Recordar tempos idos... Falar do presente, também. E até, de quando em vez, arriscar vatícínios. Em vários domínios e não só no da política...
quinta-feira, 30 de maio de 2024
AS MULHERES NOS TEMPOS DO “ESTADO NOVO”
AS MULHERES NOS TEMPOS DO “ESTADO NOVO”
1 – “Antes do 25 de Abril era proibido” de António Costa Santos
Nas diversas iniciativas integradas nas comemorações da Revolução de 1974 em que participei, entre março e maio, numa data tão especial como é a do seu cinquentenário, a maioria colocava o enfoque na situação das mulheres portuguesas. No antes e no depois. Duas metades de um século. Não terá sido por acaso – é um ângulo ideal para compreender o espírito do “Estado Novo”. Do corporativismo, enquanto doutrina totalitária e enquanto movimento anti personalista, que combatia, por igual, o comunismo e o liberalismo, condenando radicalmente o individualismo. A sua primeira principal vítima sacrificial seria a mulher - a mulher, em geral, e a mulher casada, em particular, porque a sua individualidade se fundia no núcleo familiar, e ficava sujeita à autoridade do marido, a quem, tal como os seus próprios filhos, devia obediência. Nessa unidade orgânica, como nas empresas, na sociedade, na política, os papéis eram definidos pelo Estado, que zelava pela sua rígida conservação. O homem detinha a chefia da família, como Salazar a chefia do Governo. Cada marido era um micro ditador doméstico, à imagem e semelhança do Grande Ditador nacional. Cabia-lhes interpretar e decidir o "bem comum" do seu agregado, mandar, censurar, proibir…
Muitas das proibições legais de então, hoje, causam espanto ou fazem hoje rir. Para quem queira, percorrer, ludicamente, a lista de alguns dos mais incríveis tabus do salazarismo, recomenda-se o livro referido em epígrafe. Faltará, aqui e ali, rigor científico, em alguns casos, especificidades verdadeiras nos anos trinta, já não o eram nos anos sessenta ou setenta, por força da alteração de mentalidades e costumes… De qualquer modo, dá-nos uma narrativa bem conseguida e engraçada do que “era proibido”. Vejamos: as senhoras andarem nas ruas sozinhas; as mulheres entrarem na igreja de cabeça descoberta; as mulheres casadas viajarem para o estrangeiro sem autorização do marido (nem que fosse apenas a Badajoz, ou a Vigo, comprar doçarias); as mulheres saírem à noite sozinhas; minissaias nos liceus; biquínis nas praias; o matrimónio às mulheres em certas profissões, professoras, enfermeiras, hospedeiras de bordo, (salvo se conseguissem autorização do Governo!): as mulheres ingressarem em profissões, como a magistratura e a diplomacia, e, genericamente, ocuparem posições de chefia...
Embora em menor número, também havia, evidentemente, ditames aplicáveis a ambos os sexos, entre os quais: beber coca-cola, jogar cartas nos comboios; dar beijos em público, ler certos livros, ver certos filmes, ouvir certos discos; usar isqueiro ou andar de bicicleta, sem prévia licença, assim como participar em “ajuntamentos de mais de três pessoas”.
2 – A cada um o seu lugar – a política feminina do Estado Novo” de Irene Flunser Pimentel
Este é um livro dirigido a um público muito diferente, uma obra de referência sobre o tema, um brilhante e premiado estudo académico, que nos elucida sobre o lugar que era alocado ás mulheres, na doutrina e nas leis da Ditadura, e que escalpeliza as estratégias que serviram os fins, acantonando o sexo feminino na esfera da domesticidade e bloqueando os canais de ascensão social e profissional, (segundo o sexo e a classe social), a começar pelo ensino e a acabar no afunilamento das oportunidades de trabalho e na discriminação salarial.
O princípio da igualdade, consagrado na Constituição de 1933, exceciona, quanto às mulheres, as desigualdades justificadas pela sua “natureza” e pelo “interesse da família”.
A “natureza” justificava a exclusão das mulheres no acesso às profissões mais prestigiadas, diplomacia, magistratura judicial, e quaisquer cargos de direção, assim como as assimetrias salariais, no professorado deliberadamente usadas para combater a crescente feminização do setor, que tanto afligia os Ministros da Educação, (alguns chegaram a impor “quotas” na entrada da profissão, a favor do sexo masculino!).
Para pôr a mulher “no seu lugar”, o regime combateu o ensino misto, ensaiou a diferenciação dos currículos escolares, a desvalorização da escola feminina e a redução da escolaridade obrigatória. Em vão… As taxas de feminização do professorado iam em crescendo (no primário de 68%, em 1930, para 87%, em 1960, no liceal de 33% para a 56%, no mesmo período
Ainda por cima, a taxa de feminização no acesso ao ensino seguia trajetória semelhante: no primário de 42%, em 1930, para 48,5 em 1960; no liceal (3º ciclo), de 33,2% para 50,1% - sendo superior a percentagem de aprovações: 53,2%, neste último ano.
Quer isto dizer que as raparigas foram vencendo preconceitos, armadilhas e barreiras colocadas no caminho da sua formação académica e profissional, e, enquanto se mantivessem solteiras, tinham, ao menos teoricamente, o direito de dispor de si e decidir o seu destino. Com algumas limitações, como se viu, por exemplo, arriscando ser presas pela polícia se saíssem à noite sozinhas…
Muito, muito pior era a situação das casadas, para quem o casamento era sinónimo de servidão. No altar, entregavam a sua liberdade, decaíam, nos termos da lei, para um estatuto de eterna menoridade, semelhante à dos seus próprios filhos, sobre os quais, como é óbvio, não podiam exercer o poder parental. Deviam obediência aos maridos, eram obrigadas a viver no domicílio conjugal por eles escolhido, e, se ousassem abandoná-lo, viam-se sujeitas a “depósito judicial de mulher casada”. Isto é, a detenção pelas autoridades policiais, seguida de “prisão domiciliária”. Careciam de autorização marital para tirar passaporte. Perdiam a capacidade de administrar os bens comuns e até os seus bens próprios. Tudo eram prerrogativas dos maridos, que podiam, ainda, proibi-las de exercer uma profissão, de publicarem um texto, violar a sua correspondência, e, em caso de adultério, assassina-las, sem consequência de maior (a pena era leve, um curto degredo de meses, a cumprir nas proximidades).
Parece mentira, mas não é. Estatuto jurídico semelhante ainda hoje persiste, noutras geografias - no Irão, na Arábia Saudita, no Afeganistão talibã… Com uma pequena, mas relevante diferença: o desfasamento das leis com a realidade social portuguesa. Muitas esposas, não sendo juristas e tendo cônjuges amáveis e sensatos, nunca se terão sequer apercebido da sua “capitis diminutio”.
