Recordar tempos idos... Falar do presente, também. E até, de quando em vez, arriscar vatícínios. Em vários domínios e não só no da política...
quarta-feira, 27 de dezembro de 2023
NATÁLIA, ETERNAMENTE NATÁLIA - in A Defesa de Espinho (dez 2023)
NATÁLIA, ETERNAMENTE NATÁLIA
Conheci Natália Correia, quando ambas estávamos envolvidas no projeto político de Sá Carneiro, eu no Governo, como Secretária de Estado da Emigração e Comunidades Portuguesas, ela no Parlamento, como Deputada, onde cumpria, exuberantemente, o seu "dever de deslumbrar" e estava destinada a ser uma das duas únicas deputadas que têm busto de mármore no Palácio de São Bento. Belíssimo, esculpido por Cutileiro!
A Assembleia da República conserva, nas páginas do Diário das Sessões, a magia da sua palavra, porventura a mais fulgurante, e, não raro, a mais agreste que algum dia se ouviu no hemiciclo, e talvez lhe venha a conceder, num futuro não muito distante, o privilégio de editar as suas intervenções dispersas em coletânea - até hoje privilégio, praticamente, masculino…). Este ano de 2023, em que se comemora o seu centenário, seria particularmente asada a essa homenagem, entre tantas outras em que destacaremos a edição da bem documentada e bem escrita biografia de Filipa Martins e uma minissérie da RTP de excelente qualidade televisiva e humana.
Foi precisamente em São Bento, nos “Passos Perdidos”, que aconteceu o meu primeiro encontro com Natália. Conversámos apenas sobre leis - sobre uma em particular, já nem sei qual, que passara pelo meu gabinete, e que ela defenderia, em sede parlamentar, no dia seguinte. Combinámos que, para análise de todos os detalhes, lhe enviaria a casa um distinto jurista. De lá voltou o perito mais impressionado do que se tivesse privado com figuras históricas, como Catarina da Rússia, ou a Marquesa de Alorna! Ainda por cima, Natália elogiara aquele modo de colaboração - que deveria ser a regra, mas não era - entre o Executivo e a bancada parlamentar. Talvez tenha visto nisso uma das diferenças que podem fazer as mulheres na república dos homens…
Reencontramo-nos, algumas vezes, no Botequim, que, não sendo eu notívaga, frequentava com pouca assiduidade, e, depois, no quotidiano, entre 81 e 83, na bancada da AD, a aliança partidária, que, desaparecido Sá Carneiro, entrara já no seu ocaso.
Como é lidar com um mito no quotidiano? É inevitável a sua "normalização"? No caso dela, não, de modo algum… Tinha as qualidades que "humanizavam" a sua grandeza, sem a diminuírem. No convívio, era amável, solidária, incrivelmente divertida e sempre formidável, sem intimidar. Antes da minha primeira intervenção formal, nervosíssima, não ousando improvisar, escrevi umas linhas, que submeti ao seu parecer crítico. “Claro que está bem – a menina sabe que está bem!”. Eu não tinha assim tanto a certeza, e aquele "nihil obstat" levou-me a subir à tribuna com alma nova! Na verdade, gostava imenso que ela me chamasse “a menina”, embora isso só acontecesse em forma de branda e simpática reprimenda ou discordância…
Porém, como opositora, num frente a frente, siderava qualquer um, sem exceção, com secos e contundentes argumentos ou com tiradas ribombantes, não menos contundentes - ordália a que os amigos, felizmente, não tinham de se submeter… A sua tirada mais mediática foi a que incendiou o debate sobre o aborto - a resposta, em verso, a um deputado do CDS, de apelido Morgado, que se atrevera a legitimar o sexo exclusivamente para a reprodução da espécie. A diatribe poética ficou conhecida como o "truca-truca do Morgado”, pacato senhor casado e procriador de uma prole de apenas dois descendentes. Tive a sorte de assistir à cena muito perto da arrebatada Oradora.
Em 1987, depois de fazer parte de dois sucessivos e incompletos Governos, regressei, ao Parlamento e às conversas com Natália, então já no PRD. Nada que nos afastasse - afinal, partilhava o seu gosto pelo distanciamento dos aparelhos partidários e até a sua admiração pelo General Ramalho Eanes. Em agosto desse ano, eu acabava de me tornar a primeira mulher eleita vice-presidente da Assembleia da República. Ao fim de poucos dias, deu-se a inevitabilidade de ser chamada a dirigir a sessão – por acaso, sem pompa nem anúncio, a meio de um discurso de Basílio Horta, apenas para o Presidente Crespo fumar um cigarro nos bastidores. Tanto melhor para mim, que queria passar despercebida... Mas eis que Natália se levanta em aplauso, logo seguida por Helena Roseta e pelos demais deputados, incluindo Basílio, que, por um breve instante, continuara a intervenção, muito perplexo, sem saber por que motivo a Câmara inteira aplaudia de pé. Foi uma estreia, a abertura de um precedente, um minuto feminista para a história parlamentar!
Não menos feminista foi outro momento, que, também, se lhe ficou a dever: a original ideia de prestar tributo às pioneiras do movimento sufragista português, no "Dia Internacional da Mulher", a 8 de março de 1988. E, assim, oitenta anos depois da criação da “Liga das Mulheres Republicanas”, elas gozaram, enfim, do direito de serem ouvidas, ali, na casa da democracia, em longas citações dos seus discursos, pela voz de deputadas da geração das suas netas.
Em 1991, o Partido Renovador perdeu representação parlamentar e, com isso, a Assembleia da República perdeu Natália, a Mulher que acordava a Câmara da hibernação na mediocridade em que estava caída. A Mulher capaz de transformar, por exemplo, um simples jantar de portistas em S. Bento em tertúlia erudita, discorrendo brilhantemente sobre desporto, deuses e mitos, para concluir que a serpente símbolo da antiga Lusitânia e os dragões da "cidade invicta" pertenciam a uma mesma matriz. Nesses tempos, quantas vezes, da terceira fila do hemiciclo, onde habitualmente me sentava, tal como Natália, olhei em redor, pensando: "Daqui a cem anos estamos todos mortos - todos, menos a Natália".
Lembro-me de lho ter dito uma vez, perante o seu silêncio complacente e o esboço de um sorriso. A profeta de futuros longínquos era ela, eu apenas ousava uma incursão em terreno proibido ao comum dos mortais. "Begginer's luck", sorte de principiante: a minha profecia vai a caminho de se cumprir!
EDITORIAL - REVISTA DAS DELEGAÇÕES DO FCP
EDITORIAL, POR MANUELA AGUIAR (EX-DEPUTADA E ATUAL ADMINISTRADORA DA FC PORTO – FUTEBOL, SAD)
O meu trabalho de mais de 40 anos como Secretária de Estado e Deputada da Emigração permitiu-me conhecer e reconhecer a enorme importância da nossa Diáspora, que está viva em todos os continentes onde os portugueses, sem qualquer apoio dos governos de Lisboa, se organizaram numa admirável panóplia de instituições culturais, sociais e desportivas. É a Nação das Comunidades, a Nação sem Estado, pura sociedade civil, independente e forte. Dentro dessas comunidades fui encontrar, muitos portistas, muitos clubes e casas regionais de bandeira azul e branca e vi crescer, ao longo dos anos, a rede de Delegações do próprio FCP.
Estávamos no início da era de ouro do Presidente Jorge Nuno Pinto da Costa e eu fui chamada a colaborar nos nossos dois primeiros congressos de filiais, que mostraram a dimensão mundial já conquistada pelo Clube. E, por essa altura, ganhei a alcunha “Dragona”, atribuída pelo presidente Pinto da Costa, que tanto me honra!
Na verdade, sou descendente em linha reta de portistas, desde os tempos da fundação do Clube e comecei a ver futebol, jornada a jornada, com o meu pai, a partir da inauguração do Estádio das Antas, numa época em que poucas meninas frequentavam recintos desportivos. Ser do Porto e do FCP faz parte da minha identidade.
Sou naturalmente regionalista e sinto-me gratíssima ao nosso Presidente por ter conseguido, num país controlado por uma capital macrocéfala, fazer dos portistas campeões da Europa e do Mundo, e tornarem-se, assim, o símbolo máximo do futebol nacional. Presenciei ao vivo as épicas vitórias em Sevilha, Gelsenkirchen e Yokohama e foi em tão distantes lugares que me apercebi da grandeza dos sonhos azuis e brancos, que não conhecem limites.
A mensagem também não! Através das dezenas de Delegações espalhadas um pouco por todo o mundo, somos uma família cada vez maior e que se revela sempre capaz de atingir os mais ambiciosos desígnios, porque à paixão individual somamos a força coletiva de Casas e Delegações e a visão de uma liderança incomparável.
Mais de 40 anos depois, estamos ainda longe da igualdade no tratamento que a nossa e as outras regiões do país merecem do Terreiro do Paço, mas dentro de campo alcançamos já tudo quanto parecia impossível e se tornou possível, a nível nacional e internacional.
Olhamos com orgulho esse passado e com esperança o futuro, a história ainda por fazer de um Clube em imparável expansão. O nosso FCP!
segunda-feira, 25 de dezembro de 2023
A BIENAL DE ARTES DE ESPINHO - Lugar aos jovens in Defesa de Espinho (dez 2023)
A BIENAL DE ARTES DE ESPINHO
LUGAR AOS JOVENS
1 - A Bienal de Artes de Espinho nasceu, em 2011, sob o signo da singularidade: uma Bienal de Mulheres de Artes, coisa inédita, e, enquanto durou, ao longo de três sucessivas realizações, única no Pais, e, tanto quanto se sabe, na Europa. Mais um título de pioneirismo e modernidade para Espinho, caraterísticas que moldaram a sua vocação inicial e, pela vivência, a sua identidade. A terra e o mar viram-se, em harmonia, repartidas pela comunidade piscatória, cultora da arte xávega, pela indústria conserveira[U1] , líder de mercado, e pelo turismo, corporizado na grande migração estival, que animava a estância balnear cosmopolita, uma costa verde a rivalizar com a “Côte d’ Azur”… O comboio estava no centro do vaivém de gente, que vinha do interior do país e das Espanhas, que enchia cafés, casinos, teatros, cinemas, esplanadas, avenidas… Uma intensa vida social e cultural, pontuada por nomes ilustres, que tanto como os incansáveis trabalhadores e as vagas de anónimos veraneantes faziam a história de um lugar, que todos sentiam seu!
Por altura da 1ª Bienal, o Fórum de Arte e Cultura, que conhecemos pela sigla (FACE), com o seu Museu e as suas belas Galerias geminadas, ainda não tinha completado o segundo ano de vida, e já era, a par do Centro Multimeios, da Biblioteca José Marmelo Silva, ou do Auditório de Música, um símbolo da modernidade no século XXI. Importante património material que, porém, não cumpre a sua função só por existir, mas por se converter, de facto, em espaço de dinamização cultural e convivialidade.
A ideia de transformar uma interessante, mas efémera exposição de mulheres pintoras em originalíssima Bienal, foi, note-se, de um homem, o Dr. Armando Bouçon, Diretor do Museu. Para avaliar o caráter inovador de uma tal iniciativa, em termos nacionais, basta dizer que só muitos anos depois, se veio a realizar, em Lisboa, na Fundação Gulbenkian, uma grandiosa exposição de Arte no feminino que teve enorme impacto mediático.
Antes disso, em 2017, já o Executivo Municipal resolvera pôr fim à Bienal reservada a Mulheres de Artes e adotar, na 4ª Bienal, o modelo que a tornou igual a todas as outras. Ainda por cima, por acaso (e porque neste país não há sistema de coordenação de eventos e esforços, nem sequer dentro da mesma área metropolitana…), Gaia decidiu realizar a sua Bienal exatamente no ano em que decorria, e decorre, a nossa, a poucos quilómetros de distância, em quase simultaneidade… Um orçamento não sei quantas vezes superior, permite-lhes criar polos em cidades próximas e distantes e levar a cabo um chamativo programa de eventos culturais, ao longo de todo o período de abertura ao público das exposições.
2 - Aparentemente, a Bienal de Espinho perdia no confronto. Mas eis que a evolução, nas fórmulas adotadas, foi, não de imediato, antes de uma forma gradual (e não sei se voluntária ou involuntária), criando um modelo de competição e de afirmação de um outro nicho de participação, que tem o potencial de distinguir, de novo, a Bienal de Espinho pela sua singularidade. Deixou de ser, pelos regulamentos, um espaço do feminino, e está, ainda que não formalmente, (isto é, embora regras escritas não o imponham), transformada num espaço de afirmação da juventude. A maioria dos candidatos selecionados pelo júri de concurso, assim como dos vencedores de prémios, são mulheres e homens em início de carreira, ou até mesmo ainda estudantes das Escolas de Belas Artes.
Talvez a explicação para o fenómeno, que nos limitamos a constatar, resida na composição do júri, formado, em larga medida, por professores daquelas Escolas. “Tout est bien qui finit bien”! A Bienal reconverteu-se por dentro, fez caminho próprio, apostando na juventude. Porque não, então, consagrar esta realidade, formaliza-la nas regras de jogo e na denominação?
