quinta-feira, 17 de junho de 2021

CIDADANIA LUSO BRASILEIRA

A comunidade luso-brasileira é uma realidade humana, histórica, sociológica, linguística, cultural, afetiva, que antecede em séculos a sua consagração na esfera do Direito interno e internacional. Mais do que a história desta comunidade, é a da sua supra estrutura jurídica, e dos processos de formação da vontade política que lhe deu a sua arquitetura atual, num e noutro país, que vamos, de uma forma necessariamente sumária, trazer hoje a debate.  A nível bilateral, as primeiras negociações tiveram lugar nas décadas 50 e 70 do século passado. A elas se seguiu, em 1988, uma iniciativa unilateral brasileira, que, em sede constitucional, consagrou a plena equiparação dos portugueses a nacionais, sob condição de reciprocidade para os brasileiros. Não se tratou de consagrar a dupla cidadania, mas de lhes conceder os direitos da nacionalidade brasileira, na qualidade de imigrantes portugueses. Um inciso à medida das aspirações de uma grande comunidade, a nossa, que nunca se considerou estrangeira no "país irmão". O poderoso movimento associativo, que é seu porta-voz, e muitas personalidades influentes na sociedade e na vida política do país, uniram-se para levar o estatuto de igualdade à sua última fronteira. Da pura utopia se passou a uma absoluta singularidade em matéria de Direito comparado. Em  Brasília, fora complexo o processo de feitura da Constituição, em especial no capítulo da nacionalidade - com uma única ressalva: a atribuição dos direitos de cidadania aos portugueses, votada sem discussão e por unanimidade! Esperava-se outro tanto da Assembleia da República em Lisboa. Contra as expetativas, a sua resposta não foi nem rápida nem fácil, num ambiente partidário de incompreensão e de desconfiança, de polémica e dissenso, que se arrastou por 13 longos anos e três processos revisionais, comprometendo gravemente a tradicional cordialidade nas relações entre os dois países.   Começaremos por uma breve referência aos processos de negociação a nível governamental, para abordar, depois, mais detalhadamente, a chamada "questão da reciprocidade", que se suscitou com a transposição do processo legislativo para o âmbito dos parlamentos. I-1-O TRATADO DE AMIZADE E CONSULTAO estatuto de cidadania luso-brasileira foi formalmente consagrado no "Tratado de Amizade e Consulta", em 1953 e abrangia o direito de livre circulação, de residência e de estabelecimento dos nacionais de um país no outro e a concessão dos direitos da nacionalidade, que não fossem incompatíveis com as respetivas Constituições. Não exigia a prévia residência no território, podendo ser invocado tanto durante uma estadia transitória (art. 4), como para o livre estabelecimento de domicílio no país (art. 5).  Um acordo bilateral pioneiro, em termos de Direito internacional, fundamentado na realidade de uma comunidade preexistente, que a Lei se limitava a subsumir e reconhecer na sua letra. Comunidade nascida do incessante movimento migratório, de que se fez a história partilhada, antes e depois da independência do Reino Unido. Ao longo dos séculos, e, sobretudo, a partir de oitocentos, emigrar era, praticamente, sinónimo de emigrar para a imensa colónia sul- americana. Desde as Ordenações Filipinas a legislação portuguesa tentou, com medidas proibitivas ou restritivas, em vão, travar as correntes migratórias  consideradas excessivas. Desse "excesso" se fez  percurso e convívio de gente comum, mais igualitário e fraterno do que o que é regra estabelecer entre a administração colonial e o povo. Assim o proclama, afinal, o Tratado, ao falar de "afinidades espirituais, morais, éticas e linguísticas", de que resulta "uma situação especialíssima para os interesses recíprocos dos dois povos".Este documento matricial foi assinado no Rio de Janeiro, a 16 de novembro de 1953, pelo Embaixador António de Faria, por Portugal, e pelo Ministro das Relações Exteriores Vicente Reo, pelo Brasil.   