3 – “Ela é apenas mulher” de Maria Archer
Contudo, a verdade é que, durante a ditadura, em todos os domínios e no conjunto, as portuguesas foram fortemente condicionadas nas suas escolhas de vida e ficaram aquém dos seus sonhos e reais possibilidades. Para as (e os) jovens de hoje é difícil imaginar as vivências do quotidiano, nos anos da ditadura, sobretudo nas primeiras décadas, mas facilmente encontram esse mundo nas páginas do grande mais famoso romance de Maria Archer, que acima referi. É um dos seus raros livros não esgotados, na reedição da Parceria A. M. Pereira, com prefácio de Maria Teresa Horta. Faço minhas as suas palavras quando diz que que Archer traçou na sua obra literária, “o único retrato autêntico de corpo inteiro” (da mulher portuguesa nessa época),
Ninguém melhor do que Maria Archer soube recriar, de uma forma eficaz, crua e rigorosa, a atmosfera social e política que moldava, então, o círculo fechado das mulheres. Ninguém soube melhor escrutinar e denunciar a violência velada das leis arcaicas e dos brandos costumes da sociedade portuguesa, do relacionamento de sexo ou de classe, homens e mulheres imersos na nebulosa de estereótipos, dogmas e falso moralismo, de prepotência e sujeição... Ninguém melhor do que ela soube desconstruir a imagem da "fada do lar", com os seus dotes de observadora, de “quase etnóloga”, e com a força subversiva da escrita posta ao serviço de uma causa, que era a de infirmar o mito salazarista da inferioridade intelectual da Mulher…
Aqui fica o convite à descoberta da tão injustamente esquecida Maria Archer, e da sua arte de recriar o reino distópico do "Estado Novo", derrubado em 1974. É uma forma especial de celebrarmos o cinquentenário da Revolução e, por feliz coincidência, também, o 125º aniversário desta extraordinária mulher e romancista, que escreveu história do feminismo com a sua própria vida.
sexta-feira, 3 de maio de 2024
ESPINHO CIDADE - Um olhar retrospetivo e prospetivo
ESPINHO CIDADE - Um olhar retrospetivo e prospetivo
1 - A celebração dos 50 anos da elevação de Espinho a cidade, a 16 de junho, foi uma festa bonita, que começou numa sessão de homenagem a 50 espinhenses, passou, entre outros eventos, pela inauguração da sede da Associação Mulher Migrante no FACE (mais uma coletividade cuja sede "imigrou" para Espinho!) e terminou com o magnífico concerto de Xutos e Pontapés, a encher, por completo, o espaço que vai do Museu até ao mar.. Numa noite de verdadeiro verão, a música intemporal uniu todas as gerações. Inesquecível!
Ideia especialmente feliz foi convidar os 50 cidadãos distinguidos a responder a um questionário sobre as suas memórias deste meio século e o prognóstico em relação ao seguinte, que agora se inicia. As respostas estão agora expostas, sob a forma de cartazes, ao longo da rua 8, entre a 23 e a 15, onde, uns apenas metros abaixo, se situava a "Avenida", percorrido por gente bem vestida e bem disposta, que se entregava a uma forma singular de conviver, passeando devagar, entre palmeiras e esplanadas.
Refiz, ontem, essa curta trilha, entretendo-me a analisar, um a um, os cartazes, tão bem concebidos, na cor e no grafismo e, por isso, fáceis de ler.
Cada um nos dá um retrato individual e subjetivo de vivências muito diversas, que, multiplicadas por cinquenta, se transformam num grande fresco coletivo, e contam, na primeira pessoa, a história da cidade e da gente, dos seus afetos e dos seus sonhos.
2 - Na minha leitura abrangente, embora apressada, procurei, sobretudo, as recorrências, as afinidades de lembranças e o balanço entre o que se perdeu, e já só existe na memória, e o que perdura e progride, e é esperança e desafio.
Há subjacente ao conjunto de testemunhos, um imenso orgulho na terra, nas facetas que a tornam única - a cidade/comunidade, a cidade moderna, cosmopolita, elegante, geométrica e quase plana, a toponímia (de inspiração nova iorquina?), a dimensão, que permite ter tudo ao alcance de um passeio a pé, em menos de 15 minutos, a praia, a marginal, o mar, o pôr do sol...
Há frases que o sintetizam lapidarmente: "Espinho tem a beleza do mar". "Toda a vida o mar foi meu companheiro"...
As referências à identidade marítima de Espinho são inúmeras: a pesca artesanal, os barcos, a arte xávega, o peixe, rei na gastronomia, "as ondas do mar, mar de abrasão", a piscina, outro exemplo de pioneirismo, nascida como a maior da península ibérica. Piscina cujo muro, todos os anos a força invernosa do oceano destruía - isso antes da construção dos esporões, quando as invasões do mar em fúria levavam as casas, a terra, o areal...
A feira semanal, considerada a maior de quantas há no país, é também destacada em vários depoimentos, enquanto outros traços importantes do antigo
Espinho se recuperam em menções dispersas: o primeiro cinema, o rinque de patinagem, o aeródromo, o campo de golfe (pioneiro na Península), a Fotografia Evaristo, os girassóis ao longo da Avenida 8, as festas do Rio Largo, as reuniões da tertúlia dos médicos no Verde Gaio, as cantigas ao desafio na cave do Palácio, o Café Moderno, o Nosso Café, os bailes da piscina, os do salão dos bombeiros e os do casino, (sem esquecer, igualmente no casino, as "matinés"!), as festas de Nossa Senhora da Ajuda, com a feira das cebolas, a ponte com escadas de madeira, sobre o caminho de ferro, junto à estação, os quiosques, os comboios a correrem, no dia a dia, paralelamente à movida da Avenida 8...
A Avenida é, justamente, destinatária da imensa maioria das rememorações nostálgicas, a unir todas as gerações que ainda a viveram plenamente.
Há os que a elevam a ex-libris ou "símbolo da terra", ou a elegem como o lugar "onde todo o Espinho se encontrava nos diferentes cafés" (o Espinho/ comunidade, o Espinho/tertúlia), ou a descrevem, com as suas palmeiras, as esplanadas dos cafés e bares, a música de vinil o dia inteiro. E há os que lhe dão um toque mais pitoresco: "andava toda a gente a mostrar os vestidos"; "andar para a frente e para trás, era uma mostra das meninas, os pais sentavam-se nas esplanadas"; "os nossos vestidos de decote em barco e godés, a dar a volta aos olhos dos rapazes".... Numa síntese perfeita em que todos os demais decerto se revêem, afirma um dos 50: "Nunca encontrei no mundo um lugar tão aprazível".
A segunda posição na lista da nossa saudade vai para o Teatro São Pedro: "a perda do Teatro São Pedro, uma obra de arquitetura notável"; o "magnífico Teatro São Pedro". Lembram-se dos filmes, do ritual festivo na companhia das famílias ("íamos todos ao cinema São Pedro"), ou dos amigos ("íamos lá ver umas cowboyadas").
Alguns dos mais velhos não resistem a desabafar o seu sentimento de perda: "Quando éramos jovens, Espinho tinha muita vida. Agora as coisas estão diferentes"; "Sou do tempo da música na Avenida e na esplanada"; "É com saudades que lembro a linha do comboio, a senhora da passagem de nível, que tão cuidadosamente olhava pela segurança de todos"; "a Senhora da Ajuda era um mar de gente"...
E o enterramento da linha, sendo matéria diretamente pouco comentada, não deixa ninguém indiferente: para uns, significou o fim de uma era dourada, para outros um marco de crescimento.
3 - O Espinho do presente é saudado por quantos não encontram rival para a cidade onde vivem! Orgulham-se da sua tradição de modernidade, com novos e audaciosos equipamentos, como o Multimeios, o Museu, a Biblioteca, e com a esplêndida marginal, assim como dos clubes, do dinâmico associativismo, do nível das escolas, da Academia de Música, dos festivais...
O futuro é sonhado por quase todos com progressos que não descaracterizem os traços identitários. O acento tónico é posto, naturalmente, no turismo. O que não é contraditório, já que Espinho sempre soube compatibilizar o acolhimento dos visitantes com uma incomparável qualidade de vida, enquanto terra de residência, "cidade para as pessoas". Muitos são os que apostam na evolução urbana com respeito pelo ambiente, manifestando preocupações
ecológicas, assim como sociais (inclusão, intergeracionalidade, mais emprego, habitação mais acessível).
Para muitos, o amanhã de Espinho passa pela atração dos jovens, pelo estilo de vida saudável, pelo desporto (os desportos de sempre, como o voleibol, o hóquei em patins, a ginástica, e os novos, como o surf), pela renovação do tecido empresarial, pela Cultura. A vertente cultural destaca-se, claramente, nos prognósticos de expansão e prestígio da cidade futura!
Estas são as minhas primeiras impressões sobre a inédita exposição ao ar livre, com a qual Espinho, através da Câmara Municipal veio, uma vez mais, dar provas da imaginação e criatividade, que fazem parte da sua matriz. .
