quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

PERCEÇÕES 1 - Nestes últimos dias do ano fala-se muito de guerras (a da Ucrânia, a de Gaza, que alastrou ao Líbano e, agora, a da Síria, todas de desfecho incerto - e que pena não podermos falar de paz neste Natal...), do novo aeroporto de Lisboa (que absurdo, fazer em Lisboa o maior investimento de sempre, como se, para o Estado, não houvesse o resto do país), das eleições presidenciais (um civil ou um militar?), das eleições na Madeira (que parecem ter entrado no calendário vulgar do Prof. Marcelo, cuja tarefa preferida é dissolver, dissolver – juntamente com as “selfies”, provavelmente, o que ficará para a história dos seus dois mandatos), de futebol (SCP E SLB dominando todos os programas semanais de rádio e TV– do FCP só ”faits divers” como a notícia da descida aos túneis do presidente AVB e da sua linguagem vicentina…) e de “perceções” (sobretudo, a propósito dos “sentimentos nacionais” de insegurança, ligando-os à realidade mal conhecida, ou propositadamente deturpada, da imigração. Estava eu hesitante em escolher, entre tantos temas da semana, um para tratar em mais detalhe, quando vi, nos noticiários do dia, em todas as estações, as reportagens sobre “a rusga de Martim Moniz” e "senti" que tinha de escrever sobre a sensação de horror (e de insegurança!) em mim provocada por aquelas imagens - uma fila infindável de pacatos indivíduos, com as mãos encostadas às paredes, a serem revistados por forças policiais. Há meio século, quando fervilhavam as pequenas querelas partidárias, em tempo de construção de um país livre, o muito jovem jornalista Marcelo entretinha-se a criar “factos políticos”, saídos da sua cabeça para as páginas do “Expresso” (e nós, às vezes, até achávamos graça). Agora é um Governo da República, que parece agir ao serviço de preconceitos e de “factos imaginados”, o que não tem graça nenhuma e pode desencadear sérias consequências para a perceção interna e externa da qualidade da nossa democracia, para além do susto e do vexame infligido a tantos cidadãos inocentes. Sim, inocentes! Na verdade, a gigantesca operação de 19 de dezembro de 2024, ao que vi e ouvi, saldou-se em dois detidos (um já a contas com a Justiça e outro por posse de droga - ambos portugueses) e pela apreensão de uma pequena quantidade de material de contrafação. A montanha pariu um rato… podemos até concluir que, de uma forma ínvia e cruel, a operação acabou por provar ser Lisboa, até nas zonas de duvidosa reputação, uma cidade mais segura do que aparenta. Já tenho assistido a rusgas policiais na feira semanal de Espinho, no ocasional combate à contrafação – talvez com mais apreensões de artigos à venda - felizmente, até ver, sem semelhante espalhafato. Dizer que esse alarde de prepotência nos transmite uma “sensação de tranquilidade”, é, simplesmente, incrível…a fazer recordar tempos de pandemia, quando nos vedaram o acesso à praia e aos bancos de jardim e erguerem barreiras policiais para impedir a circulação de carros entre concelhos vizinhos. Eu, na altura, desempenhava um cargo que me dava liberdade de trânsito até ao Porto, ao estádio do Dragão, e via-me fiscalizada, pelo menos, três vezes, antes de chegar ao destino, para assistir a jogos sem público. Nunca tais medidas obviamente excessivas me deram uma sensação de “tranquilidade” - só de insensatez, de desnorte, de incompetência. 2 – Confesso que me preocupa muito a “deriva securitária” (pomposa, embora realista formulação!), deste Governo, que, nos seus primeiros meses, mostrou uma face bem mais benigna e promissora, cultivando cuidadosamente o distanciamento face ao partido de Ventura. Mas eis que, num ápice, se aproxima do "inimigo" não só neste campo de fiscalização intrusiva das populações, como na denegação de acesso ao SNS de todos os imigrantes ainda não legalizados, nos termos de uma iniciativa do "Chega" (que estranho presente natalício...). A campanha começou, como sabemos, na denúncia do aproveitamento da abertura dos nossos serviços de saúde por turistas, que ao país se deslocavam apenas para beneficiarem de tratamentos dispendiosos ou para aqui terem os filhos nas nossas atrativas maternidades. Até aqui, tudo bem, ninguém discordará da urgência de pôr fim a tais abusos. Porém, estender o mesmo regime limitativo aos estrangeiros que vivem e trabalham no país entra no domínio da injustiça e da desumanidade e pode, em certos casos, constituir uma ameaça à saúde pública de estrangeiros legalizados e de portugueses, por igual (como é óbvio, pela via da propagação de doenças, não atempadamente diagnosticads e tratadas). . Não se julgue que estas posições estão na tradição do PSD e dos seus governos. Não estão! E já nem penso nos tempos de Sá Carneiro ou de Mota Pinto, verdadeiros sociais-democratas, mas, por exemplo, na década de Cavaco Silva, que também ainda mostrava preocupações sociais com os desfavorecidos. Disso posso dar testemunho, justamente no que respeita á imigração indocumentada. Embora o meu espaço de intervenção cívica e política tenha sido, fundamentalmente, o da emigração portuguesa, também me envolvi em ações de solidariedade com imigrantes, em movimentos para a sua legalização (brasileiros, guineenses, nos anos noventa, ucranianos no começo do