sexta-feira, 17 de junho de 2016

CONVERSANDO COM OS PRESIDENTES

GENERAL RAMALHO EANES

 Em 1976, votei no candidato Ramalho Eanes. Não o conhecia pessoalmente, só como figura pública, um dos heróis da Revolução. Gostei da campanha, que, apenas dois anos depois do 25 de abril e um ano depois do 25 de novembro, exigiu a coragem física e política para fazer face a difíceis afrontamentos, de toda a ordem...
 Quem não se lembra, por exemplo, daquelas suas fotos, de pé, em cima de um carro, a desafiar potenciais agressores? Determinação e seriedade, as primeiras qualidades que associava à sua personalidade! Contudo, depois, foi-se acentuando o distanciamento político. Fiquei do lado dos fundadores dos partidos do chamado "bloco central " (Sá Carneiro, Soares) e do centro- direita (quando o CDS, com Freitas do Amaral e Amaro da Costa era um partido cristão - democrata, que se afirmava "rigorosamente ao centro"). Em 1980, o Presidente Eanes foi reeleito contra a vontade de todos estes líderes, vencendo nas urnas o General Soares Carneiro. O futuro do "Conselho da Revolução" era um pomo de discórdia, pouco importando que com o General Ramalho Eanes estivessem militares moderados, democratas insuspeitos, como Melo Antunes.
 O Governo Pintasilgo não havia pacificado a situação. Maria de Lurdes - com quem convivi desde os meus tempos de estudante de Coimbra, na frequência (esporádica) das iniciativas do "Graal", uma organização que ela dirigia juntamente com Teresa Santa Clara Gomes - era uma mulher extraordinária, mas o seu reino não era deste mundo. Mais facilmente ganharia o céu do que a terra! A sua demanda do Graal em São Bento foi uma espécie de corrida contra.relógio, que assustou imenso as hostes reformistas.
Hoje considero a sua escolha mais uma prova de coragem da parte do General. Quem mais teria a audácia politica de nomear uma mulher, militante da vanguarda católica e declaradamente feminista? Sobretudo aquela concreta pessoa, com a sua inesgotável energia, criatividade e crença na missão feminina de fazer criativamente a diferença na luta contra as injustiças e imperfeições das sociedades humanas?
 Num olhar retrospetivo, posso compreender e aplaudir, mas, na altura, não via as coisas assim, considerava demasiadamente arriscado fragilizar a construção da arquitetura democrática, que teria de assentar em partidos fortes ... Durante esses cinco vertiginosos meses da "experiência Pintasilgo" voltei ao meu trabalho como assessora do Provedor de Justiça, mas logo em Janeiro de 80, estava de regresso ao governo, a convite de Sá Carneiro - já não no Ministério do Trabalho, mas no MNE.
 Ora, um dos focos de maior dissensão entre PR e Primeiro-ministro incidia, exatamente, nas áreas das relações internacionais e das comunidades do estrangeiro. Os conselheiros presidenciais para cada uma delas eram Melo Antunes (diplomacia) e Victor Alves (emigração).. Nos meios da "Aliança Democrática, falava-se de "diplomacia paralela" - do primeiro como "o MNE do Senhor Presidente" e do segundo como "o Ministro da Emigração do Senhor Presidente".
O meu ADN nortenho, minhoto e duriense, torna-me um soldado sempre pronto para qualquer batalha e nesse espírito bélico vivi, feliz, o ano de 1980. Participei ativamente na campanha eleitoral de Soares Carneiro à presidência, com os ataques da praxe ao Conselho da Revolução. Depois da tragédia da morte de Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa, um novo governo da AD tomou posse, nos primeiros dias de Janeiro de 81. Suponho que no dia 3, pela tarde.
 De manhã, tinha na agenda a abertura do curso de defesa nacional, no Instituto de Defesa Nacional. O IDN era, então, dirigido pelo General Altino de Magalhães, que me tinha convidado a fazer uma das palestra do programa anual (sobre emigração, o que aconteceria, também, nos anos seguintes). Não podia faltar, em caso algum, mas o certo é que não sabia que a abertura era um ato tão solene, presidido pelo PR General Ramalho Eanes. Desse facto só tomei conhecimento no gabinete do Diretor, onde, ao lado das mais altas patentes das Forças Armadas, fiquei, por alguns minuto, à espera da sua chegadas..
