segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

EU REGIONALISTA ME CONFESSO (DAR A SUA PARTE ÀS NOSSAS REGIÕES)

I - UM PRIMEIRO PASSO NA ROTA DA CUMPLICIDADE - A democracia fez das nossas formosas duas REGIÕES AUTÓNOMAS. Deu-lhe, não sem alguma relutância, um novo peso, com a oportunidade de vencerem a distância do poder central, a cujo tradicional descaso, só escapa Lisboa, onde está instalado. Beneficiaram, pois, de algum modo, do surto de descolonização, elas que, antes, partilhavam o destino de outras realidades insulares lusófonas. No seu caso, dentro de fronteiras, não pela via da independência - substantivo que A J Jardim atribuiu, como nome, a um barco que liga o Funchal a Porto Santo - mas pelo da autonomia, cujos limites foram crescendo, não sem alguns atritos no percurso. Só ganharam com isso e o País também (exceto, eventualmente, numas contas parcelares de contabilidade de mercearia). Como nortenha e portuense sempre soube que fomos sempre fomos portugueses menos iguais do que outros e ainda somos. Enquanto não posso bater-me, salvo com palavras, contra o Terreiro do Paço e pela regionalização da minha terra, vou valorizando o paradigma das Regiões Autónomas que há, Levei, naturalmente, comigo essas inabaláveis convicções para o primeiro governo a que pertenci, em 1978. Como Secretaria de Estado do Trabalho, tive, enfim, ocasião de apoiar, pela ação, na medida das minhas modestas possibilidades, o reforço das autonomias, quando o Diretor-geral do Trabalho, me veio relatar, com uma infinidade de pormenores, um conflito até então insanável que dividia os Governos, central e regional, com epicentro na Praça de Londres. Em síntese, o imbróglio era o seguinte: executara-se, a mal, a regionalização dos serviços da área do Trabalho, mantendo a Lisboa a dependência dos serviços da Inspeção de Trabalho, em conformidade com o normativo das convenções da OIT. Até então, esses serviços partilhavam com os demais teto, publicações, documentação, mapas de pessoal das empresas. viaturas, etc,etc. Com a cisão, em clima de acesa discórdia, ficou tudo isso do lado dos departamentos inseridos nas estruturas regionais, que, por assim dizer, "jogavam em casa" e a inspeção viu-se na rua, sem poiso certo e sem papéis. O Diretor-Geral, que me considerava já então, suponho, um temperamento aguerrido, mas desconhecia o meu pendor regionalista, esperava mais um cruzado (ou cruzada) naquela sua luta e ficou vivamente dececionado, ao deparar com uma invencível vontade de transigir... Chamei-lhe a atenção para o facto de não ter conseguido resolver o impasse, falhado o diálogo, nem pelo recurso aos tribunais nem pelo recurso à força. "Acha viável uma expedição militar?" - perguntei-lhe eu - "Se não, resta a hipótese de uma conversa amável - acompanhada de cedências muito concretas - que eu estou pronta a ter com o outro lado". Chamei, de seguida, a Lisboa o Secretário Regional do Trabalho, Bazenga Marques, que entrou no meu gabinete, com um ar aparentemente relutante. Começámos por tomar café. como sempre eu começava uma conversa com qualquer convidado e, sem preâmbulos, ainda de chávena na mão, disse-lhe: "Sei que tem havido alguns incidentes no relacionamento entre os serviços regionais do Trabalho e a Inspeção de Trabalho. Vamos acabar com isso, facilmente! Há o problema da casa, que é vossa, indiscutivelmente. E do carro - também é vosso. E há os mapas de pessoal, e outros documentos, que temos de partilhar. Vamos combinarmos quem os recebe primeiro e passa, depois, ao outro serviço". A recetividade do meu convidado a este desafio foi imediata e total. Quanto ao carro, eu tinha falado previamente com o Ministro, que dispunha de vários automóveis ao serviço do gabinete, nem todos absolutamente imprescindíveis, Pedi-lhe o mais pequeno para enviar para o Funchal e ele disse-me logo que sim (poucos ministros