Gaia chamou à sua Bienal, uma “Bienal de causas”. E muito bem. É a sua originalidade… No nosso caso, porque não assumir, orgulhosamente, a nova especificidade, que se foi sedimentado na prática, (determinada, talvez, numa intencionalidade, mas não num estatuto declarado: ser uma Bienal de Jovens Artistas. Imponha-se, pois, limite de idade, ou a condição de estudante de cursos de formação.
Essa escolha transparente, oficial, a meu ver, só trará vantagens, uma das quais a de evitar que nomes consagrados vejam, com compreensível desagrado, as suas candidaturas rejeitadas. Embora essa categoria de artistas plásticos se tenha, progressivamente, autoexcluindo da Bienal de Espinho, o tornar a situação clara não a desprestigirá, bem pelo contrário, antes de mais por lhe reconhecer uma identidade que a diferencia das outras…
3 – Dito isto, devo acrescentar que tenho acompanhado, sempre com contentamento, ou na feliz expressão brasileira “pensamento positivo”, o percurso da Bienal, porque tem sabido cruzar a sua própria tradição, sem se deixar acantonar por ela, com uma vontade de mudança. E, como sabemos, “todo o mundo é feito de mudança” …
Foi excelente a ideia de combinar o núcleo central de candidatos selecionados, em competição pelos prémios, com as exposições de artistas convidadas (os), uma das quais tem sido sempre reservada a “Mulheres de Artes”. Significativa homenagem ao pioneirismo das primeiras três Bienais. Não sei, de fonte segura quem a pensou, mas tudo me parece apontar para o Diretor do Museu, tão construtivamente presente na organização das (já) sete ininterruptas realizações…. E há ainda um outro registo, que julgo importante salientar, uma esplêndida constatação, devida, em exclusivo, ao mérito artístico das e dos concorrentes: a paridade entre géneros tem sido sempre, naturalmente, assegurada, quer no respeitante a presenças, quer no respeitante a prémios. Entre os jovens em auspicioso princípio de trajetória, a igualdade surge como um dado adquirido… Mas será que tem hipóteses de se confirmar, através de todas as fases? Ou, pelo contrário, haverá, depois, mais obstáculos para o sexo, em regra, ainda sub-representado neste e em outros setores, ao mais alto nível?
Este ano, essa interrogação foi levantada por uma coletividade que fixou, recentemente, a sua sede no FACE, a Associação “Mulher Migrante”. A AMM e o “Círculo Maria Archer” (que não é menos espinhense), propuseram à Câmara Municipal e à Junta de Freguesia de Espinho a realização de um ciclo de debates, no quadro da Bienal e das comemorações do cinquentenário da cidade - um ciclo inteiramente focado nas particularidades da situação das mulheres portuguesas em diversas áreas, começando pelas Artes, passando pelo espaço da emigração e da construção das Diásporas, e pela Política, e terminando na história e na vida de Espinho, com uma sessão dedicada à Mulher Vareira. A programação contou com especialistas em cada um destes campos, que dialogaram com todos os intervenientes, informalmente, em modo de tertúlia, seguindo as melhores tradições de convivialidade desta nossa terra: artistas participantes na Bienal, entre elas a Comissária da exposição feminina (em 2023, centrada na maternidade, fonte eventual de graves discriminações ao longo da carreira), algumas das maiores especialistas, académicas e investigadoras na área das migrações femininas, dirigentes associativas, vindas de comunidades próximas ou longínquas, (como as de Caracas e de Buenos Aires), jornalistas (uma das quais comissariou a 1ª Bienal), mulheres políticas, com experiência de Governos e de Assembleias, a nível nacional e local (incluindo a nossa anfitriã, Presidente de um Executivo camarário de maioria feminina, que, se for único no país, é, com certeza, caso raríssimo). E, no dia de encerramento ao público das exibições, sábado passado, foi conferencista o Dr. Bouçon, numa temática em que é mestre, a das mulheres vareiras, desde os primórdios da comunidade piscatória espinhense. A seu lado, um verdadeiro símbolo vivo dessas pioneiras, a popular e encantadora Carlota, narrava episódios de uma história de vida muito rica e fechava a última destas tertúlias com um pregão cantado em voz jovem, potente e melodiosa. Um daqueles “pregões matinais” que já não se ouvem mais no pitoresco quotidiano das nossas ruas (com número e sem nome…),
No começo de cada debate, não num lutuoso minuto de silêncio, mas em alguns minutos de palavras sentidas, lembramos a Maria José Silva, antiga funcionária municipal e Vereadora da Cultura, uma das companheiras de sempre na Associação Mulher Migrante, que nos deixou há pouco tempo, mas continuará presente na memória, como admirável exemplo de militância pelas causas que nos movem. Uma grande Senhora, na sua invariável generosidade, na espontânea simpatia do seu sorriso.
quinta-feira, 5 de outubro de 2023
ESPINHO CIDADE - O CINQUENTENÁRIO in Defesa de Espinho (set 2023)
ESPINHO CIDADE O CINQUENTENÁRIO
O que distingue Espinho das outras terras?
A singularidade de Espinho é absoluta, desde o seu início até aos dias de hoje. Nasceu, cresceu e evoluiu fazendo história e abrindo-se ao futuro com uma mescla de fantásticas particularidades, a combinação de facetas contrastantes num todo único. A pequena comunidade piscatória conviveu com a indústria conserveira e com o turismo balnear mais vanguardista, num mágico enclave cosmopolita, entre Gaia e da Feira, onde se erguia, em finais de oitocentos, uma urbe moderníssima de traçado geométrico, original face aos cânones tradicionais de um país antigo. A sua vertiginosa ascensão à fama fica a dever-se, por um lado, ao comboio, que a Espinho acessível a visitantes do interior de Espanha e do próprio país, por outro, (e sobretudo), à visão de ilustres fundadores, que souberam sonhar alto e realizar pragmaticamente, ao quererem e conseguirem rivalizar com as maiores estâncias estivais da Europa.
Espinho já tornara verdadeira cidade muito antes de ser reconhecida como tal, por tudo o que oferecia a residentes e a forasteiros, o seu mar de grandes vagas, as suas esplanadas e avenidas, o seu comercio florescente, a vivência internacional, as casas de espetáculos, o jogo, a hotelaria, os recintos desportivos, a animação do seu dia e da sua noite.
A minha memória de Espinho (nestes 50 anos)?
Nas minhas memórias deste último meio século, já não havia o Café Chinês, nem a preponderância alegre de “nuestros hermanos”, e, depois, deixou de haver o vaivém da Avenida, entre as palmeiras gigantes, e as esplanadas de café, o magnífico Cine Teatro São Pedro, o bonito cinema do Casino, de cujas varandas, nos intervalos, olhávamos o oceano, o comboio a atravessar a cidade e a mostrá-la, ao vivo, como incomparável cartaz turístico. A proximidade de toda a cidade com o mar, perdeu-se, para sempre, exceto nas centenas de metros de enterramento da linha férrea, e o Hospital também, com as suas múltiplas valências e reconhecida qualidade.
Com tudo isso, que se chamou progresso, com as suas consequências - as boas e as menos boas - a terra mantém intacta a sua identidade e o seu encanto! Somos, o que é, cada vez mais, cidade e comunidade, coisa tão rara!.
Somos cidade com a dimensão ideal, cujo centro podemos percorrer a pé, encontrando amigos, encontrando tudo o que precisamos, num comércio local que, como é se tornou já “slogan”,um “centro comercial ao ar livre”. A Biblioteca, o jardim. o Multimeios, a Câmara, os CTT, os bancos, os restaurantes e cafés, o mar e a piscina, a estação de comboio, ficam a alguns, poucos, minutos de distância. O espetacular Fórum de Arte e Cultura de Espinho, com as elegantes galerias de Arte e o Museu, fica a uns escassos 15 minutos a pé, e é por muitos considerado já relativamente, distante…
E somos comunidade, autêntica comunidade, com um associativismo excecionalmente pujante, que lnos dá projeção cultural (na música, e da dança, com acento nos aspetos da formação, nas Artes, nos festivais), e não menor projeção desportiva, com os nossos clubes e tantos campeões, E, igualmente, com a forte vertente da solidariedade e da beneficência, com os “media”, sua imprensa, o ensino, a Escola Profissional, os Liceus (como ainda gosto de os designar…), a Universidade Sénior.
Todas as cidades deviam ser assim. Viver em Espinho é um privilégio!
Como vê Espinho nos próximos 50 anos?
Espinho, a meu ver, pela sua dimensão humana e pela sua vivência comunitária, é já uma cidade do futuro. Essencial é não as perder, uma e outra, e progredir com elas.
Governo local e “sociedade civil” souberam, em tempo matricial, pensar um projeto de cidade, ajustado às potencialidades do lugar, e dar-lhe corpo e alma. Em tempo de prodigiosos avanços tecnológicos é essencial continuar o legado, saber valorizar caraterísticas únicas, com um novo élan de criatividade.
Sem fazer futurologia, direi apenas que gostaria que Espinho se tornasse; uma sociedade mais igualitária, mais aberta à metade feminina, mais intergeracional. Há que fixar os jovens com oportunidades profissionais e atividades lúdicas, hoje em défice. Há que apostar no turismo e nas residências séniores, (para portugueses, para estrangeiros) - aposta viável numa estância marítima, plana e geométrica, tão agradável e tão facilmente convivial.
Esta comemoração simbólica acontece num momento em que à frente dos destinos da Câmara está, pela primeira vez, um Executivo de maioria feminina e presidido por uma Mulher. É mais um motivo para acreditar que os próximos 50 anos começam bem!
Qual a sua memória do Dia da Elevação a Cidade?
Lembro-me muito bem desse dia! Por pura coincidência, passeava com minha mãe, a ver montras da Rua 19, no preciso momento em que o cortejo oficial, encabeçado pelo Primeiro Ministro Marcelo Caetano atravessava a rua, ladeado por uma comitiva de notáveis, mas também por uma verdadeira multidão.
quinta-feira, 28 de setembro de 2023
Íntimo - O prefácio
A PARTIR DE UM SONETO
" Deixei, num voo pleno de ansiedade,
Vogar, na asa do sonho, o coração"
(in "Íntimo")
Em 1995, o Pai e eu estávamos a preparar uma edição dos seus versos de juventude - sonetos dedicados a minha Mãe, no início dos anos 40, quando se conheceram. Havia muitos mais, mas só restam os que ela guardou.
À época, anos 30 e 40 do século passado, era comum os namorados expressarem sentimentos, de preferência, em palavras que rimavam e podiam guardar-se, em bom papel, como recordação, numa gaveta ou num cofre. Foi exatamente o que fez minha Mãe - guardou-os e, por isso, os "versos para você, Maria" são praticamente os únicos de sua autoria, que chegaram até hoje.
O Pai era um repentista, escrevia, com facilidade, os seus poemas e, muitas vezes, igualmente, outros para os amigos, que queriam passar por poetas. Em regra, à mesa de um café - os salões dos café foram sempre a sua segunda casa, no Porto ou em Espinho...
Quando começámos o projeto, rapidamente mandei dactilografar os manuscritos e o Pai escolheu, logo, o título : "Íntimo", que é o do soneto a que pertencem as estrofes acima citadas. Ao Pai cabia fazer a definitiva revisão do texto, acrescentar ou cortar vírgulas, e eu trataria do resto - tipografia, capa, imagens, edição. Mas o Pai foi adiando, adiando... Reuniu as folhas soltas, uma para cada soneto, numa pasta de cartolina, e, às vezes, até saía com a pasta debaixo do braço, levava-a para o Café Palácio. A boa intenção era dar-lhe uma vista de olhos, enquanto esperava os amigos, depois da leitura vagarosa do seu jornal (estava sempre atualizado, sobretudo em matéria política - bem mais do que eu, então sempre de partida para as reuniões do Conselho da Europa ou para visitas às nossas comunidades transoceânicas). Contudo, os amigos não tardavam. ou encontrava-os já sentados numa das mesas redondas do novo Palácio ou. mais raramente, no bar do Casino. O tempo esgotava-se nas conversas, nos passeios à beira-mar, nos encontros com a família de Gondomar, diante do ecrã de televisão (horas...) ou na leitura pela noite fora - ultimamente biografias, os policiais de Sara Paretsky, Umberto Eco, humorísticos, como Guareschi, Jerome K Jerome, ("so british", o seu predileto), sem esquecer a missa e meditação diárias, as novenas na capela de Nossa Senhora da Ajuda. Era evidente que a pontuação dos versos não tinha prioridade nesta preenchida agenda de reformado, em Espinho, terra de tertúlias, esplanadas, praias e mar, de que tanto gostava, desde a sua infância. Não havia pressa. Contudo, a morte veio subitamente. O seu coração parou. Parou mesmo, coisa absurda, enquanto conversava connosco, a meio de uma frase... Sereno, bem disposto, a jantar, fazia um comentário sobre esse dia animado domingo de Páscoa, em casa do Mário, em São Cosme, onde nunca falhávamos o "compasso". Antes tinha discorrido sobre a crónica semanal de Marcelo Rebelo de Sousa, já nem sei em que jornal, talvez "O Expresso". Era um incondicional admirador de Marcelo, decerto apreciaria agora o seu estilo na presidência. Dou por mim, muitas vezes, a pensar nos diálogos que teríamos sobre vagas de acontecimentos que se sucederam na sua ausência - vitórias do Porto, derrotas do Porto, a "troika", a "peste grisalha", no dicionário dos medíocres políticos da nova geração, os atentados, a ameaça da hegemonia alemã na UE, o "Brexit", o Papa Francisco...
