quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

QUESTÕES DE GÉNERO NAS POLÍTICAS DE EMIGRAÇÃO (REVISTO) Manuela Aguiar[1] INTRODUÇÃO As primeiras medidas políticas de diferenciação de sexo no domínio da emigração vão, regra geral, no sentido de proibir ou limitar mais fortemente a expatriação das mulheres, mesmo para fins de reunificação familiar. Só após 1974 elas vêm reconhecido o direito de emigrar livremente, e o de conservar a nacionalidade em caso de casamento com um estrangeiro. A igualdade perante a lei converte-se, porém, em pretexto para desvalorizar ou ignorar as especificidades da sua situação, padronizando-se, neste quadro jurídico e fático, a emigração portuguesa no masculino. A convocação do primeiro encontro mundial de mulheres emigrantes, em 1985, e a realização de novos congressos e encontros, ainda que com periodicidade espaçada, através de parcerias entre o Estado e o movimento associativo (sobretudo o feminino), tem contribuído para uma maior consciência da questão de género, ancorada na audição e na crescente visibilidade dada às cidadãs do estrangeiro. A aplicação da "regra da paridade", em 2007, às eleições para o Conselho das Comunidades Portuguesas constituiu uma primeira medida jurídica concreta de promoção da participação das migrantes na vida coletiva das comunidades. A aprovação da Resolução n.º 32/2010, pela Assembleia da República, na linha de muitas das propostas dos referidos congressos e encontros de mulheres da "Diáspora", é reveladora de uma nova perceção da importância da componente de género nas políticas da emigração. I- AFLORAMENTOS DA "QUESTÃO DE GÉNERO" NAS POLÍTICAS DE EMIGRAÇÃO. Medidas discriminatórias, proibitivas ou limitativas. Tradicionalmente, emigrar era uma "aventura masculina". As Portuguesas viram-se, desde os séculos XVI e XVII, especialmente limitadas no que hoje diríamos o seu direito à emigração ou à reunificação familiar. E se até ao regime nascido no 25 de Abril de 1974 nunca foi verdadeiramente livre, para todos, a saída do país, o certo é que os obstáculos foram sempre maiores para as mulheres. No período da "expansão", nem para acompanhar os maridos isso lhes era, em princípio, permitido - só a título excecional e por favor régio. Política diametralmente oposta foi, por exemplo, seguida em Castela, que sempre privilegiou a emigração de casais para as colónias da América do Sul. (Boxer, 1977, p. 34). No nosso caso, houve, sim, algumas exceções determinadas pela vontade de promover o enraizamento de populações europeias em determinadas regiões do Império. Com essa finalidade, saíram para a África e o Oriente, as chamadas "Órfãs d’El-Rei" - jovens recolhidas em orfanatos, que eram dadas em casamento a soldados e outros potenciais povoadores, mediante um determinado dote, nomeadamente terras de cultivo ou empregos públicos...). Também o povoamento por casais foi promovido, em casos contados, ao longo de diferentes épocas, mas nunca de forma generalizada e sistemática. (Boxer, 1977, pp. 78-84) Mais tarde, no século XIX, em contexto puramente migratório, poderemos apontar um caso particularmente bem documentado de emigração familiar para as antigas Ilhas Sandwich, enquadrada num acordo bilateral entre os reinos de Portugal e do Havai. A partir da Madeira e dos Açores aportaram nessas ilhas do Pacífico, muitas mulheres e homens, que quase sempre levavam consigo uma prole numerosa, e deixavam a terra sem esperança de voltar. (Felix, 1978, pp. 28-30) Porém, à margem de qualquer incitamento ou facilitação do processo, grande número de mulheres iam juntar-se a maridos e familiares, por sua vontade, contrariando estratégias, leis e determinações das autoridades. Em oitocentos e no início do século seguinte, acentuou-se a tendência para o aumento das que assim reagiam à solidão em que se viam, partindo ao encontro dos homens, em regra, depois de eles estarem integrados na nova sociedade - o que era causa de desmedida preocupação dos especialistas neste domínio, tanto de académicos como de decisores e responsáveis pela execução das políticas de emigração[2]. São representativas do pensamento da época as opiniões de investigadores, como Afonso Costa e Emygdio da Silva. Para o primeiro, a emigração feminina é mesmo considerada uma "depreciação do fenómeno migratório", o que tem de se compreender na lógica de considerar o emigrante, essencialmente, como fonte de divisas. Nas suas próprias palavras: "[...] é quando a família fica na Pátria que ele envia mais regularmente as suas economias". (Costa, 1913, p. 182). Para o segundo, o êxodo das portuguesas era "uma constatação tremenda". Reportando-se a este fenómeno no início do século XX, entre 1906 e 1913, um período em que se regista um crescimento de 127% das saídas de mulheres, os perigos para que aponta são, antes de mais, a "desnacionalização" e a "cessação de remessas". (Silva, 1917, p.132). Não surpreende, assim, que a discriminação entre os sexos fosse evidenciada na própria definição de emigrante: o passageiro homem que viajava na 3ª classe dos navios, e a mulher que seguisse desacompanhada, qualquer que fosse a classe escolhida para o transporte, ficando sujeita a todas as restrições que a qualificação implicava. Essa diferença de tratamento denunciava a clara consciência da "questão de género", a constatação da influência da presença da mulher no curso do projeto migratório, no seu destino final, com maior probabilidade de uma opção pela integração e pelo não retorno – a suscitar a intervenção autoritária, vertida em medidas jurídicas e práticas administrativas. De facto, a emigração familiar reforçava, como ainda hoje indubitavelmente reforça, a tendência para a fixação definitiva no país de acolhimento. E não se perspetivava outro tipo de ganho, que pode ser maior e mais duradouro do que a entrada de divisas para equilibrar as contas com o exterior. Por exemplo, a criação de comunidades, portuguesas pela cultura e pelo afeto, (indissociáveis de uma forte componente feminina), que eram, então, pouco mais do que ignoradas ou depreciadas como meros “guetos” transitórios, onde se enclausurava, por escolha própria, a primeira geração de emigrantes. Haveria também, já, o assomo de alguma preocupação com a situação de especial vulnerabilidade das mulheres, pelo receio de que sós, em terra estranha, pudessem ser vítimas de exploração no trabalho. O que obviamente não havia ainda, era a ideia de que as mulheres, tal como os homens, têm direitos, e muito menos a aceitação de que pudessem ter, neste como noutros domínios, direitos absolutamente iguais. II- DA IGUALDADE NA LEI ÀS DESIGUALDADES DE FACTO Em 1974, depois da revolução do 25 de Abril, a liberdade de circulação dentro e para fora do território nacional é restabelecida (ou melhor, estabelecida) e vem a ser consagrada na Constituição de 1976. Esse foi um tempo de tão assertiva afirmação de princípios, que levou a uma natural sobrevalorização do plano puramente jurídico, como se as leis vanguardistas tivessem, de per si, o poder de transformar ditames em factos do quotidiano. Assistimos, por isso, a uma diluição da problemática feminina, perante leis que as não discriminavam, com o que isso representava de positivo, face ao passado, mas também com a faceta negativa de ser "padronizado” no masculino todo e qualquer trajeto migratório - assim se tornando opaco, e permanecendo desconhecido, o que especificamente dizia respeito às mulheres migrantes. No "país do território" sentiu-se a necessidade de ir abrindo caminho à igualdade efetiva entre os sexos, para além da mera proclamação de princípios, dando às políticas uma base operacional própria em serviços ou departamentos com competências genéricas ou sectoriais (a "Comissão para a Igualdade", cuja designação foi variando, sem verdadeiras ruturas na sua atuação, exemplifica aquela primeira categoria, a Comissão para a Igualdade no Trabalho e Emprego - CITE - a segunda). Pelo contrário, no "Portugal da Diáspora" a atitude foi de descaso das autoridades nacionais no respeitante à situação das portuguesas no estrangeiro, às eventuais singularidades da sua integração no mercado de trabalho e na comunidade de destino, não obstante a Constituição, no art.º 9.º, e, a partir da revisão de 1997, também no art.º 109.º, impor ao Estado a tarefa de promover a igualdade entre os sexos no que respeita à participação cívica e política, sem restringir essa incumbência ao território nacional. Descaso tanto mais criticável quando se receava que as emigrantes fossem, na sociedade de acolhimento, duplamente discriminadas, como mulheres e como estrangeiras - ainda por cima, numa conjuntura em que se acentuava a “feminização” da emigração, devido à crise económica, que viera interromper a chamada de trabalhadores ativos e apenas tolerava movimentos migratórios para efeito de reagrupamento familiar. A partir da meia década de 70, a percentagem de mulheres nas comunidades do estrangeiro aproximava-se da dos homens. E, apesar das restrições que inicialmente, um pouco por todo o lado, se colocavam à sua atividade profissional, a maioria acabou por aceder, como os homens, ao mercado de trabalho, ainda que não, normalmente, no mesmo tipo de emprego. Em qualquer caso, a possibilidade de profissionalização, logo aproveitada, maciçamente, converteu-se numa autêntica via de emancipação dessas mulheres, dando-lhes importância do ponto de vista económico, social e cultural, e, do mesmo passo, independência e igualdade, quando não supremacia dentro da família. Face às mulheres não emigrantes, as que tinham saído do país gozavam, em regra, não só de maior prosperidade económica, como de um estatuto profissional e familiar privilegiado (Leandro, 1995, p. 51). E mesmo em relação aos homens emigrados nem sempre perdiam no confronto[3]. A tese da "dupla discriminação" perdeu o seu carácter de evidência. Se existe, sob diversas formas, acaba sendo, frequentemente, superada. Conclusão a que se chega quando se perspetiva a vida das emigrantes ao longo de décadas - como realidade complexa e dinâmica - e quando se entra em linha de conta com a sua provável situação em caso de não emigração. (Aguiar, 2008, p.1257). Em boa verdade, o sucesso, no longo prazo, da geração de 60 e 70 (a do "salto" para a Europa...) não é só da metade masculina, mas também da feminina (Leandro, 1998, p. 22). E às próprias mulheres se fica a dever- não ao sustentáculo moral e material ou a quaisquer formas de ajuda do seu país[4]. No aspeto legislativo, é de salientar que, na década de 80, subsistia ainda, contra a letra e o espírito da Constituição de 1976, uma capitis diminutio das mulheres portuguesas - na maioria mulheres emigrantes, embora não pelo facto de o serem, mas sim pelo de residirem num lugar geográfico mais propício ao convívio com não nacionais: refiro-me à lei que retirava a nacionalidade portuguesa, automaticamente, às cidadãs que casassem com estrangeiros. A Lei n.º 37/81 veio permitir-lhes não só conservarem a nacionalidade, independentemente da do cônjuge, como transmiti-la, em igualdade de condições, à sua descendência e recuperar o estatuto de cidadania portuguesa perdido "ex lege". No entanto, note-se, a reaquisição desse estatuto facilitada e com eficácia retroativa, só viria a ser assegurada pela Lei n.