se mostrariam tão disponíveis para perder um bem, ainda que pequeno, do seu património estatal, mas este era diferente - como eu, grande adepto de resoluções rápidas e práticas. Pude, assim garantir a Bazenga que o automóvel seguiria, prontamente, para lá. E pedi-lhe ajuda para encontrar um andar para arrendamento, que, no Funchal, não era coisa muito fácil. Ao que ele logo anuiu. Assim ali se iniciou não só um perfeito entendimento, como uma sólida amizade. O combinado, informalmente, sem mais papelada ou assinaturas, foi cumprido à risca. A partir daí, um telefonema bastava para tratar qualquer questão superveniente. Antes de endereçar o convite a Bazenga Marques para o encontro na Praça de Londres, prudentemente, falara sobre o caso com Nascimento Rodrigues, assessor do Ministro, sindicalista, PSD, futuro ministro, e, depois, Provedor de Justiça. Um homem muito experiente e capaz, que tinha os melhores contactos com o governo madeirense e aceitou fazer uma primeira abordagem ao meu interlocutor. Desta forma, garanti, "ab initio", um precioso suporte do gabinete e do próprio Ministro Eusébio Marques de Carvalho, que, como disse, até um dos carros postos ao seu serviço disponibilizou para consolidarmos as negociações. Depois de uma guerra inútil veio uma paz duradoura. Uns meses depois, Ministro, Secretários de Estado e as mais altas chefias do Ministério do Trabalho deslocaram-se à Madeira para celebrar, formal e festivamente, os protocolos de regionalização de serviços. Visita preenchida com numerosas visitas a instalações de departamentos de trabalho e emprego, muito mediatizada, num ambiente de inexcedível hospitalidade, que culminou, no último dia, com um faustoso banquete no Reid's. AJJ falhou uma parte do programa, porque entretanto se adensara dramaticamente a vida política da República e ele fora a Lisboa participar num espetacular comício, convocado em Lisboa, de uma hora para a outra, que constituiu como que uma "prova de vida" do PSD, após a cisão do grupo parlamentar, durante a votação do Orçamento de Estado. Não poderia, pois, o enquadramento de uma viagem de membros do governo Mota Pinto a um governo regional ortodoxamente social democrata, ser mais desfavorável, mas nesta área particular, o entendimento era real e a questão partidária não o abalou... AJJ estava eufórico e, logo nos primeiros momentos do cerimonioso banquete do Reid's, não se coibiu de proferir, com ar bem disposto, e a pretexto de justificar a sua ausência na véspera, uma frase que poderia ter sido entendida como rondando a fronteira da provocação. Qualquer coisa do género: "Aquele comício de ontem deve ter sido uma grande surpresa para quem julgava que o PSD estava dividido ao meio". Fez-se silêncio na compridíssima mesa, ao redor da qual a mancha escura dos fatos masculinos - excetuando a minha pessoa, os convivas eram todos homens - contrastava com a claridade da toalha branca, da baixela e dos cristais. De saias, como eu acentuava ao contar, mais tarde, estes episódios, só o Bispo do Funchal e eu. Por sinal, o protocolo colocou-me ao lado do Senhor Bispo e rigorosamente em frente a AJJ, ao lado de quem ficaram o Ministro Marques de Carvalho e o meu colega da Secretaria de Estado Emprego (e lealíssimo amigo), João Padrão. Foi uma colocação certeira do ponto de vista convivial, porque o Bispo era, naquele alargado círculo, o mais espirituoso e descontraído dos comensais, e Alberto João o segundo no topo deste "ranking". Voltando ao comentário de AJJ, aparentemente uma espécie de repto aos "continentais", e ao silêncio se lhe seguiu: fui eu que lhe pus termo. Sem querer, com uma resposta puramente lúdica e espontânea ("beguinner's luck"?) dei fim ao silêncio, à hipótese de controvérsia ou hostilidade, ou ao que quer que estivesse destinado a acontecer. Não recordo as palavras precisas, mas sei precisamente o seu