quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Natália - in A Defesa de Espinho

NATÁLIA ETERNAMENTE NATÁLIA Conheci Natália Correia, quando ambas estávamos envolvidas no projeto político de Sá Carneiro, eu no Governo, como Secretária de Estado da Emigração e Comunidades Portuguesas, ela no Parlamento, como Deputada, onde cumpria, exuberantemente, o seu "dever de deslumbrar" e estava destinada a ser uma das duas únicas deputadas que têm busto de mármore no Palácio de São Bento. Belíssimo, esculpido por Cutileiro! A Assembleia da República conserva, nas páginas do Diário das Sessões, a magia da sua palavra, porventura a mais fulgurante, e, não raro, a mais agreste que algum dia se ouviu no hemiciclo, e talvez lhe venha a conceder, num futuro não muito distante, o privilégio de editar as suas intervenções dispersas em coletânea - até hoje privilégio, praticamente, masculino…). Este ano de 2023, em que se comemora o seu centenário, seria particularmente asado a essa homenagem, entre tantas outras em que destacaremos a edição da bem documentada e bem escrita biografia de Filipa Martins e uma minissérie da RTP de excelente qualidade televisiva e humana Foi precisamente em São Bento, nos “Passos Perdidos”, que aconteceu o meu primeiro encontro com Natália. Conversámos apenas sobre leis - sobre uma em particular, já nem sei qual, que passara pelo meu gabinete, e que ela defenderia, em sede parlamentar, no dia seguinte. Combinámos que, para análise de todos os detalhes, lhe enviaria a casa um distinto jurista. De lá voltou o perito mais impressionado do que se tivesse privado com figuras históricas, como Catarina da Rússia, ou a Marquesa de Alorna! Ainda por cima, Natália elogiara aquele modo de colaboração - que deveria ser a regra, mas não era - entre o Executivo e a bancada parlamentar. Talvez tenha visto nisso uma das diferenças que podem fazer as mulheres na república dos homens… Reencontramo-nos, algumas vezes, no Botequim, que, não sendo eu notívaga, frequentava com pouca assiduidade, e, depois, no quotidiano, entre 81 e 83, na bancada da AD, a aliança partidária, que, desaparecido Sá Carneiro, entrara já no seu ocaso. Como é lidar com um mito no quotidiano? É inevitável a sua "normalização"? No caso dela, não, de modo algum… Tinha as qualidades que "humanizavam" a sua grandeza, sem a diminuírem. No convívio, era amável, solidária, incrivelmente divertida e sempre formidável, sem intimidar. Antes da minha primeira intervenção formal, nervosíssima, não ousando improvisar, escrevi umas linhas, que submeti ao seu parecer crítico. “Claro que está bem – a menina sabe que está bem!”. Eu não tinha assim tanto a certeza, e aquele "nihil obstat" levou-me a subir à tribuna com alma nova! Na verdade, gostava imenso que ela me chamasse “a menina”, embora isso só acontecesse em forma de branda e simpática reprimenda ou discordância… Porém, como opositora, num frente a frente, siderava qualquer um, sem exceção, com secos e contundentes argumentos ou com tiradas ribombantes, não menos contundentes - ordália a que os amigos, felizmente, não tinham de se submeter… A sua tirada mais mediática foi a que incendiou o debate sobre o aborto - a resposta, em verso, a um deputado do CDS, de apelido Morgado, que se atrevera a legitimar o sexo exclusivamente para a reprodução da espécie. A diatribe poética ficou conhecida como o "truca-truca do Morgado”, pacato senhor casado e procriador de uma prole de apenas dois descendentes. Tive a sorte de assistir à cena muito perto da arrebatada Oradora. Em 1987, depois de fazer parte de dois sucessivos e incompletos Governos, regressei, ao Parlamento e às conversas com Natália, então já no PRD. Nada que nos afastasse - afinal, partilhava o seu gosto pelo distanciamento dos aparelhos partidários e até a sua admiração pelo General Ramalho Eanes. Em agosto desse ano, eu acabava de me tornar a primeira mulher eleita vice-presidente da Assembleia da República. Ao fim de poucos dias, deu-se a inevitabilidade de ser chamada a dirigir a sessão – por acaso, sem pompa nem anúncio, a meio de um discurso de Basílio Horta, apenas para o Presidente Crespo fumar um cigarro nos bastidores. Tanto melhor para mim, que queria passar despercebida... Mas eis que Natália se levanta em aplauso, logo seguida por Helena Roseta e pelos demais deputados, incluindo Basílio, que, por um breve instante, continuara a intervenção, muito perplexo, sem saber por que motivo a Câmara inteira aplaudia de pé. Foi uma estreia, a abertura de um precedente, um minuto feminista para a história parlamentar! Não menos feminista foi outro momento, que, também, se lhe ficou a dever: a original ideia de prestar tributo às pioneiras do movimento sufragista português, no "Dia Internacional da Mulher", a 8 de março de 1988. E, assim, oitenta anos depois da criação da “Liga das Mulheres Republicanas”, elas gozaram, enfim, do direito de serem ouvidas, ali, na casa da democracia, em longas citações dos seus discursos, pela voz de deputadas da geração das suas netas. Em 1991, o Partido Renovador perdeu representação parlamentar e, com isso, a Assembleia da República perdeu Natália, a Mulher que acordava a Câmara da hibernação na mediocridade em que estava caída. A Mulher capaz de transformar, por exemplo, um simples jantar de portistas em S. Bento em tertúlia erudita, discorrendo brilhantemente sobre desporto, deuses e mitos, para concluir que a serpente símbolo da antiga Lusitânia e os dragões da "cidade invicta" pertenciam a uma mesma matriz. Nesses tempos, quantas vezes, da terceira fila do hemiciclo, onde habitualmente me sentava, tal como Natália, olhei em redor, pensando: "Daqui a cem anos estamos todos mortos - todos, menos a Natália". Lembro-me de lho ter dito uma vez, perante o seu silêncio complacente e o esboço de um sorriso. A profeta de futuros longínquos era ela, eu apenas ousava uma incursão em terreno proibido ao comum dos mortais. "Begginer's luck", sorte de principiante: a minha profecia vai a caminho de se cumprir!

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