I - 2 - CONVENÇÃO DE IGUALDADE DE DIREITOS E DEVERES ENTRE PORTUGUESES E BRASILEIROS (1971) Em 1969, a emenda  nº 1 à Constituição brasileira veio explicitar os direitos civis e políticos dos portugueses a nível local, estadual e federal, incluindo o sufrágio nas eleições legislativas. Portugal deu idêntico tratamento aos brasileiros ao assinar a "Convenção de Igualdade de Direitos e Deveres entre Portugueses e Brasileiros", em 1971, que, no art.1 estipula "Os Portugueses no Brasil e os Brasileiros em Portugal gozarão de igualdade de direitos e deveres com os respetivos nacionais", distinguindo dois estatutos - o "Estatuto geral de igualdade",  que tem de ser requerido à entidade competente e pressupõe apenas a capacidade civil e a residência permanente no território e o "Estatuto especial de igualdade de direitos políticos",  que exige a residência principal e permanente há mais de cinco anos e a prova de que o cidadão não se encontra privado de direitos políticos no país de origem.Em relação ao Tratado de 1953, registam-se  progressos no campo da intervenção política, designadamente, com a previsão dos direitos de voto inclusive, a nível federal, assim como do acesso à magistratura judicial. Todavia, a Convenção dirige-se, em primeira linha aos imigrantes, deixa de se aplicar à generalidade dos naturais dos dois países e não prevê a liberdade de circulação.É de salientar que, nesta data, cessara já a emigração em massa de portugueses para o Brasil, e era praticamente inexistente a de brasileiros em Portugal, pelo que a Convenção beneficiava, sobretudo, as nossas comunidades radicadas no país, satisfazendo, fundamentalmente, as suas reivindicações. Não lhes faltava prestígio e capacidade de se fazer ouvir - as razões determinantes de ter sido sempre o Brasil o principal obreiro dos processos negociais, a que Portugal quase se limitou a corresponder (paradoxalmente, melhor, então, durante a Ditadura do que, depois, em Democracia...)..Numa primeira comparação entre o conteúdo da cidadania luso- brasileira, resultante da Convenção de 1971, e o da "cidadania europeia": constatamos que, embora aquela não abranja o direito de livre circulação (aliás, concedido com fortes limitações dentro da EU…),  vai muito mais longe no campo dos direitos civis e políticos. Na verdade, não se vê como e quando a UE conseguirá ultrapassar o tabú em que está convertida a ideia da partilha de soberania, pela abertura à participação dos cidadãos europeus, não nacionais, na escolha democrática dos seus órgãos de soberania. Coisa encarada como tão natural no vasto espaço da lusofonia (de notar que, antes da independência das colónias portuguesas, os acordos celebrados neste domínio, englobavam, efetivamente, todo esse universo, só depois se limitando ao luso-brasileiro).  ...  II -A QUESTÃO DA RECIPROCIDADE II -1  A iniciativa dos Constituintes Brasileiros A Assembleia Constituinte da República Federal do Brasil, em 1988, tendo com Relator o Constituinte Bernardo Cabral, tomou a iniciativa de ampliar o estatuto de direitos dos portugueses, equiparando-o ao dos brasileiros por naturalização Nos termos do parágrafo 1º, do art.12: “Aos Portugueses com residência permanente no País, se houver reciprocidade em favor dos Brasileiros, serão atribuídos os direitos inerentes aos brasileiros natos, salvo os casos previstos nesta Constituição”O parágrafo 3º enumera os cargos políticos exclusivos dos brasileiros natos -  o de Presidente da República, os que estão na sua linha de sucessão, a carreira diplomática e o posto de oficial das Forças Armadas.Aos portugueses são, assim, reconhecidos os direitos de voto em todas as eleições locais, estaduais e federais, a possibilidade de serem deputados, membros do governo, ou juízes dos tribunais superiores.No Brasil dessa época eram