º 1/2004 de 15 de Janeiro, ou seja, cerca de trinta anos depois da revolução do 25 de Abril[5]. Olhámos a emigração do passado, mas, tratando-se de um movimento que nunca cessou e reassumiu, sobretudo na última década, uma desmesurada dimensão, convém, igualmente, considera-lo no presente. Embora isso não tenha, ainda, reconhecimento bastante, há, de facto, um recrudescimento das vagas migratórias, no conjunto menos dramáticas, menos visíveis do que as das décadas de 60 e 70, e, também, mais difíceis de quantificar na sua exata extensão, porque se dirigem, em larga medida, a um espaço europeu de liberdade de circulação... As mulheres estão envolvidas no processo por vontade e direito próprio, autonomamente, e, tal como os homens, são cada vez mais qualificadas. Segundo o sociólogo Eduardo Victor Rodrigues "[...] já não correspondem ao paradigma da mulher da aldeia que sai para acompanhar o marido; são bastante escolarizadas e procuram melhores condições de vida"[6]. É um êxodo, também no feminino, que escapa ao paradigma tradicional e que é necessário conhecer melhor, e apoiar, como reivindica a Assembleia da República numa Resolução, aprovada no primeiro trimestre deste ano, que irei expor adiante. Alguns estudos têm sido desenvolvidos nesta área, por cientistas, a título individual, em projetos de centros de investigação, e também em comunicações e debates de congressos, encontros, seminários, como é o caso do que aqui nos reúne. Fala-se em “congressismo”, para englobar este último tipo de iniciativas. É uma palavra que não encontraremos em muitos dicionários, mas que permite classificar, expressivamente, um instrumento, que tem tido influência basilar na elucidação e na procura de respostas para a "questão de género", em Portugal, no nosso século, tal como noutros países e noutros tempos, pelo menos desde que Elizabeth Caddon- Stanton fez história do feminismo nos lendários encontros de Seneca Falls. Nos anais da luta feminista, como nos da luta pela valorização do papel da Mulher no universo da emigração, o "congressismo", assim entendido, tem podido concertar a vertente académica com a da partilha de experiências vivenciais, visando a ação concreta e a mudança. Em Portugal, no presente, através dele se tem vindo a executar uma parte do programa de governo para as comunidades portuguesas do estrangeiro, em matéria de género. (Aguiar, 2009, p. 41). Os “Encontros para a Cidadania foram anunciados e efetuados nesse preciso enquadramento, a partir de 2005[7]. Um parêntesis, para salientar a absoluta necessidade de recorrer ao conhecimento científico a fim de fundamentar novas políticas de emigração. É uma evidência nem sempre vista como tal. Em largos períodos do passado recente, governo e universidades viveram dissociados, com os efeitos que se conhecem, em particular a tardia reação das autoridades perante inesperados reinícios de surtos migratórios e, muitas vezes, também perante casos graves de exploração dos expatriados, dos quais a opinião pública e o governo tomam conhecimento, em simultâneo, pela imprensa... Por isso se regista como positiva a retoma de colaboração, que, previsivelmente, permitirá inspirar e delinear decisões e medidas de pronto e atento acompanhamento de movimentos emergentes. Exemplo de uma relação mais estreita entre estes dois mundos, o académico e o político, é o estabelecimento da parceria entre a Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas e um centro de investigação universitário (do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa - ISCTE), para levar a cabo um projeto de análise e caracterização do fenómeno migratório, através do "Observatório da Emigração”[8]. Resta saber em que medida se preocupará o “Observatório” com a problemática de género e tornará mais ou menos dispensável a recomendação repetidamente feita ao governo, de criar um observatório das migrações femininas[9]. III- AS PRIMEIRAS INICIATIVAS DE AUDIÇÃO DE MULHERES EMIGRADAS Como vemos, foi regra geral até data recente a indiferença dos Governos por tudo o que respeita às particularidades da integração das emigrantes no sector profissional e no universo associativo, este, dirigido e representado, nunca é demais salientá-lo, quase em exclusivo por homens, (no período que se seguiu à proclamação jurídica da igualdade plena entre os sexos), nomeadamente no Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP), desde 1981. Dos grupos que tradicionalmente viam, pela especificidade das suas situações, supostamente no seu próprio interesse, dificultada a saída do país, mulheres e jovens, só estes últimos têm estado no centro da atenção dos políticos, antes de mais, através da organização de programas de ensino da língua e cultura portuguesas, mas também de ações de intercâmbio, estágios de formação profissional, e de encontros, debates - do que designamos por "congressismo". Na última reestruturação do CCP – Lei n.º 66-A/2007 de 11 de dezembro – o legislador foi mais longe com a instituição de um “Conselho Consultivo da Juventude”, com competência “nas questões relativas à política da juventude para as comunidades portuguesas”, e nas “questões relacionadas com a participação cívica e integração social e económica dos jovens emigrantes e luso-descendentes nos países de acolhimento”. Nada de comparável está previsto para o associativismo feminino. Alguns responsáveis políticos justificarão esta diferença com a opção pela "paridade" de género no CCP, nos termos que adiante explicitaremos, em alternativa a esta outra forma de dar representação específica a determinados segmentos ou grupos das comunidades. Julgo, porém, válido contra-argumentar que a verdadeira paridade é um objetivo a prazo incerto, provavelmente a longo prazo, pelo que, no imediato, a metade feminina da emigração ficará longe de ter a metade dos assentos do Conselho. Por outro lado, a vertente de "género" não tem sequer sido valorada, e deveria sê-lo, nos critérios de concessão de apoios do Estado às iniciativas de instituições da "Diáspora", parecendo contar pouco o facto de o crescimento da rede de clubes e centros culturais em que se estruturam as comunidades, se dever, em muito, à participação de famílias inteiras, com as mulheres a assumirem, funções simétricas no círculo estreito do lar e no círculo alargado na coletividade, neste permanecendo quase sempre uma discreta "dona da casa", que se encarrega da arte da culinária, da decoração, da organização nos bastidores da festa, e do convívio quotidiano, fatores insubstituíveis de agregação e de desenvolvimento associativo. Um papel vital, mas redutor, de que se vai libertando, para exercer, alternativa ou cumulativamente, quaisquer outros, para já, mais em determinados países do que na generalidade do universo da Diáspora portuguesa. Estamos num domínio da vida em sociedade em que, segundo a opinião dos que defendem em absoluto o princípio da não interferência, o Estado não deve intrometer-se. Todavia, não é disso que se trata, trata-se não de condicionar ilegitimamente a independência das instituições, mas de velar pela aplicação de direitos fundamentais que nenhuma tradição ou costume que se invoque, pode subverter. Há que incentivar boas práticas dentro de cada associação portuguesa do estrangeiro, apelando à vivência igualitária da cidadania, como, de resto, quer o próprio legislador constitucional. A verdade é que, com recurso aos mais variados pretextos, sucessivos governos no pós 25 de Abril de 1974, descuraram a prossecução do objetivo da igualdade de acesso a atividades cívicas e políticas no espaço da emigração. A vontade de romper este quadro de inércia foi divulgada, logo no início de funções, pelo Secretário de Estado António Braga no 1º Encontro da Cidadania, em novembro de 2005, ao falar do “desígnio”, que presidia a essa reunião de " [...] retomar da questão de género, que tem andado esquecida ao longo dos anos […]", e ao admitir que "Portugal não tem tratado do papel da mulher nas comunidades de acolhimento à luz dos seus direitos de participação cívica, cultural e política"[10]. Era, de facto, um "retomar" a questão de género que havia tido apenas um momento breve de afirmação na meia década de 80. No arranque desta primeira fase está uma recomendação do CCP, que se fica a dever à visão e sensibilidade de uma das raras mulheres que nele tinha voz. O Conselho, criado pelo Decreto-lei n.º 373/80 de 12 de setembro, órgão consultivo do governo, era eleito de entre os líderes das associações e formado, como disse, na sua quase totalidade, por homens, à imagem do próprio dirigismo associativo de então. Maria Alice Ribeiro, "mulher-exceção", na qualidade de representante dos media do Canadá no CCP, obteve, em fins de 1984, na reunião regional desse órgão, realizada em Danbury, Connecticut, consenso para a sua proposta de convocação de um congresso mundial de portuguesas emigradas[11]. A Secretaria de Estado da Emigração aceitou o desafio e o “1.º Encontro de Mulheres no Associativismo e no Jornalismo" aconteceu no ano seguinte. Trinta e seis portuguesas dos cinco continentes foram convidadas, através das embaixadas e consulados de Portugal, a apresentar comunicações: jornalistas, professoras, investigadoras, sindicalistas, empresárias, estudantes, dirigentes de coletividade. Mulheres de formação muito diversa, todas elas ativas das suas comunidades, no ensino, na ação social, no teatro, na dança, na música, no desporto[12]. A seleção desse grupo de personalidades convidadas não teve tanto a preocupação de assegurar um equilíbrio regional entre as grandes concentrações de emigrantes, como de refletir a participação das mulheres, tal como à época se verificava, em comunidades com origem, idade e tradições de organização e ação femininas muito diversas. Assim, com uma representação mais em qualidade do que em quantidade, tendo como interlocutores vários membros do governo da República e dos governos regionais dos Açores e da Madeira e também, da sociedade civil, se realizou, em junho de 1985, em Viana do Castelo, a reunião matricial. 