E eis que surgiu o Presidente, atravessou a sala e foi diretamente falar comigo. Perante tão ilustre assistência, cumprimentou-me, disse que me ia oferecer um exemplar da Constituição e fez-me uma pergunta absolutamente inesperada, tão inesperada quanto a própria oferta: "Prefere com dedicatória ou sem dedicatória?" Respondi prontamente: " Muito obrigada, Senhor Presidente, prefiro com dedicatória. é claro".
Ao que o Presidente, com o mesmo semblante muito sério, acrescentou: "É que por umas declarações recentes que lhe ouvi, parece que a Senhora Doutora não leu muito bem a Constituição".
 Percebi, então, todo o alcance da pergunta, porque, de facto, eu tinha posto em causa, em entrevista de campanha eleitoral, o estatuto conferido pela Constituição ao Conselho da Revolução - sendo esse, aliás, o cerne da minha intervenção televisiva, como fora de escritos, encontros e comícios. Estava bem lembrada de tudo isso, e, pelo visto, o Senhor Presidente também. Abstraindo, contudo, do meu assertivo discurso de um passado muito recente, que não fora concretamente referido e eu também não referi, disse com precisão e inteira franqueza: "Tem toda a razão, Senhor Presidente, nunca li a Constituição nem tenciono lê-la - leio artigo a artigo, quando é preciso" .
Julgo que a resposta foi tão surpreendente para o Presidente, como a sua pergunta havia sido para mim. Talvez por isso, embora a sua postura se não tivesse alterado, notei um esboço quase impercetível de sorriso - o suficiente para eu levar a conversa, que fluía mais naturalmente, para a parte da Constituição que mais me agradava, para artigos que sabia de cor e pelos quais estava disposta a lutar a vida inteira, como o que consagra a igualdade entre todos os cidadãos (ou, em linguagem agora politicamente correta entre "as cidadãs e os cidadãos"). E como tinha, em data ainda muito recente, dado, no Serviço do Provedor de Justiça, um parecer, no sentido de as mulheres poderem fazer serviço militar obrigatório, (visto que o regime de voluntariado, em que já eram admitidas a prestar serviço, exigia capacidade mínima para o exercício de funções - e, se lhes era reconhecida essa capacidade, então, face à Constituição, não podiam ser discriminadas, nem negativa nem positivamente).
 O Presidente manifestou o seu pleno acordo. Eu acrescentei que esse novo passo para a igualdade de género já não seria para mim, ao que ele retorquiu, de imediato, que isso se resolvia, dando à lei eficácia retroativa. O animado diálogo a dois prometia continuar, mas, nessa altura, o General Altino de Magalhães atalhou para convidar o Presidente a encaminhar-se para o auditório do IDN, depois dos cumprimentos aos presentes.
Foram, apenas, uns minutos de diálogo, mas mudaram radicalmente a minha opinião sobre o Presidente Eanes e o meu relacionamento com ele, também. Nunca tal acontecera com ninguém, assim, tão de repente, nem voltou a acontecer...
Uma primeira conversa, uma primeira certeza, que veio a confirmar-se, ao longo dos anos, numa admiração crescente. Gosto da frontalidade, da inteligência viva e do acutilante sentido de humor do General Ramalho Eanes. Qualidades que jogam bem entre si - e com a sua postura invariavelmente distinta e sóbria, enquanto as palavras com que nos interpela vão sendo sempre imprevisíveis e estimulantes. É possível ser inteligente e e não ter graça nenhuma, mas acho que é absolutamente impossível ter sentido de humor sem ser realmente inteligente. O General está no círculo privilegiado dos que têm os dois atributos... Nessa tarde, como disse, tomei posse do cargo de Secretária de Estado da Emigração e das Comunidades Portuguesas do VII Governo Constitucional. O cumprimento do Presidente foi cordial e nunca mais deixou de ser.

