quinta-feira, 30 de maio de 2024

AS MULHERES NOS TEMPOS DO “ESTADO NOVO” in Defesa de Espinho (maio 2024)

AS MULHERES NOS TEMPOS DO “ESTADO NOVO” 1 – “Antes do 25 de Abril era proibido” de António Costa Santos Nas diversas iniciativas integradas nas comemorações da Revolução de 1974 em que participei, entre março e maio, numa data tão especial como é a do seu cinquentenário, a maioria colocava o enfoque na situação das mulheres portuguesas. No antes e no depois. Duas metades de um século. Não terá sido por acaso – é um ângulo ideal para compreender o espírito do “Estado Novo”. Do corporativismo, enquanto doutrina totalitária e enquanto movimento anti personalista, que combatia, por igual, o comunismo e o liberalismo, condenando radicalmente o individualismo. A sua primeira principal vítima sacrificial seria a mulher - a mulher, em geral, e a mulher casada, em particular, porque a sua individualidade se fundia no núcleo familiar, e ficava sujeita à autoridade do marido, a quem, tal como os seus próprios filhos, devia obediência. Nessa unidade orgânica, como nas empresas, na sociedade, na política, os papéis eram definidos pelo Estado, que zelava pela sua rígida conservação. O homem detinha a chefia da família, como Salazar a chefia do Governo. Cada marido era um micro ditador doméstico, à imagem e semelhança do Grande Ditador nacional. Cabia-lhes interpretar e decidir o "bem comum" do seu agregado, mandar, censurar, proibir… Muitas das proibições legais de então, hoje, causam espanto ou fazem hoje rir. Para quem queira, percorrer, ludicamente, a lista de alguns dos mais incríveis tabus do salazarismo, recomenda-se o livro referido em epígrafe. Faltará, aqui e ali, rigor científico, em alguns casos, especificidades verdadeiras nos anos trinta, já não o eram nos anos sessenta ou setenta, por força da alteração de mentalidades e costumes… De qualquer modo, dá-nos uma narrativa bem conseguida e engraçada do que “era proibido”. Vejamos: as senhoras andarem nas ruas sozinhas; as mulheres entrarem na igreja de cabeça descoberta; as mulheres casadas viajarem para o estrangeiro sem autorização do marido (nem que fosse apenas a Badajoz, ou a Vigo, comprar doçarias); as mulheres saírem à noite sozinhas; minissaias nos liceus; biquínis nas praias; o matrimónio às mulheres em certas profissões, professoras, enfermeiras, hospedeiras de bordo, (salvo se conseguissem autorização do Governo!): as mulheres ingressarem em profissões, como a magistratura e a diplomacia, e, genericamente, ocuparem posições de chefia... Embora em menor número, também havia, evidentemente, ditames aplicáveis a ambos os sexos, entre os quais: beber coca-cola, jogar cartas nos comboios; dar beijos em público, ler certos livros, ver certos filmes, ouvir certos discos; usar isqueiro ou andar de bicicleta, sem prévia licença, assim como participar em “ajuntamentos de mais de três pessoas”. 2 – A cada um o seu lugar – a política feminina do Estado Novo” de Irene Flunser Pimentel Este é um livro dirigido a um público muito diferente, uma obra de referência sobre o tema, um brilhante e premiado estudo académico, que nos elucida sobre o lugar que era alocado ás mulheres, na doutrina e nas leis da Ditadura, e que escalpeliza as estratégias que serviram os fins, acantonando o sexo feminino na esfera da domesticidade e bloqueando os canais de ascensão social e profissional, (segundo o sexo e a classe social), a começar pelo ensino e a acabar no afunilamento das oportunidades de trabalho e na discriminação salarial. O princípio da igualdade, consagrado na Constituição de 1933, exceciona, quanto às mulheres, as desigualdades justificadas pela sua “natureza” e pelo “interesse da família”. A “natureza” justificava a exclusão das mulheres no acesso às profissões mais prestigiadas, diplomacia, magistratura judicial, e quaisquer cargos de direção, assim como as assimetrias salariais, no professorado deliberadamente usadas para combater a crescente feminização do setor, que tanto afligia os Ministros da Educação, (alguns chegaram a impor “quotas” na entrada da profissão, a favor do sexo masculino!). Para pôr a mulher “no seu lugar”, o regime combateu o ensino