UM JORNAL DE CAUSAS - O LUSO PRESSE
UM JORNAL DE CAUSAS
O LUSO PRESSE na história da emigração feminina e da igualdade de género
1 - A história da metade feminina da emigração portuguesa está largamente por fazer. Vários fatores terão contribuído para o descaso no estudo da sua especificidade, por parte de investigadores, de políticos, de líderes das próprias comunidades do estrangeiro, sendo um deles a reconhecida predominância masculina, ao longo de séculos de incessante êxodo migratório. O Estado abria fronteiras à partida de homens sós, que abandonava à sua sorte. De facto, até meados do século XX, as únicas políticas, neste domínio, foram as medidas de controle dos fluxos de saída, no sentido de os favorecer ou restringir, conforme o interesse público conjuntural. Às mulheres era, com raras exceções, proibido abandonar o país, alegadamente, para sua própria proteção.
Neste quadro global, a emigração clandestina constituiu, sempre, uma significativa parte do todo. E, no que respeita a mulheres, aumentou, enormemente, a partir do início do século passado, até atingir a quase paridade, no nosso tempo. Contudo, mesmo em movimentos recentes, ao menos na emigração menos qualificada e ainda maioritária, os homens, regra geral, partem primeiro, as mulheres, os filhos reúnem-se com eles, ao abrigo do direito ao reagrupamento familiar - o que reforça a imagem de uma dependência e subalternidade feminina, muito desfasada da realidade.
De facto, nas novas sociedades, as mulheres acedem, quase sempre, ao mercado de trabalho, conquistam a sua autonomia económica, e contribuem, de forma decisiva, para o orçamento, o bem-estar e a integração do todo familiar. Em suma, sucesso do projeto migratório!
Por outro lado, são, também, as grandes construtoras das comunidades portuguesas, em sentido orgânico, ou seja, enquanto espaço extraterritorial de vivência da língua e dos costumes. Um fenómeno de extra-territorialidade nascido da capacidade de entreajuda e da vontade coletiva de preservação da língua, e de formas próprias de convivialidade. Os portugueses uniram-se, espontaneamente, um pouco por todo o lado, num poderoso movimento associativo, com que se substituíram, setor a setor, do social ao cultural, à ausência do Governos nacionais, distantes e indiferentes. Assim criaram um universo coeso e solidário, que é pura sociedade civil. A Nação sem Estado! Porém, nessas admiráveis comunidades, ou pequenas “repúblicas”, de que é feito o Portugal no estrangeiro, as mulheres, apesar da crucial importância da sua presença e do seu trabalho, deparam, ainda hoje, com enormes obstáculos à participação igualitária, à ascensão ao dirigismo – obstáculos, em muito casos superiores aos que encontram na sociedade local.
O tema da igualdade de género na emigração entrou, embora tardiamente, na agenda dos Governos nacionais, conscientes de que se impõe a conjugação de esforços com as instituições das próprias comunidades, para mobilizar as pessoas, individualmente, mulheres e homens, em particular as e os jovens.
Num quadro em que a sociedade civil é a força dominante, como motivá-la para esse projeto humanista, regenerador e transformador do tecido comunitário? Uma das respostas mais inspiradoras tem sido dada, a partir de Montreal, pelo Luso Presse, que há mais de duas décadas, faz história, através de conferências, colóquios, debates, dando visibilidade à obra realizada por mulheres migrantes, em todos os domínios, a fim de abrir horizontes a muitas outras. A nosso ver, esta caminhada pela igualdade, singular e pioneira iniciativa de Norberto Aguiar, à frente do Luso Presse, merece reflexão, público reconhecimento e apoio, porque é "serviço público" e deve continuar até que seja transposta a última meta. O que nos propomos, na nossa intervenção, é dialogar sobre meios e alianças para prosseguir o projeto e atingir metas.
Com o seu paradigma de “congressismo” pela igualdade, que antecedeu, em alguns anos, as primeiras políticas públicas neste domínio, e centrado em estratégia, semelhante, o Luso Presse fez História. Mas isso não basta: ainda é preciso fazer futuro, ser mais do que exemplo de escola, ser sempre exemplo vivo.
quinta-feira, 2 de maio de 2024
ENTREVISTA A "DEFESA DE ESPINHO" - natal 2021
O Natal está a aproximar-se e a o coronavírus não se vai embora. Tem vivências de outros tempos tão difíceis e delicados?
- Estamos a viver nesta quadra do Natal uma realidade de que não existe memória - nem mesmo há um século, durante a "gripe espanhola", no que respeita à mobilidade e paralisia da vida societária. Parece-nos irreal, como se estivéssemos dentro de um filme de ficção científica, não é? E o filme ainda vai a meio, não temos saída para breve e não podemos fazer, a meio, um pequeno intervalo, para conviver à volta de uma mesa. Se o fizéssemos, para gozar o Natal do costume em família alargada, as consequências seriam terríveis. Os responsáveis têm de dizer isto, sem titubear, em vez do discurso facilitista que faz de nós patetas ou crianças grandes - acenando com a miragem de livres celebrações natalícias se nos "portarmos bem" e baixarmos o número de contágios até ao fim da semana anterior. Melhor seria pensar no que vai acontecer na semana ou semanas seguintes, com mais um provável pico de contaminação! É preciso falar claro aos Portugueses, que têm sabido, bem melhor do que as autoridades, tomar as medidas que o bom senso recomenda. Acho que se pode confiar neles, que não é preciso impor as limitações pela força e controle policial, mas que se deve alertar para os perigos. Se me permite, aqui deixo votos de Feliz Natal para todos os espinhenses, este ano vivido mais em espírito do que em abraços...
Ano velho, ano novo! O ano de 2020 será o fantasma de 2021? A pandemia (com maior ou menor dificuldade) será superada? Ou não será assim tão linear…
- Infelizmente, já podemos ter uma certeza: uma parte significativa de 2021 será igual a 2020, com máscaras e distanciamento físico. A vacinação em massa é motivo de esperança, se correr pelo melhor. Um "se" complexo... De qualquer modo, como agora todos estamos convertidos em virologistas amadores, eu permito-me avançar a minha previsão: 2021 será dividido a meio, o primeiro semestre igual a este 2020 e o segundo a anunciar a normalização total de 2022! Que bom poder ir a estádios cheios de gente, a lançamento de livros e a exposições, ao cinema Trindade e aos alfarrabistas do Porto, andar sem máscara na rua e sem álcool-gel na carteira, pegar em criancinhas ao colo e viajar para Lisboa, Londres ou Toronto... A "grande vida", a liberdade!
A culpa é do vírus ou é das pessoas?
- Olhando o que se passou ao longo destes últimos 10 meses, eu diria que há culpas repartidas. Não somos culpados pelo súbito aparecimento do vírus (ao menos fora do país onde nasceu e cresceu), mas sê-lo-emos, em parte, pela sua persistência. Para já, ele está aí. Veio para ficar. Quando erguemos barreiras, não consegue espalhar-se. Quando baixamos a guarda , multiplica-se vertiginosamente. Culpa dos governos, em primeira linha, por terem tomado medidas ziguezagueantes e dado sinais confusos, como aconteceu em toda a Europa, e não só cá, mas também dos cidadãos, quando se descuidam, por cansaço e impaciência. As chamadas "vagas" da pandemia não se devem ao vaivém do vírus (que permanece, sem mutações de vulto), mas à alternância dos "confinamentos" e "desconfinamentos" apressados... Nada justificou a excessiva abertura no verão, porque o número de casos continuava muito alto.
Tem saudades dos contactos com os emigrantes? A diáspora lusa ainda é o que era?
É verdade que tenho muitas saudades. Desde o início do meu trabalho na emigração, iniciado há exatamente 40 anos, por dever de ofício, no governo e no parlamento, e continuado, até hoje, em "voluntariado", este foi o primeiro ano em que não pude fazer uma só visita a comunidades da emigração! Ia partir, em março, para participar no Dia Internacional da Mulher, organizado pelo jornal "Luso-presse" de Montreal e tive de cancelar a viagem, no último momento. Vou mantendo contactos em debates e entrevistas por "zoom", "facebook", "skype"... São estas novas tecnologias que nos vão valendo!
