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Recordar tempos idos... Falar do presente, também. E até, de quando em vez, arriscar vatícínios. Em vários domínios e não só no da política...
domingo, 3 de novembro de 2024
LEITURAS SOBRE A CONDIÇÃO FEMININA, DURANTE O “ESTADO NOVO”
1 – “Antes do 25 de Abril era proibido” de António Costa Santos
Nas diversas iniciativas integradas nas comemorações da Revolução de 1974 em que participei, entre março e maio, numa data tão especial como é a do seu cinquentenário, a maioria colocava o enfoque na situação das mulheres portuguesas. No antes e no depois. Duas metades de um século. Não terá sido por acaso – é um ângulo ideal para compreender o espírito do “Estado Novo”. Do corporativismo, enquanto doutrina totalitária e enquanto movimento anti personalista, que combatia, por igual, o comunismo e o liberalismo, condenando radicalmente o individualismo. A sua primeira principal vítima sacrificial seria a mulher - a mulher, em geral, e a mulher casada, em particular, porque a sua individualidade se fundia no núcleo familiar, e ficava sujeita à autoridade do marido, a quem, tal como os seus próprios filhos, devia obediência. Nessa unidade orgânica, como nas empresas, na sociedade, na política, os papéis eram definidos pelo Estado, que zelava pela sua rígida conservação. O homem detinha a chefia da família, como Salazar a chefia do Governo. Cada marido era um micro ditador doméstico, à imagem e semelhança do Grande Ditador nacional. Cabia-lhes interpretar e decidir o "bem comum" do seu agregado, mandar, censurar, proibir…
Muitas das proibições legais de então, hoje, causam espanto ou fazem hoje rir. Para quem queira, percorrer, ludicamente, a lista de alguns dos mais incríveis tabus do salazarismo, recomenda-se o livro referido em epígrafe. Faltará, aqui e ali, rigor científico, em alguns casos, especificidades verdadeiras nos anos trinta, já não o eram nos anos sessenta ou setenta, por força da alteração de mentalidades e costumes… De qualquer modo, dá-nos uma narrativa bem conseguida e engraçada do que “era proibido”. Vejamos: as senhoras andarem nas ruas sozinhas; as mulheres entrarem na igreja de cabeça descoberta; as mulheres casadas viajarem para o estrangeiro sem autorização do marido (nem que fosse apenas a Badajoz, ou a Vigo, comprar doçarias); as mulheres saírem à noite sozinhas; minissaias nos liceus; biquínis nas praias; o matrimónio às mulheres em certas profissões, professoras, enfermeiras, hospedeiras de bordo, (salvo se conseguissem autorização do Governo!): as mulheres ingressarem em profissões, como a magistratura e a diplomacia, e, genericamente, ocuparem posições de chefia...
Embora em menor número, também havia, evidentemente, ditames aplicáveis a ambos os sexos, entre os quais: beber coca-cola, jogar cartas nos comboios; dar beijos em público, ler certos livros, ver certos filmes, ouvir certos discos; usar isqueiro ou andar de bicicleta, sem prévia licença, assim como participar em “ajuntamentos de mais de três pessoas”.
2 – A cada um o seu lugar – a política feminina do Estado Novo” de Irene Flunser Pimentel
Este é um livro dirigido a um público muito diferente, uma obra de referência sobre o tema, um brilhante e premiado estudo académico, que nos elucida sobre o lugar que era alocado ás mulheres, na doutrina e nas leis da Ditadura, e que escalpeliza as estratégias que serviram os fins, acantonando o sexo feminino na esfera da domesticidade e bloqueando os canais de ascensão social e profissional, (segundo o sexo e a classe social), a começar pelo ensino e a acabar no afunilamento das oportunidades de trabalho e na discriminação salarial.
O princípio da igualdade, consagrado na Constituição de 1933, exceciona, quanto às mulheres, as desigualdades justificadas pela sua “natureza” e pelo “interesse da família”.
A “natureza” justificava a exclusão das mulheres no acesso às profissões mais prestigiadas, diplomacia, magistratura judicial, e quaisquer cargos de direção, assim como as assimetrias salariais, no professorado deliberadamente usadas para combater a crescente feminização do setor, que tanto afligia os Ministros da Educação, (alguns chegaram a impor “quotas” na entrada da profissão, a favor do sexo masculino!).
Para pôr a mulher “no seu lugar”, o regime combateu o ensino misto, ensaiou a diferenciação dos currículos escolares, a desvalorização da escola feminina e a redução da escolaridade obrigatória. Em vão… As taxas de feminização do professorado iam em crescendo (no primário de 68%, em 1930, para 87%, em 1960, no liceal de 33% para a 56%, no mesmo período
Ainda por cima, a taxa de feminização no acesso ao ensino seguia trajetória semelhante: no primário de 42%, em 1930, para 48,5 em 1960; no liceal (3º ciclo), de 33,2% para 50,1% - sendo superior a percentagem de aprovações: 53,2%, neste último ano.
Quer isto dizer que as raparigas foram vencendo preconceitos, armadilhas e barreiras colocadas no caminho da sua formação académica e profissional, e, enquanto se mantivessem solteiras, tinham, ao menos teoricamente, o direito de dispor de si e decidir o seu destino. Com algumas limitações, como se viu, por exemplo, arriscando ser presas pela polícia se saíssem à noite sozinhas…
Muito, muito pior era a situação das casadas, para quem o casamento era sinónimo de servidão. No altar, entregavam a sua liberdade, decaíam, nos termos da lei, para um estatuto de eterna menoridade, semelhante à dos seus próprios filhos, sobre os quais, como é óbvio, não podiam exercer o poder parental. Deviam obediência aos maridos, eram obrigadas a viver no domicílio conjugal por eles escolhido, e, se ousassem abandoná-lo, viam-se sujeitas a “depósito judicial de mulher casada”. Isto é, a detenção pelas autoridades policiais, seguida de “prisão domiciliária”. Careciam de autorização marital para tirar passaporte. Perdiam a capacidade de administrar os bens comuns e até os seus bens próprios. Tudo eram prerrogativas dos maridos, que podiam, ainda, proibi-las de exercer uma profissão, de publicarem um texto, violar a sua correspondência, e, em caso de adultério, assassina-las, sem consequência de maior (a pena era leve, um curto degredo de meses, a cumprir nas proximidades).
Parece mentira, mas não é. Estatuto jurídico semelhante ainda hoje persiste, noutras geografias - no Irão, na Arábia Saudita, no Afeganistão talibã… Com uma pequena, mas relevante diferença: o desfasamento das leis com a realidade social portuguesa. Muitas esposas, não sendo juristas e tendo cônjuges amáveis e sensatos, nunca se terão sequer apercebido da sua “capitis diminutio”.
