Recordar tempos idos... Falar do presente, também. E até, de quando em vez, arriscar vatícínios. Em vários domínios e não só no da política...
sábado, 14 de junho de 2025
A TRAIÇÃO AMERICANA
1 – Assistimos nestes últimos dias ao mais ignóbil ato de traição de que me lembro, desde que acompanho a política internacional. Uma traição americana. A traição de Trump à Ucrânia, sobretudo à Ucrânia, e a toda a Europa. Esse ato, que ficará entre os mais abjetos da história da humanidade, pôs em causa, de um dia para o outro, à resistência heróica de um povo que lutava há mais de três anos, sempre com fraco e tardio apoio de timoratos aliados, mas com sucesso feito de valentia e de inteligência, contra as forças invasoras do império russo. Putin invadira a Ucrânia, com o plano militar de conquista em escassos dias. Três anos depois, tinha o seu próprio território ocupado, e continuava os avanços e recuos nos “oblasts” de leste. De repente, entrou em cena o amigo americano e deu-lhe tudo o que queria em poucas horas!
Como? A mera suspensão de fornecimento de armas, (aliás, ilegal, contra decisões bipartidárias do Congresso, para ele coisa de somenos) não bastava. O exército ucraniano tinha armamento para alguns meses e a Europa preparava-se para o rearmar. No seu mortal “jogo de cartas”, Trump jogou a carta decisiva: o corte dos sistemas de comunicação por satélite, sobre os quais se baseiam, ao minuto, todas as operações militares de ataque e defesa! É assim, a guerra no século XXI!…
Com a Ucrânia no “buraco negro”, por falência dos recursos para a guerra eletrónica, Putin chacina e devasta o inimigo a sei bel-prazer, nas vésperas das cinicamente chamadas “negociações de paz”. Falta saber se Trump não foi ainda mais longe, fornecendo ao amigo Putin dados sobre operações ucranianas, nomeadamente em Kursk. De qualquer modo, manietou Zellensky e deu ao amigo russo “licença para matar”.
Eu tinha de falar sobre o caso, porque não suporto o silêncio que se faz à sua volta, a “normalização” dos crimes que estão a ser cometidos contra um povo cada vez mais indefeso! É arrepiante o silêncio, a passividade da Europa e da própria América democrática no contexto da farsa das “negociações de paz”. Praticamente só me chegou a voz do Senador Mark Kelly, do Arizona, um antigo astronauta, com um currículo feito de missões no espaço. Durante à recente visita à Ucrânia, ao dar-se conta do que ali se passa e por culpa de quem, denunciou veementemente Elon Musk como um “traidor”. É, é um traidor, mas não é o único. O ator principal é Trump. Ele não é apenas o vulgar criminoso condenado pela justiça americana em muitos processos, desde agressões sexuais, a falências fraudulentas. Um criminoso que escapou aos processos maiores, fazendo-se reeleger presidente (penso na invasão do Capitólio, na tentativa de manipulação de resultados eleitorais). É, também, um político que já ganhou o seu lugar na nave dos loucos dos grandes psicopatas. Como Nero ou como Hitler. Não foi por acaso, que o seu Vive Presidente JD Vance, (quando estava no campo oposto, antes de se juntar aos “maus”) o comparou a Hitler. É uma ótima comparação – dois narcisistas, sedentos de poder e capazes do pior. O que revela duas coisas: o jovem Vance lera uns livros, nomeadamente sobre Hitler, e até tinha escrito um, assim mostrando os seus dotes e pretensões intelectuais. Como homem, porém, não presta para nada, porque, para singrar na vida e na política, não hesitou em fazer equipa com quem considerava um Hitler americano!
O ato infamante de Trump, é doravante um aviso sério a todos os aliados (ou antigos aliados) dos EUA: este homem não é confiável! Nunca o será - é um duplo de Putin Durante o seu mandato, a cooperação estratégica com os EUA está irremediavelmente minada, mesmo que a dependência europeia não lhe permita ruturas imediatas - fornecer informação secreta a Trump ou a Putin vai, provavelmente, dar ao mesmo… A ligação íntima dos dois vem de muito longe, ainda que seja enigmática, e vai continuar.
E depois de Trump? Depois, não sei se o regime dos oligarcas americanos está para ficar, ou se a América é recuperável para uma vivência civilizada e democrática. Todavia, penso que não voltará a ser para a Europa o que já foi - aliada de todas as horas, figura tutelar.
