terça-feira, 29 de outubro de 2024

PORTUGAL, A EMIGRAÇÃO “A SALTO” E OS CLANDESTINOS DE SUCESSO 1 – Portugal devia ser o último país do mundo e o seu Governo o último Governo do mundo a olhar com uma certa desconfiança ou descaso a emigração clandestina, e a colocar entraves burocráticos à legalização daqueles estrangeiros que, tendo entrado no seu território com visto de turistas, entretanto arranjaram emprego e fizeram os vultosos descontos com que a Segurança Social equilibra o seu orçamento. Na verdade, Portugal é um antigo país de emigração "a salto" para o Brasil colonial, depois, para o Brasil independente, (destino maioritariamente procurado pelos portugueses, que fugiam à pobreza) e, em muito menor escala, para as Américas, e para África. O Estado tentava estancar o êxodo com leis e regulamentos restritivos, e os homens arranjavam maneira de os contornar (digo homens, porque as mulheres ficavam por cá, ou, quando muito, iam ter com eles, numa segunda fase). Estima-se que a percentagem de clandestinos terá rondado os 30%, constantemente, ao longo dos últimos três séculos. O termo "a salto" aplicava-se, inicialmente, àqueles que se escondiam nos barcos baleeiros que aportavam nos Açores, e os levavam em direção ao sonho americano. Muitos deles continuariam a dedicar-se à pesca da baleia, do atum e de outras espécies. Na década de oitenta, ainda fui ao encontro de importantes comunidades piscatórias, no oeste dos EUA, e visitei os maiores atuneiros do mundo, o "Mary C Jane" e o "Elizabeth C Jane", propriedade de açorianos de San Diego. Os portugueses estavam não só à frente da indústria da pesca, como dos estaleiros de barcos, no que respeita a capital, tecnologia e "design". Tendo boa parte desses pioneiros açorianos chegado a New Bedford (onde atualmente ainda marcam fortíssima presença) ou à Califórnia, na situação de "indocumentados", nem por isso foram menos produtivos, ordeiros e empreendedores do que os "legais". Entre uns e outros não há diferença! Assim era, e é, entre portugueses, como entre imigrantes de qualquer outra nacionalidade, credo ou etnia. 2 – Na segunda metade do século XX, razões socioeconómicas e políticas levaram ao desvio das correntes migratórias do sul da América (Brasil, Argentina, Uruguai) para novas geografias, mais a Norte nas Américas (Venezuela, Canadá) e mais perto, na Europa (com a França a tornar-se um “novo Brasil”). Não se pense, porém, que isso significou a diminuição da emigração clandestina. Pelo contrário, aumentaram as saídas “a salto”, expressão recuperada e popularizada, então, para descrever o dramático percurso de centenas de milhares de homens, através das fronteiras terrestres, nas mãos de “passadores” e traficantes. Em finais da década de sessenta, a percentagem de da nossa emigração indocumentada excedia os 50%! O movimento só cessou com a crise mundial de 73, a falta de oferta de emprego, a proibição de entrada, um pouco por todo o lado. A porta de entrada dos países ricos, apenas se entreabria, por razões humanitárias, à reunificação familiar, ou seja, às mulheres. Um estatuto que lhes vedava o acesso ao mercado de trabalho, mas que, na prática, não as impediu de procurar e conseguir emprego, expeditamente. Face a esta enorme massa de imigrantes clandestinos (pobres, rurais, sem qualificação profissional, alguns mesmo analfabetos), o que fizeram os Governos, nomeadamente o francês? Denunciaram o excesso? Expulsaram-nos? Não! Precisavam deles e trataram de os legalizar, sistematicamente, e sem espalhafato, à medida que se iam inserindo no meio laboral. E o resultado não podia ser melhor! O papel das mulheres foi absolutamente crucial na boa inserção de famílias inteiras e os portugueses converteram-se em inesperado paradigma de sucesso. Hoje, os seus filhos e netos estão por todo o lado, nas empresas, nas universidades, até na política! Nos anos 90, durante os Governos de Cavaco Silva, entrou na linguagem corrente a referência aos nossos “emigrantes de sucesso”. Eu proponho uma precisão, chamando à "geração do salto" os nossos “clandestinos de sucesso”! 