 O DR. MÁRIO SOARES

 Conheci pessoalmente o Dr. Soares em fins de 1978, pouco depois de tomar posse no Governo de Mota Pinto, em receções e jantares de embaixadas, em que estava sempre acompanhado pela  Dr.ª Maria Barroso. Com ela, havia um perfeito entendimento. Com o Dr. Soares as coisas eram mais complexas. As discordâncias políticas não se atenuavam - eu pertencia a um governo de iniciativa presidencial, que ele combatia ativamente, como Sá Carneiro e todos os chefes partidários, evidentemente.
Sá Carneiro era o meu herói, desde antes do 25 de abril e Mário Soares não estava no mesmo pedestal. Sim, tinha feito quilómetros atrás dele, em longas marchas cívicas nos primeiros anos pós revolução, e reconhecia o seu papel... mas via-o como o grande opositor do "meu" partido. (não que fosse militante de ficha e cartão, apenas uma absoluta convicta, a rondar o fundamentalismo partidário, que havia de perder, com o correr dos tempo e a observação das pessoas e das coisas). Uma palavra sobre o Doutor Mota Pinto, que foi quem me colocou nestes cenários: entrava numa outra categoria, a dos meus queridos mestres e amigos de Coimbra, com os quais concordância ou discordância de ideias ou de estratégias, tal como com colegas, era absolutamente irrelevante. Imperava a amizade, e, no caso dele, também uma imensa admiração! E, por isso, estava no seu governo, e, por dever de ofício, naqueles encontros com gente famosa. A atração por uma personalidade como o Dr Soares, num mundo em que dava os primeiros passos, contribuiu certamente para o princípio do fim do meu faciosismo político, para uma separação das águas entre ideologias e afetos (facilitada pela matriz coimbrã de que falei, "en passant"), O diálogo direto pode de, facto, mudar para sempre, a opinião sobre celebridades, cuja imagem construímos a partir dos "media".. Comigo aconteceu vezes sem conta, para o melhor ou para o pior...Para o melhor, a começar com o Dr Soares, depois, em 1980, com o Doutor Freitas do Amaral e, logo em 1981, com o Presidente Ramalho Eanes. Casos de conversão, por um relacionamento próximo, que foi uma verdadeira ""estrada de Damasco.
 As memórias de episódios passados com Mário Soares são muitas e algumas muito divertidas. Viajar com ele, mesmo em longas viagens oficiais, era uma festa, desde o momento em que se entrava no avião. A conversa fluía, às vezes resvalava para uma vozearia excessiva, com o som de gargalhadas à mistura. Uma vez, até fui eu que mandei calar toda a gente, porque vi que, na primeira fila, o Presidente já a descansar, depois de ter dado uma volta completa à aeronave, cumprimentando a comitiva, sem esquecer ninguém. Calámo-nos, por precaução, porque ele, imune ao ruído, dormia tranquilamente em qualquer ambiente. Da visita à URSS vou contar só episódios que revelam o seu inato apreço pela instituição parlamentar, que não tinha, pela própria natureza do regime, paralelo no mundo soviético.
O périplo estendeu-se a três Repúblicas - Rússia, Arménia e Azerbeijão. Era Inverno rigoroso em Moscovo. Assisti a quedas aparatosas de dois membros da comitiva, mal tocaram o chão russo, mas a neve dava mais encanto ao Kremlin e à cidade. Gorbatchev e Raisa foram amáveis anfitriões, em salões faustosos, no Bolshoi…
 Problemas só protocolares e sem gravidade. O Dr. Soares insistia em sair do rígido roteiro programado e conseguiu-o algumas vezes, nem sempre. Na verdade, o mais recorrente dissenso protocolar era o que respeitava ao lugar atribuído aos deputados, sobretudo nos esquemas de transportes. Éramos um grupo numeroso, porque o PR queria mostrar, pedagogicamente, o pluralismo da nossa Assembleia e não houve partido, por pequeno que fosse, que não estivesse representado. Havia dois Vice-presidentes, líderes parlamentares, mulheres e homens de várias gerações, enfim, uma representatividade cuidada, a todos os títulos. Mas os soviéticos não eram muito sensíveis ao simbolismo democrático da Delegação. Olhavam-na apenas como um coletivo, que era preciso não separar. E, por