quinta-feira, 21 de abril de 2016

Uma história de vida - o nosso admirável Cõnsul em Melbourne

Numa linguagem simples, límpida, coloquial. que nos prende da primeira à última página, esta narrativa na primeira pessoa do singular não cessa de nos surpreender e encantar, através de uma vertiginosa sucessão de factos, de aventuras, e de encontros com pessoas, no quadro de variadas realidades sócio-culturais, em paragens longínquas..É uma trajetória individual meteórica que acompanhamos, aceitando o convite do Autor para uma longa viagem de memórias, que atravessa épocas, regiões, continentes, desde remotos lugares do Alto Minho, como Cousso, Cubalhão, a Serra da Peneda (onde um menino orfão e desprivilegiado, pareceria condenado a crescer e trabalhar num confinamento insuperável), até aos espaços imensos, aos horizontes que alargou, com o seu inconformismo e uma insaciável vontade de conhecimento, caminhando, os pés na terra, de terra em terra, incansavelmente, indo cada vez mais longe - primeiro num Portugal que o discurso do "Estado Novo" conceptualizava como uma unidade pátria pluricontinental, que, sob a mesma bandeira, se estendia "do Minho a Timor". O jovem Carlos Lemos vai precisamente do Minho a Timor, cruza os mares, ajuda a desbravar matas virgens, nas margens de rios africanos, a explorar as costas das possessões portuguesas do Indico ao Pacífico, ultrapassa fronteiras, converte-se ao destino tão português da emigração, na lonjura do sul da África e da Oceânia...
"História de uma vida", assim denomina, discretamente, como é seu timbre, tão fascinante encadeamento de relatos, confidências, observações, comentários e ensinamentos do maior interesse histórico, antropológico, político. A primeira tentação de quem a lê é o de lhe acrescentar adjetivos expressivos, como "vida excecional", ou "vida fantástica"!
Desde o princípio, desde a infância, o mais insólito e espantoso é que todas as decisões, afinal tão avisadas, são dele, apenas dele, depois de terminar prematuramente a escola, e de ficar entregue a si mesmo, em trabalhos árduos, trabalhos de adulto, que despertam a sua precocidade e força de ânimo. E, assim, em dificuldades e desafios ilimitados, se forja uma personalidade independente, honesta e tenaz, mas também sensível e gentil.
Num dos seus primeiros empregos urbanos, em Monção, num café bem frequentado, um velho e arguto doutor diz-lhe, a certa altura: "és um perfeito diplomata"!. Retive, muito em especial, essa exclamação profética, porque, cerca de quatro décadas decorridas, quando o Dr. Carlos Lemos organizou a minha primeira visita a Melbourne, e o conheci mais de perto, não fiz, mas poderia ter feito idêntica apreciação. Ali estava um diplomata nato, amabilíssimo, hábil e pragmático, qualidades que juntas, em regra, não se encontram ...Ali estava um emigrante que prosseguia, apaixonada e eficazmente, a missão de enaltecer a história e os valores eternos da lusofonia, e de defender a imagem e os interesses dos seus compatriotas - antes mesmo de ser nomeado cônsul honorário, em1988.
O seu dom natural de se aproximar das pessoas, independentemente da classe social, do estatuto académico, de tendências ideológicas, de origem étnica, a par de uma inteligência invulgar explica, o que, por modéstia, nunca explicita - a facilidade com que, rapaz solitário, vindo de um pequeno povoado rural, é aceite nos círculos mais fechados e "snobs" das elites de então, ou nas tertúlias de estudantes, com quem, sem dúvida, aprende a refectir e debater.sobre quaisquer questões
É nas suas novas funções de topógrafo - com uma formação, em boa hora, adquirida nas Minas da Panasqueira - que conversa, em Cascais, com o Presidente Carmona, e passa a conviver com as netas do Presidente, com jovens da alta burguesia, alguns dos quais virão a ser embaixadores e artistas de renome. A Póvoa do Varzim é o destino seguinte, e bem marcante no longo roteiro que tem pela frente. Faz parte de grupos de estudantes e recém licenciados, como Salgado Zenha. É aí que decide retomar os estudo e completa cinco anos do liceu de uma vez só!
Mais tarde, em Moçambique, conta entre os seus íntimos Paulo Vallada, João Maria Tudela e, como eles, pertence ao mais seletivo dos clubes, o Clube de Lourenço Marques. Em Pretória, é amigo de Mary, a filha de Henry Oppenheimer, de Tamara, a ex-toureira, em Durban. do filho de Alan Paton - em casa de quem conhece Mandela, Oliver Tambo,Sisulu e Lutuli e tem o privilégio de assistir a inúmeras conversações entre eles -, .em Hong Kong do famoso português que, como Presidente da Câmara, projetou a cidade para o apogeu, o Comendador Arnaldo Sales, em Timor, de Ruy Cinatti, a quem admira imensamente, na Austrália de Kenneth McIntyre, cujas teses sobre a descoberta portuguesa deste país defende e apregoa por todo o lado, a começar por Portugal e por Macau (onde, por sua influência, o Museu Marítimo dedica uma secção a esse achamento secreto e onde o texto original inglês é traduzido para a nossa língua).