século...). Quando do processo de realojamento de populações das barracas de Lisboa - um dos que marcaram aquela década positivamente - falei com o Primeiro Ministro Cavaco Silva, perguntando-lhe se os imigrantes clandestinos eram abrangidos na solução e ele respondeu que sim, e acrescentou que isso se devia à sua própria decisão! Nessa altura, note-se, a regulamentação interditava a atribuição de habitações sociais a estrangeiros e ele abriu uma exceção inteligente (que sucesso teria o programa de erradicação de barracas, se deixasse tanta gente de fora?). O mesmo, "in illo tempore", aconteceu, e por maioria de razão, em matéria de abrangência nos cuidados de saúde. Ouvir agora um deputado do PSD, prestigiado médico portuense, a defender, do alto da tribuna, na Assembleia da República, a exclusão de trabalhadores estrangeiros, em situação irregular (não meros turistas), do acesso a serviços gratuitos de saúde, é coisa de estarrecer! 3 - Tudo é sacrificado ao altar das perceções, do imaginário popular... Ora os Governos não podem ficar cativos de erróneas perceções. Têm, sim, a obrigação de as desconstruir pela revelação de factos e números autênticos e de adequar à realidade as políticas públicas. Não se pode confundir a situação de "turistas da saúde" com a de imigrantes (ditos) clandestinos ou ilegais, que, em tantos casos, são não só usados como explorados no nosso país. Não se pode alegar que abusam do SNS estrangeiros que são contribuintes líquidos do sistema, porque efetivamente pagam muito mais do que recebem, como os relatórios comprovam. Não se pode, num dos países mais seguros do mundo, lançar campanhas contraproducentes contra a insegurança. E, sobretudo, não se pode apontar o dedo acusatório aos imigrantes, no capítulo penal, quando, de facto, as suas taxas de criminalidade são inferiores às dos nacionais. Isso é a regra por todo o lado e quaisquer que sejam as nacionalidades. Os imigrantes de primeira geração vêm para trabalhar, honesta e duramente. Falo por experiência de vida. Quando comecei as visitas às nossas comunidades recentes, por exemplo, em França, havia cerca de um milhão de portugueses e praticamente nenhum na cadeia. Na geração seguinte, a percentagem de detidos já era próxima da média nacional francesa... Os problemas não surgem com os pais, mas com os filhos, quando lhes não dão condições de integração, de igualdade, de pertença. Os bairros de maioria imigrante precisam muito mais de boas escolas, de bons professores, de associativismo solidário do que de polícia. Depois de ter andado no terreno, no meio das pessoas, esta é a minha perceção. Vamos ser realistas e justos. Chega de "Chega"... Para todos, estrangeiros e nacionais, um Bom Natal!

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

MÁRIO SOARES, SEMPRE! Conheci a Dr.ª Maria Barroso e o Dr. Soares em receções de Embaixadas, quando pertencia ao Governo Mota Pinto, em 1978. Com a Dr.ª Maria de Jesus entendimento perfeito, desde a primeira hora! Já com o Dr. Soares não foi bem assim. Os tempos eram de proselitismo partidário e eu, PPD não filiada, estava em campo oposto, mas a atração por uma personalidade tão calorosa e interessante, contribuiu, decisivamente, para o princípio do fim do meu faciosismo político. Em todo o caso, distinguia entre “gostar de Mário Soares” (sim, imenso), e “gostar politicamente de Mário Soares” (não tanto). As minhas memórias de diálogos com ele são inúmeras e, na sua maioria, muito divertidas! Viajar com ele era uma festa, desde o momento em que se entrava no avião. A conversa fluía, animadamente, resvalava para uma vozearia excessiva. Uma vez, até mandei calar toda a gente, ao ver, na primeira fila, o Presidente já a descansar, depois de ter dado a volta completa à aeronave, cumprimentando toda a comitiva. Calámo-nos, por precaução, mas ele, imune ao ruído, dormia bem em qualquer ambiente. Só a viagem à URSS (Rússia, Arménia e Azerbaijão), em tempo de “perestroika”, dava um livro inteiro, com personagens como a família Sahkarov, Gorbatchev, o chique russo da vedeta Raisa e as tentativas do Dr. Soares de sair dos rígidos roteiros soviéticos, a fim de ver as pessoas, no seu quotidiano normal. Vou cingir-me a episódios que envolveram os Deputados da comitiva – um de cada partido, contrariando o critério proporcional, por uma boa razão: o Presidente queria dar lições de convivência e pluralismo partidário, e manifestar o seu apreço pela instituição parlamentar. Apreço sem paralelo no mundo soviético, e, por isso, o protocolo atribuía vistosos carros pretos a toda a gente, diplomatas, empresários, jornalistas, e desterrava para o fim do longo cortejo, o numeroso coletivo de parlamentares, compactados numa velha furgoneta. Nos atos cerimoniais, deposição de coroas de flores em monumentos, receções, discursatas, o Presidente exigia que os parlamentares estivessem à sua volta. E nós éramos os últimos a chegar, depois de uma correria, já com o Dr. Soares a acenar-nos, de longe, impacientemente... sem a nossa presença o evento não começava! E nós não explicávamos o porquê do atraso, para lhe poupar irritações. Aconteceu o mesmo nas três Repúblicas: só ao segundo dia, depois de veementes protestos, conseguimos carros pretos e a nossa precedência protocolar no cortejo. O último