1985 era o ano de encerramento da "Década" das Nações Unidas dedicada à Mulher, facto que não havia sido determinante na recomendação do CCP, embora a coincidência tenha contribuído, a par do carácter inédito da iniciativa portuguesa, para que o "Encontro" tivesse o alto patrocínio da UNESCO. Não havia, realmente, memória de organização, por parte do governo de um país de diáspora, de um fórum semelhante, apesar de, na altura, alguns, poucos, já disporem de mecanismos para audição geral dos seus expatriados. A menção do Conselho das Comunidades torna-se incontornável no historial deste congresso, não só por lhe pertencer a autoria da proposta da convocatória, mas também porque o desenrolar dos trabalhos se inspirou nos seus moldes de debate e decisão, contou com parceiros oficiais do mesmo nível e fez apelo ao envolvimento do associativismo e dos media (precisamente como sucedia no próprio "Conselho"). Assim, as "conselheiras", a título informal, puderam dialogar com os mais altos responsáveis pelas políticas para a emigração, transmitir-lhes os seus pontos de vista e, seguidamente, deliberar, entre si, conclusões e recomendações. Nas conclusões gerais, realçaram, como António Braga haveria de fazer duas décadas depois, sinal da longa paragem do processo então encetado, " […] a pouca audição que tem sido dada às mulheres portuguesas no estrangeiro". E, naturalmente, no final dos trabalhos quiseram enfatizar " […] o entusiasmo e a expectativa gerada pelo Encontro"[13]. Para audição futura, e para a chamada das mulheres à intervenção cívica, propunham a criação de uma associação internacional própria. Na escolha de temas para debate, no modo de historiar o passado e olhar o presente, e nas recomendações para a mudança de um "estado de coisas", colocaram a tónica em dois grandes objetivos indissociáveis: o de serem consultadas sobre a realidade global das comunidades e o seu futuro, tal como o viam e queriam legitimamente influenciar; o de repensarem o seu próprio papel na família, na vida coletiva, no trabalho profissional e no associativismo, a fim de passarem à execução de projetos de mudança. Nos anos que se seguiram, a estrutura internacional autónoma para que apontavam não viria a formar-se por falta de assunção da liderança, decerto por causa da dispersão, da distância, das dificuldades de contacto. Mais pragmática e fácil de implementar teria sido a proposta de inclusão da problemática feminina na agenda do CCP, para convocatória de novas reuniões. Em 1987, perante o impasse em que se caíra, a Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas enveredou por essa via, no contexto de uma reestruturação do CCP. Previa-se a organização, não na sua orgânica, mas na órbita do “Conselho”, por simples despacho do presidente do CCP (que era, então, um membro do Governo), de várias "conferências" temáticas em áreas prioritárias, entre elas, uma "Conferência para a Promoção e Participação de Mulheres Portuguesas do Estrangeiro”[14]. A queda e substituição desse Executivo, no verão de 87, implicaram a marginalização imediata do CCP, enquanto organismo de consulta, e as "conferências" não foram nunca convocadas, tal como os plenários do “Conselho". Cerca de uma década depois, a memória das expectativas geradas em 1985 e a convicção de que seria ainda necessário e possível satisfaze-las, levou um pequeno número de participantes do "Encontro" de Viana, a constituir uma associação que reclamou a herança desse projeto em demorada hibernação: a "Mulher Migrante - Associação de Estudo, Solidariedade e Cooperação".(Gomes, 2007, p. 99). A "Mulher Migrante" manifestou, desde logo, uma vontade de cooperação com governo e com ONG’s interessadas na promoção de estudos e de reuniões ou Congressos periódicos, a fim de fazer o ponto da situação das mulheres migrantes e de abrir caminhos para a igualdade. De algum modo, ainda que sem uma base institucional no seu modo de funcionamento, inspira-se no modelo do CCP originário, que tinha raízes na comunidade (em sentido orgânico) e se inseria numa estratégia de cooperação "Estado-Sociedade Civil". Não será de todo excessivo ver, não na "Mulher Migrante" em si, mas na "plataforma de diálogo" que com o governo e instituições ou personalidades das comunidades do estrangeiro foi sendo mantida, essa vocação de se converter numa espécie de "Conselho" no feminino, pelo menos no período em que decorreram os "Encontros Para a Cidadania - a Igualdade entre Mulheres e Homens"[15]. IV- OS "ENCONTROS PARA A CIDADANIA", PARADIGMA DE MOBILIZAÇÃO PARA A IGUALDADE ENTRE MULHERES E HOMENS" (2005-2009) Em 2005, por altura do 20º aniversário do "Encontro" de Viana, a "Mulher Migrante" apresentou ao Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas uma proposta de comemoração da efeméride, através da retoma de audições periódicas das emigrantes, inseridas numa estratégia de mobilização para a intervenção cívica. Proposta que ele aceitou, patrocinando de uma forma sistemática campanhas com esse escopo nas maiores comunidades da Diáspora, numa acção conjunta com ONG´s de Portugal e das comunidades, que foram levadas a cabo nos referidos "Encontros" realizados, sucessivamente, na América do Sul, em Buenos Aires (2005), na Europa, em Estocolmo (2006), no Canadá, em Toronto (2006), na África do Sul, em Joanesburgo (2008) e nos EUA, Berkeley (2008). O Governo fez-se representar em todas essas reuniões, a alto nível político - pelo Secretário de Estado das Comunidades, António Braga, ou pelo Secretário de Estado que tutelava a "Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género," Jorge Lacão[16]. A Jorge Lacão coube, na "Conferência para a Igualdade" em Toronto, fazer uma ampla explanação doutrinal sobre as novas "políticas de género" para a emigração. Na abertura dessa Conferência, assegurou, com meridiana clareza, que “[…] as tarefas fundamentais do Estado Português" para a promoção da igualdade se não podem limitar à ação junto das portuguesas e dos portugueses residentes no território […]. Segundo ele, a letra da Constituição não deixa margem para dúvidas ao não excepcionar o campo de atuação além-fronteiras, como é, aliás, esclarecido no Programa do XVII Governo Constitucional. O Governo compromete-se a "[…] estimular a participação cívica dos membros das comunidades portuguesas, tendo como princípio orientador a Igualdade de Oportunidades entre todos os portugueses e todas as portuguesas, nomeadamente a Igualdade de Género, independentemente de serem ou não residentes em Portugal”. Mais longe foi ainda ao trazer à luz do dia o papel, sempre tão envolto na sombra do anonimato, das mulheres migrantes, admitindo que as políticas que as chamam a uma linha da frente " [...] configuram uma dinâmica de valorização destas comunidades e de proximidade entre o Estado e as comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo". Proximidade que o governo certamente buscava, marcando presença e tomando a palavra naquele "Encontro" com um discurso muito assertivo, em perfeita consonância com o programa do XVII Governo, que assinalava " […] a importância das políticas de igualdade não só para as próprias mulheres, mas para as comunidades e para o aprofundamento da estratégia de aproximação entre estas e o país". Todavia, para que o seu texto não ficasse letra morta, era imprescindível o esforço de comunicação com as pessoas, para que os destinatários do chamamento soubessem ao que eram solicitados, e tivessem a oportunidade real de aderir a uma bem urdida estratégia. Lacão foi ao cerne da questão ao lembrar que, aquém dos objetivos programáticos do governo, " [...] as mulheres se encontram sub-representadas nas instâncias de decisão dos movimentos associativos, pelo que os seus pontos de vista e necessidade se arriscam a não ser tidos em conta". E, de seguida, alistou o equilíbrio das componentes feminina e masculina na vida associativa e na das comunidades, ideia chave para a “paridade", como essencial aos objetivos do próprio programa do governo: “ [...] a participação equilibrada de mulheres e homens no movimento associativo e nos seus órgãos de tomada de decisão, bem como nas suas comunidades, é condição essencial para a defesa dos direitos, bem como para uma tomada de consciência das suas necessidades". (Lacão, 2009, p.11) A palavra ganhou, ali, de facto, força num ato de diálogo no interior de uma das maiores comunidades do estrangeiro, com mulheres e homens representativos do movimento associativo, onde estas teses praticamente nunca haviam sido afloradas, nem de uma forma espontânea, nem por parte do governo. Foi bem sublinhado o significado que se atribuía à ação das mulheres para garantia de preservação das instituições, tanto quanto para alcançar melhores condições de defesa dos seus direitos e interesses individuais e coletivos. Neste e nos demais "Encontros " se pretendeu levar a efeito um levantamento o mais abrangente possível do posicionamento e da atuação cívica das portuguesas no mundo, com um propósito de estimular a mudança. Isto é, não apenas de constatar, mas de agir, ou interagir. O Secretário de Estado das Comunidades acentuaria, em Joanesburgo, ao anunciar a preparação de um novo congresso mundial de mulheres emigradas, que "[...] estas iniciativas são um claro sinal da firme disposição do Governo de Lisboa em promover encontros mundiais [...] pela importância que atribui à necessidade de reforçar os laços com Portugal". (Braga, 2009, p.132) A partir desse Congresso terão, ou não, continuidade estas formas de audição, regionais ou mundiais, ensaiadas entre 2005 a 2009? E passarão pelo movimento associativo, pela colaboração com as ONG's, como se viu neste quadriénio? Não é de modo algum seguro antecipar que sim. O programa do atual Governo, no ponto referente a Negócios Estrangeiros, Comunidades Portuguesas e Cooperação, ao contrário do que acontecia com o anterior, é omisso no que respeita à problemática da igualdade de género e às iniciativas, havidas ou a haver, na área das "Comunidades" e na relevância genérica de parcerias com as ONG's, neste domínio[17]. Ou será antes pelo CCP, que passará o eixo central das políticas com a componente de género? Só a resposta a estas perguntas, a obter dentro dos próximos anos, permitirá concluir se estamos, ou não, no limiar de uma estratégia para as comunidades portuguesas do estrangeiro, assente na chamada das mulheres à participação cívica igualitária. V - MEDIDAS JURÍDICAS DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE NO SÈCULO XXI A norma que determina a aplicação do princípio da paridade, imposto nas eleições legislativa e autárquicas, à eleição do CCP (o n.º 4 do art.º 11.º e a alínea a) do n.º 1 do art.º 37.º da Lei n.º 66-A/207) é, no plano jurídico-político, uma medida excecional de promoção da igualdade de género na história da emigração portuguesa, dando cumprimento da letra e do espírito da Constituição da República. O anúncio da sua (então) próxima entrada em vigor foi feito na Conferência de Toronto por Jorge Lacão, como prova da vontade do governo de garantir a audição efetiva das mulheres num órgão onde sempre haviam sido uma pequeníssima minoria, e, na prática, sem acesso à sua instância de cúpula, o "Conselho Permanente". As listas para o CCP viriam, de facto, no ano de 2008, a assegurar, em observância da lei, a inclusão de um terço de mulheres. E como os atos eleitorais para a Assembleia da República e para as autarquias ocorreram no ano seguinte, acabou por constituir como que um "ensaio geral" do sistema de quotas bem-sucedido, pois redundou no aumento, que era previsível, do número e percentagem de conselheiras e, também, na sua ascensão ao Conselho Permanente. A presença feminina, globalmente, no CCP, nas diversas Comissões e na instância de coordenação, é quantificável, com todo o rigor (sabendo-se que está ainda longe de uma verdadeira igualdade), mas a importância real que terá no maior equilíbrio de participação de ambos os sexos na vida das comunidades do estrangeiro vai depender, diretamente, do uso que as eleitas farão da sua capacidade de influenciar os processos de funcionamento e de decisão do "Conselho", e, indiretamente, do papel que venha a ser o desta instituição que tem tido, como afirmei, um percurso acidentado e irregular, enquanto fórum de consulta do Governo e de representação dos emigrantes. Posterior à legislação que impõe a recomposição mais igualitária do CCP, bem como ao termo dos "Encontros para a cidadania", é uma tomada de posição da Assembleia da República sobre a "problemática da mulher emigrante", em forma de resolução - a Resolução n.