isso, enquanto atribuíam vistosos carros pretos a toda a gente, teimavam em compactar os deputados numas carrinhas de aspeto duvidoso, de cores vistosas - coisa obviamente destinada a encerrar o cortejo de viaturas. Os meus colegas ficaram justamente indignados com tal tratamento e, sendo eu na altura, a 1ª Vice-presidente da AR, consideraram-me uma espécie de chefe da delegação e a porta-voz do protesto coletivo. Não foi missão fácil... A nossa diplomacia, ela própria instalada nas "limusinas", manteve uma atitude passiva, e eu vi-me sozinha a travar com os russos a batalha verbal. O único apoio veio, indiretamente, do Presidente. Longe de mim incomodá-lo com estas trivialidades, até porque sabia bem qual seria a reação. Na verdade, nenhum de nós lhe contou o que se passava, nem mesmo quando, nos cerimoniais de deposição de coroas de flores em monumentos, por falta da nossa presença, adiava o início, até que todos estivéssemos a seu lado. E nós, atrasados (inexplicavelmente atrasados, do seu ponto de vista), correndo enquanto não nos viam, por trás da fila de carros, e caminhando, em campo aberto, na sua direção, num mais dignificante passo de marcha. Geralmente, com o Dr. Soares a acenar-nos, impaciente... Esses incidentes constantes constituíram o melhor argumento nas negociações com os diplomatas soviéticos. Era necessário, obviamente, seguirmos em posição de acompanhar o Presidente! Por força dessa evidência, o imbróglio resolveu-se, sucessivamente, em cada uma das Repúblicas, onde tudo se repetiu, desde o transporte previsto naquela espécie de "carro-vassoura" até ao teor dos diálogos e à boa solução conseguida ao segundo dia.
O último episódio embaraçoso envolvendo os eleitos do povo, de todos o que teve mais visibilidade (porque ostensivo aos olhos do Presidente…), aconteceu, digamos, na 25ª hora. No voo de regresso, houve uma escala em Kiev, para um encontro do Presidente com as altas figuras da República da Ucrânia, pelo tempo de um jantar - um grande banquete no aeroporto. Com um "senão": a sala principal não comportava a comitiva inteira, pelo que alguns foram relegados para uma sala ao lado, entre eles dois deputados, que aceitaram, sem protesto, a exclusão. Todavia, sempre atento a tudo, Mário Soares notou a sua ausência e perguntou por eles. Quando lhe disseram que estavam relegados para a sala dos fundos, furioso, exigiu que os chamassem, de imediato, para a sua mesa. Seguiu-se uma verdadeira debandada de ilustres funcionários, voluntários prontos a corrigir a "gaffe",  Fora, voltaram, todos menos dois, para reocuparam lugares, com algumas trocas, para que os deputados tomassem assento na cadeira a que faziam jus. Inédito em banquetes solenes, suponho... E mais uma lição de democracia dada pelo nosso Presidente!
Porém, na verdade, a desconsideração da instituição parlamentar também existe em Portugal. Se existe!... Protocolarmente, é coisa usual colocar Funcionários Públicos nas mesas de honra e deixar Deputados da Nação na 2ª ou 3ª fila, ou não os mencionar numa longa lista de cumprimentos, no início ritual dos discursos... Sempre senti isso, como um resquício do velho regime, uma falta de ponderação democrática - não são as pessoas que ficam em causa, mas o que elas representam com a força do voto popular. De tão habituados à desvalorização do cargo estamos, que, por vezes, os próprios deputados se esquecem de defender o seu estatuto. O Dr. Soares é, dentro da classe política. a grande exceção... Uma cena, na essência, não muito diferente do delicioso episódio de Kiev (bem mais divertido, na realidade do que no meu relato) sucedeu no Palácio de Belém, durante uma audiência presidencial a uma Delegação da República Popular da China Era eu Vice-presidente da AR há poucas semanas e fui incumbida de os acompanhar, em toda a visita, em Lisboa e no Porto sentados, nem queria acreditar. Exigiu, de imediato, a sua presença e seguiu-se uma verdadeira debandada de ilustres funcionários, que voluntariamente, queriam ajudar a compôr a