incidente protocolar aconteceu em Kiev, onde o avião oficial fez escala, para um encontro de Presidentes, o nosso e o da Ucrânia, seguido de um grande banquete. Tudo no aeroporto. A comitiva teve de ser dividida em dois salões VIP, um para as altas individualidade, outro para as de segunda linha. Ora, nesta categoria decaíram dois Deputados... Sempre atento às pessoas, o Dr. Soares apercebeu-se da sua ausência e quando a tentaram justificar, exasperado, exigiu que os chamassem, de imediato, para a sua mesa. Levantaram-se, prontamente, vários funcionários. Foi tremenda a confusão, as movimentações nervosas, até se acertar a troca, com os Representantes da Nação a ocuparem os devidos assentos. Uma última aula de democracia dada pelo nosso Presidente! Por mais incrível que pareça, cena idêntica sucederia no próprio Palácio de Belém, durante a audiência presidencial a uma Delegação da China. Eu estava, como Vice-presidente da Assembleia, incumbida de acompanhar as suas visitas ao PR e ao PM (Cavaco Silva). À entrada, do Palácio, o Protocolo veio dizer-nos que a sala de receção não comportava as duas largas comitivas, chinesa e portuguesa, sugerindo que alguns dos nossos esperassem lá fora. Os colegas concordaram que só eu estivesse na audiência, como já acontecera, em São Bento, sem objeção do Prof. Cavaco, mais preocupado em falar de uma sua recente visita à China, elogiosamente, em tom formal, como é seu timbre. Não foi assim em Belém. Mal nos tínhamos sentado, e já Presidente me perguntava: “Está sozinha com esta Delegação? Porque é que não vieram mais Deputados?" Ao ouvir as minhas explicações, bradou: "Os Deputados lá fora? Nem pensar! Eu sou um parlamentarista! Quero-os todos aqui connosco”. Foi um reboliço maior do que o de Kiev... Funcionários trazendo poltronas, o próprio Presidente dando instruções, arrastando cadeiras…. Eu só pensava: “Os chineses nunca viram coisa igual. O que acharão de tudo isto?" Na sala cheia, a conversa decorreu, descontraidamente, em modo de tertúlia. Á saída, esperava-nos uma multidão de jornalista, câmaras de televisão, microfones. Para meu espanto, o líder chinês falou, falou, empolgado, a felicitar o povo português por ter como presidente uma tão extraordinária personalidade, numa girândola de elogios, que terminou assim: "é um grande humanista"! Depois, os jornalistas quiseram saber impressões sobre o encontro com o Primeiro-ministro. A resposta foi pronta e lacónica. "Também correu bem". É pouco, lembrar o Presidente Soares nestas poucas nótulas de viagens e encontros. Porém, penso que, só por si, falam do Homem que amava liberdade, a democracia, a vida, as pessoas! A 7 de dezembro de 2024 celebramos o seu centenário, ou seja, seu lugar num século da História de Portugal, na resistência à ditadura de cinquenta anos, e na construção da democracia, nos outros cinquenta. É o tempo de reconhecer quanto “gostamos politicamente do Dr. Soares”. Afinal, o mesmo é dizer “25 de Abril, sempre!” ou “Mário Soares, sempre! “. Maria Manuela Aguiar in "AS ARTES ENTRE AS LETRAS"

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

O HOMEM DO SÉCULO

O Centenário do Homem do Século A 7 de dezembro próximo têm início as comemorações do centenário de Mário Soares. Será a hora de olharmos um século da nossa História, através da História do "Homem do século" - o Político que teve papel principal durante uma Ditadura de quase meio século e, depois, na Democracia, nascida da Revolução cujo cinquentenário celebramos, ao longo de 2024. Uma feliz confluência de efemérides! Tempo de falarmos de Mário Soares, o Homem e o Político – assim, com letra grande. Grandeza de obra e mundividência, com que contribuiu, de uma forma tão decisiva, para a construção da democracia portuguesa. De facto, nenhum dos seus contemporâneos teve, igual longevidade e influência na política portuguesa ou igual prestígio, a nível internacional - Sá Carneiro, porque tão cedo o perdemos, Ramalho Eanes e outros co fundadores da Democracia atual, porque não puderam deixar marca semelhante naqueles dois regimes (1926/1974 e 1974/2024). Grandeza é, assim, uma qualidade que ninguém lhe poderá negar, nem sequer os menos simpatizantes. Nesta questão de afetos, ainda temos de distinguir entre “gostar de Mário Soares" e "gostar politicamente de Mário Soares”, mas, à medida que o tempo passa, a distinção vai-se esbatendo, com o depurar de pequenas querelas partidárias e a valorização do essencial. Atravessei as três fases, por mim falo! Nos primórdios da Revolução, “não gostava de Soares”, muito embora, durante o PREC, tivesse feito quilómetros, através das ruas de Lisboa, em marchas pela Liberdade, que ele corajosamente encabeçava. A partir do momento em que o conheci pessoalmente, em 1978 (era membro do Governo de Mota Pinto e já lá vão 46 anos!), passei a “gostar de Soares”, mantendo o distanciamento político, que entre sociais democratas nunca é abissal, (e eu sou social-democrata “à sueca”, como Sá Carneiro sempre se afirmou). Depois, na era dos seus mandatos presidenciais, comecei a “gostar politicamente de Soares", e cada vez mais. 2 – Não é, porém, sobre o seu legado político que vou escrever, mas sobre a individualidade, com quem tive, como referi, a sorte de conviver. Privilégio que não está ao alcance