Não estávamos sempre de pleno acordo, mas conversávamos longamente, a dois, ou no seu grupo de amigos, a que me juntava, de vez em quando. Éramos uma família pluralista - o Pai, um democrata de sempre, republicano, anglófilo, conservador, votava PSD, a Mãe, muito à direita, monárquica e militante do PPM, fazia "voto útil" no CDS e eu, à esquerda, "social- democrata à sueca" (embora também eleitora do PSD) e, se a questão de regime ainda se pusesse, monárquica, mas igualmente à maneira sueca.
Quanto à coletânea, publiquei-a prontamente, sem mais revisões, com a ajuda de um dos mais jovens participantes da tertúlia do Café Palácio, o Fernando, que tratou da parte gráfica, numa tipografia dos Carvalhos O Pai teria apreciado esta ligação aos Carvalhos, onde viveu 11 anos felizes no famoso colégio, que é um "ex-libris" da terra, ainda hoje. Além dos versos, apenas algumas fotografias (de pouca qualidade, por sinal), e umas breves palavras da mulher e da filha.
Agora, esta edição, no ano do centenário do seu nascimento, é uma ocasião para falar dele, da sua vida, família e amigos. Íntimo, nos seus versos e na nossa prosa.
A VIDA QUE VIVE NA NOSSA MEMÓRIA
Para mim, foi um Pai presente numa infância alegre, acompanhou-me nas crises e esperanças da juventude, e, depois, ainda por muitos anos, numa relação progressivamente mais equilibrada, mais igualitária, como se a diferença de idades se fosse esbatendo.
E, por isso, quando assim é, o Pai não pode desaparecer, fica connosco até ao fim de nós próprios. Especialmente, se era como gostávamos que fosse. Se cada vez o compreendíamos mais e o achámos melhor, de facto, em correspondência com a realidade, porque quando as qualidades existem, o tempo e a experiência servem sempre a sua afirmação. Com ele, assim aconteceu, sobretudo, no respeitante àquelas qualidades que exercitava no dia a dia e o faziam ser sagaz nos seus juízos sobre as pessoas e o mundo, muito simpático para com toda a gente e competente no seu trabalho ("reliable", para usar a sua língua estrangeira preferida - para ele tudo o que era britânico era bom, da democracia aos seus bonés de "irish tweed"). Havia, sem dúvida, outros talentos inatos, de que desistiu cedo, fosse por descrença nas vantagens de os cultivar, por lucidez sobre a relativa insignificância de atingir objetivos que outros prezavam demais , ou (quem sabe?) por não se achar fadado para os alcançar. Faltava-lhe ambição, agressividade competitiva, instinto empresarial (que ambos os seus avós tinham de sobra, e, por isso, ambos fizeram fortuna). mas não lhe faltavam preocupações, com coisas grandes e pequenas. Preocupava-se demais, era excessivamente dado à ponderação de prós e contras de uma decisão, abordava as questões por todos os ângulos possíveis, levava o seu tempo (muitos anos mais tarde, quando o Dr Silva Leal, que foi seu professor no ISCTE, e meu "chefe" num Centro de Estudos, referindo-se a um político ascendente no fim do velho regime, o classificou como "suficientemente ignorante das matérias, para tomar decisões rápidas e eficazes", lembrei-me logo do meu Pai, que estava nas antípodas). Isto no que respeita a sucesso material, não na vida que há para além da procura do lucro e da "glória", nem em matéria de aventuras sentimentais, inicialmente simples namoros de juventude, depois, dois casamentos românticos, aos 19 e 22 anos, o primeiro breve e trágico, com a morte da noiva, o outro longo - mais de meio século - até à sua morte. Duas mulheres belíssimas, de forte personalidade, sempre vestidas pelo último figurino, inteligentes e audaciosas, que trouxeram, certamente, "glamour" e intensidade à sua vida.
Dizem os entendidos na matéria que os nativos de gémeos são eternamente jovens. Não sei se se comprova, se é coisa escrita nas estrelas, sei que, no caso do Pai. era certamente verdade. Talvez por isso, voltou à universidade depois dos quarenta e foi colecionando bacharelatos e licenciaturas. Começou com um recém-criado curso de Política Social no ISE e acabou, entre os primeiros licenciados em Sociologia pelo ISCTE. Tudo em Lisboa. Fez muitos amigos, sobretudo, entre os que eram, como ele, do Porto. Iam para aulas de fim de semana (gesto simpático dos professores) e para os exames em excursão de camionete. Em festa!
Gostava de conviver com jovens. Era tolerante e divertido, embora discreto, nas tertúlias. Sentido de humor, graça e simpatia tornavam-no popular junto de todas as gerações.
Seria um bom político, se tivesse vocação. Não tinha, mas gostava dos políticos em quem se revia, como Sá Carneiro e Freitas do Amaral, a quem até lhe dedicou um slogan com rima:
"Não há esquerdas, nem direitas.
Portugal é todo Freitas!
Assim era este poeta repentista...
QUESTÕES DE GÉNERO NAS POLÍTICAS DE EMIGRAÇÃO Defesa de Espinho (set 2023)
QUESTÕES DE GÉNERO NAS POLÍTICAS DE EMIGRAÇÃO
Maria Manuela Aguiar
1 INTRODUÇÃO
As primeiras medidas políticas de diferenciação de sexo no domínio da emigração vão, como regra geral, no sentido de proibir ou limitar mais fortemente a expatriação das mulheres, mesmo para fins de reunificação familiar. Só após 1974 as mulheres viram reconhecido o direito de emigrar livremente, e o de conservar a nacionalidade em caso de casamento com um estrangeiro. A igualdade perante a lei converte-se, porém, em pretexto para desvalorizar ou ignorar as especificidades da sua situação, padronizando-se neste quadro jurídico e fático, a emigração portuguesa no masculino. A convocação do primeiro encontro mundial de mulheres emigrantes, em 1985, e a realização de novos congressos e encontros, ainda que com periodicidade espaçada, através de parcerias entre o Estado e o movimento associativo (sobretudo o feminino), tem contribuído para uma maior consciência da questão de género, ancorada na audição e na crescente visibilidade dada às cidadãs do estrangeiro. A aplicação da "regra da paridade”, em 2007 às eleições para o Conselho das Comunidades Portuguesas, constituiu uma primeira medida jurídica concreta de promoção da participação das migrantes na vida coletiva das comunidades. A aprovação da Resolução n.º 32/2010, pela Assembleia da República, na linha de muitas das propostas dos referidos congressos e encontros de mulheres da "Diáspora", é reveladora de uma nova perceção da importância da componente de género nas políticas da emigração.
I- AFLORAMENTOS DA "QUESTÃO DE GÉNERO" NAS POLÍTICAS DE EMIGRAÇÃO.
Medidas discriminatórias, proibitivas ou limitativas. Tradicionalmente, emigrar era uma "aventura masculina". As Portuguesas viram-se, desde os séculos XVI e XVII, especialmente limitadas no que hoje diríamos o seu direito à emigração ou à reunificação familiar. E se até ao regime nascido no 25 de Abril de 1974 nunca foi verdadeiramente livre para todos a saída do país, o certo é que os obstáculos foram sempre maiores para as mulheres. No período da "expansão", nem para acompanhar os maridos isso lhes era, em princípio, permitido, só a título excecional e por favor régio. Política diametralmente oposta foi, por exemplo, Jurista, foi docente da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica e da Faculdade de Direito da 1 Universidade de Coimbra. Árdua defensora dos direitos das Mulheres e das Políticas da Emigração, atividades que desempenhou nos anos em que esteve à frente da Secretaria de Estado para a Emigração e Comunidades Portuguesas, na qualidade de deputada na Assembléia da República, e na presidência da Comissão Parlamentar das Mulheres. _____________________________ Page 1 of 15 seguida em Castela, que sempre privilegiou a emigração de casais para as colónias da América do Sul. (Boxer, 1977, p. 34). No nosso caso, houve sim algumas exceções determinadas pela vontade de promover o enraizamento de populações europeias em determinadas regiões do Império. Com essa finalidade, saíram para a África e o Oriente as chamadas "Órfãs d’El-Rei”, jovens recolhidas em orfanatos que eram dadas em casamento a soldados e outros potenciais povoadores, mediante um determinado dote, nomeadamente terras de cultivo ou empregos públicos. Também o povoamento por casais foi promovido em casos contados, ao longo de diferentes épocas, mas nunca de forma generalizada e sistemática. (Boxer, 1977, pp. 78-84). Mais tarde, no século XIX, em contexto puramente migratório, poderemos apontar um caso particularmente bem documentado de emigração familiar para as antigas Ilhas Sandwich, enquadrada num acordo bilateral entre os reinos de Portugal e do Havai. A partir da Madeira e dos Açores aportaram nessas ilhas do Pacífico, muitas mulheres e homens, que quase sempre levavam consigo uma prole numerosa e deixavam a terra sem esperança de voltar. (Félix, 1978, pp. 28-30). Porém, à margem de qualquer incitamento ou facilitação do processo, as mulheres, em grande número, iam juntar-se a maridos e familiares por sua vontade, contrariando estratégias, leis e determinações das autoridades. Em oitocentos e no início do século seguinte, acentuou-se a tendência para o aumento das que assim reagiam à solidão em que se viam, partindo ao encontro dos homens, em regra, depois de eles estarem integrados na nova sociedade, o que era causa de desmedida preocupação dos especialistas neste domínio, tanto de académicos como de decisores e responsáveis pela execução das políticas de emigração.
2 São representativas do pensamento da época as opiniões de investigadores como Afonso Costa e Emygdio da Silva. Para o primeiro, a emigração feminina é mesmo considerada uma "depreciação do fenómeno migratório", o que tem de se compreender na lógica de considerar o emigrante essencialmente como fonte de divisas. Nas suas próprias palavras: "[...] é quando a família fica na Pátria que ele envia mais regularmente as suas economias". (Costa, 1913, p. 182). Para o segundo, o êxodo das portuguesas era "uma constatação tremenda". Reportando-se a este fenómeno no início do século XX, entre 1906 e 1913, um período em que se regista um crescimento de 127% das saídas de mulheres, os perigos para que aponta são, antes de mais, a "desnacionalização" e a "cessação de remessas". (Silva, 1917, p.132). Não surpreende, assim, que a discriminação entre os sexos fosse evidenciada na própria definição de emigrante: o passageiro homem que viajava na 3ª classe dos navios e a mulher que seguisse desacompanhada, qualquer que fosse a classe escolhida para o transporte, ficando sujeita a O Estado, de um modo geral, privilegiou, de jure e de facto, a emigração de homens sós, assim como a miscigenação 2 consentida ou encorajada nas colónias a fim de reter no Reino as mulheres. E terá sido à atitude de desafio destas “viúvas” de maridos vivos, que decidiram partir ao encontro dos ausentes, que se ficou, fundamentalmente a dever a matriz cultural portuguesa dessas colónias de povoamento. Segundo Boxer, a Coroa Portuguesa terá sido, geralmente, mais permissiva no que respeita à saída de mulheres para o Brasil do que para África ou o Oriente.
Essa diferença de tratamento denunciava a clara consciência da "questão de género", a constatação da influência da presença da mulher no curso do projeto migratório, no seu destino final, com maior probabilidade de uma opção pela integração e pelo não retorno a suscitar a intervenção autoritária, vertida em medidas jurídicas e práticas administrativas. De facto, a emigração familiar reforçava, como ainda hoje indubitavelmente reforça, a tendência para a fixação definitiva no país de acolhimento. E não se perspetivava outro tipo de ganho que pode ser maior e mais duradouro do que a entrada de divisas para equilibrar as contas com o exterior. Por exemplo, a criação de comunidades portuguesas pela cultura e pelo afeto, (indissociáveis de uma forte componente feminina), que eram, então, pouco mais do que ignoradas ou depreciadas como meros “guetos” transitórios onde se enclausurava, por escolha própria, a primeira geração de emigrantes. Haveria também, já, o assomo de alguma preocupação com a situação de especial vulnerabilidade das mulheres, pelo receio de que sós, em terra estranha, pudessem ser vítimas de exploração no trabalho. O que obviamente não havia ainda, era a ideia de que as mulheres, tal como os homens, têm direitos, e muito menos a aceitação de que pudessem ter, neste como noutros domínios, direitos absolutamente iguais.
