quinta-feira, 24 de março de 2022

Intervenções sobre Maria Archer - Teatro da Trindade (2012) e Biblioteca Nacional (2022)

Lisboa, Biblioteca Nacional, 24 de janeiro de 2022 Sessão de abertura da colóquio "Reflexos e reflexões sobre Maria Archer" As minhas primeiras palavras serão de agradecimento à organização deste Colóquio, em especial à Profª Isabel Henriques de Jesus, pelo convite para participar numa grande jornada de reflexão em torno de Maria Archer, no 40º ano da sua morte. A celebração de uma efeméride é, por vezes, apenas cumprimento ritual de um calendário, mas também pode ser muito mais, se dela se faz um momento de salvaguarda da memória de figuras ou acontecimentos, um momento de reavaliação do seu papel, do seu significado no tempo presente. Assim sucedeu, por exemplo, na comemoração do 20º ano da convocatória do 1º Encontro Mundial de Mulheres Portuguesas na Emigração, de que resultou o reinício ou o verdadeiro início de políticas públicas naquele domínio, ou do centenário da República, em cujo programa de eventos foi dada enorme e bem merecida visibilidade a grande vultos da 1ª vaga do nosso movimento feminista. E assim poderá ser, e espero que seja, com as comemorações do cinquentenário da revolução de Abril, onde haverá lugar ao reencontro com a vida e a obra de grandes mulheres que a Ditadura e o chamado Estado Novo tentaram eliminar dos anais da República, do património imorredouro que é a memória coletiva. Sei que não há uma ligação direta entre essa aguardada agenda, e a iniciativa que aqui nos convoca, mas atrevo-me a dizer que pressinto nas linhas de investigação voltadas para as escritoras que resistiram às pressões e perseguição do regime ditatorial, de algum modo, uma espontânea decorrência do ambiente criado em torno dessa data marcante, que, no lapso de um século, separa 50 anos de ditadura e 50 anos de democracia. Separa o Portugal em que Maria Archer combateu e Portugal pelo qual incansavelmente se bateu. Maria Archer, essa portuguesa admirável, nascida num dia do último janeiro do século XIX, e, contudo, tão atual no pensamento e na mentalidade, que vem agora sendo redescoberta como exemplo inspirador de inconformismo e de coragem Nela vejo, sempre, antes de mais, a cidadã - cidadã de muitas cidades, num percurso repartido pela geografia do universo lusófono, em convívio, curioso e expectante, com as suas culturas e particularidade, empenhada em aprendizagens e partilhas, observadora e interveniente em tão variados domínios, invariavelmente movida por valores humanistas que são ainda hoje os nossos. Um destino de interminável itinerância, desde menina, poderia ter significado inadaptação e desenraizamento - mas não! Sendo quem era, bem pelo contrário, enraizou-a um pouco por todo o lado, com o seu olhar atento sobre a tudo o que era alteridade, fascinada pelo exotismo e pela beleza das pessoas, dos costumes e das paisagens.. Em estadas longas, que perfizeram 14 anos de África, a sua infância e a juventude decorreu numa sucessão de idas e voltas, de Lisboa para Bissau e Bolama, para a Ilha de Moçambique, com os pais, depois, já casada, para a mítica ilha de Ibo com o marido, e após o divórcio, ainda sob teto paterno, para Luanda. Divorciar-se, no ano de 1931, foi um ato de enorme ousadia, com que encerrou um ciclo e começou outro, finalmente livre para transpor a fronteira do espaço privado, onde as jovens da burguesia se deixavam emparedar, em vitalícia dependência como filhas ou esposas, para o espaço público, onde se tornou verdadeiramente Maria Archer Em 1935, em Luanda, fazia a sua estreia literária com uma obra sobre três mulheres, de seguida, publicava, em Lisboa, "África Selvagem", uma primeira e fulgurante incursão nos domínios da literatura colonial. Era o início da aventura solitária de subsistir pela escrita, como Autora reconhecida pela crítica e pelos leitores, que esgotavam edições e reedições dos seus romances e novelas, e como reputada articulista nas páginas de jornais e revistas de referência. Num breve relance sobre a sua trajetória de escritora, vemo-la por pouco mais de duas décadas, destacar-se nos meios intelectuais de Lisboa, onde se impôs pelo talento literário – como a grande revelação da década de trinta – encantou pela elegância do porte, pela cultura e pela vivacidade do espírito e desafiou os poderes constituídos usando a escrita como arma na luta pelas causas que a moviam. Causas que permanecem, tantas décadas depois, impressionantemente atuais: a criação literária e artística das mulheres como expressão de liberdade e dimensão de cidadania, o feminismo como humanismo, e a aproximação dos povos da lusofonia - ultrapassando a visão eurocêntrica tradicional, herdada da 1ª República, no policentrismo dos seus escritos mais tardios, da que podemos chamar a fase brasileira. . A ditadura assente na repressão das Liberdades e no conservadorismo misógino, não tolerava a subversão da sua ideologia e da sua "ordem" e não podia, sobretudo, admitir a transgressão no feminino, que Maria Archer encarnava. Entre nós, ninguém levara