3 –Num tempo em que o tema imigração domina as reportagens dos “media”, e em que o Governo anuncia novos rumos nas políticas públicas, pareceu-me importante olhar retrospetivamente, neste domínio, o nosso trajeto coletivo e nele buscar inspiração para nortear as políticas, as medidas concretas a tomar, e, o que não é de somenos, a forma de as comunicar à opinião pública e aos interessados. Eu gostava de ouvir os Ministros, os Deputados, os Autarcas a elogiarem os imigrantes, (incluindo os que desempenham tarefas mais modestas), a destacarem, antes do mais, o seu contributo positivo, e a manifestarem preocupação pela defesa dos seus direitos, em vez de receio de "invasão" do nosso espaço... (Isaltino de Morais é, certamente, um singular exemplo a seguir…) Todas as palavras que revelem relutância ou desconforto em relação aos imigrantes, dificulta o seu sentimento de pertença, a sua inserção. Exemplifico: falar de "temos as portas abertas, mas não escancaradas" é uma forma de lhes dizer "sim, mas...". É pouco! O discurso governamental salienta o interesse em atrair talentos, jovens muito qualificados, assim dando à sua vinda um sinal inteiramente favorável. Ótimo! No bom sentido, vai, igualmente, o apelo à emigração familiar, porque é, sem dúvida, um convite ao seu enraizamento, a revelar uma vontade de partilha de horizontes comuns. O que me parece faltar, nesta abordagem, é reconhecer (por palavras e atos) a mesma prioridade e distribuir a mesma simpatia pelos trabalhadores menos qualificados, os que chegam para ocupar os trabalhos mal pagos, rejeitados por nacionais. Afinal, são tão imprescindíveis, ou mais, do que os "talentos"! Sem eles, vários setores da economia entrariam em colapso, da agricultura ao turismo (grande responsável pela surpresa do comportamento económico, acima do esperado). Sem eles, este país estaria condenado a um irreversível envelhecimento. Neste quadro realista, é de elementar bom senso e de inteira justiça, desburocratizar e facilitar a legalização de todos os trabalhadores imigrantes que se prontificam a viver connosco. Estava já criado um regime que permitia aos estrangeiros, com visto de turistas, procurar emprego e, se o conseguissem, regularizar sua situação de trabalhadores e contribuintes para a segurança social, através de uma simples "manifestação de interesse" junto dos serviços. Perfeito - todos ficavam a ganhar, eles, os empregadores, a segurança social, a economia, a sociedade... Em 2024, havia, é verdade, um "contra": a herança caótica do Governo anterior, que levou para angustiantes filas de espera dezenas e dezenas de milhares de estrangeiros, face à incapacidade da Administração de dar sequência e de concluir os seus processos (um resultado da apressada extinção do SEF e da atribulada constituição da AIMA). E talvez isso justificasse a suspensão temporária das "manifestações de interesse". Porém, uma vez superada a crise de sucessão do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, (que não é culpa dos imigrantes, mas do Estado), a que propósito impor medidas restritivas (ou persecutórias) a pessoas já com provas dadas, meios de subsistência e vontade de integração? Qual a vantagem de as obrigar a saírem para, eventualmente, regressarem, depois de enormes transtornos e despesas, com mais um pequeno papel na mão, o novo visto? 4 – No século passado, os clandestinos portugueses, nos países para onde foram, sem “visto de trabalho” viram, quase sempre, regularizada a sua situação, de uma forma casuística. Mas nem sempre… eu própria negociei, muito discretamente, há quarenta e tal anos, por exemplo, a regularização do estatuto de milhares de portugueses na Venezuela. E há aqueles portugueses, que foram à aventura, há anos, com um visto de turismo, e que, ainda hoje, não têm o seu problema resolvido, nomeadamente nos EUA. E se Trump vencer as eleições de novembro (como é provável, num país onde, à direita, campeia a mais desenfreada misoginia, a par do “discurso de ódio” contra os imigrantes) milhares de portugueses, alguns dos quais jovens que nem a nossa língua falam, podem vir a ser expulsos. O risco é real, e mostra que o sucesso ou insucesso dos clandestinos pode estar dependente das políticas públicas de legalização e de acolhimento. É a hora de nós estarmos do lado certo.