situação. Iam, voltávam, , rearranjavam os lugares, para que os deputados ocupassem a cadeira a que faziam jus. Inédito em banquetes solenes... E mais uma lição de democracia dada pelo nosso Presidente! Em boa verdade, a desconsideração da instituição parlamentar também existe em Portugal. Se existe!... Protocolarmente, é coisa usual colocar funcionários nas mesas de honra e deixar deputados da Nação na 2ª ou 3ª fila, ou não os mencionar numa longa lista de cumprimentos no início ritual dos discursos... Sempre senti isso, como.um resquício do velho regime, falta de maturidade democrática. Não são as pessoas que ficam em causa, mas o que elas representam com a força do voto popular. De tão habituados à desvalorização do cargo estamos, que, por vezes, os próprios deputados se esquecem do que são e representam. O Dr Soares é, dentro da classe política. a grande exceção. Uma cena, na essência, não muito diferente do delicioso episódio de Kiev (bem mais divertido, na realidade do que no meu relato) sucedeu no Palácio de Belém, durante uma audiência presidencial a uma Delegação da República Popular da China.  Era eu VP da AR há poucas semanas e fui incumbida de os acompanhar, em toda a visita, em Lisboa e no Porto.   Ao Norte poucos se deslocaram, mas em Lisboa éramos um grupo grande, com membros de todos os Grupos Parlamentares. Mais de uma quinzena, entre deputados chineses e portugueses, intérpretes e funcionários...Não é fácil acomodar toda uma comitiva dessa dimensão nos gabinetes de S Bento ou Belém. Decidimos, por isso, de comum acordo, que só eu estaria nessas duas audiências, com os seis ou sete visitantes, mais intérpretes e diplomatas, enquanto os demais aguardavam nas salas de espera.
 Em S Bento, com Cavaco Silva não houve reparos. Foi tudo muito formal. O Primeiro-ministro estivera há pouco tempo na China, falou polidamente das suas impressões da missão.E é tudo o que há para contar. Não assim em Belém. Ainda mal nos tínhamos sentado, quando o Dr Mário Soares me perguntou: “Está sozinha com esta Delegação? Porque é que não vieram mais deputados?" Ao que eu respondi que, pelo contrário o grupo português era enorme e não cabia naquelas salas com tão poucos assentos...O Dr. Soares ficou escandalizado: "Deputados lá fora? Nem pensar. Eu sou um parlamentarista! Quero-os todos aqui connosco”!" Correram a chamá-los, claro. Foi um reboliço maior do que o de Kiev... Funcionários trazendo cadeiras, o próprio Presidente ajudando, dando instruções, cumprimentando os deputados afavelmente, lamentando que tivessem sido deixados à margem, sentando-se, por fim, no meio da maior multidão que aquele espaço acolheu em audiência... E eu só pensava: Os nossos pares chineses nunca viram coisa igual. O que acharão eles de tudo isto?" Na sala cheia de cadeiras, de gente, de animação. a conversa decorreu com um certo ar de tertúlia, todos muito bem dispostos, muito faladores (os interpretes traduzindo). o Presidente interessado em pormenores sobre o trabalho de cada um, sobre as suas impressões do país, sobre o programa, dando sugestões e muitas informações sobre o Porto, para onde partíamos no dia seguinte.. Á saída do gabinete, esperava-nos uma conferência de jornalista, televisão, muitos microfones. E foi aí que obtive resposta para as minhas dúvidas sobre como os nossos hóspedes de honra avaliavam o "fait divers" da inesperada dança das cadeira a que tinham assistido. Eram todos velhos, de rosto sereno e impenetrável, que não augurava o melhor. Para surpresa minha, o "Speaker" fez o mais entusiasmado discurso que lhe ouvi no nosso solo. Verdadeiramente empolgado! Não poupou elogios ao nosso incomparável Dr. Soares. Começou por felicitar o povo português por ter como presidente uma tão extraordinária personalidade. Seguiu-se uma impressionante lista de elogios, encimada por "grande humanista"!
 Depois, os jornalistas quiseram saber como tinha decorrido o anterior encontro com o Primeiro-ministro (onde não houvera presença da imprensa). A resposta foi pronta e lacónica."Também correu bem".