já muito significativos os exemplos de vivência concreta do estatuto de igualdade, caso de Ruth Escobar, hoje aqui homenageada, que, tendo tido sempre exclusivamente a nacionalidade de origem foi a primeira mulher eleita deputada à Assembleia do Estado de São Paulo e a primeira representante do Brasil nas Nações Unidas, para o acompanhamento da Convenção contra todas as formas de discriminação feminina.Entre nós, tantos anos após a entrada em vigor do mesmo Estatuto, ainda não conhecemos Brasileiros em cargos políticos de idêntico relevo, numa comunidade que vem crescendo desde a década de 90… II - 2 -  As Revisões Constitucionais de 1989 e de 1997Ao tempo em que foi conhecido o texto da Constituição brasileira, preparava-se em Lisboa a segunda revisão da Constituição de 1976. Todavia, nenhum dos projetos subscritos pelos partidos cuidava de introduzir no art.15 as alterações exigíveis para a entrada em vigor do novo Estatuto de Igualdade de Direitos políticos. Era o primeiro indício de incompreensão partidária da importância de aprofundar a cidadania luso-brasileira. Insensibilidade dos partidos, não dos deputados. Sintonizada com o sentir das comunidades portuguesas do Brasil, através de contactos frequentes ao longo de quase 20 anos, alertei para a situação a Comissão de Negócios Estrangeiros, onde, de imediato, por unanimidade se votou a seguinte recomendação de nova redação do nº 3 do art.15, dirigida à Comissão Eventual para a Revisão Constitucional (CERC): “Aos cidadãos dos países de língua portuguesa podem ser atribuídos, mediante convenção internacional e sob condição de reciprocidade, direitos não conferidos a estrangeiros, salvo o acesso à presidência de órgãos de soberania, e das Regiões Autónomas, as funções de Ministro de  Estado, o serviço das Forças Armadas e a carreira diplomática”.Na Comissão de Negócios Estrangeiros constatamos a espontânea reação de cada um dos deputados, em favor da reciprocidade. Pelo contrário, na CERC prevaleceram as posições de cada um dos partidos, cujos representantes ignoraram aquela recomendação. Quando os projetos de revisão subiram a plenário, foi pela mão de 57 deputados de todos os partidos, a título individual, que a emenda ao art.15 foi subscrita. Entre eles estavam os nomes de Adriano Moreira, Pedro Roseta, Natália Correia, Manuel Alegre, Jaime Gama, Luísa Amorim e até do líder parlamentar do PS (António Guterres) e de um Vice.presidente da bancada do PSD (Pacheco Pereira). A proposta não obteve a necessária maioria de 2/3, devido à abstenção ou ao voto contra de PSD, PS e PCP. A favor, o CDS, o PRD, independentes, como Corregedor da Fonseca e Helena Roseta, e os deputados, que tiveram a coragem de divergir das suas bancadas parlamentares.O eco mediático desta falta de reciprocidade portuguesa teve  naturalmente, forte impacto negativo do outro lado do Atlântico.A revisão constitucional de 1996/97 foi antecedida por um acordo extra- parlamentar dos dois maiores partidos, em que nada se dizia sobre a dação de reciprocidade no art. 15. Sabia-se que todos os partidos parlamentares eram já favoráveis à reciprocidade salvo o PS, por inultrapassável oposição do influente Presidente da Assembleia  da República Almeida Santos, advogado de profissão, que rejeitava tanto o acesso à magistratura judicial (já aberto na Convenção de 1971) como a intervenção política prevista na Constituição de 1988.Apresentamos, novamente, uma proposta de reformulação do art.15, assinada por cerca de 50 deputados de todas as bancadas, incluindo alguns notáveissocialistas. O PS inviabilizou a sua aprovação. A argumentação aduzida, durante os anos de denegação da reciprocidade, quase se limitava a agitar o medo de "invasão" de um pequeno território habitado por 10 milhões, por quase 200 milhões de brasileiros e a mais alguns milhões de africanos e timorenses,(que involuntariamente entravam na crónica