dos mais novos, a quem posso dizer que era sempre fantástico dialogar com o Dr. Soares, incomparável contador de histórias, versátil, culto, espirituoso! Tínhamos a consciência de estar face a face com uma personalidade que já entrara na História e, contudo, ao sentimento de reverência sobrepunha-se, invariavelmente, a pessoa, com a sua facilidade de trato, a atenção dada a cada interlocutor, a espontaneidade e a graça. Uma entrada (acidental e relutante) na política, deu-me a ocasião de trabalhar, diretamente, com os líderes dos maiores partidos democráticos, em diversos Governos. Sou testemunha de que eram bem mais amáveis e divertidos do que a sua imagem pública deixava imaginar. De todos, só o Dr. Soares, sobretudo a partir das “presidências abertas” , se foi mostrando em público tal como era em privado. As minhas memórias de conversas e episódios passados com ele são inúmeras e, na sua maioria, definitivamente lúdicas! Escolher é difícil, mas necessário…por isso, vou centrar-me em viagens e receções internacionais da sua Presidência. Viajar com o Dr. Soares era uma festa, desde que se transpunha a porta do avião. Lá dentro, as charlas fluíam, resvalaram para a vozearia ruidosa. Uma vez até tomei a iniciativa de mandar calar os companheiros de ruído, ao ver, na primeira fila, o Presidente já a descansar, depois de ter percorrido os corredores da aeronave, a cumprimentar toda a comitiva. Calamo-nos, por precaução, mas ele era imune ao barulho de algazarras, dormia em qualquer ambiente! A viagem à URSS – Rússia, Arménia, Arménia e Azerbaijão – dava um livro inteiro, com as múltiplas tentativas do Dr. Soares para sair dos rígidos roteiros soviéticos e ver gente no seu normal quotidiano, e com interlocutores como Sahkarov, Gorbatchev e Raisa, paradigma feminino da nova elegância soviética. Limitar-me-ei a destacar alguns casos que envolveram os Deputados, um de cada partido. Contrariando o princípio da proporcionalidade das Delegações, o Presidente quis dar aos soviéticos uma lição prática de convivência na alteridade, patenteado o nosso pluralismo democrático em perfeita confraternização. Assim destacava a importância da instituição parlamentar pluripartidária. Importância sem paralelo no sistema soviético e, por isso, o protocolo local atribuia vistosos carros pretos a toda a gente, diplomatas juniores, empresários ou imprensa, e desterrava para o fim do cortejo de viaturas oficiais, numa velha furgoneta, a Delegação Parlamentar! Sucediam-se os atos cerimoniais – visitas, receções, deposição de coroas de flores em monumentos - e o Presidente exigia a nossa presença, a seu lado. Ora, nós, vindos lá de trás, éramos sempre os últimos a chegar, e em esforçada correria, com a Dr. Soares a acenar-nos, de longe, muito impaciente. Sem os Deputados, não deixava começar o evento, e nós, para lhe poupar irritações, nunca explicamos a razão do atraso. Só ao 2º dia, depois de veementes protestos, vimos respeitada a nossa precedência protocolar, e fomos distribuídos em limousines iguais às outras … Sucedeu o mesmo nas três Repúblicas! O último incidente protocolar foi em Kiev, onde o avião fez escala para um encontro de Presidentes, o nosso e o da Ucrânia, seguido de um faustoso banquete. Tudo se passou no aeroporto, pelo que a comitiva teve de ser dividida por duas salas VIP, uma para as altas individualidades, outra para as de segunda linha. Nesta categoria decaíram dois Deputados…Só o Dr. Soares, sempre atento, se apercebeu da ausência e logo exigiu que os chamassem para a sua mesa. Levantaram-se, em simultâneo, vários funcionários, gerando uma tremenda confusão, em nervosas movimentações, até acertarem as trocas com os Representantes da Nação, por fim sentados nas suas cadeiras protocolares. Uma última lição de democracia magistralmente ensaiada pelo nosso Presidente! Por mais incrível que pareça, cena quase idêntica ocorreria no próprio Palácio de Belém, aquando da audiência a uma Delegação da República Popular da China. Na qualidade de Vice-Presidente da Assembleia, chefiei a comitiva que acompanhou os nossos convidados nas suas visitas de cortesia ao Primeiro Ministro Cavaco Silva e ao Presidente Soares. Em ambas as residências, o Protocolo informou que a sala de receção não estava preparada para tanta gente, e os Deputados portugueses concordaram que só eu estivesse presente nas reuniões. O Prof. Cavaco não levantou objeção, preocupado em pôr o foco no sucesso da sua recente visita à China, em tom formal, como é seu timbre. No Palácio de Belém, não foi, de todo, assim. Mal nos sentámos, o Presidente perguntou-me: “Está sozinha? Não vieram mais Deputados?” Ao ouvir as minhas explicações, bradou: “Os Deputados lá fora? Nem pensar! Eu sou um parlamentarista! “. Seguiu-se um rebuliço semelhante ao de Kiev! Os Deputados foram todos chamados à sala, enquanto entravam funcionários com as cadeiras na mão, e o Presidente dava instruções e ele próprio arrastava poltronas. E eu só pensava :”O que acharão os nossos visitantes orientais de tudo isto?” Nunca tinham visto nada igual, de certeza... Na sala cheia, a conversa decorria descontraidamente, em ambiente muito caloroso. À saída, esperava-nos a avalanche de jornalistas, microfones e câmaras. Para meu espanto, o líder chinês, empolgadíssimo, falou, falou…a felicitar o povo português por ter um Presidente tão extraordinário, numa girândola de elogios que terminou na síntese: ´É um grande Humanista!” Questionado, depois, sobre a audiência do Primeiro- Ministro, a resposta foi lacónica: “Também correu bem”. Lembrar o Dr. Soares, nestas breves nótulas de viagens e encontros, é, evidentemente, pouco, mas penso que nelas se vislumbra o Homem que amava a liberdade, a democracia, a vida e as pessoas. E as fascinava. Soares era fixe! in DEFESA DE ESPINHO