3 – “Ela é apenas mulher” de Maria Archer
Contudo, a verdade é que, durante a ditadura, em todos os domínios e no conjunto, as portuguesas foram fortemente condicionadas nas suas escolhas de vida e ficaram aquém dos seus sonhos e reais possibilidades. Para as (e os) jovens de hoje é difícil imaginar as vivências do quotidiano, nos anos da ditadura, sobretudo nas primeiras décadas, mas facilmente encontram esse mundo nas páginas do grande mais famoso romance de Maria Archer, que acima referi. É um dos seus raros livros não esgotados, na reedição da Parceria A. M. Pereira, com prefácio de Maria Teresa Horta. Faço minhas as suas palavras quando diz que que Archer traçou na sua obra literária, “o único retrato autêntico de corpo inteiro” (da mulher portuguesa nessa época),
Ninguém melhor do que Maria Archer soube recriar, de uma forma eficaz, crua e rigorosa, a atmosfera social e política que moldava o círculo fechado das mulheres. Ninguém soube melhor escrutinar e denunciar a violência velada das leis arcaicas e dos brandos costumes da sociedade portuguesa, do relacionamento de sexo ou de classe, homens e mulheres imersos na nebulosa de estereótipos, dogmas e falso moralismo, de prepotência e submissão... Ninguém melhor do que ela desconstruiu a imagem da "fada do lar", com os seus dotes de observadora de “quase etnóloga” e com a força subversiva da escrita ao serviço de uma causa, que era a de infirmar o mito salazarista da inferioridade intelectual da Mulher…Aqui fica o convite à descoberta da tão injustamente esquecida Maria Archer, e da sua arte de recriar o reino distópico do salazarismo, derrubado em 1974. É uma forma singular de celebramos o cinquentenário da Revolução e, por feliz coincidência, o 125º aniversário desta romancista extraordinária, que escreveu história do feminismo com a sua própria vida.
terça-feira, 29 de outubro de 2024
PORTUGAL, A EMIGRAÇÃO “A SALTO” E OS CLANDESTINOS DE SUCESSO
1 – Portugal devia ser o último país do mundo e o seu Governo o último Governo do mundo a olhar com uma certa desconfiança ou descaso a emigração clandestina, e a colocar entraves burocráticos à legalização daqueles estrangeiros que, tendo entrado no seu território com visto de turistas, entretanto arranjaram emprego e fizeram os vultosos descontos com que a Segurança Social equilibra o seu orçamento.
Na verdade, Portugal é um antigo país de emigração "a salto" para o Brasil colonial, depois, para o Brasil independente, (destino maioritariamente procurado pelos portugueses, que fugiam à pobreza) e, em muito menor escala, para as Américas, e para África. O Estado tentava estancar o êxodo com leis e regulamentos restritivos, e os homens arranjavam maneira de os contornar (digo homens, porque as mulheres ficavam por cá, ou, quando muito, iam ter com eles, numa segunda fase). Estima-se que a percentagem de clandestinos terá rondado os 30%, constantemente, ao longo dos últimos três séculos. O termo "a salto" aplicava-se, inicialmente, àqueles que se escondiam nos barcos baleeiros que aportavam nos Açores, e os levavam em direção ao sonho americano. Muitos deles continuariam a dedicar-se à pesca da baleia, do atum e de outras espécies. Na década de oitenta, ainda fui ao encontro de importantes comunidades piscatórias, no oeste dos EUA, e visitei os maiores atuneiros do mundo, o "Mary C Jane" e o "Elizabeth C Jane", propriedade de açorianos de San Diego. Os portugueses estavam não só à frente da indústria da pesca, como dos estaleiros de barcos, no que respeita a capital, tecnologia e "design".
Tendo boa parte desses pioneiros açorianos chegado a New Bedford (onde atualmente ainda marcam fortíssima presença) ou à Califórnia, na situação de "indocumentados", nem por isso foram menos produtivos, ordeiros e empreendedores do que os "legais". Entre uns e outros não há diferença! Assim era, e é, entre portugueses, como entre imigrantes de qualquer outra
nacionalidade, credo ou etnia.
2 – Na segunda metade do século XX, razões socioeconómicas e políticas levaram ao desvio das correntes migratórias do sul da América (Brasil, Argentina, Uruguai) para novas geografias, mais a Norte nas Américas (Venezuela, Canadá) e mais perto, na Europa (com a França a tornar-se um “novo Brasil”).
Não se pense, porém, que isso significou a diminuição da emigração clandestina. Pelo contrário, aumentaram as saídas “a salto”, expressão recuperada e popularizada, então, para descrever o dramático percurso de centenas de milhares de homens, através das fronteiras terrestres, nas mãos de “passadores” e traficantes. Em finais da década de sessenta, a percentagem de da nossa emigração indocumentada excedia os 50%! O movimento só cessou com a crise mundial de 73, a falta de oferta de
emprego, a proibição de entrada, um pouco por todo o lado. A porta de entrada dos países ricos, apenas se entreabria, por razões humanitárias, à reunificação familiar, ou seja, às mulheres. Um estatuto que lhes vedava o acesso ao mercado de trabalho, mas que, na prática, não as impediu de procurar e conseguir emprego, expeditamente.
Face a esta enorme massa de imigrantes clandestinos (pobres, rurais, sem qualificação profissional, alguns mesmo analfabetos), o que fizeram os Governos, nomeadamente o francês? Denunciaram o excesso? Expulsaram-nos? Não! Precisavam deles e trataram de os legalizar, sistematicamente, e sem espalhafato, à medida que se iam inserindo no meio laboral. E o resultado não podia ser melhor! O papel das mulheres foi absolutamente crucial na boa inserção de famílias inteiras e os portugueses converteram-se em inesperado paradigma de sucesso. Hoje, os seus filhos e netos estão por todo o lado, nas empresas, nas universidades, até na política! Nos anos 90, durante os Governos de Cavaco Silva, entrou na linguagem corrente a referência aos nossos “emigrantes de sucesso”. Eu proponho uma precisão, chamando à "geração do salto" os nossos “clandestinos de sucesso”!
3 –Num tempo em que o tema imigração domina as reportagens dos “media”, e em que o Governo anuncia novos rumos nas políticas públicas, pareceu-me importante olhar retrospetivamente, neste domínio, o nosso trajeto coletivo e nele buscar inspiração para nortear as políticas, as medidas concretas a tomar, e, o que não é de somenos, a forma de as comunicar à opinião pública e aos interessados. Eu gostava de ouvir os Ministros, os Deputados, os Autarcas a elogiarem os imigrantes, (incluindo os que desempenham tarefas mais modestas), a destacarem, antes do mais, o seu contributo positivo, e a manifestarem preocupação pela defesa dos seus direitos, em vez de receio de "invasão" do nosso espaço... (Isaltino de Morais é, certamente, um singular exemplo a seguir…)
Todas as palavras que revelem relutância ou desconforto em relação aos imigrantes, dificulta o seu sentimento de pertença, a sua inserção. Exemplifico: falar de "temos as portas abertas, mas não escancaradas" é uma forma de lhes dizer "sim, mas...". É pouco!
O discurso governamental salienta o interesse em atrair talentos, jovens muito qualificados, assim dando à sua vinda um sinal inteiramente favorável. Ótimo! No bom sentido, vai, igualmente, o apelo à emigração familiar, porque é, sem dúvida, um convite ao seu enraizamento, a revelar uma vontade de partilha de horizontes comuns.
O que me parece faltar, nesta abordagem, é reconhecer (por palavras e atos) a mesma prioridade e distribuir a mesma simpatia pelos trabalhadores menos qualificados, os que chegam para ocupar os trabalhos mal pagos, rejeitados por nacionais. Afinal, são tão imprescindíveis, ou mais, do que os "talentos"! Sem eles, vários setores da economia entrariam em colapso, da agricultura ao turismo (grande responsável pela surpresa do comportamento económico, acima do esperado). Sem eles, este país estaria condenado a um irreversível envelhecimento.
Neste quadro realista, é de elementar bom senso e de inteira justiça, desburocratizar e facilitar a legalização de todos os trabalhadores imigrantes que se prontificam a viver connosco. Estava já criado um regime que permitia aos estrangeiros, com visto de turistas, procurar emprego e, se o conseguissem, regularizar sua situação de trabalhadores e contribuintes para a
segurança social, através de uma simples "manifestação de interesse" junto dos serviços. Perfeito - todos ficavam a ganhar, eles, os empregadores, a segurança social, a economia, a sociedade...