misto, ensaiou a diferenciação dos currículos escolares, a desvalorização da escola feminina e a redução da escolaridade obrigatória. Em vão… As taxas de feminização do professorado iam em crescendo (no primário de 68%, em 1930, para 87%, em 1960, no liceal de 33% para a 56%, no mesmo período Ainda por cima, a taxa de feminização no acesso ao ensino seguia trajetória semelhante: no primário de 42%, em 1930, para 48,5 em 1960; no liceal (3º ciclo), de 33,2% para 50,1% - sendo superior a percentagem de aprovações: 53,2%, neste último ano. Quer isto dizer que as raparigas foram vencendo preconceitos, armadilhas e barreiras colocadas no caminho da sua formação académica e profissional, e, enquanto se mantivessem solteiras, tinham, ao menos teoricamente, o direito de dispor de si e decidir o seu destino. Com algumas limitações, como se viu, por exemplo, arriscando ser presas pela polícia se saíssem à noite sozinhas… Muito, muito pior era a situação das casadas, para quem o casamento era sinónimo de servidão. No altar, entregavam a sua liberdade, decaíam, nos termos da lei, para um estatuto de eterna menoridade, semelhante à dos seus próprios filhos, sobre os quais, como é óbvio, não podiam exercer o poder parental. Deviam obediência aos maridos, eram obrigadas a viver no domicílio conjugal por eles escolhido, e, se ousassem abandoná-lo, viam-se sujeitas a “depósito judicial de mulher casada”. Isto é, a detenção pelas autoridades policiais, seguida de “prisão domiciliária”. Careciam de autorização marital para tirar passaporte. Perdiam a capacidade de administrar os bens comuns e até os seus bens próprios. Tudo eram prerrogativas dos maridos, que podiam, ainda, proibi-las de exercer uma profissão, de publicarem um texto, violar a sua correspondência, e, em caso de adultério, assassina-las, sem consequência de maior (a pena era leve, um curto degredo de meses, a cumprir nas proximidades). Parece mentira, mas não é. Estatuto jurídico semelhante ainda hoje persiste, noutras geografias - no Irão, na Arábia Saudita, no Afeganistão talibã… Com uma pequena, mas relevante diferença: o desfasamento das leis com a realidade social portuguesa. Muitas esposas, não sendo juristas e tendo cônjuges amáveis e sensatos, nunca se terão sequer apercebido da sua “capitis diminutio”. 3 – “Ela é apenas mulher” de Maria Archer Contudo, a verdade é que, durante a ditadura, em todos os domínios e no conjunto, as portuguesas foram fortemente condicionadas nas suas escolhas de vida e ficaram aquém dos seus sonhos e reais possibilidades. Para as (e os) jovens de hoje é difícil imaginar as vivências do quotidiano, nos anos da ditadura, sobretudo nas primeiras décadas, mas facilmente encontram esse mundo nas páginas do grande mais famoso romance de Maria Archer, que acima referi. É um dos seus raros livros não esgotados, na reedição da Parceria A. M. Pereira, com prefácio de Maria Teresa Horta. Faço minhas as suas palavras quando diz que que Archer traçou na sua obra literária, “o único retrato autêntico de corpo inteiro” (da mulher portuguesa nessa época), Ninguém melhor do que Maria Archer soube recriar, de uma forma eficaz, crua e rigorosa, a atmosfera social e política que moldava, então, o círculo fechado das mulheres. Ninguém soube melhor escrutinar e denunciar a violência velada das leis arcaicas e dos brandos costumes da sociedade portuguesa, do relacionamento de sexo ou de classe, homens e mulheres imersos na nebulosa de estereótipos, dogmas e falso moralismo, de prepotência e sujeição... Ninguém melhor do que ela soube desconstruir a imagem da "fada do lar", com os seus dotes de observadora, de “quase etnóloga”, e com a força subversiva da escrita posta ao serviço de uma causa, que era a de infirmar o mito salazarista da inferioridade intelectual da Mulher… Aqui fica o convite à descoberta da tão injustamente esquecida Maria Archer, e da sua arte de recriar o reino distópico do "Estado Novo", derrubado em 1974. É uma forma especial de celebrarmos o cinquentenário da Revolução e, por feliz coincidência, também, o 125º aniversário desta extraordinária mulher e romancista, que escreveu história do feminismo com a sua própria vida.