º 32/2010, de 19 de Março - que visa os mesmos resultados das referidas estratégias e ações governamentais. Muito embora não lhes faça qualquer alusão, parece querer dar-lhes seguimento, no futuro imediato, ao definir um conjunto de medidas “destinadas ao desenvolvimento da cidadania das mulheres portuguesas do estrangeiro" e ao prever a utilização de instrumentos e metodologias idênticas, apontando para a efetivação de "seminários, campanhas de sensibilização, ações formativas e informativas junto das comunidades, incentivos a estudos e investigações. Na Resolução n.º 31/2010, aprovada na mesma data, os parlamentares recomendam ao Governo que " […] proceda ao estudo quantitativo e qualitativo da nova diáspora portuguesa do mundo.” E fazem sua uma ideia chave do Programa do XVII Governo: preparar as medidas da sua política externa, em concertação com outros ministérios, “[…] no sentido de revelar uma mudança de paradigma face a esta nova diáspora portuguesa, colocando-a no centro das suas ações, fazendo dela uma verdadeira linha avançada da nossa diplomacia um pouco por todo o mundo”. Por seu lado, a Resolução destina-se a contribuir para “o desenvolvimento da cidadania das mulheres portuguesas residentes no estrangeiro”, visando: “Promover a igualdade efetiva entre homens e mulheres no universo das comunidades portuguesas no Mundo; Combater situações de violência de género; Desenvolver modalidades de inserção profissional das mulheres portuguesas no estrangeiro”. (Ponto 2, alíneas a), b) e c). Objetivos, todos eles, traçados no programa do atual governo, no capítulo respeitante às políticas sociais de igualdade de género, porém, sem qualquer referência expressa ao caso das mulheres expatriadas, pelo que não será desapropriado concluir que a "Resolução" procura transpor o conteúdo das medidas ali delineadas, em termos gerais, para a situação particular das emigrantes. A Resolução não é, evidentemente, muito inovadora pelo que recomenda. É-o pelo facto de ser a primeira vez que os Deputados chamam a atenção para os deveres do Estado na consecução da igualdade de mulheres e homens, para além das fronteiras territoriais, como manda o art.º 109.º da Constituição. Se a resposta do Executivo for o relançamento, de uma forma constante e consistente, do trajeto de diálogo e cooperação já empreendido sem que tenha ainda atingido a generalização e a eficácia plenas, a exigir esforço incessante, sem fim à vista, estaremos no limiar de efetivação de políticas de emigração com a componente de género. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Aguiar, M. M. (2008). Mulheres Migrantes e Intervenção Cívica. [Migrant Women and Civic Intervention]. In M. R. Simas (org). A Mulher e o Trabalho nos Açores e nas Comunidades. (pp. 1247-1258). [Women and Work in the Azores and in Communities]. MAR Açores. Aguiar, M. M. (2009). Os Encontros para a Cidadania. [The Meetings for Citizenship]. In M. M. Aguiar & M. T. Aguiar (coord.). Cidadãs da diáspora: encontro em Espinho. Mulher migrante: o congresso “online". (pp. 33-43). [Citizens of the diaspora: meeting in Espinho. Migrant women: the congress “online"]. Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade. Boxer, C.R. (1977). A mulher na Expansão Ultramarina Ibérica. [Women in Iberian Overseas Expansion]. Livros Horizonte. Braga, A. (2009). Encontros para a cidadania. O Encontro de Joanesburgo. [Meetings for citizenship. The Johannesburg Meeting]. In M. M. Aguiar & Aguiar, M. T. (orgs). Cidadãs da diáspora: encontro em Espinho.. (pp.5 ). [Citizens of the diaspora: meeting in Espinho.]. Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade. Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas. Centro de Estudos. (1986). 1.º Encontro (de) Portuguesas Migrantes no Associativismo e no Jornalismo”. Fundo Documental e Iconográfico das Comunidades Portuguesas. Costa, A. (1913). A Emigração. Imprensa Nacional. Felix, J. H. , Senecal, P. (1978). The Portuguese in Hawaii. Centinneal Edition. Gomes, R. (2007). O papel da Associação Mulher Migrante. [The role of the Association of Migrant Women]. In M. M. Aguiar (org). Migrações. Iniciativas para a Igualdade de Género. (pp. 99-118). Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade. Lacão, J. (2009). Conferência de Toronto. In M. M. Aguiar, M. T. Aguiar (coord.). Cidadãs da diáspora: encontro em Espinho. (pp.6 ). [Citizens of the diaspora: meeting in Espinho.]. Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade.]. Edição Mulher Migrante. Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade. Leandro, M. (1995). Familles Portugaises Projects et Destins. Editions L' Harmattan, . Leandro, M. (1998). As mulheres Portuguesas perante os projectos de Emigração e Projectos de (Re)inserção Social. [Portuguese women facing emigration and social (re)integration projects]. Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade. Silva, E. (1917). Emigração Portuguesa. [Portuguese Emigration]. França e Arménio. [1] Jurista. Ex-Secretária de Estado da Emigração e Comunidades Portuguesas. [2] O Estado, de um modo geral, privilegiou, de jure e de facto, a emigração de homens sós, assim como a miscigenação consentida ou encorajada nas colónias, a fim de reter no Reino as mulheres. E terá sido à atitude de desafio destas “viúvas” de maridos vivos, que decidiram partir ao encontro dos ausentes, que se ficou, fundamentalmente, a dever a matriz cultural portuguesa dessas colónias de povoamento. Segundo CR Boxer, a Coroa Portuguesa terá sido, geralmente, mais permissiva no que respeita à saída de mulheres para o Brasil, do que para África ou o Oriente. [3] Maria Engrácia Leandro foi uma das primeiras investigadoras a evidenciar formas desta insuspeitada realidade, tendo centrando os seus estudos nas comunidades portuguesas da região parisiense [4] É certo que algumas medidas pontuais se podem destacar. Um exemplo: aquando da adesão de Portugal à CEE, no âmbito das comparticipações comunitárias, a SECP organizou diversas ações no domínio da formação profissional destinadas a mulheres - o que constituiu uma diligência pioneira, ainda que desenvolvida num universo limitado, e, por isso, sem decisivo impacte na vida da generalidade das portuguesas. [5] A Lei n.º37/81 de 3 de Outubro foi, a meu ver, descaracterizada pela via da regulamentação, que admitia, inclusive, a oposição do Estado em processo de reaquisição da nacionalidade pela mulher casada com estrangeiro. A Lei Orgânica n.º1/2004 de 15 de janeiro, no art. 30º veio permitir a recuperação da nacionalidade, por mera declaração. Na parte final do n.º 2.º do mesmo artigo estipula-se que a reaquisição "[…] produz efeitos desde a data do casamento". [6] Afirmações do sociólogo Eduardo Victor Rodrigues, proferidas no encerramento do Encontro “Cidadãs da Diáspora”, em Espinho, tiveram eco nos media das comunidades, nomeadamente no Canadá. Citamos um artigo de 9 de março de 2009 do jornal "Voice", intitulado justamente "Mudanças nos Hábitos dos Emigrantes Portugueses". [7] No primeiro comunicado de imprensa sobre os "Encontros para a Cidadania" dizia-se, expressamente, que um dos seus objetivos era "o cumprimento do programa do XVII Governo (capítulo V, ponto 7) " [8] Não é nova a preocupação de estimar e analisar, de forma sistemática, os movimentos migratórios nacionais. Portugal participou, ativamente, desde os tempos do "Secretariado Nacional da Emigração", no Serviço de Observação Permanente das Migrações - SOPEMI - da OCDE – colaboração a que, na década de 80, era ainda dada uma grande importância. [9] Nos "Encontros Para A Cidadania", sobretudo nos de Buenos Aires e de Estocolmo, foi insistentemente avançada essa recomendação. Tendo sido em data posterior criado o Observatório da Emigração para evitar dispersão de esforços, o mais razoável parece ser agora uma insistência para que nele se venha a incluir o estudo das particularidades das migrações femininas. Objetivo necessário para desocultar de disparidades e injustiças, se poderá desencadear a alteração de mentalidades e atitudes. [10] Declarações de António Braga em entrevista transcrita na publicação sobre o "Congresso online", promovido em 2009 pela “Mulher Migrante”. Um quarto de século antes, eu própria, encerrei o Encontro de Viana com um discurso semelhante, notando, no que às mulheres respeita, "[...] ausência de participação, de voz, de reconhecimento, de poder, ao menos de poder formal, nas instituições [...]" Posições concordantes, separadas por um longo hiato de duas décadas de inação política, neste campo. [11] A génese dos Encontros para a Igualdade vem sumariada num artigo com esse título, na edição sobre "O Congresso on line". [12] "Jornalismo" considerado no seu sentido mais amplo, incluindo profissionais, correspondentes de meios de comunicação de âmbito europeu, (“BBC”, “Radio France Internacional”, quotidianos parisienses), ou americano (“CBS”), a par de produtoras ou diretoras e colaboradoras de programas "étnicos". As trinta e seis participantes - das quais 14 jornalistas - procediam de dez países, dos cinco continentes, com predominância das do norte da América, Canadá e EUA, sobretudo, da Califórnia, onde o associativismo feminino tem uma existência quase centenária. [13] Nas conclusões, in fine as participantes quiseram marcar esse carácter pioneiro, ao destacarem o seguinte: " […] Não se tem conhecimento que algum país de emigração tenha alguma vez organizado um Encontro deste tipo. As mulheres portuguesas no estrangeiro tiveram voz, usaram-na e partiram animadas por uma nova vontade de fazer. Em Portugal ficou o eco do que disseram". Na verdade, nem governo nem as convidadas para o "Encontro" tinham modelo estrangeiro em que pudessem inspirar-se - salvo em iniciativas padronizadas no homem migrante. [14] Uma breve referência às conferências é feita na publicação "Mulher Migrante - O Congresso on line" (p.8). [15] A "Associação Mulher Migrante", converteu-se, desde a meia década de 90, num parceiro preferencial de vários departamentos governamentais, nomeadamente da "comissão para igualdade", a da SECP. [16] Na organização dos “Encontros”, a par da "Mulher Migrante" estiveram a Fundação Pro Dignitate, através da Doutora Maria Barroso, Presidente de Honra dos "Encontros", a Universidade Aberta, o "CEMRI", a "Rede Jovem para a Igualdade" e, em cada comunidade, uma ou várias ONG's responsáveis pela implementação do projecto: na América do Sul, a Associação Mulher Migrante Portuguesa da Argentina; na Europa, a federação "PIKO", com sede na Suécia: no Canadá, a "Working Women" e outras, com particular envolvimento da Cônsul Geral de Portugal; na África, a "Liga da Mulher Portuguesa"; nos EUA, o departamento de português da Universidade de Berkeley. [17] A omissão contrasta com a relevância que é dada a parcerias com as ONG's em sede de Cooperação, (Programa do XXVIII Governo, p. 127).