 O DR. JORGE SAMPAIO

 O Dr Jorge Sampaio foi o último dos presidentes com os quais tive, institucionalmente, contacto como deputada - espaçado contacto, já sem a regularidade com que isso acontecia enquanto membro do governo (no 2º mandato do General Ramalho Eanes) ou enquanto Vice-presidente da AR (com o Dr Mário Soares como PR. no seu 1º mandato).
Foi precisamente dessa época da Vice-presidência da Assembleia, o convívio mais assíduo com o Dr Jorge Sampaio, então líder do GP do PS. São cargos que exigem trabalho visível no hemiciclo de S Bento (muito mais exigente o de líder parlamentar...), para além de uma intensa atividade de representação política, que inclui comemorações várias. receções diplomáticas, visitas de personalidades estrangeiras... Uma agenda cheia! Naturalmente coincidíamos na maioria desses eventos e, tudo somado, foram inúmeras as horas de conversa. Era, sem dúvida. um dos deputados com quem mais gostava de trocar impressões sobre as vicissitudes da vida nacional e internacional. E, devo acrescenta, que raras vezes me vi em discordância com ele. Na minha perspetiva, era um perfeito democrata, que valorizava (quase diria britanicamente) o parlamento. Era tudo o que veio a revelar na presidência: inteligente. culto. sensato e de uma grande distinção e simplicidade no trato. Tenho dificuldade em lhe encontrar defeitos... E há virtudes que me encantam, embora, claro. algumas não sejam essenciais para o desempenho de cargos políticos: o seu esplêndido inglês (jamais um PR falou melhor a língua de PG Wodehouse,  o meu autor favorito), o seu sentido de humor (também "very british"), a sua bem portuguesa capacidade de se emocionar e o seu amor pelos animais, nomeadamente por gatos. E foi - dado importante! - também o PR que mais sensibilidade mostrou face às injustiças e preconceitos que continuam a perseguir as mulheres em Portugal. Só ele fez do 8 de março um dia especial de reconhecimento ao trabalho cívico e profissional das portuguesas. Por isso, lembrarei dois pequenos episódios passados a 8 de março. O primeiro foi uma memorável cerimónia, em Braga, onde condecorou mulheres ativas em vários domínios, com critérios objetivos, que não passavam por motivações partidárias ou afetivas. Na política, a maioria era, por sinal, de quadrantes não socialistas, sobretudo membros de governos PSD (onde, diga-se, tinha sempre havido maior, ainda que insuficiente, equilíbrio de género): Manuela Ferreira Leite. Teresa Gouveia, Eduarda Azevedo. eu própria... Quando me colocava a faixa da Ordem do Infante D Henrique, disse-me, em tom discreto:" Como vê, esta condecoração tem as cores do FC Porto". Eu podia ter respondido qualquer coisa como: "Muito obrigada - duplo privilégio", ou "duplamente as minhas cores!", mas confesso que, em momento tão emocionante, não consegui encontrar palavras e limitei-me a um agradecimento e a um sorriso...
 No ano seguinte, a cerimónia de condecorações a 8 de março decorreu em Lisboa, nos salões do Palácio de Belém e foi seguida por uma debate transmitido em direto pela RTP, no cenário idílico dos jardins do palácio. O Presidente teve o cuidado de mandar prevenir todos os convidados de que, embora a previsão fosse de um belo dia de sol, o lugar era frio e ventoso... (fiquei com a impressão de que a ideia da escolha dos jardins não era dele, que foi não vencido. mas convencido, impondo condições...) Por qualquer razão. o Presidente e eu fomos os primeiros a chegar a mesa do debate e ficamos uns minutos a falar. "tête à tête". Eu tinha acabado de ouvir um comentário desagradável sobre gatos de rua, que vagueavam pelos jardins de Belém e, sem saber qual a posição do Presidente. comecei por dizer que esperava que ele não deixasse de os proteger... Descobri, então, que partilhávamos uma grande simpatia pelos felinos e o Dr Jorge Sampaio contou-me várias histórias sobre os seus próprios gatinhos. Fiquei ainda mais convertida ao Presidente - que vestia um sobretudo cinzento, enquanto eu me agasalhava com uma capa de lã vermelha.... Escusado será acrescentar que em boa hora ele se preocupou com a saúde dos participantes do debate. porque, sem a minha manta bem quente, teria arriscado uma grande constipação. Mas valeu a pena - era difícil encontrar recanto mais perfeito para ser filmado. E inspirador, também. Correu tudo na perfeição.