Parlamento saúda dedicação de décadas de Manuela Aguiar às comunidades portuguesas Lisboa, 11 out 2024 (Lusa) -- O parlamento aprovou hoje, por unanimidade, um voto apresentado pelo presidente da Assembleia da República de saudação à antiga secretária de Estado e deputada do PSD Manuela Aguiar pela sua dedicação às comunidades portuguesas. Natural de Gondomar, distrito do Porto, licenciada em Direito e que foi professora na Universidade Católica Portuguesa e na Universidade de Coimbra, Manuela Aguiar, no plano político, começou por exercer funções como Secretária de Estado do Trabalho no IV Governo Constitucional. "Porém, foi ao serviço das comunidades portuguesas que o seu trabalho mais se destacou. Tornou-se, entre 1980 e 1987, a primeira mulher a tutelar a diáspora como secretária de Estado. No desempenho dessas funções, bateu-se decisivamente pela criação do Conselho das Comunidades Portuguesas, órgão consultivo do Governo que ajuda a assegurar a representação e a provedoria dos interesses dos emigrantes", refere-se no voto proposto por José Pedro Aguiar-Branco. No voto, lembra-se também que Manuela Aguiar, no âmbito do Conselho da Europa, se envolveu "nas negociações que consolidaram dentro do espaço europeu o reconhecimento da dupla cidadania e a proteção jurídica dos emigrantes". "Manuela Aguiar foi eleita deputada em oito legislaturas, quase sempre pelo círculo eleitoral de Fora da Europa. No parlamento, foi uma voz livre e inconformada, comprometida com a defesa dos emigrantes e da sua plena participação política em Portugal", acrescenta-se.

terça-feira, 26 de novembro de 2024

PELO VOTO ELETRÓNICO

Legislativas: CNE identifica irregularidades que anularam maioria de votos postais de emigrantes Londres, 23 nov 2024 (Lusa) - Irregularidades na inclusão da cópia do cartão do cidadão resultaram na anulação da maioria dos votos postais dos portugueses no estrangeiro nas eleições legislativas de 10 de março, concluiu um estudo publicado pela Comissão Nacional de Eleições (CNE). O estudo foi encomendado pelo órgão para tentar perceber as razões do aumento de 256% do número de votos nulos entre as eleições para a Assembleia da República em 2022 (35.472) e 2024 (126.241). De acordo com as 300 atas de contagem dos votos analisadas, 82.66% dos votos nulos resultaram de "irregularidades nos envelopes", mas a percentagem passa para 98,9% quando se excluem os casos de invalidação não especificada, refere o estudo. Das 183 atas onde a informação ainda está mais detalhada, 97,11% dos votos nulos devem-se a falta de fotocópia do documento de identificação no respetivo envelope, obrigatória para o voto postal ser aceite. Os resultados do estudo foram apresentados pelo membro da CNE proposto pelo partido Livre, André Wemans, na conferência Portugal+ em Londres, organizada pelo jornal Bom Dia. "É um problema que temos de conseguir corrigir de alguma forma, porque o objetivo é ligar todos os portugueses a estes processos eleitorais", afirmou, num painel de discussão dedicado à participação política. O estudo, além de recomendar outra investigação sobre as razões pelas quais as cópias de documentos de identificação não são incluídas, sugere uma campanha de esclarecimento sobre o voto postal dirigida aos eleitores residentes no estrangeiro e um outro estudo sobre a introdução de um sistema de voto eletrónico pela Internet nos círculos da Europa e Fora da Europa. "A Comissão Nacional de Eleições não é legisladora, não faz nem sugere ela própria legislação, apenas pode reagir a legislação proposta", explicou Wemans. Estes dados coincidem com alguns dos resultados provisórios de um inquérito realizado pela associação Também Somos Portugueses aos emigrantes portugueses sobre as eleições legislativas na sequência do número elevado de votos nulos. O presidente, Paulo Costa, revelou, no mesmo evento, que vários admitiram ignorância ou distração. No entanto, alguns inquiridos indicaram que não incluíram a cópia do cartão do cidadão no seu voto postal propositadamente porque consideravam o método inseguro, demasiado complexo, porque é ilegal (na Austrália) ou porque na Suíça o voto postal não requere tal procedimento. Segundo Costa, 82% dos respondentes afirmou ser favorável ao voto eletrónico, 45% apoiam o voto postal, 40% o voto presencial e 8% o voto por procuração. A associação tem aberta uma petição pela introdução da modalidade de voto online não presencial para os cidadãos portugueses residentes no estrangeiro, juntamente com o voto postal e voto presencial em todas as eleições. Segundo Paulo Costa, o grande entusiasmo dos emigrantes pelo voto eletrónico mostra que "isto não é uma fixação só da "Também Somos Portugueses" é algo que a grande maioria dos portugueses no estrangeiro gostava de ter".