sexta-feira, 3 de maio de 2024

ESPINHO CIDADE - Um olhar retrospetivo e prospetivo in Defesa de Espinho (abril 2024)

ESPINHO CIDADE - Um olhar retrospetivo e prospetivo 1 - A celebração dos 50 anos da elevação de Espinho a cidade, a 16 de junho, foi uma festa bonita, que começou numa sessão de homenagem a 50 espinhenses, passou, entre outros eventos, pela inauguração da sede da Associação Mulher Migrante no FACE (mais uma coletividade cuja sede "imigrou" para Espinho!) e terminou com o magnífico concerto de Xutos e Pontapés, a encher, por completo, o espaço que vai do Museu até ao mar.. Numa noite de verdadeiro verão, a música intemporal uniu todas as gerações. Inesquecível! Ideia especialmente feliz foi convidar os 50 cidadãos distinguidos a responder a um questionário sobre as suas memórias deste meio século e o prognóstico em relação ao seguinte, que agora se inicia. As respostas estão agora expostas, sob a forma de cartazes, ao longo da rua 8, entre a 23 e a 15, onde, uns apenas metros abaixo, se situava a "Avenida", percorrido por gente bem vestida e bem disposta, que se entregava a uma forma singular de conviver, passeando devagar, entre palmeiras e esplanadas. Refiz, ontem, essa curta trilha, entretendo-me a analisar, um a um, os cartazes, tão bem concebidos, na cor e no grafismo e, por isso, fáceis de ler. Cada um nos dá um retrato individual e subjetivo de vivências muito diversas, que, multiplicadas por cinquenta, se transformam num grande fresco coletivo, e contam, na primeira pessoa, a história da cidade e da gente, dos seus afetos e dos seus sonhos. 2 - Na minha leitura abrangente, embora apressada, procurei, sobretudo, as recorrências, as afinidades de lembranças e o balanço entre o que se perdeu, e já só existe na memória, e o que perdura e progride, e é esperança e desafio. Há subjacente ao conjunto de testemunhos, um imenso orgulho na terra, nas facetas que a tornam única - a cidade/comunidade, a cidade moderna, cosmopolita, elegante, geométrica e quase plana, a toponímia (de inspiração nova iorquina?), a dimensão, que permite ter tudo ao alcance de um passeio a pé, em menos de 15 minutos, a praia, a marginal, o mar, o pôr do sol... Há frases que o sintetizam lapidarmente: "Espinho tem a beleza do mar". "Toda a vida o mar foi meu companheiro"... As referências à identidade marítima de Espinho são inúmeras: a pesca artesanal, os barcos, a arte xávega, o peixe, rei na gastronomia, "as ondas do mar, mar de abrasão", a piscina, outro exemplo de pioneirismo, nascida como a maior da península ibérica. Piscina cujo muro, todos os anos a força invernosa do oceano destruía - isso antes da construção dos esporões, quando as invasões do mar em fúria levavam as casas, a terra, o areal... A feira semanal, considerada a maior de quantas há no país, é também destacada em vários depoimentos, enquanto outros traços importantes do antigo Espinho se recuperam em menções dispersas: o primeiro cinema, o rinque de patinagem, o aeródromo, o campo de golfe (pioneiro na Península), a Fotografia Evaristo, os girassóis ao longo da Avenida 8, as festas do Rio Largo, as reuniões da tertúlia dos médicos no Verde Gaio, as cantigas ao desafio na cave do Palácio, o Café Moderno, o Nosso Café, os bailes da piscina, os do salão dos bombeiros e os do casino, (sem esquecer, igualmente no casino, as "matinés"!), as festas de Nossa Senhora da Ajuda, com a feira das cebolas, a ponte com escadas de madeira, sobre o caminho de ferro, junto à estação, os quiosques, os comboios a correrem, no dia a dia, paralelamente à movida da Avenida 8... A Avenida é, justamente, destinatária da imensa maioria das rememorações nostálgicas, a unir todas as gerações que ainda a viveram plenamente. Há os que a elevam a ex-libris ou "símbolo da terra", ou a elegem como o lugar "onde todo o Espinho se encontrava nos diferentes cafés" (o Espinho/ comunidade, o Espinho/tertúlia), ou a descrevem, com as suas palmeiras, as esplanadas dos cafés e bares, a música de vinil o dia inteiro. E há os que lhe dão um toque mais pitoresco: "andava toda a gente a mostrar os vestidos"; "andar para a frente e para trás, era uma mostra das meninas, os pais sentavam-se nas esplanadas"; "os nossos vestidos de decote em barco e godés, a dar a volta aos olhos dos rapazes".... Numa síntese perfeita em que todos os demais decerto se revêem, afirma um dos 50: "Nunca encontrei no mundo um lugar tão aprazível". A segunda posição na lista da nossa saudade