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

EMIGRAR OU NÃO EMIGRAR, EIS A QUESTÃO 1 – Uma maioria de portugueses, a avaliar por uma recente sondagem, gostaria de ver o Governo a proibir a emigração dos seus concidadãos! Ou seja: um regresso às leis e às práticas da ditadura, à repressão policial e à saída “a salto”. Custa a acreditar, mesmo num contexto em que o fenómeno do crescimento da emigração de jovens altamente qualificados está, preocupantemente, na “ordem do dia” e em que irrompem na cena política forças de extrema-direita. Os democratas têm de saber lidar com estas pulsões autoritárias e demagógicas, desmontando o puzzle de mentiras em que assenta a sua expansão. O problema existe e deve ser encarado com realismo e bom senso. A única via a excluir é, precisamente, a supressão dos direitos fundamentais, a liberdade de circulação das pessoas, que está consagrada na Constituição Portuguesa e é um dos princípios fundadores da União Europeia. O Governo não pode fechar fronteiras, mas pode dar aos portugueses perspetivas e oportunidades de viverem bem no seu país. É exatamente o que o atual Governo, olhando prioritariamente os jovens, se prepara para fazer, embora através de uma fórmula que está a levantar enorme polémica. Sobre esta, centrando-me na vertente migratória, direi o que penso, mas não sem antes referir algumas lições da nossa longa história de políticas públicas de emigração, a começar pelas políticas de proibição ou condicionamento de fluxos de saída. 2- Mostra-nos a história que quando o Estado abria portas à emigração, os portugueses partiam, gostosamente, em massa, e, quando a obstaculizava com leis, sanções penais e perseguição policial, partiam, em massa, sem medo de transgredir… Ditames do Poder nunca os impediram de procurar uma vida melhor, lá longe, se necessário, pelos caminhos da clandestinidade… Em mais de quinhentos anos de êxodo imparável, em sucessivos ciclos, que se entrelaçavam, foram milhões os que saíram “a salto” por mar ou terra, a tal obrigados porque, de facto, nunca, antes da Revolução de 1974, houve, em Portugal, inteira liberdade de emigrar. A permissão era concedida aos contingentes considerados suportáveis, ou vantajosos, não de um ponto de vista personalista ou humanista, mas na perspetiva do Estado, omnipotente “intérprete” do “interesse geral”. 3 – Assim sintetizada a vã tentativa de controlar, durante cinco séculos, migrações (quase sempre) consideradas excessivas, vejamos o ocorrido nas últimas cinco décadas de democracia, com políticas respeitadoras da liberdade individual de emigrar e regressar. Houve de tudo, sucessos e “flops”. O sucesso dependeu sempre do realismo de propostas que iam ao encontro do que as pessoas precisavam e queriam. Dou alguns exemplos, principiando, cronologicamente, pelos Governos Provisórios e a sua generosa, mas utópica chamada ao novo Portugal da Liberdade de todos, (todos!) os expatriados. Para além de personalidades exiladas (como Soares ou Cunhal), o apelo não terá atraído nenhum dos emigrados por razões económicas. Cautamente, esperaram o fim do PREC e a estabilização da economia… Em desordem e maciçamente, chegaram, sim, os retornados de África. Quase um milhão de portugueses, que recomeçaram a vida do zero, e se integraram, globalmente, muitíssimo melhor do que o previsto. Não obstante isso, o dramático retorno criou, tanto na opinião pública como na da “classe política”, o mal disfarçado pavor do súbito e vultoso regresso dos emigrantes da Europa... Os governantes não ousaram eliminar medidas anteriormente estabelecidas para o apoio ao regresso e a captação de poupanças (como isenções fiscais e alfandegárias e concessão de créditos, a juro bonificado, para habitação ou para investimentos), mas alteraram o discurso oficial, proclamando não haver condições económicas para acolhimento e reintegração de emigrantes. Mais uma vez se enganaram… As mesmas pessoas que, nos anos sessenta, partiram sem serem vistas, nos anos oitenta (mais exatamente desde fins de setenta), iniciaram, também sem serem vistas, o seu regresso a casa - gradual, seguro e imparável. Com o que dinamizaram as suas terras de origem, desertificadas pela emigração, aproveitando, regra geral bem, o conjunto de benefícios ao seu dispor. Por