domingo, 3 de novembro de 2024

LEITURAS SOBRE A CONDIÇÃO FEMININA, DURANTE O “ESTADO NOVO” 1 – “Antes do 25 de Abril era proibido” de António Costa Santos Nas diversas iniciativas integradas nas comemorações da Revolução de 1974 em que participei, entre março e maio, numa data tão especial como é a do seu cinquentenário, a maioria colocava o enfoque na situação das mulheres portuguesas. No antes e no depois. Duas metades de um século. Não terá sido por acaso – é um ângulo ideal para compreender o espírito do “Estado Novo”. Do corporativismo, enquanto doutrina totalitária e enquanto movimento anti personalista, que combatia, por igual, o comunismo e o liberalismo, condenando radicalmente o individualismo. A sua primeira principal vítima sacrificial seria a mulher - a mulher, em geral, e a mulher casada, em particular, porque a sua individualidade se fundia no núcleo familiar, e ficava sujeita à autoridade do marido, a quem, tal como os seus próprios filhos, devia obediência. Nessa unidade orgânica, como nas empresas, na sociedade, na política, os papéis eram definidos pelo Estado, que zelava pela sua rígida conservação. O homem detinha a chefia da família, como Salazar a chefia do Governo. Cada marido era um micro ditador doméstico, à imagem e semelhança do Grande Ditador nacional. Cabia-lhes interpretar e decidir o "bem comum" do seu agregado, mandar, censurar, proibir… Muitas das proibições legais de então, hoje, causam espanto ou fazem hoje rir. Para quem queira, percorrer, ludicamente, a lista de alguns dos mais incríveis tabus do salazarismo, recomenda-se o livro referido em epígrafe. Faltará, aqui e ali, rigor científico, em alguns casos, especificidades verdadeiras nos anos trinta, já não o eram nos anos sessenta ou setenta, por força da alteração de mentalidades e costumes… De qualquer modo, dá-nos uma narrativa bem conseguida e engraçada do que “era proibido”. Vejamos: as senhoras andarem nas ruas sozinhas; as mulheres entrarem na igreja de cabeça descoberta; as mulheres casadas viajarem para o estrangeiro sem autorização do marido (nem que fosse apenas a Badajoz, ou a Vigo, comprar doçarias); as mulheres saírem à noite sozinhas; minissaias nos liceus; biquínis nas praias; o matrimónio às mulheres em certas profissões, professoras, enfermeiras, hospedeiras de bordo, (salvo se conseguissem autorização do Governo!): as mulheres ingressarem em profissões, como a magistratura e a diplomacia, e, genericamente, ocuparem posições de chefia... Embora em menor número, também havia, evidentemente, ditames aplicáveis a ambos os sexos, entre os quais: beber coca-cola, jogar cartas nos comboios; dar beijos em público, ler certos livros, ver certos filmes, ouvir certos discos; usar isqueiro ou andar de bicicleta, sem prévia licença, assim como participar em “ajuntamentos de mais de três pessoas”. 2 – A cada um o seu lugar – a política feminina do Estado Novo” de Irene Flunser Pimentel Este é um livro dirigido a um público muito diferente, uma obra de referência sobre o tema, um brilhante e premiado estudo académico, que nos elucida sobre o lugar que era alocado ás mulheres, na doutrina e nas leis da Ditadura, e que escalpeliza as estratégias que serviram os fins, acantonando o sexo feminino na esfera da domesticidade e bloqueando os canais de ascensão social e profissional, (segundo o sexo e a classe social), a começar pelo ensino e a acabar no afunilamento das oportunidades de trabalho e na discriminação salarial. O princípio da igualdade, consagrado na Constituição de 1933, exceciona, quanto às mulheres, as desigualdades justificadas pela sua “natureza” e pelo “interesse da família”. A “natureza” justificava a exclusão das mulheres no acesso às profissões mais prestigiadas, diplomacia, magistratura judicial, e quaisquer cargos de direção, assim como as assimetrias salariais, no professorado deliberadamente usadas para combater a crescente feminização do setor, que tanto afligia os Ministros da Educação, (alguns chegaram a impor “quotas” na entrada da profissão, a favor do sexo masculino!). Para pôr a mulher “no seu lugar”, o regime combateu o ensino misto, ensaiou a diferenciação dos currículos escolares, a desvalorização da escola feminina e a redução da escolaridade obrigatória. Em vão… As taxas de feminização do professorado iam em crescendo (no primário de 68%, em 1930, para 87%, em 1960, no liceal de 33% para a 56%, no mesmo período Ainda por cima, a taxa de feminização no acesso ao ensino seguia trajetória semelhante: no primário de 42%, em 1930, para 48,5 em 1960; no liceal (3º ciclo), de 33,2% para 50,1% - sendo superior a percentagem de aprovações: 53,2%, neste último ano. Quer isto dizer que as raparigas foram vencendo preconceitos, armadilhas e barreiras colocadas no caminho da sua formação académica e profissional, e, enquanto se mantivessem solteiras, tinham, ao menos teoricamente, o direito de dispor de si e decidir o seu destino. Com algumas limitações, como se viu, por exemplo, arriscando ser presas pela polícia se saíssem à noite sozinhas… Muito, muito pior era a situação das casadas, para quem o casamento era sinónimo de servidão. No altar, entregavam a sua liberdade, decaíam, nos termos da lei, para um estatuto de eterna menoridade, semelhante à dos seus próprios filhos, sobre os quais, como é óbvio, não podiam exercer o poder parental. Deviam obediência aos maridos, eram obrigadas a viver no domicílio conjugal por eles escolhido, e, se ousassem abandoná-lo, viam-se sujeitas a “depósito judicial de mulher casada”. Isto é, a detenção