vai para o Teatro São Pedro: "a perda do Teatro São Pedro, uma obra de arquitetura notável"; o "magnífico Teatro São Pedro". Lembram-se dos filmes, do ritual festivo na companhia das famílias ("íamos todos ao cinema São Pedro"), ou dos amigos ("íamos lá ver umas cowboyadas"). Alguns dos mais velhos não resistem a desabafar o seu sentimento de perda: "Quando éramos jovens, Espinho tinha muita vida. Agora as coisas estão diferentes"; "Sou do tempo da música na Avenida e na esplanada"; "É com saudades que lembro a linha do comboio, a senhora da passagem de nível, que tão cuidadosamente olhava pela segurança de todos"; "a Senhora da Ajuda era um mar de gente"... E o enterramento da linha, sendo matéria diretamente pouco comentada, não deixa ninguém indiferente: para uns, significou o fim de uma era dourada, para outros um marco de crescimento. 3 - O Espinho do presente é saudado por quantos não encontram rival para a cidade onde vivem! Orgulham-se da sua tradição de modernidade, com novos e audaciosos equipamentos, como o Multimeios, o Museu, a Biblioteca, e com a esplêndida marginal, assim como dos clubes, do dinâmico associativismo, do nível das escolas, da Academia de Música, dos festivais... O futuro é sonhado por quase todos com progressos que não descaracterizem os traços identitários. O acento tónico é posto, naturalmente, no turismo. O que não é contraditório, já que Espinho sempre soube compatibilizar o acolhimento dos visitantes com uma incomparável qualidade de vida, enquanto terra de residência, "cidade para as pessoas". Muitos são os que apostam na evolução urbana com respeito pelo ambiente, manifestando preocupações ecológicas, assim como sociais (inclusão, intergeracionalidade, mais emprego, habitação mais acessível). Para muitos, o amanhã de Espinho passa pela atração dos jovens, pelo estilo de vida saudável, pelo desporto (os desportos de sempre, como o voleibol, o hóquei em patins, a ginástica, e os novos, como o surf), pela renovação do tecido empresarial, pela Cultura. A vertente cultural destaca-se, claramente, nos prognósticos de expansão e prestígio da cidade futura! Estas são as minhas primeiras impressões sobre a inédita exposição ao ar livre, com a qual Espinho, através da Câmara Municipal veio, uma vez mais, dar provas da imaginação e criatividade, que fazem parte da sua matriz. .

UM JORNAL DE CAUSAS - O LUSO PRESSE

UM JORNAL DE CAUSAS O LUSO PRESSE na história da emigração feminina e da igualdade de género 1 - A história da metade feminina da emigração portuguesa está largamente por fazer. Vários fatores terão contribuído para o descaso no estudo da sua especificidade, por parte de investigadores, de políticos, de líderes das próprias comunidades do estrangeiro, sendo um deles a reconhecida predominância masculina, ao longo de séculos de incessante êxodo migratório. O Estado abria fronteiras à partida de homens sós, que abandonava à sua sorte. De facto, até meados do século XX, as únicas políticas, neste domínio, foram as medidas de controle dos fluxos de saída, no sentido de os favorecer ou restringir, conforme o interesse público conjuntural. Às mulheres era, com raras exceções, proibido abandonar o país, alegadamente, para sua própria proteção. Neste quadro global, a emigração clandestina constituiu, sempre, uma significativa parte do todo. E, no que respeita a mulheres, aumentou, enormemente, a partir do início do século passado, até atingir a quase paridade, no nosso tempo. Contudo, mesmo em movimentos recentes, ao menos na emigração menos qualificada e ainda maioritária, os homens, regra geral, partem primeiro, as mulheres, os filhos reúnem-se com eles, ao abrigo do direito ao reagrupamento familiar - o que reforça a imagem de uma dependência e subalternidade feminina, muito desfasada da realidade. De facto, nas novas sociedades, as mulheres acedem, quase sempre, ao mercado de trabalho, conquistam a sua autonomia económica, e contribuem, de forma decisiva, para o orçamento, o bem-estar e a integração do todo familiar. Em suma, sucesso do projeto migratório! Por outro lado, são, também, as grandes construtoras das comunidades portuguesas, em sentido orgânico, ou seja, enquanto espaço extraterritorial de vivência da língua e dos costumes. Um fenómeno de extra-territorialidade nascido da capacidade de entreajuda e da vontade coletiva de preservação da língua, e de formas próprias de convivialidade. Os portugueses uniram-se, espontaneamente, um pouco por todo o