Exemplos, entre centenas. de ilustres personalidades que se nos tornam familiares nas páginas deste livro! De destacar ainda, relacionamentos ocasionais e incomuns, caso de Samora Machel (que dele cuida no Hospital de Lourenço Marques!), e, numa conturbada Indonésia, durante umas férias improváveis, da mulher do General Yani, Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, e ela própria uma celebridade. A Senhora Yani, logo convida o simpático casal Lemos para animados passeios por lugares turísticos, jantares nos melhores restaurantes, e até para uma visita a casa de Sukarno.
Eis um Português de quem, obviamente todos gostam - moçambicanos, timorenses, indonésios, egípcios, sul-africanos, negros e brancos, aborígenes do deserto australiano... artistas, homens de letras e ciências, empresários, embaixadores, políticos de um sem números de países - uma impressionante rede universal de contactos fraternos, que ficam para sempre, que cultiva e reencontra em intermináveis expedições. Como não olhar retrospetivamente séculos de história, e lembrar a velha arte portuguesa de fazer amigos entre gentes de todo o Globo? Eis um português que nos dá a certeza de que somos ainda o mesmo povo, com a mesma ânsia de movimento, de que se teceu o "século de ouro" dos Lusíadas - movimento de caravelas, de homens, de ideias…
Em meados do século XX, a um ousado Carlos Lemos, com pouco mais de 20 anos, a especialização em topografia e hidrografia faculta modernos meios de exploração ou reconhecimento da terra e dos mares, primeiramente ao longo do retângulo continental, depois, em Moçambique, nos vales do Limpopo e do Rio dos Elefantes (já na fronteira norte da RAS) , em Timor, de lés a lés, e, posteriormente, nos desertos da Austrália, onde percorre, em trabalho de campo, 34.000 km, inscrevendo o seu nome como pioneiro em diversos lugares intocados de território austral
Ao tentar esta breve apresentação (certamente arbitrária e redutora....) da sua autobiografia, devo acrescentar que a considero uma digna herdeira da literatura de viagens de sabor quinhentista, na medida em que o Autor vai muito além de uma mera menção de ocorrências, de apontamentos sobre lugares de exótica beleza - que também abundam... - para nos dar a sua visão sobre costumes, conflitos sociais e políticos, sobre personalidades que deixaram indeléveis marcas na história. É a mundivisão de um homem culto e cosmopolita, do sociólogo e do observador político, que já era, antes mesmo de terminar os estudos universitários nestes domínios ( iniciados na África do Sul, na Rhodes University, onde conhece Molly, sua futura mulher, e concluídos, uns anos depois, em Melbourne). Um incansável "peregrino em terra alheia" (como o definiria Adriano Moreira), disposto a partilhar com o leitor mil e uma experiências vividas e o seu olhar sereno sobre vicissitudes com que permanentemente se confronta, o seu sentido de humor, que irrompe aqui e ali, direcionado de preferência a si próprio, na menção de alguns pequenos desaires, pelos quais se penitencia, com muita graça...
O casamento com Marion Murray, a jovem britânica doutorada em psicologia, que se lhe junta nessa "ilha do fim do mundo" , Timor,a revelar um simétrico gosto pela aventura e pelo movimento (juntos, levados pelo trabalho del um ou de outro, ou pelo puro prazer do turismo, darão várias voltas ao mundo.....) iria, a breve prazo, ser o início de uma "segunda vida" para ambos - a vida de emigrantes, definitivamente enraizados num novo país. A carreira académica da Professora Marion, centrada na Austrália, será o factor de estabilização. A partir daqui, a autobiografia regista novas profissões exercidas pelo Autor, em Melbourne - professor da universidade, do liceu, agente de bancos comercias, gestor... - E revela-nos, também, uma nova faceta: a de líder, de principal construtor de uma comunidade forte e coesa, onde antes só havia portugueses dispersos e ignorados na sociedade de acolhimento... A partir de então, com o seu "ímpeto de Portugal ( como diria Pessoa), e capacidade de mobilização, a história portuguesa em Victoria fica intimamente ligada à sua própria história. Um exemplo que os estudiosos da génese das comunidades da emigração contemporânea e da nossa diáspora precisam de analisar, como um "case study"! Na verdade, muitas famílias portuguesas estavam já radicadas naquele Estado, mas sem qualquer dinâmica de agregação entre si. Tudo muda pela ação e pelo carisma de um "homem de causas". Começa pelo fundamental: cria uma escola de português (em 1972), um programa de rádio em língua portuguesa, do qual é diretor e locutor, uma "Comissão de atividades da comunidade", (a que preside, (entre 1976 e 1984). o"Portuguese Community Trust", (1983), destinado a angariar fundos para uma sede associativa condigna, projeto que, por obstáculos burocráticos, é reconvertido, dando origem ao famoso "Café Lisboa", restaurante português de alto nível, no centro de Melbourne, que atrai as elites políticas e culturais da cidade e oferece, como era sua vocação inicial, um espaço aberto a iniciativas comunitárias. O Dr. Carlos Lemos vê-se na obrigação de encabeçar o projeto recconvertido, garantindo-lhe um sucesso espetacular. Aí recebe individualidades do mundo lusófono de visita ao país: D Ximenes Belo, Ramos Horta, Alberto João Jardim, Carlos do Carmo, os escritores da diáspora Vasco Calixto e Marcial Alves, o Secretário de Estado Correia de Jesus, o Governador Rocha Vieira (com quem se inicia uma colaboração estreita com Macau, mantida depois da passagem para administração chinesa), os sucessivos embaixadores e cônsules de Sydney e tantos, tantos mais - sem esquecer o chamativo lançamento de um CD de música para as crianças de Timor, que foi trazido em mão pelo Arcebispo Deacon, depois de aterrar de helicóptero, num terreno contíguo ao Café Lisboa.