pelas autoridades policiais, seguida de “prisão domiciliária”. Careciam de autorização marital para tirar passaporte. Perdiam a capacidade de administrar os bens comuns e até os seus bens próprios. Tudo eram prerrogativas dos maridos, que podiam, ainda, proibi-las de exercer uma profissão, de publicarem um texto, violar a sua correspondência, e, em caso de adultério, assassina-las, sem consequência de maior (a pena era leve, um curto degredo de meses, a cumprir nas proximidades). Parece mentira, mas não é. Estatuto jurídico semelhante ainda hoje persiste, noutras geografias - no Irão, na Arábia Saudita, no Afeganistão talibã… Com uma pequena, mas relevante diferença: o desfasamento das leis com a realidade social portuguesa. Muitas esposas, não sendo juristas e tendo cônjuges amáveis e sensatos, nunca se terão sequer apercebido da sua “capitis diminutio”. 3 – “Ela é apenas mulher” de Maria Archer Contudo, a verdade é que, durante a ditadura, em todos os domínios e no conjunto, as portuguesas foram fortemente condicionadas nas suas escolhas de vida e ficaram aquém dos seus sonhos e reais possibilidades. Para as (e os) jovens de hoje é difícil imaginar as vivências do quotidiano, nos anos da ditadura, sobretudo nas primeiras décadas, mas facilmente encontram esse mundo nas páginas do grande mais famoso romance de Maria Archer, que acima referi. É um dos seus raros livros não esgotados, na reedição da Parceria A. M. Pereira, com prefácio de Maria Teresa Horta. Faço minhas as suas palavras quando diz que que Archer traçou na sua obra literária, “o único retrato autêntico de corpo inteiro” (da mulher portuguesa nessa época), Ninguém melhor do que Maria Archer soube recriar, de uma forma eficaz, crua e rigorosa, a atmosfera social e política que moldava o círculo fechado das mulheres. Ninguém soube melhor escrutinar e denunciar a violência velada das leis arcaicas e dos brandos costumes da sociedade portuguesa, do relacionamento de sexo ou de classe, homens e mulheres imersos na nebulosa de estereótipos, dogmas e falso moralismo, de prepotência e submissão... Ninguém melhor do que ela desconstruiu a imagem da "fada do lar", com os seus dotes de observadora de “quase etnóloga” e com a força subversiva da escrita ao serviço de uma causa, que era a de infirmar o mito salazarista da inferioridade intelectual da Mulher…Aqui fica o convite à descoberta da tão injustamente esquecida Maria Archer, e da sua arte de recriar o reino distópico do salazarismo, derrubado em 1974. É uma forma singular de celebramos o cinquentenário da Revolução e, por feliz coincidência, o 125º aniversário desta romancista extraordinária, que escreveu história do feminismo com a sua própria vida.

terça-feira, 29 de outubro de 2024

PORTUGAL, A EMIGRAÇÃO “A SALTO” E OS CLANDESTINOS DE SUCESSO 1 – Portugal devia ser o último país do mundo e o seu Governo o último Governo do mundo a olhar com uma certa desconfiança ou descaso a emigração clandestina, e a colocar entraves burocráticos à legalização daqueles estrangeiros que, tendo entrado no seu território com visto de turistas, entretanto arranjaram emprego e fizeram os vultosos descontos com que a Segurança Social equilibra o seu orçamento. Na verdade, Portugal é um antigo país de emigração "a salto" para o Brasil colonial, depois, para o Brasil independente, (destino maioritariamente procurado pelos portugueses, que fugiam à pobreza) e, em muito menor escala, para as Américas, e para África. O Estado tentava estancar o êxodo com leis e regulamentos restritivos, e os homens arranjavam maneira de os contornar (digo homens, porque as mulheres ficavam por cá, ou, quando muito, iam ter com eles, numa segunda fase). Estima-se que a percentagem de clandestinos terá rondado os 30%, constantemente, ao longo dos últimos três séculos. O termo "a salto" aplicava-se, inicialmente, àqueles que se escondiam nos barcos baleeiros que aportavam nos Açores, e os levavam em direção ao sonho americano. Muitos deles continuariam a dedicar-se à pesca da baleia, do atum e de outras espécies. Na década de oitenta, ainda fui ao encontro de importantes comunidades piscatórias, no oeste dos EUA, e visitei os maiores atuneiros do mundo, o "Mary C Jane" e o "Elizabeth C Jane", propriedade de açorianos de San Diego. Os portugueses estavam não só à frente da indústria da pesca, como dos estaleiros de barcos, no que respeita a capital, tecnologia e "design". Tendo boa parte desses pioneiros açorianos chegado a New Bedford (onde atualmente ainda marcam fortíssima presença) ou à Califórnia, na situação de "indocumentados", nem por isso foram menos produtivos, ordeiros e empreendedores do que os "legais". Entre uns e outros não há diferença! Assim era, e é, entre portugueses, como entre imigrantes de qualquer outra nacionalidade, credo ou etnia. 