quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

MÁRIO SOARES, SEMPRE! Conheci a Dr.ª Maria Barroso e o Dr. Soares em receções de Embaixadas, quando pertencia ao Governo Mota Pinto, em 1978. Com a Dr.ª Maria de Jesus entendimento perfeito, desde a primeira hora! Já com o Dr. Soares não foi bem assim. Os tempos eram de proselitismo partidário e eu, PPD não filiada, estava em campo oposto, mas a atração por uma personalidade tão calorosa e interessante, contribuiu, decisivamente, para o princípio do fim do meu faciosismo político. Em todo o caso, distinguia entre “gostar de Mário Soares” (sim, imenso), e “gostar politicamente de Mário Soares” (não tanto). As minhas memórias de diálogos com ele são inúmeras e, na sua maioria, muito divertidas! Viajar com ele era uma festa, desde o momento em que se entrava no avião. A conversa fluía, animadamente, resvalava para uma vozearia excessiva. Uma vez, até mandei calar toda a gente, ao ver, na primeira fila, o Presidente já a descansar, depois de ter dado a volta completa à aeronave, cumprimentando toda a comitiva. Calámo-nos, por precaução, mas ele, imune ao ruído, dormia bem em qualquer ambiente. Só a viagem à URSS (Rússia, Arménia e Azerbaijão), em tempo de “perestroika”, dava um livro inteiro, com personagens como a família Sahkarov, Gorbatchev, o chique russo da vedeta Raisa e as tentativas do Dr. Soares de sair dos rígidos roteiros soviéticos, a fim de ver as pessoas, no seu quotidiano normal. Vou cingir-me a episódios que envolveram os Deputados da comitiva – um de cada partido, contrariando o critério proporcional, por uma boa razão: o Presidente queria dar lições de convivência e pluralismo partidário, e manifestar o seu apreço pela instituição parlamentar. Apreço sem paralelo no mundo soviético, e, por isso, o protocolo atribuía vistosos carros pretos a toda a gente, diplomatas, empresários, jornalistas, e desterrava para o fim do longo cortejo, o numeroso coletivo de parlamentares, compactados numa velha furgoneta. Nos atos cerimoniais, deposição de coroas de flores em monumentos, receções, discursatas, o Presidente exigia que os parlamentares estivessem à sua volta. E nós éramos os últimos a chegar, depois de uma correria, já com o Dr. Soares a acenar-nos, de longe, impacientemente... sem a nossa presença o evento não começava! E nós não explicávamos o porquê do atraso, para lhe poupar irritações. Aconteceu o mesmo nas três Repúblicas: só ao segundo dia, depois de veementes protestos, conseguimos carros pretos e a nossa precedência protocolar no cortejo. O último incidente protocolar aconteceu em Kiev, onde o avião oficial fez escala, para um encontro de Presidentes, o nosso e o da Ucrânia, seguido de um grande banquete. Tudo no aeroporto. A comitiva teve de ser dividida em dois salões VIP, um para as altas individualidade, outro para as de segunda linha. Ora, nesta categoria decaíram dois Deputados... Sempre atento às pessoas, o Dr. Soares apercebeu-se da sua ausência e quando a tentaram justificar, exasperado, exigiu que os chamassem, de imediato, para a sua mesa. Levantaram-se, prontamente, vários funcionários. Foi tremenda a confusão, as movimentações nervosas, até se acertar a troca, com os Representantes da Nação a ocuparem os devidos assentos. Uma última aula de democracia dada pelo nosso Presidente! Por mais incrível que pareça, cena idêntica sucederia no próprio Palácio de Belém, durante a audiência presidencial a uma Delegação da China. Eu estava, como Vice-presidente da Assembleia, incumbida de acompanhar as suas visitas ao PR e ao PM (Cavaco Silva). À entrada, do Palácio, o Protocolo veio dizer-nos que a sala de receção não comportava as duas largas comitivas, chinesa e portuguesa, sugerindo que alguns dos nossos esperassem lá fora. Os colegas concordaram que só eu estivesse na audiência, como já acontecera, em São Bento, sem objeção do Prof. Cavaco, mais preocupado em falar de uma sua recente visita à China, elogiosamente, em tom formal, como é seu timbre. Não foi assim em Belém. Mal nos tínhamos sentado, e já Presidente me perguntava: “Está sozinha com esta Delegação? Porque é que não vieram mais Deputados?" Ao ouvir as minhas explicações, bradou: "Os Deputados lá fora? Nem pensar! Eu sou um parlamentarista! Quero-os todos aqui connosco”. Foi um reboliço maior do que o de Kiev... Funcionários trazendo poltronas, o próprio Presidente dando instruções, arrastando cadeiras…. Eu só pensava: “Os chineses nunca viram coisa igual. O que acharão de tudo isto?" Na sala cheia, a conversa decorreu, descontraidamente, em modo de tertúlia. Á saída, esperava-nos uma multidão de jornalista, câmaras de televisão, microfones. Para meu espanto, o líder chinês falou, falou, empolgado, a felicitar o povo português por ter como presidente uma tão extraordinária personalidade, numa girândola de elogios, que terminou assim: "é um grande humanista"! Depois, os jornalistas quiseram saber impressões sobre o encontro com o Primeiro-ministro. A resposta foi pronta e lacónica. "Também correu bem". É pouco, lembrar o Presidente Soares nestas poucas nótulas de viagens e encontros. Porém, penso que, só por si, falam do Homem que amava liberdade, a democracia, a vida, as pessoas! A 7 de dezembro de 2024 celebramos o seu centenário, ou seja, seu lugar num século da História de Portugal, na resistência à ditadura de cinquenta anos, e na construção da democracia, nos outros cinquenta. É o tempo de reconhecer quanto “gostamos politicamente do Dr. Soares”. Afinal, o mesmo é dizer “25 de Abril, sempre!” ou “Mário Soares, sempre! “. Maria Manuela Aguiar in "AS ARTES ENTRE AS LETRAS"

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