sorte, acompanhei, de perto, este processo, em quatro mandatos governamentais, sempre otimista (contra corrente, é claro...), certa de que as pessoas, as famílias sabiam, melhor do que os governantes, escolher o momento de voltar ou de tomar a decisão definitiva de permanecer no estrangeiro (as duas metades do todo, as duas opções igualmente respeitáveis). Debalde, entre 1980 e 1987, enumerei, mil e uma vezes, os evidentes benefícios do regresso bem planeado, que, aliás, já estava a ocorrer, nomeadamente, no interior, repovoando regiões que a emigração desertificara. Com exceção de alguns peritos e investigadores universitários e dos próprios emigrantes, o meu otimismo não era largamente partilhado… Entre nós, há sempre tendência a acreditar, mais depressa, em “profetas da desgraça” … No período áureo do Cavaquismo, colhendo os frutos da adesão à CEE, o discurso oficial mudou radicalmente, anunciando que Portugal já não era um país de “emigração”, mas de “imigração”. O ufanismo era, no mínimo, prematuro. Dezenas de milhares de portugueses (maioritariamente trabalhadores sazonais), continuavam a sair para onde quer que houvesse um emprego. E a “mão de obra” estrangeira só haveria de chegar, em número considerável, no final de século, atingindo, em anos mais recentes, um peso muito maior. Porém, contrariando a previsão dos governantes da década de noventa, o aumento da entrada de estrangeiros não coincidiu com a diminuição dos fluxos de saída de nacionais. Pelo contrário: à nossa emigração tradicional, pouco qualificada, juntou-se o êxodo de cérebros (o “brain drain”), fenómeno inteiramente novo…jovens com formação académica, enfermeiros, médicos, engenheiros... Insensível à gravidade do problema, o Primeiro Ministro Passos Coelho, na era da “troika”, incitou essa juventude a sair da “zona de conforto”, a expatriar-se!! O conselho era supérfluo era um mau conselho. Supérfluo, porque, na verdade, os portugueses nunca precisaram de incitamento para partir, e mau, porque, ultrapassada a conjuntura, eles fariam, previsivelmente, muita falta Seguiu-se o Primeiro-Ministro António Costa, que tentou recuperar esses tais jovens para o país, com medidas de natureza fiscal (nomeadamente, o alívio do IRS durante os primeiros anos após a chegada). O programa foi muito publicitado, mas, ao que parece, pouco eficaz. Os supostos candidatos não se deixaram tentar, em número significativo, pela prebenda fiscal… 4 – E eis-nos, no presente, com o Primeiro-Ministro Luís Montenegro, nosso estimado conterrâneo. Também ele tem uma sua oferenda fiscal como via de solução do problema. A ideia é conceder aos jovens até aos 35 anos, uma substancial redução do IRS, para os dissuadir da aventura da emigração. O intento é louvável e, neste campo, coloca-o nas antípodas de Passos Coelho, (o que para mim, é coisa excelente!), mas…. Há vários “mas”, entre eles, o custo, (estimado em cerca de mil milhões de euros), a constitucionalidade duvidosa desta discriminação idadista, e, sobretudo, a mais do que duvidosa eficácia desta medida no combate à "emigração jovem". Abater o IRS equivale a aumentar o salário, no escalão etário que vai até aos 35 anos, com a certeza de um corte brutal, a partir dos 36… O horizonte é curto! A emigração promete mais: um longo futuro, não só em termos de remuneração, mas de segurança de carreira, condições de trabalho, promoções, valorização profissional ... O mais provável é a benesse fiscal ser aproveitada pelos que já optaram por não emigrar. A baixa temporária no IRS não será fator de peso na decisão final – tal como nos anos oitenta, o pacote de apoio ao regresso não determinou o regresso, embora o possa ter antecipado, em alguns casos, e o tenha, sempre, facilitado. Este dispendioso e controverso IRS “idadista”, a meu ver, não impedirá o êxodo! Os jovens que se sentem mal pagos e injustiçados, vão, do mesmo modo, fazer a mala e zarpar. Ficam os demais: de um lado, os resignados e, do outro, os privilegiados da faixa dos 4000 a 6000 euros… Certo, certo é que Portugal continuará a ser “o país das migrações sem fim”, enquanto não atingir os níveis de desenvolvimento da vanguarda europeia. O que os portugueses de todas as idades querem é isso. A prosperidade que lhes garanta “o direito de não emigrarem”.