Recordar tempos idos... Falar do presente, também. E até, de quando em vez, arriscar vatícínios. Em vários domínios e não só no da política...
terça-feira, 11 de fevereiro de 2025
MULHERES ENTRE MUNDOS
1 – Mulheres entre mundos é o título de uma coleção de narrativas de vida e fotobiografias que será lançada na Biblioteca Municipal José Marmelo e Silva na tarde do próximo dia 1 de fevereiro. Uma iniciativa da Associação Mulher Migrante (AMM), que, desde 2023, tem a sua sede em Espinho, e já antes, aqui fizera parte importante do seu trajeto, a começar por um primeiro encontro mundial de emigrantes portuguesas, em 1995. Por sinal, o maior que até hoje se realizou no país – e já lá vão, exatamente, trinta anos.
Há alguns meses, eu própria levei esse projeto editorial a debate na Assembleia-Geral da AMM, onde foi, sem surpresa, aprovado por consenso. Na verdade, a ideia nem era particularmente original na agenda da associação, que há anos se ocupa na compilação de histórias de vidas no feminino, e tem, nesse campo, um considerável registo bibliográfico. Contudo, na maioria dos casos, não foi muito além da recolha e divulgação de pequenas sínteses biográficas, e por isso, reconfigurar o programa, através de uma coleção, representa um salto qualitativo, com a publicação de livros individuais, testemunhos muito mais completos de feitos e vivências de mulheres na sociedade portuguesa, na sua transição do espaço privado para o público, dentro e fora de fronteiras, . Como sabemos, ao longo do século XX, muitas mulheres foram, gradualmente, saindo do estreito círculo familiar, onde a ideologia da ditadura e o atraso de mentalidades e costumes tradicionalmente as confinavam, para competir, de igual para igual (embora geralmente ainda sem armas iguais…), no plano cultural, profissional, cívico e político... Todas elas têm coisas importantes e mobilizadoras para contar (todas, sem exceção), e é preciso que o façam. Todavia, à partida, falar de si, destacando percursos, decisões, obstáculos vencidos para a realização pessoal, no círculo da família e no exterior, não é coisa fácil, em especial para as mulheres que se sentem herdeiras de uma tradição de silenciamento e recato (como diz o tão misógino ditado popular “onde canta galo não canta galinha” …). Além disso, publicar um livro pode a muitas parecer uma meta inatingível....
Com a Coleção, o que se pretende é facilitar, muito pragmaticamente, essa tarefa. Antes de mais, sugerindo o recurso a imagens (que, segundo a sabedoria popular, valem por mil palavras…). Ou seja, optar por uma fotobiografia, em vez de uma mais custosa narração escrita. Podem, assim, começar como quem organiza um álbum de retratos, legendando as imagens, desfiando memórias, ligando ocorrências, em comentários mais ou menos extensos. Depois, a AMM oferece-lhes a inclusão numa linha editorial, com uma bela e expressiva capa concebida pelo Dr. Tiago Castro. Às autoras cabe a livre escolha da gráfica que executará o trabalho – a associação não se dedica a esse tipo de mediação, não procura oportunidades negócio ou de lucro, não cobra qualquer comissão. Assegura, sim, informações, e, através do seu Conselho Editorial, o acompanhamento do processo de elaboração do livro, e da sua divulgação, com o objetivo de revelar vidas significantes de mulheres, com especial enfoque nas que cruzaram fronteiras, tanto geográficas como culturais. Neste campo, nunca serão demais as iniciativas, que, hoje em dia, se estão, felizmente, a multiplicar, em estudos académicos e em projetos editoriais, sinal do crescente interesse por uma literatura de natureza intimista, biográfica ou autobiográfica.