II- DA IGUALDADE NA LEI ÀS DESIGUALDADES DE FACTO
Em 1974, depois da revolução do 25 de Abril, a liberdade de circulação dentro e para fora do território nacional é restabelecida (ou melhor, estabelecida) e vem a ser consagrada na Constituição de 1976. Esse foi um tempo de tão assertiva afirmação de princípios, que levou a uma natural sobrevalorização do plano puramente jurídico, como se as leis vanguardistas tivessem, de per si, o poder de transformar ditames em factos do quotidiano. Assistimos, por isso, a uma diluição da problemática feminina perante leis que as não discriminavam, com o que isso representava de positivo face ao passado, mas também com a faceta negativa de ser "padronizado” no masculino todo e qualquer trajeto migratório, assim se tornando opaco e permanecendo desconhecido o que especificamente dizia respeito às mulheres migrantes. No "país do território" sentiu-se a necessidade de ir abrindo caminho à igualdade efetiva entre os sexos para além da mera proclamação de princípios, dando às políticas uma base operacional própria em serviços ou departamentos com competências genéricas ou sectoriais (a "Comissão para a Igualdade", cuja designação foi variando sem verdadeiras ruturas na sua atuação, exemplifica aquela primeira categoria; a Comissão para a Igualdade no Trabalho e Emprego - CITE - a segunda). Pelo contrário, no "Portugal da Diáspora" a atitude foi de descaso das autoridades nacionais no respeitante à situação das portuguesas no estrangeiro e às eventuais singularidades da sua integração no mercado de trabalho e na comunidade de destino, não obstante a Constituição, no art.º 9.º/h, a partir da revisão de 1997, e também no art.º 109.º, impor ao Estado a tarefa de promover a igualdade entre os sexos no que respeita à participação cívica e política, sem restringir essa incumbência ao território nacional. Descaso tanto mais criticável quando se receava que as emigrantes fossem, na sociedade de acolhimento, duplamente discriminadas, como mulheres e como estrangeiras, ainda por cima, numa conjuntura em que se acentuava a “feminização” da emigração devido à crise económica que viera interromper a chamada de trabalhadores ativos e apenas tolerava movimentos migratórios para efeito de reagrupamento familiar. A partir da meia década de 70, a percentagem de mulheres nas comunidades do estrangeiro aproximava-se da dos homens. E, apesar das restrições que inicialmente, um pouco por todo o lado, se colocavam à sua atividade profissional, a maioria acabou por aceder, como os homens, ao mercado de trabalho, ainda que não normalmente no mesmo tipo de emprego. Em qualquer caso, a possibilidade de profissionalização, logo aproveitada maciçamente, converteu-se numa autêntica via de emancipação dessas mulheres dando-lhes importância do ponto de vista económico, social e cultural, e, do mesmo passo, independência e igualdade, quando não supremacia dentro da família. Face às mulheres não emigrantes, as que tinham saído do país gozavam, em regra, não só de maior prosperidade económica como de um estatuto profissional e familiar privilegiado (Leandro, 1995, p. 51). E mesmo em relação aos homens emigrados nem sempre perdiam no confronto .3 A tese da "dupla discriminação" perdeu o seu carácter de evidência. Se existe, sob diversas formas, acaba sendo frequentemente superada. Conclusão a que se chega quando se perspetiva a vida das emigrantes ao longo de décadas, como realidade complexa e dinâmica, e quando se entra em linha de conta com a sua provável situação em caso de não emigração. (Aguiar, 2008, p.1257). Em boa verdade, o sucesso no longo prazo da geração de 60 e 70, a do "salto" para a Europa, não é só da metade masculina, mas também da feminina (Leandro, 1998, p. 22). E às próprias mulheres se fica a dever, não ao sustentáculo moral e material ou a quaisquer formas de ajuda do seu país . 4 No aspeto legislativo, é de salientar que na década de 80, subsistia ainda contra a letra e o espírito da Constituição de 1976, uma capitis diminutio das mulheres portuguesas, na maioria mulheres emigrantes, embora não pelo facto de o serem, mas sim pelo de residirem num lugar geográfico mais propício ao convívio com não nacionais: refiro-me à lei que retirava a nacionalidade portuguesa automaticamente às cidadãs que casassem com estrangeiros. A Lei n.º 37/81 veio permitir-lhes não só conservarem a nacionalidade, independentemente da do cônjuge, como transmiti-la em igualdade de condições à sua descendência, e recuperar o estatuto de cidadania portuguesa perdido "ex lege". No entanto, note-se que a reaquisição desse estatuto Maria Engrácia Leandro foi uma das primeiras investigadoras a evidenciar formas desta insuspeitada realidade, tendo centrando os seus estudos nas comunidades portuguesas da região parisiense.
É certo que algumas medidas pontuais se podem destacar. Um exemplo: aquando da adesão de Portugal à CEE, no 4 âmbito das comparticipações comunitárias, a SECP organizou diversas ações no domínio da formação profissional destinadas a mulheres, o que constituiu uma diligência pioneira, ainda que desenvolvida num universo limitado, e, por isso, sem decisivo impacte na vida da generalidade das portuguesas. Facilitada e com eficácia retroativa só viria a ser assegurada pela Lei n.º 1/2004 de 15 de Janeiro, ou seja, cerca de trinta anos depois da revolução do 25 de Abril .
5 - Olhámos a emigração do passado, mas tratando-se de um movimento que nunca cessou, e reassumiu, sobretudo na última década, uma desmesurada dimensão, convém igualmente considera-lo no presente. Embora isso não tenha ainda reconhecimento bastante, há de facto um recrudescimento das vagas migratórias, no conjunto menos dramáticas, menos visíveis do que as das décadas de 60 e 70, e, também, mais difíceis de quantificar na sua exata extensão, porque se dirigem em larga medida a um espaço europeu de liberdade de circulação. As mulheres estão envolvidas no processo por vontade e direito próprio, autonomamente, e tal como os homens, são cada vez mais qualificadas. Segundo o sociólogo Eduardo Victor Rodrigues "[...] já não correspondem ao paradigma da mulher da aldeia que sai para acompanhar o marido; são bastante escolarizadas e procuram melhores condições de vida" . É um êxodo, também no feminino, que 6 escapa ao paradigma tradicional e que é necessário conhecer melhor e apoiar, como reivindica a Assembleia da República numa Resolução aprovada no primeiro trimestre deste ano que irei expor adiante. Alguns estudos têm sido desenvolvidos nesta área por cientistas, a título individual, em projetos de centros de investigação, e também em comunicações e debates de congressos, encontros, seminários, como é o caso do que aqui nos reúne. Fala-se em “congressismo”, para englobar este último tipo de iniciativas. É uma palavra que não encontraremos em muitos dicionários, mas que permite classificar expressivamente um instrumento que tem tido influência basilar na elucidação e na procura de respostas para a "questão de género” em Portugal, no nosso século, tal como noutros países e noutros tempos, pelo menos desde que Elizabeth Cady Stanton fez história do feminismo nos lendários encontros de Seneca Falls. Nos anais da luta feminista, como nos da luta pela valorização do papel da Mulher no universo da emigração, o “congressismo", assim entendido, tem podido concertar a vertente académica com a da partilha de experiências vivenciais visando a ação concreta e a mudança. Em Portugal, no presente, através dele se tem vindo a executar uma parte do programa de governo para as comunidades portuguesas do estrangeiro, em matéria de género. (Aguiar, 2009, p. 41). Os A Lei n.º37/81 de 3 de Outubro foi, a meu ver, descaracterizada pela via da regulamentação que admitia inclusive a 5 oposição do Estado em processo de reaquisição da nacionalidade pela mulher casada com estrangeiro. A Lei Orgânica n.º1/2004 de 15 de janeiro, no art. 30.º veio permitir a recuperação da nacionalidade, por mera declaração. Na parte final do n.º 2.º do mesmo artigo estipula-se que a reaquisição "[…] produz efeitos desde a data do casamento". Afirmações do sociólogo Eduardo Victor Rodrigues, proferidas no encerramento do Encontro “Cidadãs da Diáspora”, 6 em Espinho, tiveram eco nos media das comunidades, nomeadamente no Canadá. Citamos um artigo de 9 de março de 2009 do jornal "Voice", intitulado justamente "Mudanças nos Hábitos dos Emigrantes Portugueses". Os “Encontros para a Cidadania foram anunciados e efetuados nesse preciso enquadramento, a partir de 2005 .7 Um parêntesis, para salientar a absoluta necessidade de recorrer ao conhecimento científico a fim de fundamentar novas políticas de emigração. É uma evidência nem sempre vista como tal. Em largos períodos do passado recente, governo e universidades viveram dissociados, com os efeitos que se conhecem, em particular a tardia reação das autoridades perante inesperados reinícios de surtos migratórios e, muitas vezes, também perante casos graves de exploração dos expatriados, dos quais a opinião pública e o governo tomam conhecimento, em simultâneo, pela imprensa. Por isso se regista como positiva a retoma de colaboração que, previsivelmente, permitirá inspirar e delinear decisões e medidas de pronto e atento acompanhamento de movimentos emergentes. Exemplo de uma relação mais estreita entre estes dois mundos, o académico e o político, é o estabelecimento da parceria entre a Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas e um centro de investigação universitário (do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa - ISCTE), para levar a cabo um projeto de análise e caracterização do fenómeno migratório, através do "Observatório da Emigração” . 8 Resta saber em que medida se preocupará o “Observatório” com a problemática de género, e tornará mais ou menos dispensável a recomendação, repetidamente feita ao governo, de criar um observatório das migrações femininas.
III- AS PRIMEIRAS INICIATIVAS DE AUDIÇÃO DE MULHERES EMIGRADAS
Como vemos, foi regra geral até data recente a indiferença dos Governos por tudo o que respeita às particularidades da integração das emigrantes no sector profissional e no universo associativo, este, dirigido e representado, nunca é demais salientá-lo, quase em exclusivo por homens, no período que se seguiu à proclamação jurídica da igualdade plena entre os sexos, nomeadamente no Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP), desde 1981. Dos grupos que tradicionalmente viam, pela especificidade das suas situações, supostamente no seu próprio interesse, dificultada a saída do país, de mulheres e jovens, só estes últimos têm estado no centro da atenção dos políticos, antes de mais, através da organização de programas de No primeiro comunicado de imprensa sobre os "Encontros para a Cidadania" dizia-se, expressamente, que um dos 7 seus objetivos era "o cumprimento do programa do XVII Governo (capítulo V, ponto 7) " Não é nova a preocupação de estimar e analisar, de forma sistemática, os movimentos migratórios nacionais. Portugal 8 participou, ativamente, desde os tempos do "Secretariado Nacional da Emigração", no Serviço de Observação Permanente das Migrações - SOPEMI - da OCDE – colaboração a que, na década de 80, era ainda dada uma grande importância. Nos "Encontros Para A Cidadania", sobretudo nos de Buenos Aires e de Estocolmo, foi insistentemente avançada essa recomendação. Tendo sido em data posterior criado o “Observatório da Emigração” para evitar dispersão de esforços, o mais razoável parece ser agora uma insistência para que nele se venha a incluir o estudo das particularidades das migrações femininas. Objetivo necessário para desocultar de disparidades e injustiças, a fim de desencadear a alteração de mentalidades e atitude, a par de outros, como o ensino da língua e cultura portuguesas, ações de intercâmbio, estágios de formação profissional, encontros, debates, do que designamos por "congressismo".
Na reestruturação do CCP – através da Lei n.º 66-A/2007 de 11 de dezembro – o legislador foi mais longe com a instituição de um “Conselho Consultivo da Juventude”, com competência “nas questões relativas à política da juventude para as comunidades portuguesas”, e nas “questões relacionadas com a participação cívica e integração social e económica dos jovens emigrantes e luso-descendentes nos países de acolhimento”. Nada de comparável está previsto para o associativismo feminino. Alguns responsáveis políticos justificarão esta diferença com a opção pela "paridade" de género no CCP, nos termos que adiante explicitaremos, em alternativa a esta outra forma de dar representação específica a determinados segmentos ou grupos das comunidades. Julgo, porém, válido contra-argumentar que a verdadeira paridade é um objetivo a prazo incerto, provavelmente a longo prazo, pelo que, no imediato, a metade feminina da emigração ficará longe de ter a metade dos assentos do Conselho. Por outro lado, a vertente de "género" não tem sequer sido valorada, e deveria sê-lo, nos critérios de concessão de apoios do Estado às iniciativas de instituições da "Diáspora", parecendo contar pouco o facto de o crescimento da rede de clubes e centros culturais em que se estruturam as comunidades se dever, em muito, à participação de famílias inteiras, com as mulheres a assumirem funções simétricas no círculo estreito do lar e no círculo alargado na coletividade, neste permanecendo quase sempre uma discreta "dona da casa" dedicada às artes da culinária, da decoração, da organização dos bastidores da festa e do convívio quotidiano, que são certamente fatores insubstituíveis para assegurar a agregação e desenvolvimento das instituições. Um papel vital, mas redutor, de que se vai libertando, para exercer, alternativa ou cumulativamente, quaisquer outros, para já, mais em determinados países do que na generalidade do universo da Diáspora portuguesa. Estamos num domínio da vida em sociedade em que, segundo a opinião dos que defendem em absoluto o princípio da não interferência, o Estado não deve intrometer-se. Todavia, não é disso que se trata, trata-se não de condicionar ilegitimamente a independência das instituições, mas de velar pela aplicação de direitos fundamentais que nenhuma tradição ou costume que invoque pode subverter. Há que incentivar boas práticas dentro de cada associação portuguesa do estrangeiro, apelando à vivência igualitária da cidadania, como de resto quer o próprio legislador constitucional. A verdade é que, com recurso aos mais variados pretextos, sucessivos governos no pós 25 de Abril de 1974 descuraram a prossecução do objetivo da igualdade de acesso a atividades cívicas e políticas no espaço da emigração. A vontade de romper este quadro de inércia foi divulgada, logo no início de funções, pelo Secretário de Estado António Braga no 1º Encontro da Cidadania, em novembro de 2005, ao falar do “desígnio”, que presidia a essa reunião de " [...] retomar da questão de género, que tem andado esquecida ao longo dos anos […]", e ao admitir que "Portugal não tem tratado do papel da mulher nas comunidades de acolhimento à luz dos seus direitos de participação cívica, cultural e política".