O que é “ganhou” enquanto secretária de Estado das Comunidades Portuguesas? E o que é ficou por fazer?
- Ganhei uma outra visão do nosso País, da nossa gente, do modo como recria espaços de vivência e cultura nos cinco continentes do mundo. Quando dizemos que somos uma "Nação de comunidades", mais Povo do que território, estamos a fazer o retrato de uma realidade, que anda muito esquecida no nosso dia-a-dia, dentro de fronteiras. Raras vezes olhamos esta dimensão, o que ela nos acrescenta e engrandece. Os emigrantes, pelo contrário, são de uma dedicação e solidariedade sem limites para com a terra de origem, e é por isso que a transportam consigo e a recriam, visivelmente, no meio associativo, em manifestações coletivas ... A Diáspora não é uma estatística. Pouco importa, de facto, a quantidade, a mera soma de portugueses radicados numa determinada cidade ou região, o que mais conta é a capacidade de criar estruturas, instituições, e, através delas, assegurar o convívio, as festas, os rituais, os valores identitários, legados aos mais novos. Uma comunidade em sentido sociológico é isto. Não são números, são sentimentos e gestos concretos.
Ficou muito por fazer nas ajudas concretas (os meios foram sempre poucos), na mobilização, no estabelecimento de redes de contacto e convívio entre comunidades que se ergueram por si, sem apoio do Estado... Este ano comemora-se o 40º aniversário da criação do Conselho das Comunidades (um projeto de Sá Carneiro, que me coube executar no seu Governo), que prossegue esse objetivo fundamental - promover o reencontro dos emigrantes entre si e com o País.
Ser “portuga” por esse mundo fora enche a alma e dá alento para quem vai à procura de uma vida melhor?
- Sim, dá, quase sempre, uma vida melhor! O sucesso dos que partiram incita os outros, família, vizinhos, a seguirem o seu exemplo. Esta é, em síntese, a história da nossa emigração! Os portugueses, aos milhões, ganharam essa aposta, individualmente, o País ganhou uma inesperada e espantosa componente extra-territorial, para além das esperadas e astronómicas remessas, mas continua na cauda da Europa, ao menos no que respeita a desigualdades, baixos salários, trabalho precário, inferiores expetativas de carreira - desfasamentos que são a causa mais eficaz da expatriação secular, imparável, até hoje...
Já tenho dito, e repetido, que a revolução de 74 foi a única verdadeira revolução da Liberdade, aquela que veio , enfim, conceder o direito de emigrar, incondicionalmente, e, todavia, mais de quatro décadas depois, os governos ainda não conseguiram dar aos cidadãos o "direito de não emigrar", ou seja, de viver confortavelmente na sua terra...
Já ninguém parte com uma mala de cartão… E nem todos cantam…
- Não sei se estou inteiramente de acordo com a afirmação. De facto, embora o que mais chame a atenção seja a chamada "nova emigração" de jovens altamente qualificados (um autêntico "brain drain", que devia arrepiar os nossos governantes...), a maioria ainda é muito parecida à do passado longínquo, a tal da "mala de cartão", símbolo de pobreza e falta de bagagem académica e profissional. Em muitos casos, é apenas um movimento sazonal, como revelam as estatísticas oficiais. A presente crise vai ter consequências neste setor, mas não é fácil prever quais. Pode, suponho, travar, conjunturalmente, novos movimentos, sobretudo nas migrações de perfil tradicional, mas, depois, vai depender do ritmo de recuperação no nosso e nos outros países. Certo é, sim, que os candidatos mais qualificados, os médicos e enfermeiros que agora faltam no SNS, os engenheiros, ou os cientistas, encontrarão sempre menos obstáculos...
Foi também um privilégio ter sido vereadora da Cultura de Espinho? Cidade que lhe diz tanto e que adotou para viver…
- Foi uma experiência surpreendente. E eu gosto de surpresas - das boas surpresas, é claro... Nunca imaginei que o "governo local" revelasse potencialidades, que não ficavam atrás do governo central - mesmo para quem, como eu, vinha de um pelouro com ação "planetária", sem fronteiras. Não esperava encontrar tanta competência e tanto entusiasmo nos meus colaboradores - os melhores que tive, depois de ter estado em funções em cinco governos da República. Fiquei, contudo, com a ideia de que não será nada fácil encontrar funcionários de tanta qualidade humana e profissional em serviços municipais similares, de norte a sul do País... Aqui em Espinho, sei que me saiu a sorte grande! Era um verdadeiro prazer reunir com as chefias e pensar, em conjunto, o desenvolvimento dos programas culturais, dando continuidade ao que vinha de trás (não eliminei nada, era tudo válido e de qualidade) e preparando novos projetos, exigidos, desde logo, pela comemoração do centenário da República. Não tínhamos dinheiro para nada, mas não nos faltavam ideias e boa vontade . É incrível o que se conseguiu levar a cabo nessas condições, em 18 meses... Sentávamo-nos à volta da mesa redonda, o debate fluía, quando chegávamos ao fim, os projetos estavam totalmente reformulados e eram de todos -já nem sabíamos quem tinha proposto o quê... Dramático foi, porém, neste ambiente tão caloroso, a morte da Drª Isabel e, depois, da Drª Beatriz, duas grandes senhoras - inesquecíveis! Desse quarteto admirável, só a Drª Idalina e o Dr Bouçon continuam em plena atividade na Câmara. Naquele belo edifício da antiga conserveira, que eu sonhava ocupar com uma diversidade de núcleos de animação, como um museu do violino (o Engª Capela propunha-se montar ali uma autêntica oficina de "luthier"), um clube de jazz (com um grande nome à frente), um café, com vista para o mar... Falo do que não aconteceu. O que aconteceu é sabido. Gostei particularmente de dar uma contribuição para pôr "nomes às coisas", às Galerias Souza Cardoso, à Biblioteca José Marmelo e Silva... Se tivesse estado na Junta de Freguesia, lá teria sugerido que a bela galeria do 1º andar, se chamasse "Conde de Ferreira". Nada mais justo, pois o edifício foi doado por ele (para a escola primária) à cidade de Espinho... Compreende-se a reconversão dos edifícios a outras finalidades, mas não o esquecimento dos beneméritos, que em Portugal é a regra, não a exceção.
Mas também tem orgulho em ser da dita terra do nabo e das nozes? Ainda lá estão as origens…
- É verdade que sim. Até nisso me sinto identificada com os emigrantes, no duplo sentimento de pertença à terra de origem, Gondomar (onde morei apenas dez anos, mas onde a família materna remonta, nuns ramos, ao século XVI e, noutros, ao século XVIII), e a Espinho, que foi o meu paraíso de férias, desde a infância, e que escolhi para viver há mais de 45 anos. No verão de 1950, meus pais prolongaram a estadia na pequena casa de férias da Rua 7, que, há muito, pertencia aos meus bisavós, e eu cheguei a frequentar, ao longo do 1º trimestre, a Escola da Rua 23 .
Em Gondomar não andaria tanto... e tanto a pé como em Espinho… Tem rio mas não tem mar. E o mar de Espinho o que é que lhe diz?
- Em Gondomar, nem sequer tinha o Douro à vista, porque sou do centro de São Cosme... Mas nasci e vivi com os meus Pais em casa da Avó materna, um casarão, cercado de dezenas de árvores, de todas as formas e feitios, e com um extenso terreno nas traseiras, onde podíamos correr e brincar à vontade. Éramos terríveis, trepavamos às árvores, como se estivéssemos na nossa "selva" privativa, saltávamos das janelas do 1º andar, por cima de roseiras altas... Milagrosamente, nunca nos magoamos.