2 – Na segunda metade do século XX, razões socioeconómicas e políticas levaram ao desvio das correntes migratórias do sul da América (Brasil, Argentina, Uruguai) para novas geografias, mais a Norte nas Américas (Venezuela, Canadá) e mais perto, na Europa (com a França a tornar-se um “novo Brasil”). Não se pense, porém, que isso significou a diminuição da emigração clandestina. Pelo contrário, aumentaram as saídas “a salto”, expressão recuperada e popularizada, então, para descrever o dramático percurso de centenas de milhares de homens, através das fronteiras terrestres, nas mãos de “passadores” e traficantes. Em finais da década de sessenta, a percentagem de da nossa emigração indocumentada excedia os 50%! O movimento só cessou com a crise mundial de 73, a falta de oferta de emprego, a proibição de entrada, um pouco por todo o lado. A porta de entrada dos países ricos, apenas se entreabria, por razões humanitárias, à reunificação familiar, ou seja, às mulheres. Um estatuto que lhes vedava o acesso ao mercado de trabalho, mas que, na prática, não as impediu de procurar e conseguir emprego, expeditamente. Face a esta enorme massa de imigrantes clandestinos (pobres, rurais, sem qualificação profissional, alguns mesmo analfabetos), o que fizeram os Governos, nomeadamente o francês? Denunciaram o excesso? Expulsaram-nos? Não! Precisavam deles e trataram de os legalizar, sistematicamente, e sem espalhafato, à medida que se iam inserindo no meio laboral. E o resultado não podia ser melhor! O papel das mulheres foi absolutamente crucial na boa inserção de famílias inteiras e os portugueses converteram-se em inesperado paradigma de sucesso. Hoje, os seus filhos e netos estão por todo o lado, nas empresas, nas universidades, até na política! Nos anos 90, durante os Governos de Cavaco Silva, entrou na linguagem corrente a referência aos nossos “emigrantes de sucesso”. Eu proponho uma precisão, chamando à "geração do salto" os nossos “clandestinos de sucesso”! 3 –Num tempo em que o tema imigração domina as reportagens dos “media”, e em que o Governo anuncia novos rumos nas políticas públicas, pareceu-me importante olhar retrospetivamente, neste domínio, o nosso trajeto coletivo e nele buscar inspiração para nortear as políticas, as medidas concretas a tomar, e, o que não é de somenos, a forma de as comunicar à opinião pública e aos interessados. Eu gostava de ouvir os Ministros, os Deputados, os Autarcas a elogiarem os imigrantes, (incluindo os que desempenham tarefas mais modestas), a destacarem, antes do mais, o seu contributo positivo, e a manifestarem preocupação pela defesa dos seus direitos, em vez de receio de "invasão" do nosso espaço... (Isaltino de Morais é, certamente, um singular exemplo a seguir…) Todas as palavras que revelem relutância ou desconforto em relação aos imigrantes, dificulta o seu sentimento de pertença, a sua inserção. Exemplifico: falar de "temos as portas abertas, mas não escancaradas" é uma forma de lhes dizer "sim, mas...". É pouco! O discurso governamental salienta o interesse em atrair talentos, jovens muito qualificados, assim dando à sua vinda um sinal inteiramente favorável. Ótimo! No bom sentido, vai, igualmente, o apelo à emigração familiar, porque é, sem dúvida, um convite ao seu enraizamento, a revelar uma vontade de partilha de horizontes comuns. O que me parece faltar, nesta abordagem, é reconhecer (por palavras e atos) a mesma prioridade e distribuir a mesma simpatia pelos trabalhadores menos qualificados, os que chegam para ocupar os trabalhos mal pagos, rejeitados por nacionais. Afinal, são tão imprescindíveis, ou mais, do que os "talentos"! Sem eles, vários setores da economia entrariam em colapso, da agricultura ao turismo (grande responsável pela surpresa do comportamento económico, acima do esperado). Sem eles, este país estaria condenado a um irreversível envelhecimento. Neste quadro realista, é de elementar bom senso e de inteira justiça, desburocratizar e facilitar a legalização de todos os trabalhadores imigrantes que se prontificam a viver connosco. Estava já criado um regime que permitia aos estrangeiros, com visto de turistas, procurar emprego e, se o conseguissem, regularizar sua situação de trabalhadores e contribuintes para a segurança social, através de uma simples "manifestação de interesse" junto dos serviços. Perfeito - todos ficavam a ganhar, eles, os empregadores, a segurança social, a economia, a sociedade... Em 2024, havia, é verdade, um "contra": a herança caótica do Governo anterior, que levou para angustiantes filas de espera dezenas e dezenas de milhares de estrangeiros, face à incapacidade da Administração de dar sequência e de concluir os seus processos (um resultado da apressada extinção do SEF e da atribulada constituição da AIMA). E talvez isso justificasse a suspensão temporária das "manifestações de interesse". Porém, uma vez superada a crise de sucessão do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, (que não é culpa dos imigrantes, mas do Estado), a que propósito impor medidas restritivas (ou persecutórias) a pessoas já com provas dadas, meios de subsistência e vontade de integração? Qual a vantagem de as obrigar a saírem para, eventualmente, regressarem, depois de enormes transtornos e despesas, com mais um pequeno papel na mão, o novo visto? 4 – No século passado, os clandestinos portugueses, nos países para onde foram, sem “visto de trabalho” viram, quase sempre, regularizada a sua situação, de uma forma casuística. Mas nem sempre… eu própria negociei, muito discretamente, há quarenta e tal anos, por exemplo, a regularização do estatuto de milhares de portugueses na Venezuela. E há aqueles portugueses, que foram à aventura, há anos, com um visto de turismo, e que, ainda hoje, não têm o seu problema resolvido, nomeadamente nos EUA. E se Trump vencer as eleições de novembro (como é provável, num país onde, à direita, campeia a mais desenfreada misoginia, a par do “discurso de ódio” contra os imigrantes) milhares de portugueses, alguns dos quais jovens que nem a nossa língua falam, podem vir a ser expulsos. O risco é real, e mostra que o sucesso ou insucesso dos clandestinos pode estar dependente das políticas públicas de legalização e de acolhimento. É a hora de nós estarmos do lado certo.