Era, de facto, um "retomar" a questão de género que havia tido apenas um momento breve de afirmação na meia década de 80. No arranque desta primeira fase está uma recomendação do CCP, que se fica a dever à visão e sensibilidade de uma das raras mulheres que nele tinha voz. O Conselho, criado pelo Decreto-lei n.º 373/80 de 12 de setembro, órgão consultivo do governo, era eleito de entre os líderes das associações e formado, como disse, na sua quase totalidade, por homens, à imagem do próprio dirigismo associativo de então. Maria Alice Ribeiro, "mulher-exceção", na qualidade de representante dos media do Canadá no CCP, obteve, em fins de 1984, na reunião regional desse órgão, realizada em Danbury, Connecticut, consenso para a sua proposta de convocação de um congresso mundial de portuguesas emigradas. A Secretaria de Estado da Emigração aceitou o desafio e o “1.º Encontro de Mulheres no Associativismo e no Jornalismo" aconteceu no ano seguinte. Trinta e seis portuguesas dos cinco continentes foram convidadas, através das embaixadas e consulados de Portugal, a apresentar comunicações: jornalistas, professoras, investigadoras, sindicalistas, empresárias, estudantes, dirigentes de coletividade. Mulheres de formação muito diversa, todas elas ativas das suas comunidades, no ensino, na ação social, no teatro, na dança, na música, no desporto.
A seleção desse grupo de personalidades convidadas não teve tanto a preocupação de assegurar um equilíbrio regional entre as grandes concentrações de emigrantes, como de refletir a participação das mulheres, tal como à época se verificava, em comunidades com origem, idade e tradições de organização e ação femininas muito diversas. Assim, com uma representação mais em qualidade do que em quantidade, tendo como interlocutores vários membros do governo da República e dos governos regionais dos Açores e da Madeira e também, da sociedade civil, se realizou, em junho de 1985, em Viana do Castelo, a reunião matricial. 1985 era o ano de encerramento da "Década" das Nações Unidas dedicada à Mulher, facto que não havia sido determinante na recomendação do CCP, embora a coincidência tenha contribuído, a par do carácter inédito da iniciativa portuguesa, para que o "Encontro" tivesse o alto patrocínio da UNESCO. Não havia, realmente, memória de organização, por parte do governo de um país de Declarações de António Braga em entrevista transcrita na publicação sobre o "Congresso online", promovido em 10 2009 pela “Mulher Migrante”. Um quarto de século antes, eu própria, encerrei o Encontro de Viana com um discurso semelhante, notando, no que às mulheres respeita, "[...] ausência de participação, de voz, de reconhecimento, de poder, ao menos de poder formal, nas instituições [...]" Posições concordantes, separadas por um longo hiato de duas décadas de inação política, neste campo. A génese dos Encontros para a Igualdade vem sumariada num artigo com esse título, na edição sobre "O Congresso on line". "Jornalismo" considerado no seu sentido mais amplo, incluindo profissionais, correspondentes de meios de comunicação de âmbito europeu, (“BBC”, “Radio France Internacional”, quotidianos parisienses), ou americano (“CBS”), a par de produtoras ou diretoras e colaboradoras de programas "étnicos". As trinta e seis participantes - das quais catorze jornalistas - procediam de dez países, dos cinco continentes, com predominância das do norte da América, Canadá e EUA, sobretudo, da Califórnia, onde o associativismo feminino tem uma existência quase centenária.
Não se conhece em qualquer Diáspora fórum semelhante, apesar de, na altura, alguns, poucos, já disporem de mecanismos para audição geral dos seus expatriados. A menção do Conselho das Comunidades torna-se incontornável no historial deste congresso, não só por lhe pertencer a autoria da proposta da convocatória, mas também porque o desenrolar dos trabalhos se inspirou nos seus moldes de debate e decisão, contou com parceiros oficiais do mesmo nível e fez apelo ao envolvimento do associativismo e dos media (precisamente como sucedia no próprio "Conselho"). Assim, as "conselheiras", a título informal, puderam dialogar com os mais altos responsáveis pelas políticas para a emigração, transmitir-lhes os seus pontos de vista e, seguidamente, deliberar, entre si, conclusões e recomendações. Nas conclusões gerais, realçaram, como António Braga haveria de fazer duas décadas depois, sinal da longa paragem do processo então encetado, " […] a pouca audição que tem sido dada às mulheres portuguesas no estrangeiro". E, naturalmente, no final dos trabalhos quiseram enfatizar " […] o entusiasmo e a expectativa gerada pelo Encontro". Para audição futura, e para a chamada das mulheres à intervenção cívica, propunham a criação de uma associação internacional própria. Na escolha de temas para debate, no modo de historiar o passado e olhar o presente, e nas recomendações para a mudança de um "estado de coisas", colocaram a tónica em dois grandes objetivos indissociáveis: o de serem consultadas sobre a realidade global das comunidades e o seu futuro, tal como o viam e queriam legitimamente influenciar; o de repensarem o seu próprio papel na família, na vida coletiva, no trabalho profissional e no associativismo, a fim de passarem à execução de projetos de mudança. Nos anos que se seguiram, a estrutura internacional autónoma para que apontavam não viria a formar-se por falta de assunção da liderança, decerto por causa da dispersão, da distância, das dificuldades de contacto. Mais pragmática e fácil de implementar teria sido a proposta de inclusão da problemática feminina na agenda do CCP para convocatória de novas reuniões. Em 1987, perante o impasse em que se caíra, a Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas enveredou por essa via, no contexto de uma reestruturação do CCP. Previa-se a organização, não na orgânica, mas na órbita do “Conselho”, por simples despacho do presidente do CCP que era, então, um membro do Governo, de várias "conferências" temáticas em áreas prioritárias, entre elas, uma "Conferência para a Promoção e Participação de Mulheres Portuguesas do Estrangeiro” . 14 Nas conclusões, in fine as participantes quiseram marcar esse carácter pioneiro, ao destacarem o seguinte: " […] Não 13 se tem conhecimento que algum país de emigração tenha alguma vez organizado um Encontro deste tipo. As mulheres portuguesas no estrangeiro tiveram voz, usaram-na e partiram animadas por uma nova vontade de fazer. Em Portugal ficou o eco do que disseram". Na verdade, nem governo nem as convidadas para o "Encontro" tinham modelo estrangeiro em que pudessem inspirar-se - salvo em iniciativas padronizadas no homem migrante. Uma breve referência às conferências é feita na publicação "Mulher Migrante - O Congresso on line" (p.8). A queda e substituição desse Executivo, no verão de 87, implicaram a marginalização imediata do CCP, enquanto organismo de consulta, e as "conferências" não foram nunca convocadas, tal como os plenários do “Conselho". Cerca de uma década depois, a memória das expectativas geradas em 1985 e a convicção de que seria ainda necessário e possível satisfaze-las, levou um pequeno número de participantes do "Encontro" de Viana, a constituir uma associação que reclamou a herança desse projeto em demorada hibernação: a "Mulher Migrante - Associação de Estudo, Solidariedade e Cooperação". (Gomes, 2007, p. 99). A "Mulher Migrante" manifestou, desde logo, uma vontade de cooperação com governo e com ONG’s interessadas na promoção de estudos e de reuniões ou Congressos periódicos, a fim de fazer o ponto da situação das mulheres migrantes e de abrir caminhos para a igualdade. De algum modo, ainda que sem uma base institucional no seu modo de funcionamento, inspira-se no modelo do CCP originário, que tinha raízes na comunidade (em sentido orgânico) e se inseria numa estratégia de cooperação "Estado-Sociedade Civil". Não será de todo excessivo ver, não na "Mulher Migrante" em si, mas na "plataforma de diálogo" que com o governo e instituições ou personalidades das comunidades do estrangeiro foi sendo mantida, essa vocação de se converter numa espécie de "Conselho" no feminino, pelo menos no período em que decorreram os "Encontros Para a Cidadania - a Igualdade entre Mulheres e Homens".
IV- OS "ENCONTROS PARA A CIDADANIA", PARADIGMA DE MOBILIZAÇÃO PARA A IGUALDADE ENTRE MULHERES E HOMENS" (2005-2009)
Em 2005, por altura do 20º aniversário do "Encontro" de Viana, a "Mulher Migrante" apresentou ao Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas uma proposta de comemoração da efeméride, através da retoma de audições sistemáticas das emigrantes, inseridas numa estratégia de mobilização para a intervenção cívica. Proposta que ele aceitou, patrocinando de uma forma sistemática campanhas com esse escopo nas maiores comunidades da Diáspora, numa ação conjunta com ONG´s de Portugal e das comunidades que foram levadas a cabo nos referidos "Encontros" realizados, sucessivamente, na América do Sul, em Buenos Aires (2005), na Europa, em Estocolmo (2006), no Canadá, em Toronto (2006), na África do Sul, em Joanesburgo (2008) e nos EUA, Berkeley (2008). A "Associação Mulher Migrante", converteu-se, desde a meia década de 90, num parceiro preferencial de vários departamentos governamentais, nomeadamente da Comissão para igualdade, e da SECP.
O Governo fez-se representar em todas essas reuniões, a alto nível político - pelo Secretário de Estado das Comunidades, António Braga, ou pelo Secretário de Estado, que tutelava a "Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género" Jorge Lacão.
A Jorge Lacão coube, na "Conferência para a Igualdade" em Toronto, fazer uma ampla explanação doutrinal sobre as novas "políticas de género" para a emigração. Na abertura dessa Conferência, assegurou, com meridiana clareza, que “[…] as tarefas fundamentais do Estado Português" para a promoção da igualdade se não podem limitar à ação junto das portuguesas e dos portugueses residentes no território […]. Segundo ele, a letra da Constituição não deixa margem para dúvidas ao não excecionar o campo de atuação além-fronteiras, como é, aliás, esclarecido no Programa do XVII Governo Constitucional. O Governo compromete-se a "[…] estimular a participação cívica dos membros das comunidades portuguesas, tendo como princípio orientador a Igualdade de Oportunidades entre todos os portugueses e todas as portuguesas, nomeadamente a Igualdade de Género, independentemente de serem ou não residentes em Portugal”. Mais longe foi ainda ao trazer à luz do dia o papel, sempre tão envolto na sombra do anonimato, das mulheres migrantes, admitindo que as políticas que as chamam a uma linha da frente " [...] configuram uma dinâmica de valorização destas comunidades e de proximidade entre o Estado e as comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo". Proximidade que o governo certamente buscava, marcando presença e tomando a palavra naquele "Encontro" com um discurso muito assertivo. Em perfeita consonância com o programa do XVII Governo, que assinalava " […] a importância das políticas de igualdade não só para as próprias mulheres, mas para as comunidades e para o aprofundamento da estratégia de aproximação entre estas e o país". Todavia, para que o seu texto não ficasse letra morta, era imprescindível o esforço de comunicação com as pessoas, para que os destinatários do chamamento soubessem ao que eram solicitados, e tivessem a oportunidade real de aderir a uma bem urdida estratégia. Lacão foi ao cerne da questão ao lembrar que, aquém dos objetivos programáticos do governo, " [...] as mulheres se encontram sub-representadas nas instâncias de decisão dos movimentos associativos, pelo que os seus pontos de vista e necessidade se arriscam a não ser tidos em conta". E, de seguida, alistou o equilíbrio das componentes feminina e masculina na vida associativa e na das comunidades, ideia chave para a “paridade", como essencial aos objetivos do próprio programa do governo: “ [...] a participação equilibrada de mulheres e homens no movimento associativo e nos seus órgãos de tomada de decisão, bem como nas suas comunidades, é Na organização dos “Encontros”, a par da "Mulher Migrante" estiveram a Fundação Pro Dignitate, através da Doutora Maria Barroso, Presidente de Honra dos "Encontros", a Universidade Aberta, o "CEMRI", a "Rede Jovem para a Igualdade" e, em cada comunidade, uma ou várias ONG's responsáveis pela implementação do projeto: na América do Sul, a Associação Mulher Migrante Portuguesa da Argentina; na Europa, a federação "PIKO", com sede na Suécia: no Canadá, a "Working Women" e outras, com particular envolvimento da Cônsul Geral de Portugal; na África, a "Liga da Mulher Portuguesa"; nos EUA, o departamento de português da Universidade de Berkeley. condição essencial para a defesa dos direitos, bem como para uma tomada de consciência das suas necessidades". (Lacão, 2009, p.11) A palavra ganhou, ali, de facto, força num ato de diálogo no interior de uma das maiores comunidades do estrangeiro, com mulheres e homens representativos do movimento associativo, onde estas teses praticamente nunca haviam sido afloradas, nem de uma forma espontânea, nem por parte do governo. Foi bem sublinhado o significado que se atribuía à ação das mulheres para garantia de preservação das instituições, tanto quanto para alcançar melhores condições de defesa dos direitos e interesses individuais e coletivos. Neste e nos demais "Encontros " se pretendeu levar a efeito um levantamento o mais abrangente possível do posicionamento e da atuação cívica das portuguesas no mundo, com um propósito de estimular a mudança. Isto é, não apenas de constatar, mas de agir, ou interagir. O Secretário de Estado das Comunidades acentuaria, em Joanesburgo, ao anunciar a preparação de um novo congresso mundial de mulheres emigradas, que "[...] estas iniciativas são um claro sinal da firme disposição do Governo de Lisboa em promover encontros mundiais [...] pela importância que atribui à necessidade de reforçar os laços com Portugal". (Braga, 2009, p.132) A partir desse Congresso terão, ou não, continuidade estas formas de audição, regionais ou mundiais, ensaiadas entre 2005 a 2009? E passarão pelo movimento associativo, pela colaboração com as ONG's, como se viu neste quadriénio? Não é de modo algum seguro antecipar que sim. O programa do atual Governo, no ponto referente a Negócios Estrangeiros, Comunidades Portuguesas e Cooperação, ao contrário do que acontecia com o anterior, é omisso no que respeita à problemática da igualdade de género e às iniciativas, havidas ou a haver, na área das "Comunidades" e na relevância genérica de parcerias com as ONG's, neste domínio. Ou será antes pelo CCP, que passará o eixo central das políticas com a componente de género? Só a resposta a estas perguntas, a obter dentro dos próximos anos, permitirá concluir se estamos, ou não, no limiar de uma estratégia para as comunidades portuguesas do estrangeiro, assente na chamada das mulheres à participação cívica igualitária.