lado, num poderoso movimento associativo, com que se substituíram, setor a setor, do social ao cultural, à ausência do Governos nacionais, distantes e indiferentes. Assim criaram um universo coeso e solidário, que é pura sociedade civil. A Nação sem Estado! Porém, nessas admiráveis comunidades, ou pequenas “repúblicas”, de que é feito o Portugal no estrangeiro, as mulheres, apesar da crucial importância da sua presença e do seu trabalho, deparam, ainda hoje, com enormes obstáculos à participação igualitária, à ascensão ao dirigismo – obstáculos, em muito casos superiores aos que encontram na sociedade local. O tema da igualdade de género na emigração entrou, embora tardiamente, na agenda dos Governos nacionais, conscientes de que se impõe a conjugação de esforços com as instituições das próprias comunidades, para mobilizar as pessoas, individualmente, mulheres e homens, em particular as e os jovens. Num quadro em que a sociedade civil é a força dominante, como motivá-la para esse projeto humanista, regenerador e transformador do tecido comunitário? Uma das respostas mais inspiradoras tem sido dada, a partir de Montreal, pelo Luso Presse, que há mais de duas décadas, faz história, através de conferências, colóquios, debates, dando visibilidade à obra realizada por mulheres migrantes, em todos os domínios, a fim de abrir horizontes a muitas outras. A nosso ver, esta caminhada pela igualdade, singular e pioneira iniciativa de Norberto Aguiar, à frente do Luso Presse, merece reflexão, público reconhecimento e apoio, porque é "serviço público" e deve continuar até que seja transposta a última meta. O que nos propomos, na nossa intervenção, é dialogar sobre meios e alianças para prosseguir o projeto e atingir metas. Com o seu paradigma de “congressismo” pela igualdade, que antecedeu, em alguns anos, as primeiras políticas públicas neste domínio, e centrado em estratégia, semelhante, o Luso Presse fez História. Mas isso não basta: ainda é preciso fazer futuro, ser mais do que exemplo de escola, ser sempre exemplo vivo.

quinta-feira, 2 de maio de 2024

ANA DEL RIO Expo em Espinho

A inauguração da exposição individual de Ana del Rio nas galerias do FACE – o Fórum de Arte e Cultura de Espinho – é um acontecimento maior na vida de Espinho, no ano em que se comemora o cinquentenário da sua elevação a cidade. A Artista, com uma seletiva retrospetiva do seu percurso de mais de três décadas pelo universo encantatório da representação pictórica, vem dar-nos a visão evolutiva da sua obra tão esplendidamente multifacetada e, em simultâneo, enriquecer o registo cultural, o percurso do próprio FACE. As galerias Amadeo Sousa Cardozo são, pela dimensão e harmonia arquitetónica dos seus dois longos e luminosos salões geminados, um dos mais convidativos espaços de exposição de Artes plásticas no nosso País. São, também, um dos mais prestigiados por grandes nomes nacionais e internacionais, que, como Ana del Rio, agora, com a marca do seu talento, fizeram e fazem a História ainda breve, mas já extraordinária, de uma instituição jovem. Uma história que pude acompanhar de perto, quase desde o início e, por isso, tanto me regozijo com mais este passo na sua ascendente caminhada cultural, como com a presença de uma artista tão querida e admirada pela força emotiva que, invariavelmente, emerge no seu trabalho, e por uma incansável procura de transcendência de limites, inerente ao seu inconformismo, carisma, vivacidade. Na tela, como na vida quotidiana, fala a Mulher, a cidadã, a feminista, a militante de causas. Esperava, há muito, este momento, que é, para mim, o do retorno da pintora ao local onde a conheci, durante a 1ª Bienal de Mulheres D’Artes, realização inédita em Portugal, ao que cremos, na Europa, com que FACE escreveu um capítulo original nos anais do feminismo, no domínio particularmente relevante da sua expressão cultural e cívica. Ana del Rio foi, de entre essas pioneiras, uma das que mais me impressionou. Guardo na memória as imagens de três telas figurando mulheres que encarnavam, na perfeição, o espírito daquele projeto - personagens irradiantes de feminilidade e força anímica, que, ali, num movimento assertivo e gracioso, tomavam conta do lugar que lhes era destinado, humanizando-o, (ou seja, feminizando-o). Uma mensagem subtil e promissora, a significar que, no nosso tempo, a pintura pode converter-se numa outra maneira de dar às mulheres o reconhecimento que merecem, na afirmação pela Arte. O