Mas confesso que o mar me fazia falta. Era sempre uma alegria vir para Espinho no verão, os mergulhos nas ondas altas da praia azul, a natação na piscina, o vaivém na Avenida, os cinemas (60 filmes por mês, com a programação do S. Pedro e do Casino)... Que saudades!
11 – Sendo uma fervorosa adepta do Futebol Clube do Porto, já alguma vez sentiu uma indómita vontade de descer da bancada do antigo estádio das Antas ou do novo estádio do Dragão para entrar no relvado e mudar o “o jogo” ou rematar à baliza?
Como me compreende!... Fui uma fanática do futebol, desde pequena. De todos os desportos, mas mais do futebol e do ciclismo, por sinal, os mais populares. Agora, sou mais do género "treinador de bancada" e, em vez de querer entrar em campo, o que me apetecia era mandar para lá alguns dos "imortais" que não têm sucessor, como Baía na baliza, Gomes nos remates certeiros, ou Deco a jogar e a fazer jogar... Ou, se fosse um pouco mais atrás, Pedroto, depois Pavão, a darem jogo, e Jaburu a marcar golos. Jaburu, brasileiro de Minas Gerais, como Yustrich, era uma espécie de cruzamento entre Hulk e Jardel - mais Hulk, porque corria, velozmente, o campo todo...
Jogava à bola quando era mais nova? Era tecnicista ou era bola para a frente?
- A partir da 3ª classe, tornei-me aluna do Colégio do Sardão, que parecia um colégio inglês, cheio de recintos desportivos, ginásio,"court" de ténis, campos de basquete, volei, andebol. Pertenci às equipas de todas as modalidades (embora sem atingir o escalão da Graça Guedes que viria, depois, a ser campeã nacional de voleibol em Espinho). Só o futebol era proibido às meninas, mas eu organizava jogos clandestinos. Uma ve, fui apanhada e chamada à Mestra.Geral, com muito receio de apanhar o castigo máximo. Mas não, com muita graça, a normalmente severa e temida senhora disse-me;" Não é jogo próprio de meninas, mas como eu sei que és uma apaixonada, vou abrir uma exceção: tu podes jogar futebol, as outras não"..
Como organizadora dos torneios proibidos, eu escolhia a minha posição de "avançado-centro" e marcava muitos golos, As minhas colegas ainda hoje dizem que era ótima, mas eu sei que não. Muita energia e velocidade,tinha!. Técnica ou visão do jogo em campo, não... Era, como diz, "bola para a frente". Às vezes, até me perdia e saía com bola pelo retângulo fora.. Note: não me limitava a adiantar a bola, saia, eu também, com a bola no pé... No andebol, o nosso treinador, Edgar Tamegão (o único homem, para além dos padres, admitido, em funções naquele colégio de Doroteias) fez um teste para guarda-redes, e mandou-me logo para a baliza. Aí, era surpreendentemente eficaz, tinha nascido para aquilo, mas não gostava nada... Sentia-me "confinada", na minha área. Para além de jogar, também fazia relatos imaginários, que entusiasmavam as minhas companheiras nos recreios. Nesses relatos, o FCP ganhava sempre, com inúmeros golos, tão gritados, que a pretensa locutora ficava rouca...
E é tão feminista?!
- Continuo igual ao que fui, sempre. Sabe, a minha avó materna, Maria Aguiar, cidadã e paroquiana muito interventiva e influente, mas extremamente conservadora, passava o tempo a interditar atividades: "uma menina não faz isso!". Não trepa às árvores, não joga a bola na rua, não anda pendurada nos elétricos... E eu pensava: "Mas porque não? Sou tão capaz como os primos, em qualquer dessas brincadeiras". Assim nasceu o meu feminismo. Não é nada contra os homens, é contra os preconceitos. Pela igualdade.
A igualdade do género ainda conversa de treta nos tempos de hoje?
- Para mim, é uma causa pela qual vale a pena lutar, num tempo em que não só tantas discriminações permanecem, como até se começa a negar a sua existência, ou, ainda pior, num verdadeiro retrocesso civilizacional, a justificá-las como sendo boas. Esse discurso de uma extrema direita agressiva e brutal, que grassa nos EUA de Trump e em outras partes do mundo, e já chegou cá, ainda em miniatura, constitui a maior ameaça ao futuro da democracia. Hoje, na Europa, o perigo vem da extrema direita.
Antifeminismo, racismo e xenofobia andam a par, como se constata pelo discurso dessa extrema-direita. E têm de ser combatidos com as mesmas respostas, com os mesmos valores humanistas. O feminismo, como eu o vejo, é uma componente do humanismo perfeito, não é um machismo ao contrário. Apela ao bom entendimento e solidariedade entre os sexos, como entre nacionais e estrangeiros. Com esta visão das coisas, depressa compreendi os problemas centrais da emigração, porque defender os excluídos, os marginalizados, sejam as mulheres, os estrangeiros ou os negros, é missão da mesma natureza.
A violência doméstica é sinal primitivo ou da sociedade que vive de aparências, silenciosa e inativa quando o problema é dos outros e de quem sofre?
- Certamente que é um sinal primitivo, embora subsista em sociedades que se consideram avançadas. É sempre um sinal de cobardia exercer a violência sobre os fisicamente mais fracos. E é um comportamento inqualificável, qualquer forma de descaso ou a condescendência da parte de quem pode e deve intervir - o Poder. Quer se trate de mulheres ou homens, crianças ou velhos. O mais chocante e recente caso, em Portugal, foi o assassinato de Ihor, um indefeso estrangeiro por agentes do SEF. Chocante, o silêncio das autoridades neste caso, e a demissão da Diretora Geral só agora, dez meses depois. Não foi violência doméstica, mas foi um crime infame no interior de uma sala escondida e fechada, como são os espaços em que, quase sempre, se exerce a violência doméstica.
A política faz parte da sua vida, ou a sua vida é que faz parte da política?
- Vou mais pela primeira, no sentido de que a política pode e deve fazer parte da vida de todos nós - a política enquanto atividade cívica, exercício da cidadania... Tenho uma especial admiração pelos que se envolvem na sua comunidade, quer através de partidos, quer pelo trabalho nas instituições da chamada sociedade civil - dirigentes associativos, bombeiros, voluntários das mais diversas formas de solidariedade, seja na emigração, seja dentro do País.
Era uma deputada respeitada por todas as bancadas na Assembleia da República, fosse à direita, ao centro ou à esquerda. E também havia “fait-divers” e momentos de convivência com outros quadrantes partidários?
- Fui educada assim, na minha família, onde sempre conviveram os opostos, primeiro monárquicos e republicanos, depois, democratas e salazaristas, anglófilos e germanófilos durante a guerra, filiados ou simpatizantes de vários partidos, após o 25 de Abril. Depois, estudei em Coimbra, onde era normal a convivência entre colegas de esquerda e direita. Eu tinha quadrante ideológico, era Social democrata "à sueca", como Sá Carneiro, e PPD, desde 74, mas independente, sem filiação partidária. E foi isso que, paradoxalmente, em 1978, me levou a um governo de "independentes", chefiado pelo Doutor Mota Pinto. Por isso, depois de aderir ao PSD, em 1980, mantive, esontaneamente, esse tipo de comportamento, quer no governo, quer na Assembleia da República. Sei que não era muito comum, por exemplo, ser mais amiga de Miguel Urbano Rodrigues, do PCP, ou de Carlos Luíz, do PS-emigração, de Paulo Portas e Anacoreta Correia, do CDS, ou de Natália, do PRD, do que da maioria dos colegas de bancada.
No hemiciclo de São Bento, em 1981, os meus primeiros debates foram com um especialista de emigração do PCP, Custódio Gingão, que era extremamente aguerrido. Eu respondia no mesmo tom e os nossos despiques eram tremendos! Até que um dia me lembrei de lhe agradecer, a meio de uma intervenção, dizendo que ele me estava a ajudar imenso no meu "tirocínio parlamentar". Era verdade... A partir daí, ficamos amigos, as discordâncias de fundo mantiveram-se, é óbvio, mas o tom esmoreceu bastante, de parte a parte... Histórias não faltam, falta-me o tempo para as contar...