tão longe, tão militantemente, a denúncia, pela recriação realista de uma atmosfera social e política, do quotidiano num país anacrónico em que as mulheres eram confinadas pelas normas impostas no relacionamento dos sexos, pela educação para a desigualdade e pela censura dos costumes. É esse mundo segregado das mulheres que desoculta - mulheres s queão sempre as personagens principais nas suas obras... E fá-lo, com o implacável rigor de uma etnóloga por vocação e a arte consumada de manejar a língua, em toda a sua riqueza e plasticidade. Nas suas próprias palavras, "moldava o retrato sobre modelo vivo". Um retrato com muitos rostos, muitos enredos... A Ditadura não gostou do retrato, que desconstruía, pelo ímpeto iconoclasta da obra, e pelo seu exemplo de independência da Autora , o ideal tipo feminino da ideologia salazarista. E não lhe perdoou. Condenou-a ao ostracismo não só no seu espaço espaço geográfico, como no no tempo. Quis, como disse Maria Teresa Horta, "deliberadamente apagá-la da história". Maria Archer foi obrigada a partir para um exílio de 24 anos em São Paulo, de onde regressaria, em 1979, num regresso obscuramente, diminuída na debilidade física irreversível, desaparecida na memória do país, mas, no seu íntimo, confiante no julgamento do futuro.. . Esse futuro é agora. Somos nós! Estamos hoje aqui, a dizer, com a nossa presença e a nossa palavra, que queremos, deliberadamente, restituí-la à História. O movimento começou nos meios acadêmicos do Brasil, com uma plêiade de investigadores, que desde há alguns anos, vem cumprindo essa esperança, no reencontro com a obra intemporal de escritora e jornalista. O eco desses passos vem, agora, repercutindo em Portugal. Ela é a cronista, por excelência, de uma época que, nos seus livros, pode ser, estudada, compreendida, reconstruída, num campo interdisciplinar, em múltiplas leituras, todas atuais. É, também, a militante, a mulher de ação, a protagonista da luta pelo direito de pensar, de falar e de viver livremente em Portugal, a continuadora da 1ª vaga do feminismo português, a que a ditadura quis pôr termo, com a barreira da censura e da polícia, e a antecessora da 2ª vaga, que nasceu e cresceu no declínio do Estado Novo, nas vésperas da revolução. Uma mulher moderna – moderna por padrões atuais . No 40º ano da morte de Maria Archer, celebramos o seu retorno definitivo do exílio, para preencher o lugar a que tem direito na história da literatura, da democracia e do feminismo em Portugal e na da construção de um espaço alargado de diálogo entre os povos e as culturas da lusofonia. . Maria Archer podia ter sido personagem de um romance de Maria Archer! Falta contar é a história que escreveu dramaticamente com a sua vida. Talvez, por altura de celebração de outra efeméride, em 2024, nos 125 anos da escritora, haja quem queira e possa dar-lhe e dar-nos essa biografia. Valerá a pena, porque tão singular é a escrita como o percurso de Maria Archer. Maria Manuela Aguiar - Lisboa, Teatro da Trindade, 29 de março de 2012 ANDAMOS NA SAUDADE DE MARIA ARCHER Poderão perguntar porque se envolveu a Associação de estudos MM na evocação de Maria Archer, em sucessivas iniciativas - no Encontro Mundial da Mulheres Portuguesas da Diáspora, em Novembro de 2011, na comemoração do Dia Internacional daMulher, 2012, na cidade de Espinho e, agora, em Lisboa, nesta sessão que nos reúne no Teatro Nacional da Trindade. Responderemos que razões não nos faltam para justificar o empenhamento cívico com que o fazemos. Uma primeira razão tem evidentemente a ver com o facto de Maria Archer ter sido uma portuguesa expatriada. Uma grande Portuguesa da Diáspora, que, desde a sua juventude, passou largos anos em cinco países da lusofonia, e em 3 continentes, olhando sempre em volta, com uma inteira compreensão das pessoas, dos ambientes, dos meios sociais, que soube traduzir em dezenas de escritos de incomensurável valor literário e, também, de muito interesse etnológico, sociológico e político....Seria motivo bastante para nos lançarmos na aventura de partir à procura desse legado multifacetado e vasto, que guarda experiências e segredos de tanta gente e de tantas terras. Mas há mais. Maria Archer é uma daquelas figuras do passado, que é intemporal, por ter sabido captar as constantes da natureza humana, por se constituir na memória crítica de um tempo português, que foi opressivo e cinzento, pautado por estreitos conceitos e por regras de jogo social e político, que ela inteligentemente desvenda e que põe em causa, sem contemplação Ninguém como ela retrata a vida quotidiana desse Portugal estagnado e anacrónico, avesso a qualquer forma de progresso e de modernidade, em que os mais fracos, os mais pobres não têm um horizonte de esperança, e as mulheres, em particular, são dominadas pela força das leis, pelo cerco das mentalidades, pela censura dos costumes, depois de terem sido deformadas pela educação. Tendo por pano de fundo os estereótipos impostos para o relacionamento de sexos, a entronização rígida dos papéis de género dentro da família e as consequentes