FACE tem dado abundantes provas de compreensão do fenómeno e de vontade de contribuir para o aumento da participação feminina num campo onde, como nos demais, a igualdade de género não está ainda adquirida. Nas exposições coletivas, nas sucessivas Bienais, (atualmente abertas aos dois sexos), a paridade tem sido sempre conseguida. Não, porém, nas exposições individuais, onde escasseiam as mulheres com currículos e com telas à dimensão da (quase) desmesura das Galerias… Ana del Rio é uma das mais esperançosas e inspiradoras exceções a essa regra ou cânone misógino que atravessou os séculos e vai cedendo, tão devagar e, porventura, mais na aparência do que na realidade. E, assim, o mundo de Ana del Rio se apropria e se expande na vastidão deste espaço, reconfigurando-o pela beleza estética e pela mensagem humanista. O mundo de Ana del Rio! De tudo o que ela ama e de tudo o que ela nos quer contar, no traço em que dá vida a flores e a pássaros, ´natureza, ao perfil das cidades, a rostos e a vultos que sobressaem ou quase se escondem em explosões de luz e de cor - ou em que a sua mão nos conduz à esfera onírica e enigmática do abstracionismo. Um mundo, aqui e agora, partilhado connosco, para livremente recriarmos e revivermos nas nossas próprias emoções. Maria Manuela Aguiar

MARIA ARCHER - UMA LEITURA FEMINISTA in Jornal de Letras

MARIA ARCHER – UMA LEITURA FEMINISTA 1 –Maria Archer, nascida no último ano do século XIX, era ainda criança, quando o movimento feminista e republicano dava os primeiros passos, e uma jovem, ausente nas terras do império, quando o seu ímpeto esmorecia, e o cerco da ditadura apressava a sua desagregação. Contudo, estava destinada a continuar, solitária e audaciosamente, esse legado de luta contra o obscurantismo, que condenava a metade feminina à incultura, ao enclausuramento doméstico, à subserviência. Ela própria cumpriu a utopia feminista da “libertação da mulher” pela Cultura e pela autonomia económica, ao fazer da escrita profissão e instrumento de denúncia da situação das suas contemporâneas numa sociedade anacrónica, desumanizada, misógina. Feminista assumida e praticante, ousou romper com o conservadorismo da família aristocrática, por fim a um casamento infeliz, e viver, sobre si, do jornalismo e das Letras - mulher livre num país sem liberdade! Em Portugal, como na Suécia, a atividade literária e jornalística foi um meio privilegiado de combate contra os preconceitos e desigualdades de sexo. Entre nós, teve a pré-história em oitocentos, a fulgurante afirmação coletiva na 1ª República, e um inesperado apogeu com Maria Archer durante o salazarismo. Ninguém melhor do que ela soube recriar, de uma forma realista, crua e eficaz, a atmosfera social e política que moldava o mundo segregado das mulheres. Como dizia Artur Portela, "a sua pena parece por vezes uma metralhadora de fogo rasante”. Ninguém melhor do que ela escrutinou e denunciou a violência velada dos brandos costumes da sociedade portuguesa, do relacionamento de sexo ou de classe, homens e mulheres imersos na nebulosa de estereótipos, dogmas e falso moralismo, de prepotência e submissão... Ninguém melhor do que ela desconstruiu a imagem da "fada do lar", laboriosamente erguida sobre a falácia da harmonia de desiguais (em que, noutro plano, se baseava a ideologia do regime corporativo), e dos apregoados bons costumes, assentes no autoritarismo e subjugação ao "pater familias" no pequeno universo caseiro, e ao ditador no círculo alargado do País. O rigor e a qualidade literária destes retratos de mulheres (e da sua circunstância), a densidade humana das personagens, potenciavam a força subversiva dos romances e contos de Maria Archer, e desencadearam o furor censório do regime…De todas as mulheres resistentes que a ditadura perseguiu, nenhuma pagou um preço tão alto como esta Maria, verdadeira precursora das “três Marias” da década de setenta. É Maria Teresa Horta quem no-lo diz, em 2001, no prefácio da reedição de “Ela é apenas Mulher”: “Com Maria Archer, a tática foi diferente: Apagaram-.na […] arrancaram o seu nome, pura e simplesmente, da História da Literatura Contemporânea Portuguesa”. Acusação de misoginia, que visando o regime, não deixa de abranger todos quantos não perdoavam à romancista o ter ultrapassado os limites que a própria História Literária, dominada por homens, reservava às mulheres escritoras… Maria Archer foi forçada a partir para um longo exílio em São Paulo, de onde