sentido. Olhei diretamente AJJ e opinei, sem meias palavras: "Tem toda a razão. Estes dissidentes do PPD não arrastam multidões. O partido está solidamente com o líder ." Era uma verdade insofismável, mas verdades desse tipo não costumam sair da boca de políticos a quem causam qualquer espécie de constrangimento. O Ministro e o Secretário de Estado do Emprego não se mostravam nada incomodados e AJJ ficou pouco menos do que estupefacto. Todos os outros, o acompanharam, suponho. Daí por diante, a conversa fluiu, leve, animada e divertida, comandada por AJJ que, habilmente, mudou o registo e passou à crítica bem humorada a outros quadrantes, preferencialmente ao PS. Nem o Dr Soares escapou... O PS era o inimigo declarado do governo da República (não menos do que esquerdas marxistas, leninistas, maoistas, etc) e, pelo visto, igualmente, do governo regional - ou seja, era o inimigo comum. Uma nota sobre o posicionamento político do trio de governantes da Praça de Londres: éramos todos independentes ("ça va de soi", num governo de iniciativa presidencial, onde só um secretário de Estado era do PPM - ou do CDS? - e, talvez não por coincidência, foi o único a deixar a meio o barco em que navegávamos, gostosamente, com Mota Pinto). Independentes, mas não um "rassemblement" de tecnocratas. Mota Pinto era um académico, e nesse meio recrutou a maioria dos elementos da sua equipa. Alguém, já não sei quem, comentou, na altura, que o Conselho de Ministros mais parecia um Senado universitário. Era, além disso, um dos fundadores do PSD, um dos seus principais ideólogos, um social-democrata da escola germânica. Procurou, evidentemente, parceiros dessa área... Muitos deles foram, depois de deixarem os cargos, em Agosto de 1979, convidados, logo em janeiro de 1980, por Sá Carneiro para o seu governo. Uma espécie de homenagem póstuma (e bem merecida!) à qualidade da governação de Mota Pinto. Antes do final desse ano de 1980, já Sá Carneiro e Mota Pinto estavam, lado a lado, na campanha presidencial... Era o meu sonho feito realidade, como "incondicional" de Mota Pinto e Sá-carneirista assumida - não apenas desde 1974, mas, em boa verdade, desde 1969... II - A MESMA ROTA NA DIÁSPORA
Nos governos de 1980 em diante, transitei do Trabalho para a Emigração. A sintonia com a Madeira estendeu-se, desde então, a todo o universo da Diáspora. Não havia aqui lugar a qualquer forma de dependência, era uma colaboração entre iguais, que, tal como a ensaiámos, não continuava relacionamentos do passado, escassos e descontínuos, mas os criava de raíz - para mim, da maior utilidade, porque muitos eram os emigrantes originários das Ilhas, sobretudo nas comunidades transoceanicas, com os quais começava a contactar, em visitas a instituições de uma dimensão e ação espantosas, que muito pouco deviam ao Estado Português. No Brasil, mais do que em qualquer outro país, onde continentais e insulares se distribuem por todo o país, com grandes zonas de colonização açoriana no sul e Casas dos Açores ou da Madeira em várias cidades. Na Venezuela e África do sul, a predominância é de madeirenses, na América do Norte de açorianos, como nas Bermudas, ou no Hawaí (aqui, depois de se ter iniciado com pioneiros madeirenses, em 1876). A aconselhar o relacionamento estreito entre governos, o facto de as Regiões terem políticas de emigração e serviços exemplares, em muitos aspetos superiores aos da República, mais próximos das pessoas, mais atentos aos seus problemas, mais eficazes. A meu ver, menos burocráticos,mais terra a terra. Na verdade, em Lisboa, os funcionários conheciam, quando muito, os casos da França e outros países europeus - geografia jogava poderosamente contra os mais distantes, que eram visitados, episódica e apressadamente, por Ministros ou Secretários de Estado, sem consequências de vulto, em termos de apoio ou acompanhamento. Das milhares de