desigualdades, distâncias e preconceitos sociais, num doloroso e longo impasse da nossa história colectiva. Maria Archer retrata suas contemporâneas, tal como elas foram, com realismo, que traduz a busca e a evidência da verdade - doa a quem doer e para que se saiba e as gerações futuras não esqueçam. Maria Archer, talvez a mais feminista escritoras portuguesas, é uma "feminista muito feminina", que ousou ser um ícone de beleza e de distinção, fazer uma carreira no jornalismo e nas Letras, e, em simultâneo, e lutar pela dignidade e pela afirmação das capacidades intelectuais e profissionais então negadas à mulher Ousou fazer um nome no mundo fundamentalmente misógino da cultura portuguesa. Ousou ser Maria Archer, sem pseudônimos..Por tudo isto, julgo que podemos dizer que ela é mais do nosso tempo do que do seu tempo - uma afirmação que podemos generalizar às mais notáveis feministas do princípio do século XX. Maria era, então, demasiado jovem para poder participar nos movimentos revolucionários em que estiveram a Liga Republicana das Mulheres Portuguesas e o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, mas iria ser uma das poucas que, no período de declínio desses movimentos e de desaparecimento de uma geração incomparável, continuou, a seu modo, solitariamente, um combate incessante contra o obscurantismo,que condenava a metade feminina de Portugal á subserviência, à incultura e ao enclausuramento doméstico. Foi uma inconformista, consciente das desigualdades e da injustiça em geral, e, em particular, das que condicionavam o sexo feminino, na sociedade portuguesa. A sua escrita, servida pelo talento, pela capacidade de observação e pela coragem foi uma arma de combate político - como dizia Artur Portela "a sua pena parece por vezes uma metralhadora de fogo rasante". Uma saga em que vida e arte se fundem - norteadas por um declarado propósito de valorização do feminino, da libertação da Mulher, e, com ela, da sociedade como um todo. Ela é já uma pessoa livre num país ainda sem liberdade, o que lhe custou o preço de um longo e doloroso exílio ... Maria Archer é uma grande escritora (ou "um grande escritor", como João Gaspar Simões preferia dizer, alargando o campo de comparação possível). Uma escritora de causas! Ninguém como ela conseguiu corroer a imagem da "fada do lar", meticulosamente construída sobre a ideia falsa da harmonia de desiguais (em que, noutro plano, se baseava a ideologia corporativa do regime), da não menos falsa brandura do autoritarismo no pequeno círculo da família ou no país inteiro. É uma retratista magistral da mulher e da sua circunstância... O regime respondeu em força. Primeiro, tentou desqualificá-la. Sintomática é a opinião de um homem do regime, Franco Nogueira, que, em contra-corrente, num texto com laivos misóginos, a apresenta como apenas uma mulher a falar de coisas ligeiras e desinteressantes, como o destino das mulheres. Não tendo conseguido, no campo da crítica literária os seus intentos, o Poder passou à acção direta: alguns dos seus livros foram apreendidos, os jornais onde trabalhava ameaçados de encerramento. Maria Archer viu-se forçada a partir para o Brasil - uma última e infindável aventura de expatriação, de onde só viria, envelhecida e fragilizada, para morrer em Lisboa. Contudo, o desterro não era pena bastante... Teresa Horta, no prefácio da reedição de "Ela era apenas mulher" afirma que Maria Archer foi deliberadamente apagada da História. O ser emigrante é já, entre nós, factor comum de esquecimento, como que natural, na memória da Pátria, mas o seu caso foi mais grave, deliberado, doloso, implacável... Dá-nos razão e força suplementar para intervirmos, ainda a tempo de neutralizar o ato persecutório, executado há décadas, restituindo a Maria Archer o lugar que lhe é devido no mundo vivo da cultura portuguesa... Lendo a sua obra em momentos mágicos de reencontro com ela, com a lucidez da sua análise e a elegância do seu estilo, acompanhando-a em incursões ao universo cinzento e confinado em que conviveram as portuguesas e os portugueses durante meio século... Elegância é uma palavra que quadra com Maria Archer, que a caracteriza na maneira como pensou, como escreveu, como se vestiu e apresentou em sociedade, como atravessou uma rua de Lisboa ou de São Paulo, como atravessou uma vida inteira, até ao fim... Ou melhor, até ao seu regresso! Estamos aqui reunidos para a trazermos a uma uma segunda vida, no sentido em que falava Pascoaes: "Existir não é pensar, é ser lembrado" Este não é o primeiro nem será o nosso último encontro sobre a sua personalidade, o seu exílio, o seu retorno... Sobre a obra e a pessoa - qual delas a mais interessante... Dizia Mariana, a inesquecível personagem de "Bato às portas da vida"; "Ando na saudade de mim, mesmo perdida no tempo", Nós andamos na saudade de Maria Archer, reencontrada em nosso tempo, e em qualquer tempo. A leitura de tantas páginas fulgurantes que nos deixou são, para sempre, porta de entrada na sua intimidade. Maria Manuela Aguiar

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