Em 2024, havia, é verdade, um "contra": a herança caótica do Governo anterior, que levou para angustiantes filas de espera dezenas e dezenas de milhares de estrangeiros, face à incapacidade da Administração de dar sequência e de concluir os seus processos (um resultado da apressada extinção do SEF e da atribulada constituição da AIMA). E talvez isso justificasse a suspensão temporária das "manifestações de interesse". Porém, uma vez superada a crise de sucessão do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, (que não é culpa dos imigrantes, mas do Estado), a que propósito impor medidas restritivas (ou persecutórias) a pessoas já com provas dadas, meios de subsistência e vontade de integração? Qual a vantagem de as obrigar a saírem para, eventualmente, regressarem, depois de enormes transtornos e despesas, com mais um pequeno papel na mão, o novo visto?
4 – No século passado, os clandestinos portugueses, nos países para onde foram, sem “visto de trabalho” viram, quase sempre, regularizada a sua situação, de uma forma casuística. Mas nem sempre… eu própria negociei, muito discretamente, há quarenta e tal anos, por exemplo, a regularização do estatuto de milhares de portugueses na Venezuela. E há aqueles portugueses, que foram à aventura, há anos, com um visto de turismo, e que, ainda hoje, não têm o seu problema resolvido, nomeadamente nos EUA.
E se Trump vencer as eleições de novembro (como é provável, num país onde, à direita, campeia a mais desenfreada misoginia, a par do “discurso de ódio” contra os imigrantes) milhares de portugueses, alguns dos quais jovens que nem a nossa língua falam, podem vir a ser expulsos. O risco é real, e mostra que o sucesso ou insucesso dos clandestinos pode estar dependente das políticas públicas de legalização e de acolhimento. É a hora de nós estarmos do lado certo.
quarta-feira, 9 de outubro de 2024
EMIGRAR OU NÃO EMIGRAR, EIS A QUESTÃO
1 – Uma maioria de portugueses, a avaliar por uma recente sondagem, gostaria de ver o Governo a proibir a emigração dos seus concidadãos! Ou seja: um regresso às leis e às práticas da ditadura, à repressão policial e à saída “a salto”. Custa a acreditar, mesmo num contexto em que o fenómeno do crescimento da emigração de jovens altamente qualificados está, preocupantemente, na “ordem do dia” e em que irrompem na cena política forças de extrema-direita.
Os democratas têm de saber lidar com estas pulsões autoritárias e demagógicas, desmontando o puzzle de mentiras em que assenta a sua expansão. O problema existe e deve ser encarado com realismo e bom senso. A única via a excluir é, precisamente, a supressão dos direitos fundamentais, a liberdade de circulação das pessoas, que está consagrada na Constituição Portuguesa e é um dos princípios fundadores da União Europeia. O Governo não pode fechar fronteiras, mas pode dar aos portugueses perspetivas e oportunidades de viverem bem no seu país. É exatamente o que o atual Governo, olhando prioritariamente os jovens, se prepara para fazer, embora através de uma fórmula que está a levantar enorme polémica. Sobre esta, centrando-me na vertente migratória, direi o que penso, mas não sem antes referir algumas lições da nossa longa história de políticas públicas de emigração, a começar pelas políticas de proibição ou condicionamento de fluxos de saída.
2- Mostra-nos a história que quando o Estado abria portas à emigração, os portugueses partiam, gostosamente, em massa, e, quando a obstaculizava com leis, sanções penais e perseguição policial, partiam, em massa, sem medo de transgredir… Ditames do Poder nunca os impediram de procurar uma vida melhor, lá longe, se necessário, pelos caminhos da clandestinidade… Em mais de quinhentos anos de êxodo imparável, em sucessivos ciclos, que se entrelaçavam, foram milhões os que saíram “a salto” por mar ou terra, a tal obrigados porque, de facto, nunca, antes da Revolução de 1974, houve, em Portugal, inteira liberdade de emigrar. A permissão era concedida aos contingentes considerados suportáveis, ou vantajosos, não de um ponto de vista personalista ou humanista, mas na perspetiva do Estado, omnipotente “intérprete” do “interesse geral”.
3 – Assim sintetizada a vã tentativa de controlar, durante cinco séculos, migrações (quase sempre) consideradas excessivas, vejamos o ocorrido nas últimas cinco décadas de democracia, com políticas respeitadoras da liberdade individual de emigrar e regressar. Houve de tudo, sucessos e “flops”. O sucesso dependeu sempre do realismo de propostas que iam ao encontro do que as pessoas precisavam e queriam.
Dou alguns exemplos, principiando, cronologicamente, pelos Governos Provisórios e a sua generosa, mas utópica chamada ao novo Portugal da Liberdade de todos, (todos!) os expatriados. Para além de personalidades exiladas (como Soares ou Cunhal), o apelo não terá atraído nenhum dos emigrados por razões económicas. Cautamente, esperaram o fim do PREC e a estabilização da economia…
Em desordem e maciçamente, chegaram, sim, os retornados de África. Quase um milhão de portugueses, que recomeçaram a vida do zero, e se integraram, globalmente, muitíssimo melhor do que o previsto. Não obstante isso, o dramático retorno criou, tanto na opinião pública como na da “classe política”, o mal disfarçado pavor do súbito e vultoso regresso dos emigrantes da Europa...
Os governantes não ousaram eliminar medidas anteriormente estabelecidas para o apoio ao regresso e a captação de poupanças (como isenções fiscais e alfandegárias e concessão de créditos, a juro bonificado, para habitação ou para investimentos), mas alteraram o discurso oficial, proclamando não haver condições económicas para acolhimento e reintegração de emigrantes.
Mais uma vez se enganaram… As mesmas pessoas que, nos anos sessenta, partiram sem serem vistas, nos anos oitenta (mais exatamente desde fins de setenta), iniciaram, também sem serem vistas, o seu regresso a casa - gradual, seguro e imparável. Com o que dinamizaram as suas terras de origem, desertificadas pela emigração, aproveitando, regra geral bem, o conjunto de benefícios ao seu dispor. Por sorte, acompanhei, de perto, este processo, em quatro mandatos governamentais, sempre otimista (contra corrente, é claro...), certa de que as pessoas, as famílias sabiam, melhor do que os governantes, escolher o momento de voltar ou de tomar a decisão definitiva de permanecer no estrangeiro (as duas metades do todo, as duas opções igualmente respeitáveis).
Debalde, entre 1980 e 1987, enumerei, mil e uma vezes, os evidentes benefícios do regresso bem planeado, que, aliás, já estava a ocorrer, nomeadamente, no interior, repovoando regiões que a emigração desertificara. Com exceção de alguns peritos e investigadores universitários e dos próprios emigrantes, o meu otimismo não era largamente partilhado… Entre nós, há sempre tendência a acreditar, mais depressa, em “profetas da desgraça” …
No período áureo do Cavaquismo, colhendo os frutos da adesão à CEE, o discurso oficial mudou radicalmente, anunciando que Portugal já não era um país de “emigração”, mas de “imigração”. O ufanismo era, no mínimo, prematuro. Dezenas de milhares de portugueses (maioritariamente trabalhadores sazonais), continuavam a sair para onde quer que houvesse um emprego. E a “mão de obra” estrangeira só haveria de chegar, em número considerável, no final de século, atingindo, em anos mais recentes, um peso muito maior. Porém, contrariando a previsão dos governantes da década de noventa, o aumento da entrada de estrangeiros não coincidiu com a diminuição dos fluxos de saída de nacionais. Pelo contrário: à nossa emigração tradicional, pouco qualificada, juntou-se o êxodo de cérebros (o “brain drain”), fenómeno inteiramente novo…jovens com formação académica, enfermeiros, médicos, engenheiros...