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

MULHERES ENTRE MUNDOS Defesa de Espinho (janeiro 2025)

MULHERES ENTRE MUNDOS 1 – Mulheres entre mundos é o título de uma coleção de narrativas de vida e fotobiografias que será lançada na Biblioteca Municipal José Marmelo e Silva na tarde do próximo dia 1 de fevereiro. Uma iniciativa da Associação Mulher Migrante (AMM), que, desde 2023, tem a sua sede em Espinho, e já antes, aqui fizera parte importante do seu trajeto, a começar por um primeiro encontro mundial de emigrantes portuguesas, em 1995. Por sinal, o maior que até hoje se realizou no país – e já lá vão, exatamente, trinta anos. Há alguns meses, eu própria levei esse projeto editorial a debate na Assembleia-Geral da AMM, onde foi, sem surpresa, aprovado por consenso. Na verdade, a ideia nem era particularmente original na agenda da associação, que há anos se ocupa na compilação de histórias de vidas no feminino, e tem, nesse campo, um considerável registo bibliográfico. Contudo, na maioria dos casos, não foi muito além da recolha e divulgação de pequenas sínteses biográficas, e por isso, reconfigurar o programa, através de uma coleção, representa um salto qualitativo, com a publicação de livros individuais, testemunhos muito mais completos de feitos e vivências de mulheres na sociedade portuguesa, na sua transição do espaço privado para o público, dentro e fora de fronteiras, . Como sabemos, ao longo do século XX, muitas mulheres foram, gradualmente, saindo do estreito círculo familiar, onde a ideologia da ditadura e o atraso de mentalidades e costumes tradicionalmente as confinavam, para competir, de igual para igual (embora geralmente ainda sem armas iguais…), no plano cultural, profissional, cívico e político... Todas elas têm coisas importantes e mobilizadoras para contar (todas, sem exceção), e é preciso que o façam. Todavia, à partida, falar de si, destacando percursos, decisões, obstáculos vencidos para a realização pessoal, no círculo da família e no exterior, não é coisa fácil, em especial para as mulheres que se sentem herdeiras de uma tradição de silenciamento e recato (como diz o tão misógino ditado popular “onde canta galo não canta galinha” …). Além disso, publicar um livro pode a muitas parecer uma meta inatingível.... Com a Coleção, o que se pretende é facilitar, muito pragmaticamente, essa tarefa. Antes de mais, sugerindo o recurso a imagens (que, segundo a sabedoria popular, valem por mil palavras…). Ou seja, optar por uma fotobiografia, em vez de uma mais custosa narração escrita. Podem, assim, começar como quem organiza um álbum de retratos, legendando as imagens, desfiando memórias, ligando ocorrências, em comentários mais ou menos extensos. Depois, a AMM oferece-lhes a inclusão numa linha editorial, com uma bela e expressiva capa concebida pelo Dr. Tiago Castro. Às autoras cabe a livre escolha da gráfica que executará o trabalho – a associação não se dedica a esse tipo de mediação, não procura oportunidades negócio ou de lucro, não cobra qualquer comissão. Assegura, sim, informações, e, através do seu Conselho Editorial, o acompanhamento do processo de elaboração do livro, e da sua divulgação, com o objetivo de revelar vidas significantes de mulheres, com especial enfoque nas que cruzaram fronteiras, tanto geográficas como culturais. Neste campo, nunca serão demais as iniciativas, que, hoje em dia, se estão, felizmente, a multiplicar, em estudos académicos e em projetos editoriais, sinal do crescente interesse por uma literatura de natureza intimista, biográfica ou autobiográfica. 2 –A meu ver, esta é, certamente, uma as formas de combater a mais persistente das discriminações de género, a que podemos chamar "discriminação por invisibilidade", (em alguns casos, não só pela espontânea secundarização de um dos sexos, mas por deliberado apagamento da história individual). O estatuto das mulheres, ao menos nas ditas "democracias ocidentais", tem inegavelmente progredido, ao abrigo de Constituições e de leis baseadas no princípio da igualdade - na família, no trabalho, na política, na sociedade - com uma maior autonomia e influência, sem que, contudo, o peso do seu efetivo contributo seja plenamente reconhecido, em todo e qualquer domínio.. Foi sempre assim, e hoje é apenas um pouco menos assim... Lembramos as romancistas ou as compositoras musicais, cujas obras foram assinadas por maridos ou irmãos, ou posteriormente “esquecidas” (o caso de Maria Archer, escritora “deliberadamente apagada da história”, segundo Maria Teresa Horta, não é caso único…), as cientistas, cujas descobertas foram atribuídas a colegas (alguns dos quais, na vez delas, até arrecadaram prémios Nobel...), as pioneiras do cinema (como realizadoras, produtoras, guionistas, técnicas, inventoras)…Um rol infinito de mulheres que se viram despojadas da autoria da sua obra, em praticamente todos os tempos e lugares… uma propositada e sistemática intenção de ocultação do feminino? Um dos exemplos mais escandalosos é o da cineasta Alice Guy Laché, que "inventou" a ficção no cinema (antes, meramente "documental"), o "cronofone", para a sincronização do som (na Gaumont), efeitos especiais e colorização, para além de dirigir e produzir mais de um milhar de filmes. Algumas décadas depois, ainda no seu tempo de vida, no século passado, viu-se riscada dos registos da Gaumont e, em larga medida, da história do cinema. É particularmente oportuno destacar a sua reação, porque foi precisamente através de uma autobiografia, que Alice Guy procurou recuperar o seu fantástico património de realizações, a autoria de muitos dos seus filmes, que andava imputada a nomes masculinos. Mulheres mais ou menos famosas, partilham, afinal, as agruras da misoginia: não só desigualdade de oportunidades (o aspeto que é mais referido) mas, também, a desigualdade de reconhecimento no presente (por exemplo, mediante a subvalorização das profissões e tarefas predominantemente femininas...), e o risco do esquecimento no futuro, na história que se vai reescrevendo…. O projeto editorial "Mulheres entre Mundos" tem o propósito de combater semelhantes assimetrias, ao dar a palavra e ao pôr o foco o género sub-representado no espaço público e na memória coletiva. Existe para servir a causa da igualdade, está aberto a todas as mulheres - qualquer que seja a sua formação, curriculum, ou atividade e sejam ou não associadas da AMM – para nos dizerem, conjugando livremente a escrita e a imagem, como chegaram aonde chegaram. É uma aposta não tanto no valor literário do relato, como no inerente interesse humano de todas as aventuras de vida, e na esperança de que cada nova edição possa motivar mais e mais mulheres a saírem do anonimato, a revelarem a diversidade a valia do seu aporte à sociedade. 3 - A coleção é inaugurada com a fotobiografia de Graça Guedes (“Histórias da minha vida”), e, a meu ver, como já em várias ocasiões salientei, não poderia começar melhor. Por múltiplas razões, uma das quais é a de nos levar à intimidade de alguém que se notabilizou, primeiramente, no desporto – área em que, não só entre nós, como um pouco por todo o lado, se tem mostrado mais difícil alcançar a igualdade dos sexos, quer no dirigismo, quer no que respeita ao estatuto das desportistas. A autora possui, neste domínio, um currículo de impressionante pioneirismo no plano académico - foi a primeira mulher doutorada em ciências do desporto e professora catedrática em Portugal, depois de ter sido, como atleta e como treinadora, campeã nacional de voleibol. E, ainda por cima, é uma mulher de Espinho. Espinho, em matéria de recente participação cívica e política das mulheres, não deixa de nos surpreender. Na política está, como é sabido, muito acima da média nacional, (com paridade no Executivo, e a presidência feminina da Câmara e da Assembleia). O que talvez não seja tão notório é a importância da presença feminina a nível institucional, no voluntariado, no associativismo, no que se costuma designar por “forças vivas” da comunidade. Há atualmente, no concelho, 22 mulheres a presidir à direção de associações de todo o tipo, sobretudo nas áreas da solidariedade e da cultura, e, também, da proteção dos animais (uma das minhas causas afetivas...). Confesso que, ao partir para um primeiro levantamento, por pura curiosidade, não esperava tanto. Mais uma alínea para a longa lista das percepções desfasadas da realidade, a reforçar a evidência da menor notoriedade das mulheres nos cargos que exercem! Essas verdadeiras “mulheres entre mundos” são ainda pouco visíveis no mundo novo onde já singram...