2 – Chegámos ao fim de uma era. Ao fim da “pax americana”, que durava desde o termo da II Guerra Mundial, (há 80 longos e remansosos anos). Ao fim da NATO - talvez não oficialmente (só Trump a pode declarar extinta, os outros, por medo, vão fazer de conta que ainda tem alguma serventia, mas não tem, o art.º 5 tornou-se inaplicável e a “intelligence” insegura. Putin e Trump vão instalando o seu cerco à Europa – não somente à Ucrânia, a toda a Europa, ao que se chamava antes, o mundo livre, o mundo ocidental.
A Europa, do ponto de vista da sua defesa e segurança, acordou, subitamente, de um longo sono de 80 anos! Eu tinha pouco mais de dois anos quando a II Grande Guerra acabou. Sempre vivi no conforto e harmonia da paz atlântica. E o mesmo acontece com os milhões de europeus que são mais jovens do que eu, a esmagadora maioria da população do nosso continente. Acordámos incrédulos, com uma única certeza; tudo vai mudar! Estamos sozinhos. Contudo, temos meios. Alguns de imediato, outros a prazo. É um caminho sem retorno, quaisquer que sejam as posições das próximas administrações americanas. É o caminho da nossa independência, não só económica ou científica, mas militar. Cooperação com aliados, sim, em todos os domínios, mas de igual para igual, sem submissão!
Finalmente, neste histórico ano de 2025, a Europa reagiu depressa e bem (falta saber se é para continuar assim). À falta de um novo Churchill, de um novo De Gaulle (que muito antes teriam lido os sinais de ameaça…) tomaram a liderança o britânico Keir Starmer e o francês Macron. O serem potências nucleares dá-lhes esse estatuto, cabe-lhes substituir o papel dos EUA na missão de dissuasão, onde quer que seja necessário, na Alemanha, na Polónia…
O desafio maior que se segue é escolher um modelo institucional, que possa funcionar de forma inteligente e eficaz. Um modelo que se ajuste, com pragmatismo e rigor, à realidade (para quem gosta de futebol, o equivalente a dizer que o sistema tem de assentar na avaliação das capacidades de cada membro concretamente disponível e não em sistemas de jogo perfeitos, para os quais não há jogadores…). A urgência de alcançar resultados a tanto obriga,
No caso europeu é ainda uma oportunidade de conseguir outras mais valias.
A primeira é redesenhar uma fronteira “civilizacional” (por tal se entendendo Estado de Direito, democracia, Direitos Humanos) que, no interior, reaproxima a União Europeia do Reino Unido, da Noruega, do Canadá, da Turquia (?), e, também de países de outros continentes, como o Japão, e a Austrália.
A segunda é excluir, à partida, do núcleo central os países que estão dentro da EU como verdadeiros cavalos de Troia – a Hungria, a Eslováquia e outros Estados pouco ou nada confiáveis.
A terceira será, espero, expurgar de acordos futuros, todas as regras que, no dia a dia, têm mostrado, a sua eficácia de paralisar decisões (antes de mais, a regra da unanimidade).
Ideal seria introduzir na orgânica da nova Aliança (nesta fase transitória, porventura, sem formalização…) flexibilidade, diversidade de estatutos de parceria e cooperação, enquanto se intensifica o investimento nas indústrias de defesa, nos sistemas de comunicação e na ciência.
Nesta fase, os europeus manterão um discurso oficial prudente e a fantasia da cooperação euro-americana… A diplomacia tem de ir por aí, mas, pela minha parte saúdo os que, como o Presidente Marcelo, vão mostrando o desassombro de chamar a Trump o “ex-aliado”.
3 – Terminarei esta breve reflexão, lembrando uma instituição do passado recente, de que não ouvi ninguém falar: A União da Europa Ocidental, instituição pioneira da cooperação inter europeia no pós guerra, que, após a constituição do Conselho da Europa se concentrou no domínio de Defesa e Segurança da Europa, fundada no Tratado de Bruxelas modificado, (cujo art.º 5º ia além do art. 5º do Tratado de Washington (NATO) no compromisso de defesa mútua!). Ou seja, com capacidade para se tornar no “pilar europeu” da NATO. Insensatamente a EU, (já então pouco homogénea nestas matérias, com um terço de países neutrais) não descansou até extinguir o UEO, como, aliás, desejavam os americanos…
A meu ver, é um modelo muito semelhante o que veio propor Keir Starmer, na recente cimeira de Londres, ao definir, magistralmente a “Europa da Defesa” como “a coalition of the willing”. Esta coligação reúne aqueles que estão prontos a assumir o compromisso de defesa mútua. Tal como há décadas não cabe nas fronteiras da UE – estão lá o Reino Unido, a Noruega e o Canadá, desejavelmente a Turquia. E não estarão os governos putinistas da EU, (os Orbans de hoje e de amanhã). Uma Europa de valores e de boa vontade!.
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