V - MEDIDAS JURÍDICAS DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE NO SÈCULO XXI
A norma que determina a aplicação do princípio da paridade, imposto nas eleições legislativa e autárquicas, à eleição do CCP (o n.º 4 do art.º 11.º e a alínea a) do n.º 1 do art.º 37.º da Lei n.º 66-A/ 207) é, no plano jurídico-político, uma medida excecional de promoção da igualdade de género na história da emigração portuguesa, dando cumprimento da letra e do espírito da Constituição da República. O anúncio da sua (então) próxima entrada em vigor foi feito na Conferência de Toronto A omissão contrasta com a relevância que é dada a parcerias com as ONG's em sede de Cooperação, (Programa 17 do XXVIII Governo, p. 127).
- - - - por Jorge Lacão, como prova da vontade do governo de garantir a audição efetiva das mulheres num órgão onde sempre haviam sido uma pequeníssima minoria, e, na prática, sem acesso à sua instância de cúpula, o "Conselho Permanente".
As listas para o CCP viriam, de facto, no ano de 2008, a assegurar, em observância da lei, a inclusão de um terço de mulheres. E como os atos eleitorais para a Assembleia da República e para as autarquias ocorreram no ano seguinte, acabou por constituir como que um "ensaio geral" do sistema de quotas bem-sucedido, pois redundou no aumento, que era previsível, do número e percentagem de conselheiras e, também, na sua ascensão ao Conselho Permanente. A presença feminina, globalmente, no CCP, nas diversas Comissões e na instância de coordenação, é quantificável, com todo o rigor (sabendo-se que está ainda longe de uma verdadeira igualdade), mas a importância real que terá no maior equilíbrio de participação de ambos os sexos na vida das comunidades do estrangeiro vai depender, diretamente, do uso que as eleitas farão da sua capacidade de influenciar os processos de funcionamento e de decisão do "Conselho", e, indiretamente, do papel que venha a ser o desta instituição que tem tido, como afirmei, um percurso acidentado e irregular, enquanto fórum de consulta do Governo e de representação dos emigrantes. Posterior à legislação que impõe a recomposição mais igualitária do CCP, bem como ao termo dos "Encontros para a cidadania", é uma tomada de posição da Assembleia da República sobre a "problemática da mulher emigrante", em forma de resolução - a Resolução n.º 32/2010, de 19 de março - que visa os mesmos resultados das referidas estratégias e ações governamentais. Muito embora não lhes faça qualquer alusão, parece querer dar-lhes seguimento, no futuro imediato, ao definir um conjunto de medidas “destinadas ao desenvolvimento da cidadania das mulheres portuguesas do estrangeiro" e ao prever a utilização de instrumentos e metodologias idênticas, apontando para a efetivação de "seminários, campanhas de sensibilização, ações formativas e informativas junto das comunidades, incentivos a estudos e investigações.
Na Resolução n.º 31/2010, aprovada na mesma data, os parlamentares recomendam ao Governo que " […] proceda ao estudo quantitativo e qualitativo da nova diáspora portuguesa do mundo.” E fazem sua uma ideia chave do Programa do XVII Governo: preparar as medidas da sua política externa, em concertação com outros ministérios, “[…] no sentido de revelar uma mudança de paradigma face a esta nova diáspora portuguesa, colocando-a no centro das suas ações, fazendo dela uma verdadeira linha avançada da nossa diplomacia um pouco por todo o mundo”. Por seu lado, a Resolução destina-se a contribuir para “o desenvolvimento da cidadania das mulheres portuguesas residentes no estrangeiro”, visando “Promover a igualdade efetiva entre homens e mulheres no universo das comunidades portuguesas no Mundo; combater situações de violência de género; desenvolver modalidades de inserção profissional das mulheres portuguesas no estrangeiro”. (Ponto 2, alíneas a), b) e c). Objetivos, todos eles, traçados no programa do atual governo, no capítulo respeitante às políticas sociais de igualdade de género, porém, sem qualquer referência expressa ao caso das mulheres expatriadas. Não será, por isso, desapropriado concluir que a "Resolução" procura transpor o conteúdo das medidas ali delineadas, em termos gerais, para a situação particular das emigrantes. A Resolução não é, evidentemente, muito inovadora pelo que recomenda. É-o pelo facto de ser a primeira vez que os Deputados chamam a atenção para os deveres do Estado na consecução da igualdade de mulheres e homens, para além das fronteiras territoriais, como manda o art.º 109.º da Constituição. Se a resposta do Executivo for o relançamento, de uma forma constante e consistente, do trajeto de diálogo e cooperação já empreendido sem que tenha ainda atingido a generalização e a eficácia plenas, a exigir esforço incessante, sem fim à vista, estaremos no limiar de efetivação de políticas de emigração com a componente de género.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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terça-feira, 5 de setembro de 2023
O JORNAL O MUNDO PORTUGUÊS
MUNDO PORTUGUÊS
Em janeiro de 1980, iniciei, enquanto responsável pelo pelouro das migrações, o que seria um longo caminho de colaboração com "O Emigrante”, então a completar a primeira década de uma vida intensa, focada na grande vaga de emigração europeia, com o propósito de ser a voz daqueles portugueses - os mais marginalizados e esquecidos, tanto pelo Estado (que obrigava a maioria a sair dramaticamente, "a salto"...), como pela sociedade e, até, pelos "media" nacionais.
Por isso, sempre o vi como o aliado em que se podia confiar para trazer ao País o testemunho de situações individuais e da evolução da vida coletiva, e para levar, a núcleos tão dispersos, notícias do País, de uma democracia em progresso, assim como informações sobre o conteúdo de novas leis, medidas e projetos que os afetavam diretamente - o que configurava, a meu ver, autêntico “serviço público”! .
No rol infindo das minhas memórias de partilha de ações concretas com O Emigrante - Mundo Português, recordarei três, que são prova evidente da identidade, da vocação cívica e solidária de um periódico diferente dos outros:
A CRIAÇÃO DO CCP
O maior destaque vai para a sua participação, sobretudo através do Dr. Carlos Morais, no Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP), desde o momento matricial. O CCP foi, em 1980/81, o instrumento de uma política de aproximação e diálogo do Governo, que visava dois objetivos tão inovadores quanto ambiciosos. O primeiro era o de constituir uma plataforma de encontro
e cooperação entre portugueses, a nível mundial, e o segundo, não menos relevante, o de garantir uma representação específica das comunidades face ao Poder, complementando um sistema constitucional que apenas concedia aos expatriados o voto para a eleição de quatro deputados.
Este jornal não se limitou a fazer a história, mas, a seu modo, participou no nascimento do CCP como "instituição" pioneira, eleita pelo movimento associativo, e em que se integravam, numa secção autónoma, os "media" das Comunidades do estrangeiro. A transposição da lei para a realidade, da vontade do legislador para a vontade dos destinatários, foi uma aventura extraordinária, que começou pelo radical afrontamento entre emigração europeia, muito partidarizada, e a emigração transoceânica/Diáspora, e foi construindo, de debate em debate, democraticamente, uma comunidade de trabalho e destino, que soube incorporar as naturais divergências, que haveriam de persistir sempre. Comunidade de bom relacionamento humano, em que a qualidade jornalística de "O Emigrante" granjeou o aplauso unânime dos conselheiros, ao ponto de vir a ser por todos considerado um verdadeiro “porta-voz do CCP.
E, de facto, no grande forum para a internacionalização ou globalização do associativismo português, o nosso primeiro "jornal global" era o que perfeitamente correspondia à sua dimensão e perspetivas
POLÍTICAS PARA A IGUALDADE DE GÉNERO
Ao longo de cinco séculos, em Portugal, até 1974, as leis sempre discriminaram as cidadãs, proibindo ou dificultando as migrações femininas e a primeira medida positiva terá sido a realização, em 1985, do "1º Encontro Mundial de Mulheres Portuguesas no Associativismo e no Jornalismo" (por recomendação do CCP e para colmatar a quase total ausência de mulheres na composição desse órgão representativo e consultivo). "O Emigrante" esteve lá! E, quando foi criada, em 1993, a associação de estudo, cooperação e solidariedade para com a "Mulher Migrante", foi, um dos sócios fundadores, através do seu Diretor Carlos Morais. Na sede do jornal se fez o lançamento público da nova organização, que viria a converter-se, a partir de 2005, em parceiro constante de sucessivos governos na execução de políticas para a igualdade nas Comunidades Portuguesas.
IGUALDADE DE DIREITOS POLÍTICOS
Uma das principais recomendações do CCP era o alargamento dos direitos políticos dos emigrantes, e, sobretudo, o voto na eleição do Presidente da República. "O Mundo Português tomou a iniciativa de lançar uma campanha universal pela reivindicação desse direito. Com leitores em todos os continentes, quem o poderia fazer com a mesma abrangência?
Quando o voto foi, finalmente alcançado, na revisão constitucional de 1997, pode, pois, reclamar vitória, em nome dos cidadãos das comunidades!
Termino esta breve rememoração, enviando um abraço de parabéns ao "Mundo Português", por ser, há 48 anos, como o quiseram
os seus fundadores, e empresário Valentim Morais e o Padre Melícias Lopes, um “jornal de grandes causas.
UM PAÍS INVARIAVELMENTE AO CENTRO
2022 - UM PAÍS INVARIAVELMENTE AO CENTRO
1 - Em quantas eleições votamos já em Portugal, desde aquela primeira vez em que sentimos o valor tangível da Liberdade, com o retângulo de voto na mão? A resposta é: não sei, perdi a conta. Só sei que não falhei um único ato eleitoral, apesar de muitas vezes ter tido uma morada oficial, que não coincidia com aquela aonde estava. Em 1975, era assistente da Faculdade de Direito, tinha residência obrigatória em Coimbra e encontrava-me em Lisboa. Fui e voltei no meu carro, por estrada quase deserta e, depois, esperei horas, por esse momento empolgante, numa fila interminável, de gente compenetrada e silente, como quem aguarda num templo o início de uma cerimónia religiosa. A taxa de abstenção foi insignificante, o povo estava em luta, usando a arma democrática, por excelência, que é o voto. Estava em causa a Assembleia Constituinte, onde se inaugurou a arquitetura partidária em que assentou, até 30 de janeiro passado, a casa democracia portuguesa, com os quatro partidos que elegeram a maioria dos deputados.
Ao fim de 47 anos, o CDS desapareceu do Parlamento e o PCP está reduzido a seis deputados… Pelo contrário, o PS e o PSD resistem, repartem entre si a maioria de 2/3, essencial a revisão constitucional, à aprovação das Leis fundamentais do regime, às reformas estruturais de que o país precisa para ter futuro. Já houve maiorias absolutas do PSD (duas, com Cavaco Silva) e do PS (duas, com José Sócrates e, agora, com António Costa).
Uma impressionante constância do voto popular, não obstante o leque de escolha partidária ser, nessa fase de construção da democracia, extremamente alargado, com um acentuado pendor esquerdista (para além dos que sobrevivem num completo anonimato, como o MRPP, os extintos MDP/CDE, UDP, UEDS, MES, PT, OCMLP, PUP, FSP, PRT, PCP-ML, PSR, e POUS entre outros).
A autoproclamada direita, como o MIRN de Kaúlza de Arriaga, reduzia-se a pequenos grupos marginais. O CDS de Freitas do Amaral dizia-se "rigorosamente ao centro", (vocação de que, há muito, mais não resta do que o logótipo original) e assumia a tarefa patriótica de converter a direita ao seu programa cristão democrata - feito histórico que lhe é, sem dúvida, reconhecido. Seria, curiosamente, o primeiro partido a apoiar Mário Soares num governo de coligação PS/CDS, e, poucos anos depois, parceiro do PSD de Sá Carneiro na coligação AD, que conquistou a primeira maioria absoluta, em 1980.