clubes e centros comunitários existentes por esse mundo fora, nem um só teria arrancado do chão, se para isso dependesse de um pequeno subsídio do Estado - um contraste radical com o contexto em que prolifera um sem número de congéneres que, dentro do país, não fazem nem tanto nem tão bem... A colaboração vinda de trás tinha agora terreno ainda mais vasto para prosseguir, com companheiros de caminhada animados do mesmo espírito (e, na altura, até do mesmo partido, embora isso não fosse factor de peso). Falei do "caso" da Madeira, em 1979, mas nos Açores também houve solenes assinaturas de protocolo de regionalização de serviços, (na Praça de Londres, não nas Ilhas de bruma) e precedidos e seguidos de muitos telefonemas informais. O meu homólogo regional era um jovem chamado Gentil Lagarto. A principal diferença face à Madeira foi o facto de todo o processo ter sido pacífico. Dizem que as pessoas felizes não fazem história. Os processos felizes também não. Contudo, embora tivesse perdido o rasto ao realmente gentil Dr Lagarto, o que não aconteceria com o amigo Bazenga Marques, prontamente estabeleci relações "à moda do Funchal" com Angra do Heroísmo. Durante os meus anos no governo. Lisboa- Angra- Funchal conversaram à volta da távola redonda sobre as grandes questões da globalidade das migrações portuguesas, acrescentando mais valias ao tratamento dessas questões, sem ninguém jamais ter interferido no área própria de cada um dos outros. O Diretor do Serviço das Comunidades Madeirenses era um emigrante famoso, o mais famoso do seu tempo, o ator de Hollywood, Virgílio Teixeira. O responsável por idênticos serviços na Terceira, Duarte Mendes, era um funcionário de excecional qualidade, alguém que conhecia todas as pessoas e instituições que faziam mover as comunidades açorianas. A triangulação entre a continente e as duas Autonomias, neste domínio, foi, suponho, absolutamente inédita e resultou na perfeição, numa relação de inteira confiança, solidariedade e amizade. Não me digam que o fator entendimento concreto entre pessoas não é o mais importante. É! O meu genuíno e primordial regionalismo levar-me-ia, em qualquer caso, a tentar o que tentei - a aproximação às Regiões. Mas tive a sorte de ser correspondida e o ter feito amigos depressa e para sempre, tornou fácil e eficaz o projeto de cooperação, que, cedo, atingiu um ponto alto dentro do Conselho das Comunidades Portuguesas. O CCP - TRÊS GOVERNOS no CONSELHO O CCP estava destinado a ser a grande assembleia representativa dos cidadãos do estrangeiro, um fórum de encontro e reflexão sobre a realidade das migrações portuguesas e de co-participação nas políticas para a emigração e para a Diáspora - a ponte da passagem de um Portugal centralizador, ditatorial, segregacionista dos emigrantes, para um Portugal democrático e aberto a todos. Logo na elaboração do anteprojeto de lei do Conselho das Comunidades Portuguesas, a que foi dada a maior prioridade e urgência no meu gabinete, foi pensado e equacionado o papel das Regiões. A Lei fundadora (um decreto-lei com que se pretendia tornar o processo mais expedito) torna o Conselho um órgão de consulta não apenas do Governo da República, mas também dos Governos Regionais. Curiosamente, através das múltiplas transfigurações que o CCP, não obstante manter precisamente o mesmo nome, veio a sofrer, desde 1980 até hoje, a presença das "Autonomias" nunca foi contestada, mas a sua importância foi quase completamente esvaziada, após 1996. Deixaram de estar nas salas de reunião. ainda que permaneçam, de pedra e cal, na letra da lei. Têm, evidentemente, como já tinham, nos anos 80, os seus próprios mecanismos de convívio dos emigrantes e das Diásporas madeirenses e açorianas - diversos entre si, aliás, e nos quais, como é óbvio, o Governo da República não tem lugar, exceto, eventualmente, como convidado. Eu era