retornaria, envelhecida e doente, para morrer, em Lisboa, no esquecimento geral, sem, todavia, ter perdido a esperança na “justiça do tempo”. Esse tempo chegou! E a justiça fez-se, primeiramente, pela via de uma leitura feminista da sua obra, que em nada prejudicou a descoberta da pura qualidade literária da sua escrita, aberta a uma pluralidade de abordagens. No ano do seu 125º aniversário, a segunda vida de Maria Archer desabrocha em comemorações que se cruzam com as do cinquentenário da revolução de Abril. Ela emerge, agora, como figura ímpar para contar a história de um passado opressivo, pautado por regras viciadas de jogo social e político – jogo que ela desvendou e se recusou a jogar. Dessa época nos dá, nas palavras de Maria Teresa Horta, “o único retrato autêntico, de corpo inteiro”, e, na nossa, ressurge como mulher de todos os tempos. De facto, escreveu história do feminismo com a própria vida: o seu exemplo vale para sempre e a história é interminável. Manuela Aguiar in JORNAL DE LETRAS, 27 de dezembro de 2023

HISTÓRIA E "ESTÓRIAS" DESTE CINQUENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO in Defesa de Espinho (abril 2024)

HISTÓRIA E "ESTÓRIAS" DESTE CINQUENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO 1 - OS RURAIS DE ESPINHO Muito coisa aconteceu, ao longo de toda a semana do cinquentenário do 25 de abril de 1974. Nos "dias antes", correram as "estórias", e o contista-mór foi o Senhor Presidente da República, com declarações insólitas, a mostrar a força das palavras e o perigo de a usar mal. Nada foi mais comentado no espaço público ou privado, do que o indiscreto convívio do PR com jornalistas da imprensa estrangeira, onde se permitiu traçar, nada mais nada menos, do que o retrato psicomotor dos últimos Primeiros-Ministros, o anterior e o atual, ambos caracterizados como "lentos"... Conhecida a invulgar agilidade mental de um e do outro, e, pelo menos no caso de Luís Montenegro, também a física, (tratando-se de um praticante de várias modalidades desportivas), a adjetivação deixou o país boquiaberto de espanto, sobretudo pelo facto de conotar a lentidão de Costa com a sua ancestralidade oriental, e a de Montenegro com origens rurais! O estereótipo racializado do "oriental" é de tal forma desajustado e absurdo, que nem merece comentário - apenas um lamento... Já a atribuída ruralidade espinhense do nosso conterrâneo pode bem ser objeto de interpretação política, muito política, sobretudo, dentro do PSD. O PPD, partido interclassista, nasceu no centro esquerda, com as suas alas esquerda e direita, e as suas assimetrias regionais, entre as quais avultava uma: a linha de separação do cosmopolitismo lisboeta e do provincianismo do resto do País, considerado, do litoral ao interior, "país profundo" (e, por isso, Espinho, cidade marítima e turística, a dois passos do Porto, se situa, nas profundezas do mapa marcelista). "Rural" é, pois, um simpático sinónimo de “provinciano”. Nós, os nortenhos, somos todos vistos assim pelos lisboetas. Mais precisamente, pelos “snobes” da linha Lisboa-Cascais. Não levamos a mal. Estamos, historicamente, bem acompanhados – pelo próprio Dr. Sá Carneiro, por Eurico de Melo e os demais militantes do PPD/PSD, fora daquele seleto círculo geográfico. Veja-se como o Prof. Marcelo fez questão de lembrar o berço rústico do partido laranja… No entanto, o termo não era de uso corrente dentro do partido até aos tempos da sucessão de Francisco Sá Carneiro, em 1981. As clivagens, desde o início existentes, acentuaram-se, então, entre os fiéis do novo Primeiro-Ministro Francisco Balsemão (oriundo da mais pura linhagem Lisboa/Cascais) e os “críticos” (que haviam sido mais próximos de Sá Carneiro, caso do Eng.º Eurico de Melo e do Prof. Cavaco Silva). O outro nome dos “críticos” passou a ser , precisamente, o de “rurais do Norte”, pouco importando que Cavaco, Cabrita Neto, e muitos mais, fossem sulistas. Eu própria, com imenso orgulho, me afirmei, nesse sentido, vezes sem conta, “rural do Norte”. Luís Montenegro, na altura, ainda não tinha idade para fazer parte dessa ala, mas é benvindo agora! Felizmente, o PR Marcelo disse mais. Disse, por exemplo, que o novo Primeiro-Ministro o “surpreende” com os seus “improvisos” – ou seja, com decisões e escolhas, sobre as quais consegue manter absoluto secretismo até à hora exata. Uma maçada para o PR , que vê reduzida a margem de interferência na governação e já não pode dar notícias no lugar do porta-voz do Executivo. Daí a sua irritação... A análise lúdico-política de Ricardo Araújo Pereira vai neste sentido, e eu assino por baixo. A rir, se dizem verdades... 