Insensível à gravidade do problema, o Primeiro Ministro Passos Coelho, na era da “troika”, incitou essa juventude a sair da “zona de conforto”,
a expatriar-se!! O conselho era supérfluo era um mau conselho. Supérfluo, porque, na verdade, os portugueses nunca precisaram de incitamento para partir, e mau, porque, ultrapassada a conjuntura, eles fariam, previsivelmente, muita falta
Seguiu-se o Primeiro-Ministro António Costa, que tentou recuperar esses tais jovens para o país, com medidas de natureza fiscal (nomeadamente, o alívio do IRS durante os primeiros anos após a chegada). O programa foi muito publicitado, mas, ao que parece, pouco eficaz. Os supostos candidatos não se deixaram tentar, em número significativo, pela prebenda fiscal…
4 – E eis-nos, no presente, com o Primeiro-Ministro Luís Montenegro, nosso estimado conterrâneo. Também ele tem uma sua oferenda fiscal como via de solução do problema. A ideia é conceder aos jovens até aos 35 anos, uma substancial redução do IRS, para os dissuadir da aventura da emigração. O intento é louvável e, neste campo, coloca-o nas antípodas de Passos Coelho, (o que para mim, é coisa excelente!),
mas…. Há vários “mas”, entre eles, o custo, (estimado em cerca de mil milhões de euros), a constitucionalidade duvidosa desta discriminação idadista, e, sobretudo, a mais do que duvidosa eficácia desta medida no combate à "emigração jovem". Abater o IRS equivale a aumentar o salário, no escalão etário que vai até aos 35 anos, com a certeza de um corte brutal, a partir dos 36… O horizonte é curto! A emigração promete mais: um longo futuro, não só em termos de remuneração, mas de segurança de carreira, condições de trabalho, promoções, valorização profissional ...
O mais provável é a benesse fiscal ser aproveitada pelos que já optaram por não emigrar. A baixa temporária no IRS não será fator de peso na decisão final – tal como nos anos oitenta, o pacote de apoio ao regresso não determinou o regresso, embora o possa ter antecipado, em alguns casos, e o tenha, sempre, facilitado.
Este dispendioso e controverso IRS “idadista”, a meu ver, não impedirá o êxodo! Os jovens que se sentem mal pagos e injustiçados, vão, do mesmo modo, fazer a mala e zarpar. Ficam os demais: de um lado, os resignados e, do outro, os privilegiados da faixa dos 4000 a 6000 euros…
Certo, certo é que Portugal continuará a ser “o país das migrações sem fim”, enquanto não atingir os níveis de desenvolvimento da vanguarda europeia. O que os portugueses de todas as idades querem é isso. A prosperidade que lhes garanta “o direito de não emigrarem”.
domingo, 8 de setembro de 2024
O MEMORÁVEL AGOSTO DE KAMALA (Harris) e KÉPLER (Pepe)
1 - Para a maioria dos portugueses, agosto é o mês sonhado ao longo do ano inteiro, mês de libertação de penosas rotinas. Não para mim! Oferecia-me como "voluntária" de serviço, a substituir os colegas, quando não os chefes. Durante os anos em que estive ligada à emigração, o meu agosto era agradavelmente passado em colóquios, sessões de esclarecimento (então muito em voga!), convívios, e festivais de emigrantes. Um ano houve, em que fiquei à frente dos destinos do Ministério dos Negócios Estrangeiros e me coube decidir a reação ao reconhecimento oficial, pela Austrália, da anexação de Timor-Leste pelo invasor indonésio. Talvez o Ministro não tivesse ido tão longe, mas eu não hesitei em protestar, recorrendo à medida extrema de retirar, temporariamente, o nosso Embaixador de Camberra, chamando-o a Lisboa (nunca simpatizei com potências invasoras…)
Apesar de, em regra, poucos eventos relevantes acontecerem no oitavo mês do calendário, há bastantes exceções, boas e más, como se viu neste 2024. Deixando as piores, para outras crónicas, direi que não nos faltaram grandiosos espetáculos e emoções fortes, no desporto e na política (na política internacional – por cá, apenas o habitual, a “rentrée” dos partidos, tudo sob controlo, com a extrema direita a deitar foguetes),
Desportivamente, mal esmoreciam os ecos do “Europeu” de futebol, começavam os jogos olímpicos de Paris, onde, (“hélas”!), sofremos as desilusões habituais, com o ciclismo a salvar a face Pátria (há sempre alguém que resiste à mediocridade!). Nos domínios da política, assistimos à estrondosa demissão de Biden, à Convenção do Partido Democrático e à meteórica ascensão de Kamala Harris.
2 – O “fenómeno Kamala” entrou na história da América, na história do feminismo (universal), e vai entrar, também, nos manuais de ciência política. O acaso catapultou para o centro do palco, uma Vice-presidente que fora deixada na sombra, a cumprir tudo o que era tarefa menor ou de mau prognóstico (sina muito comum a vice-presidentes seja do que for…). Uma vez aí chegada, encantou a América, finalmente vista na sua verdadeira dimensão, e tal como é: pessoa amável, competente e corajosa, com uma impressionante folha de serviço público, a aplicar o Direito e a fazer Justiça, no quotidiano. Uma jurista brilhante, que pode proclamar, com orgulho, só ter tido um “patrão” e um “cliente”: o Povo! No seu primeiro dia de trabalho, entrou num tribunal e disse: Kamala Harris for the People”. E nunca mais quis outra missão, antes e depois de ter sido a primeira mulher eleita Procuradora Geral do Estado da Califórnia, antes e depois da Convenção que a sagrou candidata às presidenciais por um Partido Democrático, hoje mais unido do que nunca.
A apagada Vice-presidente, figura encoberta, (talvez deliberadamente encoberta…), viu-se descoberta, da noite para o dia, como nº 1,, revelando.se uma personalidade carismática e mobilizadora, a viva imagem de alegria, com a seu sorriso espontâneo e o seu ímpeto de solidariedade e tolerância. The joyful warrior”, “A guerreira alegre”. Numa síntese perfeita, que podia virar pregão de campanha, Barak Obama refez o seu próprio slogan (Yes, we can!), no feminino: “Yes, she can!”.
Para a metade feminina, ainda genericamente subestimada e marginalizada nos caminhos que levam ao Poder, Kamela é um exemplo do que pode ser o destino de tantas mulheres mantidas no anonimato, e a quem só falta uma oportunidade para mostrarem o que são e o que valem.
O complexo sistema americano favorece os votantes da “América profunda” (e, em geral, profundamente retrógrada), em alguns dos chamados “swing states”, pelo que o resultado final é incerto. Pode Kamala, como Hillary, ganhar amplamente o voto popular e perder nos meandros do colégio eleitoral. Contudo, a partir de agora, ao contrário de Hillary, se quiser, ainda tem idade, apoios, horizonte político, para tentar de novo.