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

PERCEÇÕES Defesa de Espinho (dez 2024)

PERCEPÇÕES 1 - Nestes últimos dias do ano fala-se muito de guerras (a da Ucrânia, a de Gaza, que alastrou ao Líbano e, agora, a da Síria, todas de desfecho incerto - e que pena não podermos falar de paz neste Natal...), do novo aeroporto de Lisboa (que absurdo, fazer em Lisboa o maior investimento de sempre, como se, para o Estado, não houvesse o resto do país), das eleições presidenciais (um civil ou um militar?), das eleições na Madeira (que parecem ter entrado no calendário vulgar do Prof. Marcelo, cuja tarefa preferida é dissolver, dissolver – juntamente com as “selfies”, provavelmente, o que ficará para a história dos seus dois mandatos), de futebol (SCP E SLB dominando todos os programas semanais de rádio e TV– do FCP só ”faits divers” como a notícia da descida aos túneis do presidente AVB e da sua linguagem vicentina…) e de “perceções” (sobretudo, a propósito dos “sentimentos nacionais” de insegurança, ligando-os à realidade mal conhecida, ou propositadamente deturpada, da imigração. Estava eu hesitante em escolher, entre tantos temas da semana, um para tratar em mais detalhe, quando vi, nos noticiários do dia, em todas as estações, as reportagens sobre “a rusga de Martim Moniz” e "senti" que tinha de escrever sobre a sensação de horror (e de insegurança!) em mim provocada por aquelas imagens - uma fila infindável de pacatos indivíduos, com as mãos encostadas às paredes, a serem revistados por forças policiais. Há meio século, quando fervilhavam as pequenas querelas partidárias, em tempo de construção de um país livre, o muito jovem jornalista Marcelo entretinha-se a criar “factos políticos”, saídos da sua cabeça para as páginas do “Expresso” (e nós, às vezes, até achávamos graça). Agora é um Governo da República, que parece agir ao serviço de preconceitos e de “factos imaginados”, o que não tem graça nenhuma e pode desencadear sérias consequências para a perceção interna e externa da qualidade da nossa democracia, para além do susto e do vexame infligido a tantos cidadãos inocentes. Sim, inocentes! Na verdade, a gigantesca operação de 19 de dezembro de 2024, ao que vi e ouvi, saldou-se em dois detidos (um já a contas com a Justiça e outro por posse de droga - ambos portugueses) e pela apreensão de uma pequena quantidade de material de contrafação. A montanha pariu um rato… podemos até concluir que, de uma forma ínvia e cruel, a operação acabou por provar ser Lisboa, até nas zonas de duvidosa reputação, uma cidade mais segura do que aparenta. Já tenho assistido a rusgas policiais na feira semanal de Espinho, no ocasional combate à contrafação – talvez com mais apreensões de artigos à venda - felizmente, até ver, sem semelhante espalhafato. Dizer que esse alarde de prepotência nos transmite uma “sensação de tranquilidade”, é, simplesmente, incrível…a fazer recordar tempos de pandemia, quando nos vedaram o acesso à praia e aos bancos de jardim e erguerem barreiras policiais para impedir a circulação de carros entre concelhos vizinhos. Eu, na altura, desempenhava um cargo que me dava liberdade de trânsito até ao Porto, ao estádio do Dragão, e via-me fiscalizada, pelo menos, três vezes, antes de chegar ao destino, para assistir a jogos sem público. Nunca tais medidas obviamente excessivas me deram uma sensação de “tranquilidade” - só de insensatez, de desnorte, de incompetência. 2 – Confesso que me preocupa muito a “deriva securitária” (pomposa, embora realista formulação!), deste Governo, que, nos seus primeiros meses, mostrou uma face bem mais benigna e promissora, cultivando cuidadosamente o distanciamento face ao partido de Ventura. Mas eis que, num ápice, se aproxima do "inimigo" não só neste campo de fiscalização intrusiva das populações, como na denegação de acesso ao SNS de todos os imigrantes ainda não legalizados, nos termos de uma iniciativa do "Chega" (que estranho presente natalício...). A campanha começou, como sabemos, na denúncia do aproveitamento da abertura dos nossos serviços de saúde por turistas, que ao país se deslocavam apenas para beneficiarem de tratamentos dispendiosos ou para aqui terem os filhos nas nossas atrativas maternidades. Até aqui, tudo bem, ninguém discordará da urgência de pôr fim a tais abusos. Porém, estender o mesmo regime limitativo aos estrangeiros que vivem e trabalham no país entra no domínio da injustiça e da desumanidade e pode, em certos casos, constituir uma ameaça à saúde pública de estrangeiros legalizados e de portugueses, por igual (como é óbvio, pela via da propagação de doenças, não atempadamente diagnosticads e tratadas). . Não se julgue que estas posições estão na tradição do PSD e dos seus governos. Não estão! E já nem penso nos tempos de Sá Carneiro ou de Mota Pinto, verdadeiros sociais-democratas, mas, por exemplo, na década de Cavaco Silva, que também ainda mostrava preocupações sociais com os desfavorecidos. Disso posso dar testemunho, justamente no que respeita á imigração indocumentada. Embora o meu espaço de intervenção cívica e política tenha sido, fundamentalmente, o da emigração portuguesa, também me envolvi em ações de solidariedade com imigrantes, em movimentos para a sua legalização (brasileiros, guineenses, nos anos noventa, ucranianos no começo do século...). Quando do processo de realojamento de populações das barracas de Lisboa - um dos que marcaram aquela década positivamente - falei com o Primeiro Ministro Cavaco Silva, perguntando-lhe se os imigrantes clandestinos eram abrangidos na solução e ele respondeu que sim, e acrescentou que isso se devia à sua própria decisão! Nessa altura, note-se, a regulamentação interditava a atribuição de habitações sociais a estrangeiros e ele abriu uma exceção inteligente (que sucesso teria o programa de erradicação de barracas, se deixasse tanta gente de fora?). O mesmo, "in illo tempore", aconteceu, e por maioria de razão, em matéria de abrangência nos cuidados de saúde. Ouvir agora um deputado do PSD, prestigiado médico portuense, a defender, do alto da tribuna, na Assembleia da República, a exclusão de trabalhadores estrangeiros, em situação irregular (não meros turistas), do acesso a serviços gratuitos de saúde, é coisa de estarrecer! 3 - Tudo é sacrificado ao altar das perceções, do imaginário popular... Ora os Governos não podem ficar cativos de erróneas perceções. Têm, sim, a obrigação de as desconstruir pela revelação de factos e números autênticos e de adequar à realidade as políticas públicas. Não se pode confundir a situação de "turistas da saúde" com a de imigrantes (ditos) clandestinos ou ilegais, que, em tantos casos, são não só usados como explorados no nosso país. Não se pode alegar que abusam do SNS estrangeiros que são contribuintes líquidos do sistema, porque efetivamente pagam muito mais do que recebem, como os relatórios comprovam. Não se pode, num dos países mais seguros do mundo, lançar campanhas contraproducentes contra a insegurança. E, sobretudo, não se pode apontar o dedo acusatório aos imigrantes, no capítulo penal, quando, de facto, as suas taxas de criminalidade são inferiores às dos nacionais. Isso é a regra por todo o lado e quaisquer que sejam as nacionalidades. Os imigrantes de primeira geração vêm para trabalhar, honesta e duramente. Falo por experiência de vida. Quando comecei as visitas às nossas comunidades recentes, por exemplo, em França, havia cerca de um milhão de portugueses e praticamente nenhum na cadeia. Na geração seguinte, a percentagem de detidos já era próxima da média nacional francesa... Os problemas não surgem com os pais, mas com os filhos, quando lhes não dão condições de integração, de igualdade, de pertença. Os bairros de maioria imigrante precisam muito mais de boas escolas, de bons professores, de associativismo solidário do que de polícia. Depois de ter andado no terreno, no meio das pessoas, esta é a minha perceção. Vamos ser realistas e justos. Chega de "Chega"... Para todos, estrangeiros e nacionais, um Bom Natal! in Defesa de Espinho. dezembro 2024

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

MÁRIO SOARES, SEMPRE! in As Artes entre as Letras

MÁRIO SOARES, SEMPRE! Conheci a Dr.ª Maria Barroso e o Dr. Soares em receções de Embaixadas, quando pertencia ao Governo Mota Pinto, em 1978. Com a Dr.ª Maria de Jesus entendimento perfeito, desde a primeira hora! Já com o Dr. Soares não foi bem assim. Os tempos eram de proselitismo partidário e eu, PPD não filiada, estava em campo oposto, mas a atração por uma personalidade tão calorosa e interessante, contribuiu, decisivamente, para o princípio do fim do meu faciosismo político. Em todo o caso, distinguia entre “gostar de Mário Soares” (sim, imenso), e “gostar politicamente de Mário Soares” (não tanto). As minhas memórias de diálogos com ele são inúmeras e, na sua maioria, muito divertidas! Viajar com ele era uma festa, desde o momento em que se entrava no avião. A conversa fluía, animadamente, resvalava para uma vozearia excessiva. Uma vez, até mandei calar toda a gente, ao ver, na primeira fila, o Presidente já a descansar, depois de ter dado a volta completa à aeronave, cumprimentando toda a comitiva. Calámo-nos, por precaução, mas ele, imune ao ruído, dormia bem em qualquer ambiente. Só a viagem à URSS (Rússia, Arménia e Azerbaijão), em tempo de “perestroika”, dava um livro inteiro, com personagens como a família Sahkarov, Gorbatchev, o chique russo da vedeta Raisa e as tentativas do Dr. Soares de sair dos rígidos roteiros soviéticos, a fim de ver as pessoas, no seu quotidiano normal. Vou cingir-me a episódios que envolveram os Deputados da comitiva – um de cada partido, contrariando o critério proporcional, por uma boa razão: o Presidente queria dar lições de convivência e pluralismo partidário, e manifestar o seu apreço pela instituição parlamentar. Apreço sem paralelo no mundo soviético, e, por isso, o protocolo atribuía vistosos carros pretos a toda a gente, diplomatas, empresários, jornalistas, e desterrava para o fim do longo cortejo, o numeroso coletivo de parlamentares, compactados numa velha furgoneta. Nos atos cerimoniais, deposição de coroas de flores em monumentos, receções, discursatas, o Presidente exigia que os parlamentares estivessem à sua volta. E nós éramos os últimos a chegar, depois de uma correria, já com o Dr. Soares a acenar-nos, de longe, impacientemente... sem a nossa presença o evento não começava! E nós não explicávamos o porquê do atraso, para lhe poupar irritações. Aconteceu o mesmo nas três Repúblicas: só ao segundo dia, depois de veementes protestos, conseguimos carros pretos e a nossa precedência protocolar no cortejo. O último incidente protocolar aconteceu em Kiev, onde o avião oficial fez escala, para um encontro de Presidentes, o nosso e o da Ucrânia, seguido de um grande banquete. Tudo no aeroporto. A comitiva teve de ser dividida em dois salões VIP, um para as altas individualidade, outro para as de segunda linha. Ora, nesta categoria decaíram dois Deputados... Sempre atento às pessoas, o Dr. Soares apercebeu-se da sua ausência e quando a tentaram justificar, exasperado, exigiu que os chamassem, de imediato, para a sua mesa. Levantaram-se, prontamente, vários funcionários. Foi tremenda a confusão, as movimentações nervosas, até se acertar a troca, com os Representantes da Nação a ocuparem os devidos assentos. Uma última aula de democracia dada pelo nosso Presidente! Por mais incrível que pareça, cena idêntica sucederia no próprio Palácio de Belém, durante a audiência presidencial a uma Delegação da China. Eu estava, como Vice-presidente da Assembleia, incumbida de acompanhar as suas visitas ao PR e ao PM (Cavaco Silva). À entrada, do Palácio, o Protocolo veio dizer-nos que a sala de receção não comportava as duas largas comitivas, chinesa e portuguesa, sugerindo que alguns dos nossos esperassem lá fora. Os colegas concordaram que só eu estivesse na audiência, como já acontecera, em São Bento, sem objeção do Prof. Cavaco, mais preocupado em falar de uma sua recente visita à China, elogiosamente, em tom formal, como é seu timbre. Não foi assim em Belém. Mal nos tínhamos sentado, e já Presidente me perguntava: “Está sozinha com esta Delegação? Porque é que não vieram mais Deputados?" Ao ouvir as minhas explicações, bradou: "Os Deputados lá fora? Nem pensar! Eu sou um parlamentarista! Quero-os todos aqui connosco”. Foi um reboliço maior do que o de Kiev... Funcionários trazendo poltronas, o próprio Presidente dando instruções, arrastando cadeiras…. Eu só pensava: “Os chineses nunca viram coisa igual. O que acharão de tudo isto?" Na sala cheia, a conversa decorreu, descontraidamente, em modo de tertúlia. Á saída, esperava-nos uma multidão de jornalista, câmaras de televisão, microfones. Para meu espanto, o líder chinês falou, falou, empolgado, a felicitar o povo português por ter como presidente uma tão extraordinária personalidade, numa girândola de elogios, que terminou assim: "é um grande humanista"! Depois, os jornalistas quiseram saber impressões sobre o encontro com o Primeiro-ministro. A resposta foi pronta e lacónica. "Também correu bem". É pouco, lembrar o Presidente Soares nestas poucas nótulas de viagens e encontros. Porém, penso que, só por si, falam do Homem que amava liberdade, a democracia, a vida, as pessoas! A 7 de dezembro de 2024 celebramos o seu centenário, ou seja, seu lugar num século da História de Portugal, na resistência à ditadura de cinquenta anos, e na construção da democracia, nos outros cinquenta. É o tempo de reconhecer quanto “gostamos politicamente do Dr. Soares”. Afinal, o mesmo é dizer “25 de Abril, sempre!” ou “Mário Soares, sempre! “. Maria Manuela Aguiar in "AS ARTES ENTRE AS LETRAS"