O filme “Snu” trouxe-lhe gratas recordações?
- Vi-o mais do que uma vez, na sala de cinema e, depois, na televisão, Como filme é "assim-assim", não fica na história do cinema português, mas a intenção foi boa, é uma merecida homenagem a Snu, bem interpretada por uma excelente atriz e bem retratada (tanto quanto sei, só estive com ela em encontros breves). Já o Dr. Sá Carneiro é, no capítulo político, sem culpas para o ator, muito mal apresentado... Homem firme, capaz de rupturas, como se sabe, reagia, invariavelmente, como mandava uma esmerada educação: sem levantar a voz, com um perfeito controle de si, em qualquer situação. O tom podia ser frio e cortante, mas era, sobretudo, muito civilizado. Ver no ecrã um Sá Carneiro aos gritos, ou a bater com as portas, é inverossímil, é um disparate! Dele é, assim, dada uma imagem completamente distorcida, e ao gosto dos seus maiores inimigos. Estranhei que ninguém do PSD oficial o dissesse.
Para além de Sá Carneiro, também nutria simpatia pessoal por Mário Soares e por Mota Pinto… E era uma das “mães” de Paulo Portas…
- Sim, e, para completar o quadro, pode acrescentar o General Ramalho Eanes. Sei que todos estes grandes políticos, que tanto admiro, não se admiravam, necessariamente, entre si... Todos democratas, mas trilhando caminhos diferentes, com diferentes programas, estratégias e "timings" para atingir o mesmo fim - frequentemente, em oposição frontal, uns aos outros. Sá Carneiro tinha mais o sentido da urgência, queria uma democracia "à europeia", no imediato, acreditava na capacidade do Povo para a viver livremente, sem a tutela militar do "Conselho da Revolução". O General Eanes, como Presidente, estava à frente do Estado, das Forças Armadas e do Conselho da Revolução, cuja ação via como fundamental na construção progressiva da arquitetura democrática. Estive convictamente com Sá Carneiro e considero que a História lhe deu razão, porque o Povo estava preparado para a democracia, então tanto como hoje... Mas a História, quatro décadas depois, também mostra o General Eanes como um Português exemplar, que, afinal, queria tudo para o País, não para ele próprio. Não agia com um projeto de poder pessoal. Tivemos muita sorte com a qualidade destes "pais fundadores" da nossa democracia (não esquecendo Freitas do Amaral e Amaro da Costa, no quadrante da democracia cristã, centrista e soidária). Já não há políticos com essa estatura! E talvez nunca mais haja tantos, num mesmo cenário temporal. Foi um autêntico "milagre português".
Pessoalmente, sentia por Sá Carneiro verdadeira fascinação, considerava Mota Pinto um homem de inteligência fulgurante e de uma imensa generosidade, e Mário Soares um político perfeito. E todos, incluindo o General, tinham uma virtude, para mim muito importante: o sentido de humor! Muito pessoal, em cambiantes muito diversos, mas no mesmo grau elevadíssimo! Com todos mantive um relacionamento amigo e tão descontraído quanto possível, tratando-se de altas figuras da Pátria e sendo todos mais velhos do que eu...
Paulo Portas é outro caso, no sentido de que não é um pai, mas sim um filho, muito precoce, da democracia. Conheci-o, em reuniões do PSD, com 14 ou 15 anos, e logo o achei-o um rapaz super inteligente, vivíssimo, encantador. Não era a única das militantes do partido a pensar assim, e, por isso e, quando fui apresentada à Mãe, a Drª Helena Sacadura, não fiquei admirada com essa frase tão divertida: "Sei muito bem quem é. É uma das mães do Paulo!". Tal como o filho, é encantadora.
Qual era o presente que gostaria de receber no Natal?
- No Natal confesso que prefiro dar presentes a recebê-los. Este ano, espero oferecer a toda a família e a alguns amigos um livro que está a ser ultimado na gráfica - um blogue, com histórias soltas de várias gerações de Aguiares. Um blogue transposto da internet para o papel...
Figuras nacionais que mais admirou e/ou admira? E estrangeiras?
- No campo político, as personalidades estrangeiras que mais me marcaram foram John Kennedy, Mandela, Trudeau (o pai do atual). Mais recentemente, Hillary Clinton... Portugueses, os que conheci de perto e de que já falei. Fora da política, onde é mais fácil encontrar grandes mulheres, Agustina, Amália, Natália Correia, Maria Barroso (que foi política também, mas não só). E as nossas feministas de novecentos, como Ana de Castro Osório, Maria Archer, Maria Lamas e as "sufragettes" inglesas, lideradas por Mrs Pankhurst (que nunca conseguiu ser eleita deputada, mas tem a sua estátua em frente ao Parlamento mais famoso da Europa).
Quais são os livros preferidos? E os autores que mais aprecia ou quem melhor se identifica?
- Tenho muita dificuldade em responder a esta questão, porque não há, para mim, uma predileção por um género literário que exclua os outros... Gosto de biografias e autobiografias, políticas ou não (li há pouco a de Woody Allen, vou começar a de Obama, sobre a sua presidência, e tenho em lista de espera a de Virginia Woolf, 1927/41). Também sou fã de livros policiais - Agatha Christie, Ruth Rendell, Sara Paretsky e outras -falo, assim, no feminino, porque é uma área hoje, surpreendentemente, dominada pelas mulheres... E de romancistas, os do passado, mais Eça do que Camilo, mais Marmelo e Silva do que Vergílio Ferreira, e os mais recentes, como Mário Cláudio ou a incomparável Agustina. Brasileiros como Luís Montello e Érico Veríssimo, e os da língua inglesa, a minha língua estrangeira favorita. São tantos! Ultimamente, ando entretida a ler Alice Munro, Julian Barnes, Philip Roth... Desde que abriu a Bertrand em Espinho, tenho os cantos da casa cheia de livros novos, em fila, à espera de vez... Comprar também é um prazer!
E quais são os filmes da sua vida? E ainda vai ao cinema, mas sem pipocas…
- A minha geração, como a dos meus pais e avós, ainda tem a paixão pelo cinema (e sem pipocas ...). Sou, aqui em Espinho, uma das pessoas mais assíduas nas sessões da tarde do Multimeios. Para dar uma resposta breve, direi que vejo tudo, só evito ficção científica e terror. Tenho muitos"filmes da minha vida"... de Orson Welles, de Ingmar Bergman, da "Nouvelle Vague" da minha juventude, Godard, Truffaut, Agnès Varda... Italianos, também. Revi agora, há pouco, os de Fellini na televisão. Mas o meu género preferido é, definitivamente, a comédia e o realizador Woody Allen...
Quem é ou foi (ou é) o melhor treinador e o melhor futebolista?
- Esta é uma pergunta de resposta mais fácil no que respeita a treinador do que a jogadores. Treinador: Yustrich! Venceu o primeiro campeonato da minha vida, em 1956, contra tudo e contra todos, e ficou para sempre no coração dos portistas dessa geração. Eu estava nas Antas, com o meu Pai (éramos ambos sócios), no jogo final e decisivo contra a Académica, que "pôs o autocarro em frente da baliza"! Tinha quase 14 anos... Sofri muitos desgostos, na fase anterior a Pinto da Costa.
Jogadores fantásticos, são tantos! Se tenho de indicar um , só pode ser o DECO, o nosso Maradona. Genial
Maria Manuela Aguiar
ANA DEL RIO Expo em Espinho
A inauguração da exposição individual de Ana del Rio nas galerias do FACE – o Fórum de Arte e Cultura de Espinho – é um acontecimento maior na vida de Espinho, no ano em que se comemora o cinquentenário da sua elevação a cidade. A Artista, com uma seletiva retrospetiva do seu percurso de mais de três décadas pelo universo encantatório da representação pictórica, vem dar-nos a visão evolutiva da sua obra tão esplendidamente multifacetada e, em simultâneo, enriquecer o registo cultural, o percurso do próprio FACE.