 O PROFESSOR CAVACO SILVA

 O meu relacionamento político e pessoal com o Prof Cavaco (ao contrário do que aconteceu com o General Ramalho Eanes e, de algum modo, com o Dr Mário Soares) foi de bem a mal e de mal a pior. Por fim, já não havia relacionamento. Durante os 10 longos anos de presidência, vi-o uma vez, em Espinho, numa visita que fez à CERCI e à Academia de Música. Era Vereadora da Cultura e estava na fila de cumprimentos. Cumprimentei.
 30 anos antes a saudação teria sido bem mais efusiva... Estava convictamente entre os que consideravam Cavaco Silva o melhor sucessor possível de Sá Carneiro, contra os que achavam que a questão não se punha nesses termos e preferiam Pinto Balsemão. Entre "Balsemistas" e "Cavaquistas" ( "críticos" ou "rurais do norte", por força de Eurico de Melo, o grande e sincero amigo de Sá Carneiro)) o PSD dividia-se a meio. E dividido ficou até ao célebre congresso da Figueira, com uma reconfiguração de polémicas e lealdades durante a presidência do Prof Mota Pinto, tendo por pomo da discórdia, a sua opção por um governo de "Bloco central" (que salvou o país da bancarrota!), mas a que se opunha uma aguerrida ala de jovens, auto-intitulada "nova esperança" (Santana, Durão Barroso, Marcelo e outras novas esperanças menores).
 Já sem Mota Pinto (infelizmente!), em 1985, o Prof Cavaco foi rodar o carro novo de Lisboa até à Figueira, onde decorria o Congresso do PSD e, chegado lá, num impulso, segundo reza a lenda, candidatou-se à presidência do partido e venceu, imparável e epicamente, o duelo com João Salgueiro, o nº 1 da ala "balsemista".
A sua liderança, na fase faustosa da adesão à CEE, não sofreu contestação - coisa praticamente inédita num partido tão turbulento, como fora o PPD. Se então, em 1980/81, soubesse o que sei hoje,  não me tinha envolvido tão entusiaticamente em querelas partidárias. O que sei hoje é que Sá Carneiro era insubstituível, tanto por Balsemão como por Cavaco, figuras que, ainda que, por razões diferentes, são o seu oposto. A um faltava rasgo, coragem, a outro "mundo", cultura, a ambos faltava a visão e a coerência de Sá Carneiro. Andei, pois, a lutar contra moinhos de vento, mas alegremente! Não no imediato, porque estava no Governo (Balsemão "herdara-me", contrariado, na Secretaria de Estado da Emigração, por insistência do Prof Freitas do Amaral) e eu considerava reprovável "conspirar" contra o Primeiro Ministro de um executivo a que pertencia. Mas, mal me vi na Assembleia, fui a correr procurar os chamados "Críticos" (ou "rurais do Norte"), para me alistar nas suas hostes. Era uma recém-chegada ao partido, não conhecia praticamente ninguém, nem Cavaco nem Eurico. Talvez os tivesse cumprimentado, dizendo "bom dia", nada mais...
 Os "crítico" passavam o tempo em esplêndidas reuniões de convívio, do Minho (de Eurico) ao Algarve (de Aníbal), em que se falava de política e de muitas outras coisas. Fizemos boas amizades, enquanto sofríamos inevitáveis derrotas nos conselhos nacionais e congressos do PSD. Cavaco Silva e Eurico de Melo apareciam muito pouco nesses convívios. Uma das exceções, em que contámos com a presença de ambos, foi um memorável almoço, na quinta nortenha do Dr Montalvão Machado. Como na minha passagem pela Secretaria de Estado tinha lançado a divulgação de jogos tradicionais na emigração, com o "jogo da malha" como "ex-libris", terei sido eu a sugerir a esse desporto naquela bela tarde de sol. E logo Cavaco e Eurico, Montalvão e muitos outros  mostraram a sua habilidade. Eu, como promotora, embora nunca até então, jogadora, da "malha", observava, aplaudia e fui experimentar - peguei no pequeno disco redondo e atirei-o, com toda a energia, para tão longe que nunca mais foi visto. Perdeu-se num pinhal, entre as gargalhadas gerais. Um desastre. Não voltei a tentar.