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

O HOMEM DO SÉCULO in Defesa de Espinho (nov 2024)

O Centenário do Homem do Século A 7 de dezembro próximo têm início as comemorações do centenário de Mário Soares. Será a hora de olharmos um século da nossa História, através da História do "Homem do século" - o Político que teve papel principal durante uma Ditadura de quase meio século e, depois, na Democracia, nascida da Revolução cujo cinquentenário celebramos, ao longo de 2024. Uma feliz confluência de efemérides! Tempo de falarmos de Mário Soares, o Homem e o Político – assim, com letra grande. Grandeza de obra e mundividência, com que contribuiu, de uma forma tão decisiva, para a construção da democracia portuguesa. De facto, nenhum dos seus contemporâneos teve, igual longevidade e influência na política portuguesa ou igual prestígio, a nível internacional - Sá Carneiro, porque tão cedo o perdemos, Ramalho Eanes e outros co fundadores da Democracia atual, porque não puderam deixar marca semelhante naqueles dois regimes (1926/1974 e 1974/2024). Grandeza é, assim, uma qualidade que ninguém lhe poderá negar, nem sequer os menos simpatizantes. Nesta questão de afetos, ainda temos de distinguir entre “gostar de Mário Soares" e "gostar politicamente de Mário Soares”, mas, à medida que o tempo passa, a distinção vai-se esbatendo, com o depurar de pequenas querelas partidárias e a valorização do essencial. Atravessei as três fases, por mim falo! Nos primórdios da Revolução, “não gostava de Soares”, muito embora, durante o PREC, tivesse feito quilómetros, através das ruas de Lisboa, em marchas pela Liberdade, que ele corajosamente encabeçava. A partir do momento em que o conheci pessoalmente, em 1978 (era membro do Governo de Mota Pinto e já lá vão 46 anos!), passei a “gostar de Soares”, mantendo o distanciamento político, que entre sociais democratas nunca é abissal, (e eu sou social-democrata “à sueca”, como Sá Carneiro sempre se afirmou). Depois, na era dos seus mandatos presidenciais, comecei a “gostar politicamente de Soares", e cada vez mais. 2 – Não é, porém, sobre o seu legado político que vou escrever, mas sobre a individualidade, com quem tive, como referi, a sorte de conviver. Privilégio que não está ao alcance dos mais novos, a quem posso dizer que era sempre fantástico dialogar com o Dr. Soares, incomparável contador de histórias, versátil, culto, espirituoso! Tínhamos a consciência de estar face a face com uma personalidade que já entrara na História e, contudo, ao sentimento de reverência sobrepunha-se, invariavelmente, a pessoa, com a sua facilidade de trato, a atenção dada a cada interlocutor, a espontaneidade e a graça. Uma entrada (acidental e relutante) na política, deu-me a ocasião de trabalhar, diretamente, com os líderes dos maiores partidos democráticos, em diversos Governos. Sou testemunha de que eram bem mais amáveis e divertidos do que a sua imagem pública deixava imaginar. De todos, só o Dr. Soares, sobretudo a partir das “presidências abertas” , se foi mostrando em público tal como era em privado. As minhas memórias de conversas e episódios passados com ele são inúmeras e, na sua maioria, definitivamente lúdicas! Escolher é difícil, mas necessário…por isso, vou centrar-me em viagens e receções internacionais da sua Presidência. Viajar com o Dr. Soares era uma festa, desde que se transpunha a porta do avião. Lá dentro, as charlas fluíam, resvalaram para a vozearia ruidosa. Uma vez até tomei a iniciativa de mandar calar os companheiros de ruído, ao ver, na primeira fila, o Presidente já a descansar, depois de ter percorrido os corredores da aeronave, a cumprimentar toda a comitiva. Calamo-nos, por precaução, mas ele era imune ao barulho de algazarras, dormia em qualquer ambiente! A viagem à URSS – Rússia, Arménia, Arménia e Azerbaijão – dava um livro inteiro, com as múltiplas tentativas do Dr. Soares para sair dos rígidos roteiros soviéticos e ver gente no seu normal quotidiano, e com interlocutores como Sahkarov, Gorbatchev e Raisa, paradigma feminino da nova elegância soviética. Limitar-me-ei a destacar alguns casos que envolveram os Deputados, um de cada partido. Contrariando o princípio da proporcionalidade das Delegações, o Presidente quis dar aos soviéticos uma lição prática de convivência na alteridade, patenteado o nosso pluralismo democrático em perfeita confraternização. Assim destacava a importância da instituição parlamentar pluripartidária. Importância sem paralelo no sistema soviético e, por isso, o protocolo local atribuia vistosos carros pretos a toda a gente, diplomatas juniores, empresários ou imprensa, e desterrava para o fim do cortejo de viaturas oficiais, numa velha furgoneta, a Delegação Parlamentar! Sucediam-se os atos cerimoniais – visitas, receções, deposição de coroas de flores em monumentos - e o Presidente exigia a nossa presença, a seu lado. Ora, nós, vindos lá de trás, éramos sempre os últimos a chegar, e em esforçada correria, com a Dr. Soares a acenar-nos, de longe, muito impaciente. Sem os Deputados, não deixava começar o evento, e nós, para lhe poupar irritações, nunca explicamos a razão do atraso. Só ao 2º dia, depois de veementes protestos, vimos respeitada a nossa precedência protocolar, e fomos distribuídos em limousines iguais às outras … Sucedeu o mesmo nas três Repúblicas! O último incidente protocolar foi em Kiev, onde o avião fez escala para um encontro de Presidentes, o nosso e o da Ucrânia, seguido de um faustoso banquete. Tudo se passou no aeroporto, pelo que a comitiva teve de ser dividida por duas salas VIP, uma para as altas individualidades, outra para as de segunda linha. Nesta categoria decaíram dois Deputados…Só o Dr. Soares, sempre atento, se apercebeu da ausência e logo exigiu que os chamassem para a sua mesa. Levantaram-se, em simultâneo, vários funcionários, gerando uma tremenda confusão, em nervosas movimentações, até acertarem as trocas com os Representantes da Nação, por fim sentados nas suas cadeiras protocolares. Uma última lição de democracia magistralmente ensaiada pelo nosso Presidente! Por mais incrível que pareça, cena quase idêntica ocorreria no próprio Palácio de Belém, aquando da audiência a uma Delegação da República Popular da China. Na qualidade de Vice-Presidente da Assembleia, chefiei a comitiva que acompanhou os nossos convidados nas suas visitas de cortesia ao Primeiro Ministro Cavaco Silva e ao Presidente Soares. Em ambas as residências, o Protocolo informou que a sala de receção não estava preparada para tanta gente, e os Deputados portugueses concordaram que só eu estivesse presente nas reuniões. O Prof. Cavaco não levantou objeção, preocupado em pôr o foco no sucesso da sua recente visita à China, em tom formal, como é seu timbre. No Palácio de Belém, não foi, de todo, assim. Mal nos sentámos, o Presidente perguntou-me: “Está sozinha? Não vieram mais Deputados?” Ao ouvir as minhas explicações, bradou: “Os Deputados lá fora? Nem pensar! Eu sou um parlamentarista! “. Seguiu-se um rebuliço semelhante ao de Kiev! Os Deputados foram todos chamados à sala, enquanto entravam funcionários com as cadeiras na mão, e o Presidente dava instruções e ele próprio arrastava poltronas. E eu só pensava :”O que acharão os nossos visitantes orientais de tudo isto?” Nunca tinham visto nada igual, de certeza... Na sala cheia, a conversa decorria descontraidamente, em ambiente muito caloroso. À saída, esperava-nos a avalanche de jornalistas, microfones e câmaras. Para meu espanto, o líder chinês, empolgadíssimo, falou, falou…a felicitar o povo português por ter um Presidente tão extraordinário, numa girândola de elogios que terminou na síntese: ´É um grande Humanista!” Questionado, depois, sobre a audiência do Primeiro- Ministro, a resposta foi lacónica: “Também correu bem”. Lembrar o Dr. Soares, nestas breves nótulas de viagens e encontros, é, evidentemente, pouco, mas penso que nelas se vislumbra o Homem que amava a liberdade, a democracia, a vida e as pessoas. E as fascinava. Soares era fixe! in DEFESA DE ESPINHO
Parlamento saúda dedicação de décadas de Manuela Aguiar às comunidades portuguesas Lisboa, 11 out 2024 (Lusa) -- O parlamento aprovou hoje, por unanimidade, um voto apresentado pelo presidente da Assembleia da República de saudação à antiga secretária de Estado e deputada do PSD Manuela Aguiar pela sua dedicação às comunidades portuguesas. Natural de Gondomar, distrito do Porto, licenciada em Direito e que foi professora na Universidade Católica Portuguesa e na Universidade de Coimbra, Manuela Aguiar, no plano político, começou por exercer funções como Secretária de Estado do Trabalho no IV Governo Constitucional. "Porém, foi ao serviço das comunidades portuguesas que o seu trabalho mais se destacou. Tornou-se, entre 1980 e 1987, a primeira mulher a tutelar a diáspora como secretária de Estado. No desempenho dessas funções, bateu-se decisivamente pela criação do Conselho das Comunidades Portuguesas, órgão consultivo do Governo que ajuda a assegurar a representação e a provedoria dos interesses dos emigrantes", refere-se no voto proposto por José Pedro Aguiar-Branco. No voto, lembra-se também que Manuela Aguiar, no âmbito do Conselho da Europa, se envolveu "nas negociações que consolidaram dentro do espaço europeu o reconhecimento da dupla cidadania e a proteção jurídica dos emigrantes". "Manuela Aguiar foi eleita deputada em oito legislaturas, quase sempre pelo círculo eleitoral de Fora da Europa. No parlamento, foi uma voz livre e inconformada, comprometida com a defesa dos emigrantes e da sua plena participação política em Portugal", acrescenta-se.