O futuro da Europa e do mundo está irremediavelmente ligado ao da América e por isso devemos olhar estas eleições cruciais como se fossem nossas, e ter o "nosso" candidato. O meu é Kamala! Por todas as razões e mais uma, pensando em Portugal, na Europa, na NATO, na Ucrânia, nos aliados do Próximo Oriente, do Extremo Oriente. Decisão fácil…. O contraste com o seu adversário não podia ser maior, como num jogo de luz e de trevas! De um lado, os “alegres guerreiros”, com o seu apelo ao diálogo democrático, ao respeito das diferenças, à união. Do outro, os “angry men”, inventores de “fake news” e profetas do ódio e da calúnia… De um lado, a defesa do Estado de Direito e dos nossos valores civilizacionais, por pessoas de bem, com “curriculum” limpo. Do outro, o“fora de lei” enraivecido, (que orquestrou o “assalto ao Capitólio” em fim de mandato, e já foi condenado por 34 crimes!), o amigo de déspotas sanguinários (Putin, Kim Jong un), ou de perigosos extremistas de direita, como Netanyahu e Viktor Orban… Donald Trump é um homem de passado desbragado e negócios duvidosos (com um curriculum longo de falências fraudulentas e de casos de assédio sexual…). Mentiroso compulsivo, misógino, racista, mais parece personagem saída de um filme de terror! Recordo que, não há muitos meses, veio ameaçar a Europa com um eventual pedido seu a Putin para que invada os países que não atingiram as metas do investimento para a defesa comum (um dos quais é, como se sabe, Portugal…),
Por cá, o “trumpismo” é representado, em tom de comédia, pelo Chega de Ventura. Isso não oferece dúvidas, bate certo, é compreensível. Absolutamente incompreensível é a apregoada “neutralidade” do PSD, em declarações do líder da bancada parlamentar, perante o silêncio cúmplice dos responsáveis máximos do partido e do Governo. Se não é, parece “trumpismo” envergonhado! Entre os “notáveis” das várias alas “laranja”, para já, só Marques Mendes levantou a voz, numa censura branda (branda, mas inequívoca) àqueles seus correligionários.
3 – O meu outro grande destaque deste agosto de 2024, vai para um fulgurante fim de carreira, numa outra área. É uma simples, mas sincera homenagem a Képler Laveran Lima Ferreira, que o mundo do futebol eternizará como “Pepe”. O nome já lendário de um dos melhores jogadores de todos os tempos e de todas as geografias, que mostrou a sua classe ao serviço de grandes clubes e ganhou tudo o que havia para ganhar: 29 títulos, entre os mais prestigiados. 141 internacionalizações pela Seleção (o 3º desse ranking). O mais velho jogador de sempre a competir num Europeu, em grande forma, em grande estilo! Pepe é um fenómeno de longevidade e de classe pura, um superdotado que se tornou exemplar, não só pela qualidade de jogo, como pela qualidade humana, por ter vivido uma longuíssima carreira sempre em crescendo, sempre a transcender-se! Com mais de 41 anos, fez o último jogo, no auge, numa corrida épica, vindo de trás, já quase no 120º minuto da partida, para ganhar um lance decisivo, em velocidade e em técnica, a um “craque” francês, com idade para ser seu filho! Desta derradeira campanha, em que a seleção nacional (batida pela França nos "penalties"), não esteve à sua altura, saiu em lágrimas, mas saiu como um herói.
Convocado para o “Europeu”, após algum tempo de afastamento por lesão, alguns críticos, de início, duvidavam da sua capacidade de ser útil à equipa, mas todos acabaram por reconhecer a excelência do seu desempenho! Rendidos, os críticos escreviam que ele tinha tudo: “leitura de jogo, antecipação, posicionamento, acerto no tempo, voz de liderança”. Adjetivos como “assombroso” ou “imperial” colaram-se às fantásticas exibições com que Pepe disse adeus aos estádios. O público juntou-se aos comentadores e consagrou-o com os seus aplausos. Festejavam cada ação defensiva sua “como se de um golo se tratasse”. As crónicas jornalísticas testemunharam: “Claque vibra com Pepe”; “Adeptos fizeram vénias ao central, quando foi substituído”. A certa altura, o atleta, que tinha tanto de talentoso como de modesto, confessou-se muito surpreendido: “Estou sem palavras…” Neste mês de agosto, comunicou o seu final de carreira, num emotivo e belíssimo vídeo, em que aparece sozinho, rodeado de troféus conquistados.
Imprescindível na Seleção nacional, Pepe tornara-se prescindível no seu clube, e não quis jogar em qualquer outro. Sobre isso, faço minhas as palavras duras de Miguel Sousa Tavares.... Sobre o adeus apenas sublinho que o ser tão prematuro acrescenta à lenda de um jogador absolutamente fantástico, que não envelheceu no campo, e se despediu em glória, com a camisola de Portugal.
sábado, 3 de agosto de 2024
2024 - EFEMÉRIDES
EFEMÉRIDES 2024 - NO CINQUENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO, O CENTENÁRIO DE SOARES E OS 90 ANOS DE SÁ CARNEIRO
1 - Francisco Sá Carneiro nasceu no Porto, em 1934. Teria completado 90 anos no passado dia 19 de julho. Era dez anos mais novo do que Mário Soares, cujo centenário será celebrado, a partir do próximo dia 7 de dezembro.
Sá Carneiro e Mário Soares, os fundadores dos maiores partidos da democracia nascente! Cinco décadas depois, PSD e PS, ainda repartem o centro político, moderado e reformista, com o voto largamente maioritário dos portugueses. Pelo contrário, à sua esquerda e direita, PCP e CDS iam
minguando, enfraquecidos pela concorrência eficiente de formações que foram apareceram (e, algumas, desaparecendo), nas margens do “centrão”.
Foi, pois, num contexto de maior equilíbrio de forças que os quatro principais partidos portugueses fizeram história por caminhos abertos pela Revolução, com lideranças de tal modo carismáticas e mobilizadoras, que não poderemos compreender inteiramente as metamorfoses da sociedade e da política portuguesa de então, sem refletir o seu pensamento e a sua ação....
2 - A dia 25 de Abril de 1974, Sá Carneiro estava prestes a completar quarenta anos, Soares ia a caminho dos cinquenta, Álvaro Cunhal era já era sexagenário e Freitas do Amaral ainda não tinha feito trinta e três anos. Este curioso escalonamento de idades é, porém, menos relevante do que outras
diferenças, de origem familiar e regional, de perfil, de ideologia e visão estratégica, de empatia com um povo ansioso pela mudança. Diferenças, mas também semelhanças - e não penso na formação académica (eram todos juristas da Universidade de Lisboa), mas na marca das suas qualidades pessoais e políticas na refundação de um regime. Todos eles homens com sentido de missão, norteados por valores, por muito contraditórios que fossem (e eram) as suas mundivisões.
3 – Nas inesquecíveis comemorações do cinquentenário de Abril/74, o foco não esteve nestas quatro personalidades, isto é, na componente civilista da Revolução, mas acho que deveria estar no período
restante de programação, até ao seu fecho simbólico em 1976, (no cinquentenário da Constituição da
República Portuguesa). Isso não significa desvalorizar a cota parte dos militares, mas antes abranger, num olhar envolvente, as duas metades do todo.
Suponho que a Comissão das Comemorações, constituída, com pompa e circunstância, para oficiar o ritual festivo não o fará - e, de qualquer modo, o que quer quer que faça não se nota muito - e os poderes públicos provavelmente também não. Ponho a minha esperança no dinamismo da "sociedade civil", em ONG e em “fora” de debates, quer tenham, ou não, afinidades com formações partidárias. O momento é asado, com a confluência das três efemérides, que dão título a esta crónica.
4 - No caso do Dr. Soares, mais do que esperança, há certezas. A preparação das comemorações do seu centenário está em curso, por iniciativa da Fundação com seu nome (e, agora, também, o de sua Mulher) e que assinalará, entre dezembro de 2024 e 2025, um século na vida do País e do Homem, que esteve na resistência a uma ditadura de quase cinquenta anos, e na construção da democracia, que se estendeu pelos
outros cinquenta.
A “Fundação Mário Soares e Maria Barroso” vem desempenhando um papel exemplar na preservação de um precioso arquivo (o do fundador e não só), e no debate de ideias – no quadrante político que era o dele, fiel ao seu espírito de abertura ao exterior, ao meio académico, ao mundo da lusofonia. Um paradigma difícil de seguir...