As galerias Amadeo Sousa Cardozo são, pela dimensão e harmonia arquitetónica dos seus dois longos e luminosos salões geminados, um dos mais convidativos espaços de exposição de Artes plásticas no nosso País. São, também, um dos mais prestigiados por grandes nomes nacionais e internacionais, que, como Ana del Rio, agora, com a marca do seu talento, fizeram e fazem a História ainda breve, mas já extraordinária, de uma instituição jovem. Uma história que pude acompanhar de perto, quase desde o início e, por isso, tanto me regozijo com mais este passo na sua ascendente caminhada cultural, como com a presença de uma artista tão querida e admirada pela força emotiva que, invariavelmente, emerge no seu trabalho, e por uma incansável procura de transcendência de limites, inerente ao seu inconformismo, carisma, vivacidade. Na tela, como na vida quotidiana, fala a Mulher, a cidadã, a feminista, a militante de causas.
Esperava, há muito, este momento, que é, para mim, o do retorno da pintora ao local onde a conheci, durante a 1ª Bienal de Mulheres D’Artes, realização inédita em Portugal, ao que cremos, na Europa, com que FACE escreveu um capítulo original nos anais do feminismo, no domínio particularmente relevante da sua expressão cultural e cívica. Ana del Rio foi, de entre essas pioneiras, uma das que mais me impressionou. Guardo na memória as imagens de três telas figurando mulheres que encarnavam, na perfeição, o espírito daquele projeto - personagens irradiantes de feminilidade e força anímica, que, ali, num movimento assertivo e gracioso, tomavam conta do lugar que lhes era destinado, humanizando-o, (ou seja, feminizando-o). Uma mensagem subtil e promissora, a significar que, no nosso tempo, a pintura pode converter-se numa outra maneira de dar às mulheres o reconhecimento que merecem, na afirmação pela Arte.
O FACE tem dado abundantes provas de compreensão do fenómeno e de vontade de contribuir para o aumento da participação feminina num campo onde, como nos demais, a igualdade de género não está ainda adquirida. Nas exposições coletivas, nas sucessivas Bienais, (atualmente abertas aos dois sexos), a paridade tem sido sempre conseguida. Não, porém, nas exposições individuais, onde escasseiam as mulheres com currículos e com telas à dimensão da (quase) desmesura das Galerias… Ana del Rio é uma das mais esperançosas e inspiradoras exceções a essa regra ou cânone misógino que atravessou os séculos e vai cedendo, tão devagar e, porventura, mais na aparência do que na realidade.
E, assim, o mundo de Ana del Rio se apropria e se expande na vastidão deste espaço, reconfigurando-o pela beleza estética e pela mensagem humanista. O mundo de Ana del Rio! De tudo o que ela ama e de tudo o que ela nos quer contar, no traço em que dá vida a flores e a pássaros, ´natureza, ao perfil das cidades, a rostos e a vultos que sobressaem ou quase se escondem em explosões de luz e de cor - ou em que a sua mão nos conduz à esfera onírica e enigmática do abstracionismo.
Um mundo, aqui e agora, partilhado connosco, para livremente recriarmos e revivermos nas nossas próprias emoções.
Maria Manuela Aguiar
MARIA ARCHER - UMA LEITURA FEMINISTA
MARIA ARCHER – UMA LEITURA FEMINISTA
1 –Maria Archer, nascida no último ano do século XIX, era ainda criança, quando o movimento feminista e republicano dava os primeiros passos, e uma jovem, ausente nas terras do império, quando o seu ímpeto esmorecia, e o cerco da ditadura apressava a sua desagregação. Contudo, estava destinada a continuar, solitária e audaciosamente, esse legado de luta contra o obscurantismo, que condenava a metade feminina à incultura, ao enclausuramento doméstico, à subserviência. Ela própria cumpriu a utopia feminista da “libertação da mulher” pela Cultura e pela autonomia económica, ao fazer da escrita profissão e instrumento de denúncia da situação das suas contemporâneas numa sociedade anacrónica, desumanizada, misógina. Feminista assumida e praticante, ousou romper com o conservadorismo da família aristocrática, por fim a um casamento infeliz, e viver, sobre si, do jornalismo e das Letras - mulher livre num país sem liberdade!
Em Portugal, como na Suécia, a atividade literária e jornalística foi um meio privilegiado de combate contra os preconceitos e desigualdades de sexo. Entre nós, teve a pré-história em oitocentos, a fulgurante afirmação coletiva na 1ª República, e um inesperado apogeu com Maria Archer durante o salazarismo.
Ninguém melhor do que ela soube recriar, de uma forma realista, crua e eficaz, a atmosfera social e política que moldava o mundo segregado das mulheres. Como dizia Artur Portela, "a sua pena parece por vezes uma metralhadora de fogo rasante”.
Ninguém melhor do que ela escrutinou e denunciou a violência velada dos brandos costumes da sociedade portuguesa, do relacionamento de sexo ou de classe, homens e mulheres imersos na nebulosa de estereótipos, dogmas e falso moralismo, de prepotência e submissão...
Ninguém melhor do que ela desconstruiu a imagem da "fada do lar", laboriosamente erguida sobre a falácia da harmonia de desiguais (em que, noutro plano, se baseava a ideologia do regime corporativo), e dos apregoados bons costumes, assentes no autoritarismo e subjugação ao "pater familias" no pequeno universo caseiro, e ao ditador no círculo alargado do País.
O rigor e a qualidade literária destes retratos de mulheres (e da sua circunstância), a densidade humana das personagens, potenciavam a força subversiva dos romances e contos de Maria Archer, e desencadearam o furor censório do regime…De todas as mulheres resistentes que a ditadura perseguiu, nenhuma pagou um preço tão alto como esta Maria, verdadeira precursora das “três Marias” da década de setenta. É Maria Teresa Horta quem no-lo diz, em 2001, no prefácio da reedição de “Ela é apenas Mulher”: “Com Maria Archer, a tática foi diferente: Apagaram-.na […] arrancaram o seu nome, pura e simplesmente, da História da Literatura Contemporânea Portuguesa”.
Acusação de misoginia, que visando o regime, não deixa de abranger todos quantos não perdoavam à romancista o ter ultrapassado os limites que a própria História Literária, dominada por homens, reservava às mulheres escritoras…
Maria Archer foi forçada a partir para um longo exílio em São Paulo, de onde retornaria, envelhecida e doente, para morrer, em Lisboa, no esquecimento geral, sem, todavia, ter perdido a esperança na “justiça do tempo”.
Esse tempo chegou! E a justiça fez-se, primeiramente, pela via de uma leitura feminista da sua obra, que em nada prejudicou a descoberta da pura qualidade literária da sua escrita, aberta a uma pluralidade de abordagens.
No ano do seu 125º aniversário, a segunda vida de Maria Archer desabrocha em comemorações que se cruzam com as do cinquentenário da revolução de Abril. Ela emerge, agora, como figura ímpar para contar a história de um passado opressivo, pautado por regras viciadas de jogo social e político – jogo que ela desvendou e se recusou a jogar. Dessa época nos dá, nas palavras de Maria Teresa Horta, “o único retrato autêntico, de corpo inteiro”, e, na nossa, ressurge como mulher de todos os tempos. De facto, escreveu história do feminismo com a própria vida: o seu exemplo vale para sempre e a história é interminável.