invariavelmente convidada. Será que o foram os meus sucessores?. Talvez um deles, que era madeirense, tenha estado em iniciativas regionais no Funchal. Os seguintes, duvido... De qualquer modo, aquém e além desses congressos, o que constatámos foi um gradual apartar de caminhos. Participei "ex officio", como deputada da emigração no CCP, na sua "segunda vida", entre 1996 e 2005, e não me recordo de ver os representantes das Autonomias no palco das aberturas e encerramentos solenes, à mesa de conversações, ou nas receções sociais do Palácio das Necessidades ou de Belém. O meu trabalho conjunto com os responsáveis pela política de emigração das regiões não se limitava, porém, ao CCP. Era uma relação do dia a dia, concreta e discreta, que assumia mediatismo apenas de longe a longe - por exemplo na composição da delegação de Portugal a nível internacional. Aconteceu, pela última vez, na III Conferência de Ministros do Conselho da Europa para as migrações, a que presidi no Porto. Lá estavam, como membros oficiais da nossa delegação, Virgílio Teixeira e Duarte Mendes. Duvido que os anais de um sem número de conferências internacionais registem composição semelhante em outra delegação nacional, no campo das migrações, mas espero estar enganada. Nesse primeiro CCP até os Presidentes dos Governos Regionais participaram: Alberto João Jardim no Encontro Mundial que, em 1985, se realizou em Porto Santo e no Funchal, e Mota Amaral na Reunião Regional da América do Norte (Toronto), em 1986. PORTO SANTO Em Porto Santo, coube ao Dr Aalberto João, como anfitrião, fazer a intervenção de abertura. Mal acabou de falar, um dos habituais contestatários do grupo de Paris (uma ruidosa minoria), José Machado levantou-se, avançou pelo corredor central do auditório e interrompeu os trabalhos, pedindo, intempestivamente, a palavra. Machado era, então, animador cultural dos serviços franceses para a imigração portuguesa, com quem viria a ter, muito depois, uma longa e frutuosa cooperação. Contudo, então, estávamos ainda a anos disso acontecer. AJJ, do alto do seu microfone, ordenou: - "Cale-se! (ele recuou, instintivamente, um passo). - " Aqui há democracia, com ordem e responsabilidade!" (Machado retrocedeu mais uns passos) - "Só fala quando eu lhe der a palavra." (nessa altura já o Conselheiro tinha voltado mais ou menos ao ponto de partida, lá atrás). Foi apenas o começo! Os confrontos nas sessões de trabalho, já sem o Presidente do Governo Regional mas com a Presidente do CCP, (eu própria, por delegação de competência do Ministro dos Negócios Estrangeiros), sucederam-se numa espiral de turbulência. Nada que me causasse desconforto. O problema maior era convencer os conselheiros do Brasil, os meus mais acérrimos defensores, a não se interporem nas discussões, porque eu gostava de responder frente a frente. Por fim, grupo de Paris veio comunicar-me que deixaria de participar na assembleia dos seus pares, para reunir à parte. Respondi prontamente: - Tudo bem! Como é óbvio, têm plena liberdade de fazer o que muito bem entenderem, aonde e quando quiserem, mas à vossa custa. O governo só pode suportar as despesas com os trabalhos do Conselho: gastar verbas do orçamento Estado em atividades privadas seria um desvio de fundos - está fora de questão!. E deixei-os a discutir entre eles, como pretendiam. O hotel era caro... Nessa noite, de malas na mão, tomaram o voo para Lisboa, onde pernoitaram, seguramente, por preços mais em conta... E, no dia seguinte, convocaram uma conferência de imprensa para provocarem o escândalo da praxe. O que corre bem não faz notícia, ou faz sem privilégio de primeira página, mas, na verdade, em Porto Santo, as condições de debate melhoraram substancialmente. Posições diferentes havia, naturalmente, mas acabara o afrontamento partidário. Os dissidentes não tinham seguidores fora da Europa e nem mesmo conseguiram