2 –A meu ver, esta é, certamente, uma as formas de combater a mais persistente das discriminações de género, a que podemos chamar "discriminação por invisibilidade", (em alguns casos, não só pela espontânea secundarização de um dos sexos, mas por deliberado apagamento da história individual). O estatuto das mulheres, ao menos nas ditas "democracias ocidentais", tem inegavelmente progredido, ao abrigo de Constituições e de leis baseadas no princípio da igualdade - na família, no trabalho, na política, na sociedade - com uma maior autonomia e influência, sem que, contudo, o peso do seu efetivo contributo seja plenamente reconhecido, em todo e qualquer domínio.. Foi sempre assim, e hoje é apenas um pouco menos assim... Lembramos as romancistas ou as compositoras musicais, cujas obras foram assinadas por maridos ou irmãos, ou posteriormente “esquecidas” (o caso de Maria Archer, escritora “deliberadamente apagada da história”, segundo Maria Teresa Horta, não é caso único…), as cientistas, cujas descobertas foram atribuídas a colegas (alguns dos quais, na vez delas, até arrecadaram prémios Nobel...), as pioneiras do cinema (como realizadoras, produtoras, guionistas, técnicas, inventoras)…Um rol infinito de mulheres que se viram despojadas da autoria da sua obra, em praticamente todos os tempos e lugares… uma propositada e sistemática intenção de ocultação do feminino?
Um dos exemplos mais escandalosos é o da cineasta Alice Guy Laché, que "inventou" a ficção no cinema (antes, meramente "documental"), o "cronofone", para a sincronização do som (na Gaumont), efeitos especiais e colorização, para além de dirigir e produzir mais de um milhar de filmes. Algumas décadas depois, ainda no seu tempo de vida, no século passado, viu-se riscada dos registos da Gaumont e, em larga medida, da história do cinema. É particularmente oportuno destacar a sua reação, porque foi precisamente através de uma autobiografia, que Alice Guy procurou recuperar o seu fantástico património de realizações, a autoria de muitos dos seus filmes, que andava imputada a nomes masculinos.
Mulheres mais ou menos famosas, partilham, afinal, as agruras da misoginia: não só desigualdade de oportunidades (o aspeto que é mais referido) mas, também, a desigualdade de reconhecimento no presente (por exemplo, mediante a subvalorização das profissões e tarefas predominantemente femininas...), e o risco do esquecimento no futuro, na história que se vai reescrevendo….
O projeto editorial "Mulheres entre Mundos" tem o propósito de combater semelhantes assimetrias, ao dar a palavra e ao pôr o foco o género sub-representado no espaço público e na memória coletiva. Existe para servir a causa da igualdade, está aberto a todas as mulheres - qualquer que seja a sua formação, curriculum, ou atividade e sejam ou não associadas da AMM – para nos dizerem, conjugando livremente a escrita e a imagem, como chegaram aonde chegaram. É uma aposta não tanto no valor literário do relato, como no inerente interesse humano de todas as aventuras de vida, e na esperança de que cada nova edição possa motivar mais e mais mulheres a saírem do anonimato, a revelarem a diversidade a valia do seu aporte à sociedade.
3 - A coleção é inaugurada com a fotobiografia de Graça Guedes (“Histórias da minha vida”), e, a meu ver, como já em várias ocasiões salientei, não poderia começar melhor. Por múltiplas razões, uma das quais é a de nos levar à intimidade de alguém que se notabilizou, primeiramente, no desporto – área em que, não só entre nós, como um pouco por todo o lado, se tem mostrado mais difícil alcançar a igualdade dos sexos, quer no dirigismo, quer no que respeita ao estatuto das desportistas. A autora possui, neste domínio, um currículo de impressionante pioneirismo no plano académico - foi a primeira mulher doutorada em ciências do desporto e professora catedrática em Portugal, depois de ter sido, como atleta e como treinadora, campeã nacional de voleibol. E, ainda por cima, é uma mulher de Espinho.
Espinho, em matéria de recente participação cívica e política das mulheres, não deixa de nos surpreender. Na política está, como é sabido, muito acima da média nacional, (com paridade no Executivo, e a presidência feminina da Câmara e da Assembleia). O que talvez não seja tão notório é a importância da presença feminina a nível institucional, no voluntariado, no associativismo, no que se costuma designar por “forças vivas” da comunidade. Há atualmente, no concelho, 22 mulheres a presidir à direção de associações de todo o tipo, sobretudo nas áreas da solidariedade e da cultura, e, também, da proteção dos animais (uma das minhas causas afetivas...). Confesso que, ao partir para um primeiro levantamento, por pura curiosidade, não esperava tanto. Mais uma alínea para a longa lista das percepções desfasadas da realidade, a reforçar a evidência da menor notoriedade das mulheres nos cargos que exercem! Essas verdadeiras “mulheres entre mundos” são ainda pouco visíveis no mundo novo onde já singram...
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