Anteriormente, enquanto dirigente da "Comissão de atividades", promovera as primeiras festas a Nª Sª de Fátima, com uma procissão que circulou nas ruas de Melbourne, seguida de um piquenique gigante, ao qual não faltaram o Arcebispo da diocese, o Ministro da Imigração, o Cônsul-Geral de Sidney e outras individualidades (que obviamente aceitaram o convite de um amigo especial...), para além de uma multidão de milhares de portugueses, que, assim, ganham visibilidade na sociedade australiana.
A visibilidade da Pátria - da sua história, das suas tradições e qualidades bem vivas na emigração - é uma causa maior assumida numa ação constante, em que podemos destacar: a divulgação das teses de Kennett McIntyre sobre a descoberta secreta da Austrália pelos navegadores lusos, corroborada pelas investigações de PeterTrickett (sobre o Atlas Vallard de 1547) e do Professor catedrático John Mollony (sobre vocábulos de origem portuguesa entre os aborígenes) e a procura de outros laços de ligação com a Austrália - como o facto do que é considerado o fundador da nação moderna, o Governador Arthur Philip, ter sido oficial da nossa Marinha, ou o enfoque na nacionalidade portuguesa de Artur Loureiro, o grande pintor portuense, porventura, hoje, mais recordado em Melbourne, onde se radicou por uns anos, do que na terra onde nasceu, ou na solidariedade luso- timorense dada a Bernard Collinan, herói australiano, que comandou a "Coluna independente", na resistência ao invasor japonês, durante a grande guerra
Há, porém, um feito que deve ser salientado, como expoente máximo, pois só por si, mais do que justificaria a alta condecoração, que em 2002, lhe foi entregue pelo Presidente Sampaio: a proposta, bem concretizada, de erguer, em solo australiano, um padrão evocativo dos navegadores portugueses! Foram muitas e morosas as diligências que permitiram garantir o espaço perfeito, numa belíssima colina sobre o mar agreste, em Warrenambool, onde, em oitocentos, foram avistados, por inúmeras testemunhas oculares, os vestígios prováveis de uma caravela quinhentista e, ulteriormente, uma inauguração, com honras de presença dos mais altos representantes do Estado. o Governador Geral, o Embaixador, Ministros, deputados, Kenneth McIntyre, uma massa imensa de participantes e, o que não é despiciendo, com uma enorme cobertura dos grandes "media.!
Warrenambool é doravante um lugar de culto da história e da presença portuguesa. O Portuguese Festival, de periodicidade anual. atrai milhares de turistas ao monumento (entretanto enriquecido com a inauguração das estátuas do Infante D Henrique e de Vasco da Gama, oferecidas, por proposta do Dr Carlos Lemos, pelo último Governador de Macau – um evento muito mediático, a colocar Portugal no centro das atenções!).
Em que outro país ou continente, dos que foram, como sabemos, descobertas secretas de Portugal, conseguiu a nossa diplomacia algo de semelhante? Obviamente, em mais nenhum…
É, assim, uma realização esplêndida e única, a coroar uma consistente trajetória de intervenção, em defesa das pessoas e dos valores nacionais, junto dos Governos, de lá e de cá - intervenção lúcida e corajosa nos domínios da emigração, da lusofonia, da política internacional, com uma participação ativa nos “fora” e congressos mundiais da Diáspora, com uma voz que clama, desassombradamente, contra o negativismo dos historiadores, ao renegarem teses verosímeis, favoráveis à grandeza pátria, ou contra a mediocridade dos políticos e servidores públicos, contra a injustiça e a intolerância.
Uma palavra final para agradecer ao Dr. Carlos Lemos a sua amizade e a sua preciosa colaboração de décadas, na luta pelos direitos dos emigrantes e dos timorenses e, também, para manifestar ao escritor e ao Homem, a minha admiração, pela forma como soube dar um sentido humanista e fraternal ao movimento incessante da sua vida, que muitos feitos nos promete ainda, futuramente.

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