 Entretanto, fui descobrindo pequenas divergências ideológicas com o Professor, mas nada que alterasse a admiração posta na sua figura alta, magra, austera, esfíngica. Na Figueira, fui ainda, naturalmente, uma sua incondicional apoiante. Porém, no seu primeiro (que seria o meu último) governo, deu-se o início do fim de qualquer forma de cumplicidade. Muito por culpa do Ministro dos Negócios Estrangeiros Pires de Miranda (personagem inenarrável, um MNE que dizia "Rússia", em vez de "União Soviética" e lavrava longos "despachos" antipáticos a lápis, a que eu respondia com tiradas ainda mais longas, carregando no traço da esferográfica). E, como, para Cavaco Silva, os Secretários de Estado eram simples "adjuntos de ministro",  não contei nesses constantes diferendos, com a sua simpatia. Descobri que não tinha vocação para "adjunta" de nenhum MNE, muito menos daquele, e afastei-me, definitivamente da governação. Seguiram-se cerca de 20 anos no Parlamento e, apesar de por indicação de Cavaco Silva, ter sido a primeira mulher eleita Vice-Presidente da AR, tanto nos aspetos políticos como no pessoal, o afastamento era irreversível

. O PROFESSOR MARCELO

 De todos é aquele com quem menos convivi, antes e depois da investidura no cargo supremo
E, contudo, foi o único que escreveu sobre mim! Um editorial do "Expresso" de 30 de novembro de 1978, (Figura da semana), assinando com as iniciais MRS.
É um texto surpreendente, que revela uma faceta não suficientemente ressaltada do nosso novo Presidente: a sua compreensão e genuíno e(entre nós), pioneiro interesse pela igualdade de participação política de mulheres e homens.
A prova de que quando agora fala às cidadãs ou das cidadãs não se limita a usar palavras de mera conveniência, lugares comuns eleitoralistas, é esse editorial em que sublinha, com genuíno agrado e aplauso o surgimento de mais uma mulher na cena política. O artigo começa assim: "Num País onde a mulher está ainda muito longe de dispor de possibilidades de afirmação idênticas às do homem, a nomeação da primeira mulher para exercer o cargo de secretário de Estado do Trabalho merece especial referência" (grande verdade, mas ninguém mais, então, a afirmou tão claramente!). Depois de uma breve referência elogiosa ao curriculum académico e profissional dessa jovem desconhecida, recorda os nomes das raras mulheres que a haviam precedido nos governos da República (Teresa Lobo, antes da revolução de 74, Lurdes Pintasilgo, Manuela Morgado e Teresa Santa Clara Gomes...) e acrescenta: "Mas o que poucos arriscariam é que uma pasta tão melindrosa como o Trabalho incluísse uma mulher governante. Tratava-se de um pelouro considerado extremamente sensível nas suas repercussões políticas, a desaconselhar para muitos, a presença de uma mulher. É positivo que este sacrifício do "machismo" latente tenha sido vencido. É positivo que Mota Pinto tenha ousado dar o passo que deu".
 MRS salientava, já então, inteligentemente, o facto de ter sido não um governo socialista, mas um que, por sinal o não era, a dar esse passo. O futuro confirmaria a incapacidade do PS de "surpreender pela positiva" neste domínio (nem António Costa, o mais progressista de todos, conseguiu ainda o equilíbrio de género na sua equipa governamental).  Por isso, a crítica direta que, em 78, lhe dirige por não ousar romper com "tabús", herdados de uma "sociedade velha" (palavras suas), revelar-se-ia profética. Coerentemente, MRS viria a ser o único líder do PSD que "ousou" defender a introdução do sistema de quotas, para a paridade. Um Homem que coloca nas suas prioridades, desde sempre, a igualdade de género é ainda uma raridade na cena política portuguesa. Temos Presidente! Conversas não sei se teremos. Não creio que haja pretexto nem ocasião, agora que estou longe das lides políticas...

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