domingo, 3 de novembro de 2024

CONDIÇÃO FEMININA DURANTE O “ESTADO NOVO” in Defesa de Espinho (out 2024)

A CONDIÇÃO FEMININA DURANTE O “ESTADO NOVO” 1 – “Antes do 25 de Abril era proibido” de António Costa Santos Nas diversas iniciativas integradas nas comemorações da Revolução de 1974 em que participei, entre março e maio, numa data tão especial como é a do seu cinquentenário, a maioria colocava o enfoque na situação das mulheres portuguesas. No antes e no depois. Duas metades de um século. Não terá sido por acaso – é um ângulo ideal para compreender o espírito do “Estado Novo”. Do corporativismo, enquanto doutrina totalitária e enquanto movimento anti personalista, que combatia, por igual, o comunismo e o liberalismo, condenando radicalmente o individualismo. A sua primeira principal vítima sacrificial seria a mulher - a mulher, em geral, e a mulher casada, em particular, porque a sua individualidade se fundia no núcleo familiar, e ficava sujeita à autoridade do marido, a quem, tal como os seus próprios filhos, devia obediência. Nessa unidade orgânica, como nas empresas, na sociedade, na política, os papéis eram definidos pelo Estado, que zelava pela sua rígida conservação. O homem detinha a chefia da família, como Salazar a chefia do Governo. Cada marido era um micro ditador doméstico, à imagem e semelhança do Grande Ditador nacional. Cabia-lhes interpretar e decidir o "bem comum" do seu agregado, mandar, censurar, proibir… Muitas das proibições legais de então, hoje, causam espanto ou fazem hoje rir. Para quem queira, percorrer, ludicamente, a lista de alguns dos mais incríveis tabus do salazarismo, recomenda-se o livro referido em epígrafe. Faltará, aqui e ali, rigor científico, em alguns casos, especificidades verdadeiras nos anos trinta, já não o eram nos anos sessenta ou setenta, por força da alteração de mentalidades e costumes… De qualquer modo, dá-nos uma narrativa bem conseguida e engraçada do que “era proibido”. Vejamos: as senhoras andarem nas ruas sozinhas; as mulheres entrarem na igreja de cabeça descoberta; as mulheres casadas viajarem para o estrangeiro sem autorização do marido (nem que fosse apenas a Badajoz, ou a Vigo, comprar doçarias); as mulheres saírem à noite sozinhas; minissaias nos liceus; biquínis nas praias; o matrimónio às mulheres em certas profissões, professoras, enfermeiras, hospedeiras de bordo, (salvo se conseguissem autorização do Governo!): as mulheres ingressarem em profissões, como a magistratura e a diplomacia, e, genericamente, ocuparem posições de chefia... Embora em menor número, também havia, evidentemente, ditames aplicáveis a ambos os sexos, entre os quais: beber coca-cola, jogar cartas nos comboios; dar beijos em público, ler certos livros, ver certos filmes, ouvir certos discos; usar isqueiro ou andar de bicicleta, sem prévia licença, assim como participar em “ajuntamentos de mais de três pessoas”. 2 – A cada um o seu lugar – a política feminina do Estado Novo” de Irene Flunser Pimentel Este é um livro dirigido a um público muito diferente, uma obra de referência sobre o tema, um brilhante e premiado estudo académico, que nos elucida sobre o lugar que era alocado ás mulheres, na doutrina e nas leis da Ditadura, e que escalpeliza as estratégias que serviram os fins, acantonando o sexo feminino na esfera da domesticidade e bloqueando os canais de ascensão social e profissional, (segundo o sexo e a classe social), a começar pelo ensino e a acabar no afunilamento das oportunidades de trabalho e na discriminação salarial. O princípio da igualdade, consagrado na Constituição de 1933, exceciona, quanto às mulheres, as desigualdades justificadas pela sua “natureza” e pelo “interesse da família”. A “natureza” justificava a exclusão das mulheres no acesso às profissões mais prestigiadas, diplomacia, magistratura judicial, e quaisquer cargos de direção, assim como as assimetrias salariais, no professorado deliberadamente usadas para combater a crescente feminização do setor, que tanto afligia os Ministros da Educação, (alguns chegaram a impor “quotas” na entrada da profissão, a favor do sexo masculino!). Para pôr a mulher “no seu lugar”, o regime combateu o ensino misto, ensaiou a diferenciação dos currículos escolares, a desvalorização da escola feminina e a redução da escolaridade obrigatória. Em vão… As taxas de feminização do professorado iam em crescendo (no primário de 68%, em 1930, para 87%, em 1960, no liceal de 33% para a 56%, no mesmo período Ainda por cima, a taxa de feminização no acesso ao ensino seguia trajetória semelhante: no primário de 42%, em 1930, para 48,5 em 1960; no liceal (3º ciclo), de 33,2% para 50,1% - sendo superior a percentagem de aprovações: 53,2%, neste último ano. Quer isto dizer que as raparigas foram vencendo preconceitos, armadilhas e barreiras colocadas no caminho da sua formação académica e profissional, e, enquanto se mantivessem solteiras, tinham, ao menos teoricamente, o direito de dispor de si e decidir o seu destino. Com algumas limitações, como se viu, por exemplo, arriscando ser presas pela polícia se saíssem à noite sozinhas… Muito, muito pior era a situação das casadas, para quem o casamento era sinónimo de servidão. No altar, entregavam a sua liberdade, decaíam, nos termos da lei, para um estatuto de eterna menoridade, semelhante à dos seus próprios filhos, sobre os quais, como é óbvio, não podiam exercer o poder parental. Deviam obediência aos maridos, eram obrigadas a viver no domicílio conjugal por eles escolhido, e, se ousassem abandoná-lo, viam-se sujeitas a “depósito judicial de mulher casada”. Isto é, a detenção pelas autoridades policiais, seguida de “prisão domiciliária”. Careciam de autorização marital para tirar passaporte. Perdiam a capacidade de administrar os bens comuns e até os seus bens próprios. Tudo eram prerrogativas dos maridos, que podiam, ainda, proibi-las de exercer uma profissão, de publicarem um texto, violar a sua correspondência, e, em caso de adultério, assassina-las, sem consequência de maior (a pena era leve, um curto degredo de meses, a cumprir nas proximidades). Parece mentira, mas não é. Estatuto jurídico semelhante ainda hoje persiste, noutras geografias - no Irão, na Arábia Saudita, no Afeganistão talibã… Com uma pequena, mas relevante diferença: o desfasamento das leis com a realidade social portuguesa. Muitas esposas, não sendo juristas e tendo cônjuges amáveis e sensatos, nunca se terão sequer apercebido da sua “capitis diminutio”. 3 – “Ela é apenas mulher” de Maria Archer Contudo, a verdade é que, durante a ditadura, em todos os domínios e no conjunto, as portuguesas foram fortemente condicionadas nas suas escolhas de vida e ficaram aquém dos seus sonhos e reais possibilidades. Para as (e os) jovens de hoje é difícil imaginar as vivências do quotidiano, nos anos da ditadura, sobretudo nas primeiras décadas, mas facilmente encontram esse mundo nas páginas do grande mais famoso romance de Maria Archer, que acima referi. É um dos seus raros livros não esgotados, na reedição da Parceria A. M. Pereira, com prefácio de Maria Teresa Horta. Faço minhas as suas palavras quando diz que que Archer traçou na sua obra literária, “o único retrato autêntico de corpo inteiro” (da mulher portuguesa nessa época), Ninguém melhor do que Maria Archer soube recriar, de uma forma eficaz, crua e rigorosa, a atmosfera social e política que moldava o círculo fechado das mulheres. Ninguém soube melhor escrutinar e denunciar a violência velada das leis arcaicas e dos brandos costumes da sociedade portuguesa, do relacionamento de sexo ou de classe, homens e mulheres imersos na nebulosa de estereótipos, dogmas e falso moralismo, de prepotência e submissão... Ninguém melhor do que ela desconstruiu a imagem da "fada do lar", com os seus dotes de observadora de “quase etnóloga” e com a força subversiva da escrita ao serviço de uma causa, que era a de infirmar o mito salazarista da inferioridade intelectual da Mulher…Aqui fica o convite à descoberta da tão injustamente esquecida Maria Archer, e da sua arte de recriar o reino distópico do salazarismo, derrubado em 1974. É uma forma singular de celebramos o cinquentenário da Revolução e, por feliz coincidência, o 125º aniversário desta romancista extraordinária, que escreveu história do feminismo com a sua própria vida.