do desentendimento luso-brasileiro, só porque todas as propostas sufragadas sobre o art.15 os abrangiam, também, "sob condição de reciprocidade", que, aliás, nenhum deles, até hoje, se mostrou minimamente interessado em conceder). Todavia, o que estave em causa não era a possibilidade de livre circulação, mas apenas o alargamento do estatuto de direitos políticos, só ao alcance de imigrantes legais com mais de cinco anos de residência!...E assim se criou e se manteve um clima de tensão no relacionamento luso-brasileiro, que foi particularmente visível durante a visita de estado do Presidente Jorge Sampaio ao Brasil, nesse ano de 1997 – não obstante ele ter manifestado o maior apoio à causa da cidadania luso.brasileira.Na sequência das declarações do Presidente, o PSD, através de três dos seus deputados, tentou ainda promover a revisão extraordinária da Constituição, viável por maioria de 4/5, não tendo podido reunir o indispensável consenso. Nem mesmo no ano 2000, por ocasião das comemorações dos 500 anos do descobrimento do Brasil, tal desiderato foi alcançado. Os governos não foramalém da assinatura de uma mera compilação dos tratados bilaterais em vigor, com uma melhoria de reduzido significado no estatuto de direitos políticos -  o encurtamento do prazo para o requerer de cinco para três anos II-3 - A Revisão Constitucional de 2001Em 2001, a fim de permitir a adesão  Portugal ao Tribunal Penal Internacional, foi convocada, de urgência, uma revisão extraordinária da Constituição, À partida, para decidir apenas esse ponto, mas tendo alguns partidos aproveitado para acrescentar mais um ou outro, a título excecional,, também eu no grupo parlamentar do PSD coloquei como inadiável a alteração do art.15. Nem todos pareciam muito recetivos, até que Durão Barroso, o presidente do partido, surgiu em seu favor. Pela primeira vez, a respetiva proposta seria feita por um partido politico, não por um grupo de parlamentares, a título pessoal, Pela primeira vez, também, a CERC ouviu, em audiência pública, entre outras personalidades. um incondicional defensor da imediata dação de reciprocidade: o Dr Mário Soares. A intervenção clara, concisa e veemente do fundador do PS conseguiu em poucos minutos o que tardara em anos de combate: levar o representante da bancada socialista a dar ali, sem mais hesitações, um "sim" definitivo. Quando a proposta foi debatida e votada no hemiciclo, já o consenso de todas as bancadas, e de todos os deputados, era um dado adquirido.Houve, é certo, ainda ocasião para uma última e pontual divergência, mas de natureza puramente simbólica: a inclusão ou não de uma expressa referência ao Brasil  no corpo do artigo, atendendo a que a Constituição brasileira também menciona Portugal e os portugueses. Mas a tarefa fundamental estava concluída, nessa tarde de 4 de outubro, em ambiente de concórdia e de festa, à volta destes dizeres do nº 3 do art 15:" Aos cidadãos dos Estados de língua portuguesa, com residência permanente em Portugal, são reconhecidos, nos termos da lei e em condições de reciprocidade, direitos não conferidos a estrangeiros, salvo o acesso aos cargos de Presidente da República, Presidente da Assembleia da República, Primeiro ministro, Presidentes dos tribunais supremos e ao serviço das Forças Armadas e no serviço militar."-Na verdade, o grande debate ocorrera, como vimos, meses antes, em julho de 2001, fora do hemiciclo, E as palavras que mais merecem ser lembradas são as de um tribuno, que ao tempo, já não era parlamentar: Mário Soares, que disse, cito:"Este é um ato político de grande visão em relação ao futuro, que devem considerar como um passo mais naquilo que é o nosso universalismo, que é o reforço de Portugal no mundo, quer em relação aos brasileiros, quer em relação aos africanos, quer em relação, futuramente, aos timorenses"

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