O PPD apresentara-se, em maio de 1974, ideologicamente na esquerda reformista, com um carismático Sá Carneiro, que já no início da década de setenta, em tempos de ditadura, ousava afirmar-se publicamente “social-democrata à sueca". Mas, quer a maioria dos militantes, quer a maioria dos dirigentes que se seguiram, embora invocando perpetuamente o seu nome, foram resvalando para o centro-direita, e apenas alguns históricos resistem ainda no centro-esquerda.
Sá Carneiro tudo tentou para que o PPD fosse aceite na Internacional Socialista, o que só a oposição do PS, (já antes de 1974 membro dessa Internacional), inviabilizou. Para integrar outra família europeia, a Liberal, Sá Carneiro exigiu que adotasse, também, a designação “reformista”. O PSD já abandonou a Internacional “Liberal e Reformista”, mas esta, suponho, mantém o título, por inércia. E para onde foi, no dealbar do novo século, o PSD? Para o PPE, onde hoje convive, não só com o CDS, como com os duvidosos representantes húngaros do partido do Senhor Órban…). Talvez muitos já tenham esquecido o nome do presidente do PSD que protagonizou essa viragem à direita, a meu ver, errada. Aqui fica o nome: Marcelo Rebelo de Sousa!
Note-se, porém, que, nesses tempos primordiais, nem o PS escapou à necessidade de proceder a correções de vulto do seu esquerdismo inicial, abandonando, pouco a pouco, o "slogan "Partido Socialista, Partido Marxista" e tornando-se, com Mário Soares, a grande barreira democrática à ofensiva do PCP de Cunhal e, da extrema.esquerda, e um grande paladino da nossa adesão à CEE.
Só o PCP permaneceu imutável, marxista, leninista, eterno saudosista da URSS pré-Gorbatchev e simpatizante da distopia norte-coreana. Por muito simpáticos que nos sejam o Jerónimo de Sousa e os seus jovens heterónimos – e até são! – há que de admitir esta verdade.
2 - Quarenta e sete anos depois, as eleições legislativas não tiveram, nem podiam ter, a mesma força mobilizadora. Foram, contudo, em plena pandemia, com mais de um milhão e meio de portugueses confinados, uma enorme surpresa em termos de participação popular e, mais ainda, de resultados!
O mais surpreendido terá sido, porventura, o Presidente da República, único e exclusivo responsável pela dissolução da Assembleia da República e convocação de eleições antecipadas, que o chumbo do OE não implicava. O Governo fez questão de não se demitir, mostrou-se pronto a apresentar um segundo orçamento e nessa atitude começou a sua vitória - na qual só foi acompanhado, à distância, pelos dois outros únicos beneficiados pela antecipação de eleições, a direita inteligente da Iniciativa Liberal e a abominável extrema-direita do Chega.
Perdedores houve muitos - o PSD, o BE, a CDU, o PAN, e o CDS, desaparecido em combate. E, “last but not least”, o Presidente da República, que utilizou, pela derradeira vez, o seu trunfo maior, que é a prerrogativa de dissolver o Parlamento.
No nosso sistema político, a autoridade presidencial avulta em situações de instabilidade ou de crise, e foi nesse quadro que até agora alardeou a sua influência, através de uma superabundância de atos e palavras. A partir de 30 de janeiro, o poder deslocou-se de Belém para São Bento.
Veremos se, após a inversão de posições entre Marcelo e Costa, o seu relacionamento se mantém como dantes... E veremos se a vitória do PS, alavancada nos fundos da UE que estão para vir, se converte, como desejamos, na vitória do País, na recuperação do seu atraso económico.
3 - Aparentemente, estamos perante uma radical reconfiguração parlamentar, com a hecatombe de algumas formações partidárias e a emergência de outras.
Não vejo as coisas assim, recuperando aquela frase célebre de Pinheiro de Azevedo, gritada em situação bem mais dramática: "o povo é sereno!". É mesmo!...
António Costa não deverá continuar uma política de adiamento de reformas de fundo, que aconselham, sempre e, em muitos casos, exigem mais do que a maioria absoluta, a maioria de 2/3. Esta maioria foi, desde 1975, dada ao chamado "bloco central'' - PS e PSD. E permanece em 2022, já que ficou praticamente inalterada a expressão dos partidos que se opõem ao modelo de democracia ocidental perfilhado por Mário Soares e Sá Carneiro. Houve apenas uma dança de cadeiras no hemiciclo. Há 12 extremistas que se sentam na bancada da direita e apenas 11 na da esquerda. Ao todo, 23 em 230.
Somos um País invariavelmente ao centro!
TERTÚLIAS DE VERÃO - Espinho 2023
TERTÚLIAS DE VERÃO
CONVITE
Estando a acontecer a 7ª Bienal Internacional de Arte de Espinho, que decorre até 30 de setembro de 2023, o Círculo de Culturas Lusófonas Maria Archer e a Associação Mulher Migrante pretendem associar-se a este prestigiado evento artístico e realizar quatro tertúlias/debates – TERTÚLIAS DE VERÂO - ao longo do mês de Setembro.
O Círculo Maria Archer tem vindo a desenvolver uma intensa atividade para recolocar o nome de Maria Archer no lugar vazio que é seu, na história da nossa Literatura, do feminismo português e do pioneirismo na construção de pontes entre as culturas da lusofonia.
Para Teresa Horta, Maria Acher, mulher livre num país ainda sem liberdade, a mais feminista das escritoras portuguesas do século XX e que usou a escrita como arma de combate, pagando por isso um preço alto, tendo sido forçada ao exílio e deliberadamente apagada da História.
Este Círculo, é um espaço de reflexão que teve a sua origem na Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade Mulher Migrante (AMM). Na concretização de um grande
número das suas atividades, tem contado sempre com a parceria da AMM, que transferiu recentemente a sua sede de Lisboa para Espinho e está agora instalada no Fórum de Arte e Cultura de Espinho (FACE), graças à generosidade e apoio da Câmara Municipal.
O Círculo Maria Archer e a Associação Mulher Migrante, pretendem assim e mais uma vez, contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, dando voz às mulheres portuguesas que, nas mais variadas áreas profissionais, se constituem como seres humanos de visão feminista e ciente dos seus direitos e deveres.
Com a partida recente de uma das associadas da AMM, Maria José Silva, que tanto contribuiu para o crescimento da nossa associação e já desde 1995, enquanto membro da comissão organizadora do Congresso Mundial de Espinho e depois, enquanto Vereadora da CM de Espinho em múltiplos eventos, também membro da Direção da AMM, dedicamos-lhe estas Tertúlias, como forma de lhe prestarmos uma justa homenagem.
É para esta programação que temos a honra de vos convidar:
para assistir, participar ou intervir.
9 de setembro – 15.00H
Local: Junta de Freguesia de Espinho
Tema: A Mulher nas Artes
Intervenientes: Ana Pais de Oliveira (curadora da Bienal) Eva Resende – vencedora da 7ª Bienal; Balbina Mendes (AMM); Ana Maria Pintora (AMM); Ana Ferreira, Prémio Especial do Júri, entre outras.
Moderação: Nassalete Miranda (AMM)
19 de setembro – 16.00H
Local: Junta de Freguesia de Espinho
Tema: A Mulher nas Migrações
Intervenientes: Maria Manuela Aguiar (AMM) – ex-Secretária de Estado das Comunidades Portuguesas; Maria Engrácia Leandro (AMM) – Investigadora e professora universitária; Maria da Conceição Ramos (AMM) – Investigadora e professora universitária; Deolinda Adão (AMM), professora universitária; Aida Baptista (AMM), escritora, autora de várias obras sobre as migrações; Maria de Lourdes Almeida (AMM), Conselheira da CCP; Natália Correia (AMM), Associação Mulher Migrante da Argentina
Moderação: Graça Guedes (AMM)
23 de setembro – 16.00H
Local: FACE
Tema: A Mulher na Política
Intervenientes: Maria Manuel Cruz –Presidente da CME; Elisa Ferreira – Comissária Europeia; Berta Nunes, ex-Secretária de Estado das Comunidades Portuguesas; Nathalie Oliveira, Deputada da Assembleia de República; Elsa Tavares – ex - Presidente da CME; Ilda Figueiredo, Vereadora da CMPorto.
Moderação: Manuela Aguiar (AMM)
30 de setembro – 16.00H
Local: Junta de Freguesia de Espinho
Tema: Arte Xávega em Espinho - as mulheres vareiras
Conferencista: Armando Barge Bouçon Ribeiro - Historiador e autor de obras sobre Arte Xávega, Diretor do Museu Municipal de Espinho.
Moderação: Ivone Ferreira (AMM)
Manuela Aguiar Graça Guedes
Círculo Maria Archer AMM
segunda-feira, 28 de agosto de 2023
UM TREPIDANTE MÊS DE AGOSTO in Defesa de Espinho
UM TREPIDANTE MÊS DE AGOSTO
1 – Detesto o mês de agosto. É tempo de férias em massa. Há as cidades que se despovoam e as que mais do que duplicam o número dos seus residentes, entre estas se contando Espinho e as suas belas praias. Os aeroportos enchem-se, as greves tornam-se apetecíveis, há filas, atrasos, gente amontoada por todo o lado, cafés, restaurantes, comboios... Na televisão, os meus programas favoritos entram em pausa e as notícias escasseiam, nos cinemas é o “déjà vu”. Nunca faço férias em agosto! Prefiro trabalhar e, como estava ligada à emigração, nunca me faltavam convites para colóquios, convívios, festas e inaugurações no “país profundo”. O interior desertificado ganhava vida em mil e uma aldeias, e era-me grato testemunhar essa "ressurreição". Agora fico em casa, em frente a um computador, ou a ler um livro, ouvindo música, e passeio à beira-mar, contemplando as multidões de “espinhenses sazonais” - todos bem-vindos, naturalmente. Eu aguardo setembro para iniciar a época de banhos que, com um pouco de sorte, se estenderá por um ameno outubro, quando a praia da baía, para além dos surfistas, é frequentada por meia dúzia de castiços nadadores, quase todos da minha geração. Em suma, não gosto da “silly season”... Todavia, este ano foi coisa que não houve, num mês intenso, cheio de movimentações sociais, políticas, desportivas. As Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ), o Campeonato Mundial de Futebol Feminino, os Mundiais de Atletismo, a visita do Presidente Marcelo à Ucrânia, a Cimeira dos BRIC e a Cimeira da CPLP praticamente não deixaram vazios na minha agenda de agosto.
2 – Primeiro foi a grande aventura humana das JMJ, que atingiram, na verdade, a perfeição terrena, confirmando a tendência dos Portugueses para descurarem as rotinas e se superarem para fazer o impossível… Antes, atravessaramos a fase das questiúnculas mesquinhas, mas, na hora da verdade, calou-se o coro de maledicência e ausentou-se, para longe, o notório antiPapa Dr. Ventura. Era a vitória de uma Igreja que já está no século XXI, com Papa Francisco e o nosso Bispo (em breve cardeal) D. Américo Aguiar, a quererem jornadas mais ecuménicas do que prosélitas. Que impressionantes imagens uma religião vivida em comunidade, na procura de Deus pela procura solidária dos meios de combater as injustiças e desigualdades muito atuais, por uma abertura à celebração festiva da fraternidade, na harmoniasa conjugação da música, da dança e da palavra. E agora? Irá a Igreja retroceder? A energia que pulsava nas JMJ era um regresso às origens do cristianismo, à alegria de viver a fé em comunidade. Só podemos desejar que não haja, nos "days after" um regresso à igreja das hierarquias e dos sermões envelhecidos…
Mal terminavam as JMJ em Lisboa, e já nas antípodas, se desenrolava o Mundial de Futebol no feminino. Outro sucesso universal – pela beleza do jogo, pela ascensão de novas estrelas, pelas espantosas assistências (os estádios repletos, o olímpico de Sydney, a bater o recorde australiano absoluto para qualquer desporto, com 75.748 espectadores), pelas audiências televisivas internacionais e internas - logo no 1º “match”, para ver as suas “Matildes”, a Austrália parou, com uma audiência televisiva nacional de mais de 46 milhões. Na final, e, certamente, não por acaso, defrontaram-se, pela primeira vez, as equipas europeias dos países onde se jogam as principais Ligas de futebol (de ambos os sexos), a inglesa e a espanhola. É bem patente que o futebol feminino cresceu nos maiores clubes do mundo, os “Manchester” e os “Barça”, e não nas escolas ou nas ruas – a isso obstavam preconceitos que vão mudando devagar.