5 – Sá Carneiro, nos 90 anos do nascimento de Sá Carneiro, merece, obviamente, igual reconhecimento pelo muito que lhe cabe na arquitetura da nossa democracia, igual preocupação na preservação do seu legado. Do Instituto Francisco Sá Carneiro (o antigo "Instituto Progresso Social e Democracia", rebatizado após a sua morte), se esperaria motivação bastante para o homenagear nesta data, já que na sua folha de apresentação destaca a “aposta” na "valorização da memória do político singular que nos deu o nome". Muito estranha é, por isso, esta omissão. Invocar o seu nome na Universidade de verão e similares, ou dar à estampa, de vinte em vinte anos, edições de curtos depoimentos sobre a sua pessoa e percurso político (em 2000, uma coletânea intitulada "Francisco Sá Carneiro - um olhar próximo", em 2020, com a chancela da JSD, uma segunda
coletânea "40 anos, 40 testemunhos sobre Sá Carneiro") e reedições de escritos pouco cuidadas ou acrescentadas, não me parece esforço bastante...
6 - Nada contra as coletâneas, são textos interessantes de ler e reler, mas não substituem a investigação científica aprofundada, a edição de ensaios críticos, o debate académico, em que se deveria alicerçar a divulgação da sua mensagem.
E que dizer do tratamento dos arquivos de Sá Carneiro, da recolha de arquivos de velhos militantes, que, por incúria, se vão perdendo? (nem todos, sei que alguns dos mais importantes foram oferecidos,
não ao Instituto, mas à "Ephemera", e é fácil perceber o porquê da preferência...).
7 – Contudo, apesar da inércia das estruturas partidárias, Sá Carneiro teve na sua cidade, na noite de 19 de julho passado, o merecido tributo, por iniciativa de um grupo de militantes portuenses do PSD, reunidos no fórum "Porto Laranja".
O fórum organizou um jantar - conferência, com José Pacheco Pereira como orador e com mais de uma centena de participantes (tantos quantos o restaurante comportava). O conferencista começou a sua
brilhante intervenção pela mostra de documentos inéditos sobre Sá Carneiro e sobre o PPD nos dias agitados da Revolução, mobilizou ânimos, dialogou com os presentes até muito depois da meia-noite. Só espero que haja mais diálogo com quem possa, assim, esclarecer-nos e entusiasmar-nos.
Num país que, cronicamente, descura o seu património acervos, a todos os níveis, e em todos os domínios, Pacheco Pereira, com a sua já famosa "Biblioteca e Arquivos Ephemera", está convertido num verdadeiro "herói da resistência" à indiferença que, em linha reta, leva à destruição de documentos, registos de factos, memórias, a que não escapam algumas das mais altas figuras da Pátria...
8 - Uma das surpreendentes revelações de Pacheco Pereira foi a existência de muitas e sucessivas emendas dos textos de Sá Carneiro, (feitas por sua própria mão), que não têm sido respeitadas, nomeadamente, nas recentes reedições dos "Escritos". E mais ainda: a existência de inúmeros textos inéditos, que permanecem fechados nas gavetas e deveriam ser publicados.. Passo importante para aproximar as novas gerações de um Sá Carneiro, demasiadamente ignorado, apesar de tão citado (geralmente de uma forma sintética ou ligeira), e de tão elogiado, (a traços largos e, tantas vezes, com ambiguidade, por antigos opositores, de fora e, sobretudo, de dentro do partido). Um retrato de luzes e de sombras, delineado em algumas das suas mais ambiciosas biografias, na pena dos autores que me parece ser guiada mais por testemunhos hostis do que positivos. É o caso da obra de Miguel Pinheiro, anunciada como fruto de "cinco anos de trabalho exaustivo", abrangendo 76 entrevistas a familiares, companheiros e adversários. Muito esforço, sem dúvida, prejudicado pela falta de equilíbrio na avaliação ou dosagem de testemunhos, (muitos mais contra do que a favor)…
9 - Assim pensa quem sempre foi "Sacarneirista". Um dia darei sobre ele o meu subjetivo testemunho. Aqui e agora, direi apenas que acompanhei o seu percurso, desde a "ala liberal" ao dia 4 de dezembro de 1980, de longe, como cidadã atenta aos seus escritos e intervenções. E, quando o conheci, de perto, num ano incompleto, como membro do seu Governo, confirmei as sintonias, em toda a sua extensão!
Em Sá Carneiro, apreciava as qualidades, e, acima de tudo, dos defeitos que lhe apontavam, um dos quais era ter razão "antes do tempo". Por exemplo, ter razão quando, já em 1974, confiava, em absoluto, na capacidade dos portugueses para viverem a democracia plena, sem paternalismos nem tutelas militares. Portugal foi sempre a sua aposta de alto risco!
segunda-feira, 1 de julho de 2024
FUTEBOL MASCULINO, FUTEBOL FEMININO
FUTEBOL MASCULINO, FUTEBOL FEMININO
Os "Apaixonados" e as "Navegadoras"
O futebol anima este início de verão, com o Euro 2024, porque Portugal promete. "First we take Leipzig, then we take Berlin". Veremos se cumpre, chegando a Berlim, numa transposição (puramente desportiva) da música de Cohen, ao ritmo imposto aos "apaixonados" pelo génio de Vitinha.
"Apaixonados"?... Que ideia, a de Martinez, de chamar isso aos rapazes! No ano do 5º centenário de Camões, é incrível não se lembrarem do óbvio cognome de "Lusíadas". Em tempo de ínfimas comemorações nacionais, seria bonito darem ao Poeta, depois de um aeroporto de incerto futuro, uma real e talentosa equipa de futebol masculino. Há que especificar o género, desde que deixou de ser um desporto "intrinsecamente masculino". De facto, até na nossa tão misógina sociedade, mulheres e homens acompanham os jogos com idêntica "paixão". A igualdade está, mais ou menos, conseguida nas bancadas dos estádios e nas "fun zones", não ainda dentro do retângulo, apesar dos maiores clubes já terem equipas femininas competitivas, base de uma seleção que, no último Mundial, deu um ar da sua graça. A exceção é o FC Porto, que, neste aspeto, permanece abaixo dos clubes da Arábia Saudita e do Qatar, embora já com o seu debute anunciado (promessa eleitoral comum às duas listas principais). Longa se adivinha a caminhada, visto que milagre semelhante ao do campeoníssimo voleibol feminino portista não parece estar no horizonte da década!
Portugal não é, porém, nem histórica, nem atualmente, um caso isolado de discriminação de sexo no desporto-rei. Sabiam que chegou a ser não só proibida, mas também criminalizada, a sua prática pelas mulheres, por exemplo, no Brasil ou na França, em pleno século XX? Por ditaduras, dir-se-à - Getúlio Vargas, governo colaboracionista de Vichy, (no início de quarenta). Engano! Até na democrática Grã-Bretanha, onde há notícias de "football" ensaiado por mulheres desde o século XVIII, isso lhes foi interdito, durante quase meio século (de 1921 a 1967). Em França o banimento foi levantado em 1970, no Brasil só tiveram licença para competir em 1983.
Um argumento pretensamente científico sustentava o proibicionismo de legisladores, governos ou federações: tratava-se de um jogo violento, inadequado à natureza, à estrutura física da mulher, prejudicando a sua saúde e fertilidade. (o futebol a prejudicar a reprodução da espécie - que ameaça!). A viragem dá-se na década de 80, não por "mea culpa" dos cientistas, mas, suponho, pela evidência da prática de outras modalidades desportivas que se iam abrindo a mulheres.
