, a fazerem lembrar os das nossas
organizações académicas, sobretudo as do Porto, do Orfeão Universitário,  de onde vem o "gavião de penacho", 
que se canta em coro, nos momentos altos.
A "Academia-tertúlia" não tem sede, o seu património são as pessoas, que podem  reunir em qualquer lugar, à volta de uma mesa de restaurante, em frente a um prato de bacalhau, "o fiel amigo". A focagem na amizade revela-se, igualmente,  na denominação de cada um dos seus membros: " compadre",  sinónimo de "melhor amigo", aquele que se convida para padrinho dos filhos. Ali não há "doutores" todos se tratam, familiarmente, por "compadres". As suas mulheres, as chamadas "comadres", desde sempre, estiveram presentes nas festas especiais, como convidadas,
não inicialmente como sócias.
Este é um aspecto que não gostaria de omitir, e que, do meu ponto de vista, deve ser situado no seu contexto histórico. A génese da tertúlia de Joanesburgo explica o "porquê" da estrutura ser, na origem, exclusivamente  masculina, e afasta a hipótese de qualquer intenção deliberadamente discriminatória: eram os homens que
conviviam, entre si, na pausa de trabalho, ao almoço. As mulheres, simplesmente, não estavam lá, não
partilhavam o mesmo círculo de actividades ou de camaradagem profissional.  Por isso, quando essa factualidade
 se alterou, com as mulheres a surgirem, lado a lado, com os homens no campo profissional ou associativo, foram sendo admitidas, em muitas das Academias, como filiadas de pleno direito, e logo as vimos em lugares de direcção ou  mesmo na presidência, por exemplo, em Toronto, na Nova Inglaterra, em Brasília.  O que não tem paralelo em outros ramos do nosso associativismo mais antigo e tradicionalista.
Refiro-me ao acesso em massa das mulheres, que aconteceu, primeiramente,  em países, onde a igualdade de género era mais conseguida. Mas, de facto, a título excepcional, algumas senhoras haviam sido, muito antes, admitidas, como membros da Academia Mãe de Joanesburgo, mulheres de Artes, de Letras, como Amália
Rodrigues (a primeira de todas), Vera Lagoa, Graça Sousa Guedes, ou oriundas da política, como eu mesma. Aceitei, com entusiasmo, esse estatuto por um lado, porque estava ciente da importância de abrir precedentes e confiava  na capacidade de ajustamento daquele modelo organizacional a uma realidade em evolução, (não só,
mas também, no que respeita à colaboração igualitária de mulheres e homens) e, por outro lado, porque  admirava as Academias e acreditava nas suas virtualidades de fazerem coisas cada vez mais extraordinárias.

 O  lugar ímpar e cimeiro a que as Academias ascenderam no universo da emigração,  ficou, evidentemente, a dever-se à qualidade dos seus dirigentes. Tanto os pioneiros, como os que lhes sucederam eram (são!) líderes de larga visão, conhecedores da importância de conjugar esforços para consolidar e engrandecer verdadeiras comunidades em terra estrangeira. Sabiam bem que estas podem datar o seu nascimento e formação do início do associativismo.  Podem mesmo, a meu ver, sintetizar a sua história  numa glosa lapidar: 
"Associo-me, logo existo".  
 Este poder criador e estruturante de comunidades, em sentido orgânico, está, de há muito, estudado e definido
  e é corrente distinguir,  de acordo com as finalidades principais, as instituições de assistência e solidariedade, as agremiações de fins culturais, os clubes e centros  e recreativos. Todavia, as Academias do Bacalhau escapam a essa divisão clássica, devido ao ecletismo e pluralidade dos seus fins e à singularidade dos meios utilizados para lhes dar cumprimento. Conseguem ser, do lado da Diáspora, um elo de ligação à Pátria, e, também, a partir das Academias existentes no nosso país, um meio de compreensão  e de convivência ecuménica  com a Diáspora.
 Há, entre os seus membros muitos emigrantes ou ex-emigrantes, considerados, justamente, “gente de sucesso”.
 É excelente lembrar o percurso individual de cada um,  mas sem esquecer o que tende a ser mais subestimado: as suas realizações colectivas.
 Um longo relacionamento com as comunidades, leva-me a acreditar no papel insubstituível do associativismo, em que vejo," um ímpeto de Portugal", de que falava Pessoa - o ímpeto que despertou para a acção concreta  os fundadores das Academias, no sul da África, e, depois, um pouco por todo o lado, em instituições que avançaram  e
cresceram à medida dos desafios com que foram deparando.
Julgo que o processo de descolonização de Moçambique e Angola, e, com ele, a necessidade de valer a dezenas de milhares de refugiados na RAS, foi um dos factores decisivos de  uma rápida evolução para patamares  de actuação cada vez mais elevados, com a criação da Sociedade de Beneficência de Joanesburgo e do Lar Santa Isabel,  na
segunda metade da década de 70. Um passo de gigante, que centrou a acção das Academias, definitivamente,
na acção humanitária.
E o regresso, em grande número, da África do Sul, anos mais tarde, terá sido determinante na constituição de novas Academias no nosso próprio País. Os "compadres" retornados trouxeram consigo a saudade de África e a determinação de retomar a convívência e o trabalho beneficente, em terras portuguesas.
O Porto foi uma das primeiras cidades do país em que isso aconteceu - como não poderia deixar de ser,  já que, através de ilustres portuenses, havia  estado presente em Joanesburgo, no momento verdadeiramente genesíaco, e em todo o processo em que tão grande aventura se veio a desenvolver. E bem pode dizer-se que a imagem de marca da cidade - força de trabalho, poder de iniciativa, extroversão  da alegria de viver - se evidencia, hoje, na
dimensão e no dinamismo da sua Academia.
A fase seguinte foi a de expansão em novos destinos  da Diáspora, o que nos leva a perguntar:  e agora, que futuro para as "Academias"?
 Em tempo de crise sem  fim à vista, num ponto de partida de grandes vagas migratórias - a chamada "nova emigração", fenómeno recorrente em Portugal, em ciclos que se encadearam, imparavelmente, nos últimos cinco séculos - quantos desafios vemos pela frente!
É o momento de pormos nas Academias do Bacalhau muitas esperanças, apostando na sua experiência para enfrentar conjunturas difíceis e, como é da sua natureza, para fazer história em gestos de solidariedade e simpatia.
Afirmação que avançamos, de caso pensado, com segurança, pois estamos a falar, afinal, naquele que se transformou no mais moderno e dinâmico movimento de união dos Portugueses do mundo inteiro.

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