Confesso que “torci” pela seleção inglesa, porque a sua vitória daria muito mais visibilidade, influência e poder ao futebol feminino. A Grã-Bretanha conserva a força da sua língua universal e a aura de grande potência no campo militar, político, cultural, desportivo, etc, etc. A Espanha não. Contudo, não poderia imaginar quanta lama a sua liderança federativa ia lançar sobre o futebol e o desporto em geral. De pouco valeu a superioridade em campo das jogadoras, o seu “fair-play”. Delas, do seu futebol tecnicista e rendilhado, feito de muitos passes, já ninguém fala. Só se fala de um homem, que as substituiu, ocupando o palco, com o escândalo de gestos obscenos, mais o tristemente célebre "beijo a Jenni", e o discurso misógino que proferiu, não num comício fascista do Vox, mas na sede da Real Federação espanhola, aplaudido de pé pelos seus pares, que assim se tornaram cúmplices de uma conduta vergonhosa. Rubiales vai, é claro, sair de cena, vencido pela reação internacional e nacional, do Governo de Madrid, da opinião pública, de gente de bem do futebol - Casillas, Xavi, Iniesta, Simeoni, os jogadores das equipas de La Liga com os do Cadiz a adotarem o slogan “todos somos Jenni”. Contudo, a grande vitória desportiva, soterrada sob um caso vulgar de violência e exibicionismo sexual, nunca mais recuperará a sua plenitude. O despudor de Rubiales (não só o beijo à atleta Jenni, mas o exibicionismo de um gesto obsceno que as câmaras mostraram sem filtro e que, segundo ele era dirigida ao selecionador) ganhou um significado de “guerra dos sexos”, de guerra de mundos, o masculino, ainda dominante, e o feminino. O conflito entre as jogadoras e estes dois machos latinos, como é sabido, já vinha de trás. No fim, talvez elas ganhem a competição, pela 2ª vez….
3 - No terreno da política internacional, sobre as duas cimeiras referidas, direi, de momento, apenas, que é cedo para tirar conclusões. O alargamento dos BRIC aos tenebrosos regimes do Irão e da Arábia Saudita poderá cavar um fosso entre ditaduras e democracias, dificultando consensos e solidariedades, e, sobretudo, criar um maior desequilíbrio entre as partes, pelo desmedido reforço da única potência mundial que emerge no coletivo: a China! Doravante, os BRIC serão, nada mais, nada menos do que "a China e os seus satélites". O que ganharão com isso países como o Brasil e a Argentina? ...
E a CPLP? Dentro do que dela se pode esperar, começou bem. Tal como queria o nosso país, pela voz uníssona de Presidente e Primeiro Ministro, a próxima presidência não será entregue à Guiné Equatorial, (esse terrível "erro de casting"...). Assim se evitou, ao menos para já, um golpe tremendo na credibilidade da organização… E o regresso do Brasil a um papel de primeiro plano é um bom presságio para a sobrevivência da organização. O Presidente Lula parece querer, felizmente, recentrar a Comunidade na vertente cultural, na defesa do reconhecimento internacional da língua comum. É, sem dúvida, a que pode gerar projetos agregadores de países países que quase tudo o mais divide. A cultura é o máximo denominador comum. E é, sem dúvida, o domínio onde Portugal é mais igual, face à dimensão territorial, ao potencial e às legítimas ambições de "colossos" como o Brasil e Angola. Por isso, considero inteligentes as propostas portuguesas de promover os intercâmbios de jovens e instituir o equivalente a um esquema "Erasmus" no círculo da lusofonia. As nossas universidades são o que de melhor temos para oferecer a futuros líderes de cada um dos países unidos pela língua, ou seja, ao futuro da CPLP. Pensar no longo prazo é preciso…
Em plena forma está o Presidente Marcelo. Que bem lhe correu o mês, com o momento alto do seu discurso em ucraniano! E, por fim, mais uma alegria, mais uma vitória: os mundiais de canoagem, carreiam para a Pátria duas medalhas de ouro - uma das quais do campeoníssimo Pimenta, que ainda juntou à sua coleção a prata e o bronze. Assisti, no domingo, à prova em que arrecadou a prata. Prova difícil para ele, por não ser de pura velocidade, ponteada por sucessivas paragens nas plataformas, que os atletas têm de atravessar com a canoa às costas…. E lá estavam as mulheres a disputar a modalidade, a carregar, como eles, o peso das canoas, em passo de corrida (tarefa bem mais ciclópica do que pontapear uma bola) e, depois, a receberem as medalhas no pódio, em perfeita normalidade, sem que se levantassem ondas de machismo. Uma lição que a canoagem dá ao futebol....
quinta-feira, 3 de agosto de 2023
FUTEBOL FEMININO - A LONGA MARCHA PARA A IGUALDADE
FUTEBOL FEMININO
A LONGA MARCHA PARA A IGUALDADE
1 – Desde criança que o desporto foi a minha paixão - o desporto jogado e o desporto espetáculo. E, precisamente porque era tão importante na minha vida, tive desde muito cedo a consciência das barreiras que se erguiam às mulheres para a sua prática. Eu podia, em meados do século XX, romper com muitos tabus, podia estudar, tirar um curso universitário, ter uma profissão liberal, ou ser funcionária pública, viajar sozinha pelo mundo, fazer política… Tudo aparentemente, em condições de igualdade com os rapazes da minha família e geração. Durante a ditadura, é certo que me era vedada a carreira diplomática, a magistratura e me restava, no setor público, o acesso às carreiras de Notariado e Registos…), mas a partir de 1974, todos os obstáculos legais caíram, de repente…. A Cultura, a Ciência, a Política, abriam as suas portas às mulheres, com o Estado obrigado pela Constituição a promover ativamente a igualdade de facto. Não assim no Desporto, em geral e no futebol em particular. Como muitas raparigas pude, no meu tempo de juventude, testar a minha aptidão nos exames do liceu e da universidade, mas nunca saberei até onde poderia ter ido no relvado de um estádio de futebol. Claro que dei os meus pontapés na bola, mas não fui longe. Comecei por conseguir jogar com rapazes nas ruas de São Cosme de Gondomar. Foi o meu Primo Ernesto, o grande "craque" da equipa, que me impôs, contra a vontade geral. Não queriam meninas, a pretexto de que choravam ao menor encontrão. O Ernesto foi perentório: "A minha prima não chora!" Promessa cumprida. Surgiram frequentes queixas, mas não nesse capítulo. Contra as preconceituosas previsões, eu era muito rápida, muito determinada e sarrafeira.
Mais tarde, no Colégio do Sardão, tornei-me organizadora e interveniente de partidas de futebol. O Colégio, para além das virtudes pedagógicas que faziam a fama das Doroteias, tinha condições admiráveis para o exercício físico. "Indoors", com um ginásio enorme e bem equipado (com pouca utilização…), e "outdoors" com "court" de ténis, ringue de patinagem, e campo de jogos polivalente para vólei, basquete e andebol - tudo no cenário idílico de uma formosa quinta. Os meus torneios eram clandestinos, embora disputados no retângulo de terra batida, à luz do dia, durante o recreio. Havia uma vigilante, dempre mais concentrada na leitura de um livro edificante do que nas nossas correrias, o que explicará que, numa longa história de infração e reincidência, só tenha sido denunciada uma vez. Coisa séria...fui chamada à Mestra-Geral e preparava-me para um pesado castigo. Talvez escrever 500 vezes "o futebol não é para meninas" num caderninho, ou, muitíssimio pior, perder a habitual saída de fim de semana. Tive uma boa surpresa. A Mestra-Geral limitou-se a lembrar, em tom benigno, que o "O futebol, como sabes, não é um jogo apropriado para meninas", terminando com uma rara nota de humor: "Em todo o caso, como sei que gostas muito de futebol, vou abrir uma exceção - tu podes jogar, as outras não”.
2 – Nos anos cinquenta do século passado, não somente a Diretora do meu Colégio pensava assim, mas o mundo inteiro! Todos os desportos estavam ao alcance dos homens, enquanto as mulheres tinham acesso restrito aos que eram “apropriados” para elas. A “natureza” feminina, na visão de época, servia de fundamentação para quaisquer limitações impostas pelas autoridades, instituições, famílias, ou pelos costumes. E assim este domínio se tornou, em sociedades democráticas, a última fronteira de uma cultura de desigualdade de género! É, de facto, muito devagar, palmo a palmo, modalidade a modalidade, que o real desempenho feminino em antigos desportos “proibidos” vai conseguindo arrasar falaciosos preconceitos. Sendo a natureza imutável, o que mudou foi, é claro, a sua perceção...
O mais impressionante exemplo, neste domínio, será o dos jogos olímpicos da era moderna. Relançados em 1896 por Pierre de Coubertin, foram, tal como na Grécia antiga, vedados a mulheres. Cedendo aos protestos feministas, o Comité Olímpico Internacional (COI), em 1900, permitiu a participação feminina nas duas modalidades “apropriadas” a senhoras de sociedade: o ténis e o golfe. Em 1912, a COI juntou-lhes a natação. De alargamento em alargamento, cem anos depois, seria a vez do boxe!
A partir de 1991, a luta contra a discriminações faz o seu curso, só admitindo novas modalidades abertas, por igual, aos dois sexos. Em 1996, a Carta Olímpica consagra expressamente a promoção da igualdade de género. E em 2022, a COI apresenta, finalmente, uma composição igualitária (50% de cada sexo). Em 2024, nos Jogos Olímpicos de Paris anuncia que a participação de desportistas, mulheres e homens, será rigorosamente paritária e as provas femininas transmitidas, também, em horário nobre…
3 – O futebol anda muito longe do ideal olímpico da criação de condições para a igualdade de género, de estatuto, de oportunidades. É desporto e é negócio (de biliões, que a Arábia Saudita, esse paraíso da misoginia, eleva a alturas jamais imaginadas). Ora desporto e negócio são forças que têm jogado em sentido contrário.
No retângulo desportivo, os progressos do futebol feminino são extraordinários, como testemunha este campeonato do mundo, que decorre nas antípodas. Porém, na esfera do Poder, (FIFA, UEFA, Federações nacionais, coletividades), tudo como dantes... A “colonização” do futebol feminino pelas instituições, dirigentes, clubes e interesses do futebol masculino é evidente e está para durar.
Quando se olha o panorama português, esta asserção é menos chocante do que em outros cenários, porque há ainda um ostensivo desnível no futebol jogado por um e outro sexom assim como no número de praticantes, consequência do descaso do Governo, das escolas, das famílias e, "last but not least", do desinteresse da esmagadora maioria dos clubes portugueses, pequenos, médios e grandes. Devemos reconhecê-lo, saudando os clubes- exceção (o pioneiro Boavista, o SCP, o SLB, o Braga...), e, sobretudo, as “navegadoras”, que, logo na 1ª jornada, tão bem se bateram contra uma das potências europeias e foram derrotadas por um golo isolado e bastante duvidoso … Além disso, embora não acompanhe de perto as competições nacionais femininas, parece-me que a noss Federação "acordou", finalmente, para o problema e tem tido um papel positivo nos avanços registados.
Há, todavia, outros países do mundo onde a relação de qualidade do jogo jogado por mulheres e homens é a inversa. E aí a “colonização”, de que eu falei, assume foros de escândalo. É o caso paradigmático dos EUA (equipa campeã do mundo e 1º lugar no ranking feminino, enquanto no masculino ocupa um modesto 11º, sem pretensão a títulos) e do Canadá (7º no ranking femnino e 47º no masculino...). E é, em tons um pouco menos contrastantes, a realidade da Austrália (10ª no ranking feminino, 27º no masculino) e da Nova Zelândia (onde os homens estão no fundo da lista, no 103º lugar e as mulheres ao nível mediano de Portugal, no 22º). Neste 1º grupo, em que as jogadoras mais se destacam e são mais populares, estão países onde o futebol (ou "soccer") está muito longe de ser o desporto-rei. Talvez aqui possamos agregar a China (14º em mulheres, 80º em homens) Japão (11º e 20º...). Num 2º grupo, que também, de algum modo, já começa a apontar para a injustificada dependência ou subalternização do desporto feminino, incluirei aqueles onde o “ranking” do futebol de ambos os sexos é semelhante, ou equilibrado: a Inglaterra (4º lugar nos dois rankings), a Alemanha (2º no feminino e 15º no masculino, mas antiga campeã da Europa e do mundo, que pode vir a sê-lo, de novo), os Países Baixos (9º nas mulheres, 7º nos homens), os países nórdicos, o Brasil. Ou, longe do topo da classificação, as Filipinas (136º/135º).
Não podemos negar que o futebol feminino é, historicamente, tardio, nascido do futebol masculino (como uma Eva da improvável costela de Adão...), mas é tempo de traduzir a importância que efetivamente foi ganhando, em participação nas estruturas federativas, na composição das equipas técnicas, no estatuto das e dos atletas, dos treinadores e treinadoras...No que a estes respeita, os números atuais revelam o grau de discriminação: em 32 seleções presnetes no Mundial só 12 são treinadas por mulheres (Brasil, Inglaterra, Alemanha, Canadá, Suíça, Itália, Costa Rica, RAS, Noruega, Nova Zelândia, Irlanda e China). Na 1ª Copa feminina, em 1991, havia apenas uma. O ritmo tem aumentado vagarosamente e, apesar disso, nas oito anteriores edições do Mundial há, (por feliz acaso?), uma perfeita paridade de vitórias - quatro de selecionadoras (duas da Alemanha, duas dos EUA) e quatro de selecionadores. Neste aspeto, há um desempate à vista. Ainda não me atrevo a fazer prognósticos. Nesta primeira jornada, o destaque vai para as sumptuosas goleadas das brasileiras de Pia Sundhage (com uma estreante, Myr Borges, a fazer história com um “hat-trick”) e das alemãs de Martina Voss- Tecklenburg. Para já, remeto-me a deixar uma sugestão: se gostam de futebol, sem preconceitos de género, não percam, os jogos, ou, ao menos, os resumos no canal 9.
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