Manuela Aguiar
in JORNAL DE LETRAS, 27 de dezembro de 2023
HISTÓRIA E "ESTÓRIAS" DESTE CINQUENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO
HISTÓRIA E "ESTÓRIAS" DESTE CINQUENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO
1 - OS RURAIS DE ESPINHO
Muito coisa aconteceu, ao longo de toda a semana do cinquentenário do 25 de abril de 1974. Nos "dias antes", correram as "estórias", e o contista-mór foi o Senhor Presidente da República, com declarações insólitas, a mostrar a força das palavras e o perigo de a usar mal. Nada foi mais comentado no espaço público ou privado, do que o indiscreto convívio do PR com jornalistas da imprensa estrangeira, onde se permitiu traçar, nada mais nada menos, do que o retrato psicomotor dos últimos Primeiros-Ministros, o anterior e o atual, ambos caracterizados como "lentos"... Conhecida a invulgar agilidade mental de um e do outro, e, pelo menos no caso de Luís Montenegro, também a física, (tratando-se de um praticante de várias modalidades desportivas), a adjetivação deixou o país boquiaberto de espanto, sobretudo pelo facto de conotar a lentidão de Costa com a sua ancestralidade oriental, e a de Montenegro com origens rurais!
O estereótipo racializado do "oriental" é de tal forma desajustado e absurdo, que nem merece comentário - apenas um lamento... Já a atribuída ruralidade espinhense do nosso conterrâneo pode bem ser objeto de interpretação política, muito política, sobretudo, dentro do PSD.
O PPD, partido interclassista, nasceu no centro esquerda, com as suas alas esquerda e direita, e as suas assimetrias regionais, entre as quais avultava uma: a linha de separação do cosmopolitismo lisboeta e do provincianismo do resto do País, considerado, do litoral ao interior, "país profundo" (e, por isso, Espinho, cidade marítima e turística, a dois passos do Porto, se situa, nas profundezas do mapa marcelista). "Rural" é, pois, um simpático sinónimo de “provinciano”. Nós, os nortenhos, somos todos vistos assim pelos lisboetas. Mais precisamente, pelos “snobes” da linha Lisboa-Cascais. Não levamos a mal. Estamos, historicamente, bem acompanhados – pelo próprio Dr. Sá Carneiro, por Eurico de Melo e os demais militantes do PPD/PSD, fora daquele seleto círculo geográfico. Veja-se como o Prof. Marcelo fez questão de lembrar o berço rústico do partido laranja… No entanto, o termo não era de uso corrente dentro do partido até aos tempos da sucessão de Francisco Sá Carneiro, em 1981. As clivagens, desde o início existentes, acentuaram-se, então, entre os fiéis do novo Primeiro-Ministro Francisco Balsemão (oriundo da mais pura linhagem Lisboa/Cascais) e os “críticos” (que haviam sido mais próximos de Sá Carneiro, caso do Eng.º Eurico de Melo e do Prof. Cavaco Silva). O outro nome dos “críticos” passou a ser , precisamente, o de “rurais do Norte”, pouco importando que Cavaco, Cabrita Neto, e muitos mais, fossem sulistas. Eu própria, com imenso orgulho, me afirmei, nesse sentido, vezes sem conta, “rural do Norte”. Luís Montenegro, na altura, ainda não tinha idade para fazer parte dessa ala, mas é benvindo agora!
Felizmente, o PR Marcelo disse mais. Disse, por exemplo, que o novo Primeiro-Ministro o “surpreende” com os seus “improvisos” – ou seja, com decisões e escolhas, sobre as quais consegue manter absoluto secretismo até à hora exata. Uma maçada para o PR , que vê reduzida a margem de interferência na governação e já não pode dar notícias no lugar do porta-voz do Executivo. Daí a sua irritação... A análise lúdico-política de Ricardo Araújo Pereira vai neste sentido, e eu assino por baixo. A rir, se dizem verdades...
2 – A REPARAÇÃO DE DANOS...
Outra inconfidência do PR, que causou ainda maior brado, numa linha definitivamente "woke" foi sobre a reparação dos danos do colonialismo… A meu ver, com a sua tirada mediática, nas vésperas do dia 25, vai o Prof. Marcelo fazer mais "estória" do que "História", por ter errado no “quando”, e por não explicitar o “como” da dita reparação. Ora o “como” é o que mais interessa...
Para mim, "reparar" é cooperar, em diálogo, em vivência, continuando interações em curso, no clima de entendimento que tem imperado, nas últimas décadas. Ao contrário dos extremistas de direita e de outros nacionalistas de variada extração, sou uma crente no “ecumenismo lusófono”, num projeto coletivo de reencontro de povos que pode chamar-se CPLP, ou outra coisa qualquer. Não esqueçamos o passado, mas olhemos, sobretudo o futuro, os jovens! Todas as formas de cooperação existentes, o acolhimento de estudantes, a abertura à imigração, a criação de estatutos de cidadania (do qual o velho e renovado "Tratado de Igualdade de Direitos e Deveres entre Portugueses e Brasileiros" é já um inigualável paradigma), a restituição da nacionalidade (à semelhança da concedido a descendentes de judeus portugueses) são dados positivos no balanço do cinquentenário da Revolução de 1974. Há que prosseguir no domínio da cooperação económica, cultural e científica, (partilha de arquivos, de obras de arte, de saberes) ou qualquer outra. Estamos no bom caminho, há que avançar.
3 - UM DIA PARA A HISTÓRIA: O 25 DE ABRIL
Nestas comemorações do 25 de Abril, foi imenso o contraste entre as esplendorosas manifestações populares, e os monótonos rituais de iniciativa estatal, os do Parlamento, assim como a discreta sessão dos ilustres convidados do PR no CCB - os Chefes de Estados lusófonos, herdeiros da mesma revolução que trouxe a Portugal a liberdade e a democracia. Foi uma espécie de réplica da comemoração parlamentar, com um rateio de tempos - uns escassos 10 minutos - para cada um dos oradores, tendo o anfitrião feito a mais pequena e pobre intervenção da sua vida. Que grande oportunidade perdida de marcar a data, com algo de grandioso, festivo, portador de ideias e propostas de colaboração mútua, tendo no centro a própria CPLP!
Era o momento de fazer o balanço da sua ação, de mostrar as suas potencialidades, de apelar à participação dos migrantes de toda a lusofonia, que bem merecem um estatuto jurídico de fraternidade realmente praticado. O evento merecia outro eco nos "media", outro reconhecimento público e popular. Que pena, tão significativa presença do mundo lusófono, representado a nível presidencial, nas comemorações ter sido quase ignorada! Que pena não termos visto mais imigração a descer connosco a Avenida da Liberdade.
Em compensação, que fantástico foi ver nessa gigantesca manifestação popular, espontânea, exuberante, um sinal da interiorização coletiva dos valores democráticos! De todos, e de tantos jovens, tantas mulheres. Mulheres, sobretudo mulheres, que tinham razões de sobra para isso: a revolução libertou todo um povo, mas libertou muito mais os que tinham menos direitos. E elas, antes de Abril, na chamada” família tradicional”, sofriam de uma “capitis diminutio”, com um estatuto de eterna menoridade (numa expressão mais forte, de verdadeira escravatura). A mulher devia obediência ao marido, como os filhos ao pai - não á mãe, porque era ele que detinha o poder parental, o poder de administrar os bens do casal, incluindo os bens próprios da mulher, o poder de decidir tudo, o domicílio conjugal, onde viver e como viver... De algum modo, a mulher casada, sendo súbdita do homem, era sua “colónia”. No 25 de Abril, também se deu a “descolonização” da mulher... E essa foi a nossa única descolonização exemplar.
Com que orgulho, nós, as mais velhas, olhamos o Portugal onde as raparigas são 60% dos licenciados do País, onde as jovens acedem, com mais ou menos dificuldade, e brilham, em profissões que, até 1974, lhes eram vedadas. E, embora mais vagarosamente, vão ascendendo na política a todos os níveis, na vida partidária, reduto onde os partidos do poder ainda têm rosto masculino.
Como as gaivotas metafóricas do líder do IL, no seu discurso em São Bento, as mulheres não querem voltar para trás… 25 de Abril sempre!
in "DEFESA DE ESPINHO", 2 de maio de 2024
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