O 1º Campeonato da Europa de Futebol Feminino é realizado em 1984, o 1ª Campeonato do Mundo em 1991 (após "ensaio geral" da FIFA num torneio internacional disputado na China, em 1988, com bastante sucesso popular). No masculino, a FIFA tentara, sem êxito, lançar o Mundial quase noventa anos antes, em 1904. Optou, em 1908, pelo facilitismo de considerar a competição olímpica um Mundial de Futebol (amador). Jules Rimet afasta-se desse rumo, e, em 1930 consegue organizar o 1º Campeonato Mundial, no Uruguai. Escolha natural, porque era a equipa campeã olímpica de 2024 e 2028. E, por sinal, venceu, também, essa primeira edição. O futebol europeu estava em segundo plano... A UEFA foi criada em 1954 e realizou o seu 1º torneio, em 1960, com o título de "Campeonato das Nações Europeias" e uma vitória da URSS. A designação atual foi adotada em 1966/68.
Há, assim, no século XX, uma diferença de quase nove décadas entre o início da competição masculina (nas Olimpíadas "apropriadas" pela FIFA) e da feminina. Na Europa, em menos de meio século, o atraso cifra-se em nada menos do que 24 anos....
O Caso Português
Estranhamente, Salazar, ao contrário dos seus “compagnons de route”, nomeadamente franceses e brasileiros, não terá sancionado, nas leis penais, a prática do "foot" feminino. Procurei traços de legiferação, neste capítulo, e não encontrei - admito que posso ter falhado a pesquisa. Não é, de todo, caso para dar mérito ao ditador, antes para reconhecer o demérito de uma sociedade arcaica, onde nem sequer havia potenciais jogadoras - ou infratoras.
O ditador não podia saber do meu mau exemplo de menina que jogava futebol de rua, no meio dos meninos, e organizava torneios femininos clandestinos no Colégio do Sardão. Tudo isto, em fins da década de 40 e inícios de 50, na esteira de Nettie Honeyball, a feminista contemporânea de minhas avós, que fundou o pioneiro "Ladies Fottball Club". (Ao contrário da "british" Nettie, não fui mais do que uma exceção absolutamente irrelevante, mas diverti-me imenso e fartei-me de marcar golos).
No calendário oficial, em termos europeus, Portugal começou bem, com a organização da Taça Nacional de Futebol Feminino, em 1985, mas com Silva Resende no comando federativo cai num impasse. Em 1993, por iniciativa de Carlos Queiroz, a FPF recomeçou do zero, convidando para o cargo de selecionador nacional um grande senhor do futebol, António Simões, vindo dos EUA, onde o "soccer" feminino estava no topo do "ranking" mundial. Nas suas próprias palavras: "confrontei-me com uma sociedade muito conservadora, que não queria que as mulheres jogassem: o futebol era só para homens [...] hoje sou um homem feliz, porque se ultrapassaram uma série de preconceitos. Levou 30 anos. Não interessa". Simões orgulha-se, justamente, do seu pioneirismo!
A partir de 2012, com a visão do Presidente Fernando Gomes, assiste-se a um salto qualitativo, e logo em 2017, elas têm presença honrosa no Europeu, com uma vitória sobre a Escócia, em 2022, alcançam uma primeira qualificação para o mundial, onde se bateram, de igual para igual, contra potências como os Países-Baixos e os EUA (com um empate, depois de vencerem, sem dificuldade, o Vietnam).
Comparativamente, a trajetória ascendente do outro sexo, nos mundiais, foi mais vagarosa - trinta e tal anos para alcançar a primeira qualificação, em 1966. Uma estreia com um sensacional 3º lugar (havia Eusébio, havia o referido Simões)! De seguida, falhamos a qualificação, em 1970 e 1982. Voltamos em 1986 e não passamos da fase de grupos. Novas ausências entre 1990 a 1998. A partir de 2002, sim, marcamos presença ininterrupta, ainda que a melhor classificação seja o 4º lugar de 2006.
No Euro, também nos quedamos fora da grande competição por mais de duas décadas e só em 2002 entramos no círculo dos "grandes". Sem mais ausências, sagramo-nos vice-campeões em 2004 e campeões em 2016. A pior classificação do século foi a de 2020 - caímos nos oitavos de final, pelo que está na hora de nos redimirmos...
3 – Progressos e Preconceitos (de Sexo e de Idade)
Sendo este o panorama global do futebol português, a palavra “progresso” parece, ajustada a ambos os sexos, ainda que as "Navegadoras" tenham pela frente um longo combate contra discriminações e mal disfarçada oposição de muitos, sobretudo no mundo do futebol, o "futebol empresa", a imperar sobre o "futebol desporto". Melhores aliados se revelam as instâncias internacionais, FIFA e UEFA, e, sobretudo, o público, que vai aderindo à espetacularidade de um jogo mais aberto e espontâneo, ainda mais desporto do que negócio.
Em matéria de preconceitos, os homens, na prática, só têm de se confrontar com o “idadismo”, (do qual elas também não estão isentas.). A velhice, neste universo, chega aos trinta e tal anos, a partir dos quais a longevidade, em alta competição, é coisa rara. Portugal tem neste Euro duas fantásticas "raridades", Pepe e Ronaldo. Não se limitam a estar lá, em igualdade de mérito e competência e a serem os mais velhos em competição. Enchem os estádios com a sua magia! Tal como Modric da Croácia. (que pena, a seleção não ter passado a fase de grupos no seu derradeiro Euro!).
RONALDO é, por si só, uma bandeira do desporto e do País. Arrasta multidões, de dentro para fora e de fora para dentro do campo. Em Dortmund, até um menino turco invadiu o campo para uma “selfie” com o seu herói e não faltavam adeptos turcos, envergando a camisola das quinas, nº 7, a confundirem-se com os portugueses. PEPE, a caminho dos 42 anos, bate um recorde "impossível", a jogar como sempre, ou como nunca. Por várias vezes, na 2ª parte, se viu o público a aplaudir os seus cortes cirúrgicos de bola, como se fossem golos. E ainda teve fôlego, para ir à frente, tentar a sorte. Terminar a carreira? Não, por favor! No Botafogo, no Al Nassr, onde quer que seja, eu quero continuar torcendo por Pepe! Que o FC Porto estava fora desta corrida, depois do “imbróglio Conceição” (Conceição pai), era, infelizmente, constatação óbvia. A confirmação do novo líder (ou líder novo), foi supérflua, extemporânea e, em início de Europeu, podia ter sido nociva. Não foi, talvez tenha mesmo constituído um motivo extra, para Pepe se transcender. No desporto, assim se responde, quando a classe abunda e conta mais do que a idade!