2 – A REPARAÇÃO DE DANOS... Outra inconfidência do PR, que causou ainda maior brado, numa linha definitivamente "woke" foi sobre a reparação dos danos do colonialismo… A meu ver, com a sua tirada mediática, nas vésperas do dia 25, vai o Prof. Marcelo fazer mais "estória" do que "História", por ter errado no “quando”, e por não explicitar o “como” da dita reparação. Ora o “como” é o que mais interessa... Para mim, "reparar" é cooperar, em diálogo, em vivência, continuando interações em curso, no clima de entendimento que tem imperado, nas últimas décadas. Ao contrário dos extremistas de direita e de outros nacionalistas de variada extração, sou uma crente no “ecumenismo lusófono”, num projeto coletivo de reencontro de povos que pode chamar-se CPLP, ou outra coisa qualquer. Não esqueçamos o passado, mas olhemos, sobretudo o futuro, os jovens! Todas as formas de cooperação existentes, o acolhimento de estudantes, a abertura à imigração, a criação de estatutos de cidadania (do qual o velho e renovado "Tratado de Igualdade de Direitos e Deveres entre Portugueses e Brasileiros" é já um inigualável paradigma), a restituição da nacionalidade (à semelhança da concedido a descendentes de judeus portugueses) são dados positivos no balanço do cinquentenário da Revolução de 1974. Há que prosseguir no domínio da cooperação económica, cultural e científica, (partilha de arquivos, de obras de arte, de saberes) ou qualquer outra. Estamos no bom caminho, há que avançar. 3 - UM DIA PARA A HISTÓRIA: O 25 DE ABRIL Nestas comemorações do 25 de Abril, foi imenso o contraste entre as esplendorosas manifestações populares, e os monótonos rituais de iniciativa estatal, os do Parlamento, assim como a discreta sessão dos ilustres convidados do PR no CCB - os Chefes de Estados lusófonos, herdeiros da mesma revolução que trouxe a Portugal a liberdade e a democracia. Foi uma espécie de réplica da comemoração parlamentar, com um rateio de tempos - uns escassos 10 minutos - para cada um dos oradores, tendo o anfitrião feito a mais pequena e pobre intervenção da sua vida. Que grande oportunidade perdida de marcar a data, com algo de grandioso, festivo, portador de ideias e propostas de colaboração mútua, tendo no centro a própria CPLP! Era o momento de fazer o balanço da sua ação, de mostrar as suas potencialidades, de apelar à participação dos migrantes de toda a lusofonia, que bem merecem um estatuto jurídico de fraternidade realmente praticado. O evento merecia outro eco nos "media", outro reconhecimento público e popular. Que pena, tão significativa presença do mundo lusófono, representado a nível presidencial, nas comemorações ter sido quase ignorada! Que pena não termos visto mais imigração a descer connosco a Avenida da Liberdade. Em compensação, que fantástico foi ver nessa gigantesca manifestação popular, espontânea, exuberante, um sinal da interiorização coletiva dos valores democráticos! De todos, e de tantos jovens, tantas mulheres. Mulheres, sobretudo mulheres, que tinham razões de sobra para isso: a revolução libertou todo um povo, mas libertou muito mais os que tinham menos direitos. E elas, antes de Abril, na chamada” família tradicional”, sofriam de uma “capitis diminutio”, com um estatuto de eterna menoridade (numa expressão mais forte, de verdadeira escravatura). A mulher devia obediência ao marido, como os filhos ao pai - não á mãe, porque era ele que detinha o poder parental, o poder de administrar os bens do casal, incluindo os bens próprios da mulher, o poder de decidir tudo, o domicílio conjugal, onde viver e como viver... De algum modo, a mulher casada, sendo súbdita do homem, era sua “colónia”. No 25 de Abril, também se deu a “descolonização” da mulher... E essa foi a nossa única descolonização exemplar. Com que orgulho, nós, as mais velhas, olhamos o Portugal onde as raparigas são 60% dos licenciados do País, onde as jovens acedem, com mais ou menos dificuldade, e brilham, em profissões que, até 1974, lhes eram vedadas. E, embora mais vagarosamente, vão ascendendo na política a todos os níveis, na vida partidária, reduto onde os partidos do poder ainda têm rosto masculino. Como as gaivotas metafóricas do líder do IL, no seu discurso em São Bento, as mulheres não querem voltar para trás… 25 de Abril sempre! in "DEFESA DE ESPINHO", 2 de maio de 2024