Maria Manuela Aguiar
quinta-feira, 30 de maio de 2024
AS MULHERES NOS TEMPOS DO “ESTADO NOVO”
AS MULHERES NOS TEMPOS DO “ESTADO NOVO”
1 – “Antes do 25 de Abril era proibido” de António Costa Santos
Nas diversas iniciativas integradas nas comemorações da Revolução de 1974 em que participei, entre março e maio, numa data tão especial como é a do seu cinquentenário, a maioria colocava o enfoque na situação das mulheres portuguesas. No antes e no depois. Duas metades de um século. Não terá sido por acaso – é um ângulo ideal para compreender o espírito do “Estado Novo”. Do corporativismo, enquanto doutrina totalitária e enquanto movimento anti personalista, que combatia, por igual, o comunismo e o liberalismo, condenando radicalmente o individualismo. A sua primeira principal vítima sacrificial seria a mulher - a mulher, em geral, e a mulher casada, em particular, porque a sua individualidade se fundia no núcleo familiar, e ficava sujeita à autoridade do marido, a quem, tal como os seus próprios filhos, devia obediência. Nessa unidade orgânica, como nas empresas, na sociedade, na política, os papéis eram definidos pelo Estado, que zelava pela sua rígida conservação. O homem detinha a chefia da família, como Salazar a chefia do Governo. Cada marido era um micro ditador doméstico, à imagem e semelhança do Grande Ditador nacional. Cabia-lhes interpretar e decidir o "bem comum" do seu agregado, mandar, censurar, proibir…
Muitas das proibições legais de então, hoje, causam espanto ou fazem hoje rir. Para quem queira, percorrer, ludicamente, a lista de alguns dos mais incríveis tabus do salazarismo, recomenda-se o livro referido em epígrafe. Faltará, aqui e ali, rigor científico, em alguns casos, especificidades verdadeiras nos anos trinta, já não o eram nos anos sessenta ou setenta, por força da alteração de mentalidades e costumes… De qualquer modo, dá-nos uma narrativa bem conseguida e engraçada do que “era proibido”. Vejamos: as senhoras andarem nas ruas sozinhas; as mulheres entrarem na igreja de cabeça descoberta; as mulheres casadas viajarem para o estrangeiro sem autorização do marido (nem que fosse apenas a Badajoz, ou a Vigo, comprar doçarias); as mulheres saírem à noite sozinhas; minissaias nos liceus; biquínis nas praias; o matrimónio às mulheres em certas profissões, professoras, enfermeiras, hospedeiras de bordo, (salvo se conseguissem autorização do Governo!): as mulheres ingressarem em profissões, como a magistratura e a diplomacia, e, genericamente, ocuparem posições de chefia...
Embora em menor número, também havia, evidentemente, ditames aplicáveis a ambos os sexos, entre os quais: beber coca-cola, jogar cartas nos comboios; dar beijos em público, ler certos livros, ver certos filmes, ouvir certos discos; usar isqueiro ou andar de bicicleta, sem prévia licença, assim como participar em “ajuntamentos de mais de três pessoas”.
2 – A cada um o seu lugar – a política feminina do Estado Novo” de Irene Flunser Pimentel
Este é um livro dirigido a um público muito diferente, uma obra de referência sobre o tema, um brilhante e premiado estudo académico, que nos elucida sobre o lugar que era alocado ás mulheres, na doutrina e nas leis da Ditadura, e que escalpeliza as estratégias que serviram os fins, acantonando o sexo feminino na esfera da domesticidade e bloqueando os canais de ascensão social e profissional, (segundo o sexo e a classe social), a começar pelo ensino e a acabar no afunilamento das oportunidades de trabalho e na discriminação salarial.
O princípio da igualdade, consagrado na Constituição de 1933, exceciona, quanto às mulheres, as desigualdades justificadas pela sua “natureza” e pelo “interesse da família”.
A “natureza” justificava a exclusão das mulheres no acesso às profissões mais prestigiadas, diplomacia, magistratura judicial, e quaisquer cargos de direção, assim como as assimetrias salariais, no professorado deliberadamente usadas para combater a crescente feminização do setor, que tanto afligia os Ministros da Educação, (alguns chegaram a impor “quotas” na entrada da profissão, a favor do sexo masculino!).
Para pôr a mulher “no seu lugar”, o regime combateu o ensino misto, ensaiou a diferenciação dos currículos escolares, a desvalorização da escola feminina e a redução da escolaridade obrigatória. Em vão… As taxas de feminização do professorado iam em crescendo (no primário de 68%, em 1930, para 87%, em 1960, no liceal de 33% para a 56%, no mesmo período
Ainda por cima, a taxa de feminização no acesso ao ensino seguia trajetória semelhante: no primário de 42%, em 1930, para 48,5 em 1960; no liceal (3º ciclo), de 33,2% para 50,1% - sendo superior a percentagem de aprovações: 53,2%, neste último ano.
Quer isto dizer que as raparigas foram vencendo preconceitos, armadilhas e barreiras colocadas no caminho da sua formação académica e profissional, e, enquanto se mantivessem solteiras, tinham, ao menos teoricamente, o direito de dispor de si e decidir o seu destino. Com algumas limitações, como se viu, por exemplo, arriscando ser presas pela polícia se saíssem à noite sozinhas…
Muito, muito pior era a situação das casadas, para quem o casamento era sinónimo de servidão. No altar, entregavam a sua liberdade, decaíam, nos termos da lei, para um estatuto de eterna menoridade, semelhante à dos seus próprios filhos, sobre os quais, como é óbvio, não podiam exercer o poder parental. Deviam obediência aos maridos, eram obrigadas a viver no domicílio conjugal por eles escolhido, e, se ousassem abandoná-lo, viam-se sujeitas a “depósito judicial de mulher casada”. Isto é, a detenção pelas autoridades policiais, seguida de “prisão domiciliária”. Careciam de autorização marital para tirar passaporte. Perdiam a capacidade de administrar os bens comuns e até os seus bens próprios. Tudo eram prerrogativas dos maridos, que podiam, ainda, proibi-las de exercer uma profissão, de publicarem um texto, violar a sua correspondência, e, em caso de adultério, assassina-las, sem consequência de maior (a pena era leve, um curto degredo de meses, a cumprir nas proximidades).
Parece mentira, mas não é. Estatuto jurídico semelhante ainda hoje persiste, noutras geografias - no Irão, na Arábia Saudita, no Afeganistão talibã… Com uma pequena, mas relevante diferença: o desfasamento das leis com a realidade social portuguesa. Muitas esposas, não sendo juristas e tendo cônjuges amáveis e sensatos, nunca se terão sequer apercebido da sua “capitis diminutio”.
3 – “Ela é apenas mulher” de Maria Archer
Contudo, a verdade é que, durante a ditadura, em todos os domínios e no conjunto, as portuguesas foram fortemente condicionadas nas suas escolhas de vida e ficaram aquém dos seus sonhos e reais possibilidades. Para as (e os) jovens de hoje é difícil imaginar as vivências do quotidiano, nos anos da ditadura, sobretudo nas primeiras décadas, mas facilmente encontram esse mundo nas páginas do grande mais famoso romance de Maria Archer, que acima referi. É um dos seus raros livros não esgotados, na reedição da Parceria A. M. Pereira, com prefácio de Maria Teresa Horta. Faço minhas as suas palavras quando diz que que Archer traçou na sua obra literária, “o único retrato autêntico de corpo inteiro” (da mulher portuguesa nessa época),
Ninguém melhor do que Maria Archer soube recriar, de uma forma eficaz, crua e rigorosa, a atmosfera social e política que moldava, então, o círculo fechado das mulheres. Ninguém soube melhor escrutinar e denunciar a violência velada das leis arcaicas e dos brandos costumes da sociedade portuguesa, do relacionamento de sexo ou de classe, homens e mulheres imersos na nebulosa de estereótipos, dogmas e falso moralismo, de prepotência e sujeição... Ninguém melhor do que ela soube desconstruir a imagem da "fada do lar", com os seus dotes de observadora, de “quase etnóloga”, e com a força subversiva da escrita posta ao serviço de uma causa, que era a de infirmar o mito salazarista da inferioridade intelectual da Mulher…
Aqui fica o convite à descoberta da tão injustamente esquecida Maria Archer, e da sua arte de recriar o reino distópico do "Estado Novo", derrubado em 1974. É uma forma especial de celebrarmos o cinquentenário da Revolução e, por feliz coincidência, também, o 125º aniversário desta extraordinária mulher e romancista, que escreveu história do feminismo com a sua própria vida.
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