todo o contingente europeu - longe disso. Só num aspeto tiveram mais sorte do que os outros - escaparam a uma viagem de susto, contra ventos (quase) ciclónicos entre o Porto Santo e o Funchal! No último dia, um grande temporal atingiu as ilhas e interrompeu as ligações marítimas entre elas, mas os aviões operaram normalmente, os mais pequenos, como os de maior porte. Eu ainda pensei optar por um dos "mini aviões" porque teriam mais pista para o poiso... Todavia, pensando bem, o risco de turbulência seria bem pior. Nunca vivi nada semelhante à entrada no Boeing - tão forte era o vento que pouco faltou para termos de rastejar até à porta. como num exercício militar. Em compensação, o trajeto foi tranquilo. 20 valores para a tripulação da TAP! Vim a saber que o comandante era, de facto, do melhor que a companhia desse tempo tinha - e, nesse tempo, no que respeita a perícia dos pilotos, a nossa TAP era insuperável. TORONTO No ano seguinte, realizou-se o que sempre considerei como a reunião mundial no formato "plenário por regiões", que alternava com o "plenário por secções". O plenário do CCP, era, nos termos da lei, convocado, uma vez por ano. Todavia, em 1983, os conselheiros, por consenso geral, dirigiram ao governo uma recomendação em que propunham a realização alternada de uma reunião no país, e de uma sessão quadripartida geograficamente por grandes regiões - América do Norte, América do Sul, África e Europa (a Àsia/Oceânia. com um único representante tinha a possibilidade de escolher aquela em que queria participar). A recomendação foi, naturalmente aceite. A lei não especificava um "modus faciendi" para os trabalhos do nosso "conclave" mundial e foi adotada, desde o início, a audição em secções especializadas, que decorriam em simultâneo, pelo que os conselheiros tinham de escolher a pertença a uma ou várias. Por isso, do ponto de vista da qualidade da consulta, era mais englobante fazê-la por regiões em vez de secções, ouvindo todos os representantes sobre todas as matérias. Esta forma de configurar juridicamente a reunião mundial não é nada de original - veja-se o paradigma da Assembleia do Conselho da Europa, onde o plenário se reparte, não geografica mas cronologicamente, em 4 partes da sessão plenária - um mês no total, dividido por quatro semanas). A recomendação de 1983 foi vertida num decreto-lei, com essa e outras pequenas alterações pontuais ao Decreto-Lei fundador do Conselho - mas o processo legislativo, como é normal no nosso país, foi retardado algures numa das gavetas de um ministério, por onde o diploma circulava obrigatoriamente, e, apesar da minha insistência, quando chegou a data da 1ª Reunião Regional, agendada para os arredores de Paris (La Rochelle), assinei a convocatória, por despacho, apoiado numa interpretação que considerava caber na letra da lei - o fazê-lo em novo diploma legal era, no fundo, sobretudo, um meio de dar especial relevo à inovação e de resolver outras questões, como a participação igualitária de associações culturais e sociais ligadas a igrejas, que levantara polémica, embora apenas na Alemanha. O grupo de Paris viu no despacho uma oportunidade de fazer barulho - tudo lhes servia, até o que só podia causar dano sem outro proveito que não fosse a "bagarre" pela "bagarre". Mas, do ponto de vista deles, isso era pertinente, pois o CCP sempre foi visto e utilizado como arma para bombardear o inimigo (ou seja, o governo, "hélas", com o meu rosto muito concreto...). Convertidos em arautos de uma interpretação restritiva da letra da lei, ei-los a recusar a reunião regional, antes de consagrada legislativamente. Se bem me lembro, aceitavam comparecer em La Rochelle, apenas enquanto encontro informal. Estava numa sala VIP de aeroporto, em Paris, quando da Embaixada, me deram essa notícia. Falei de imediato com o Ministro Jaime Gama, que concordou plenamente com o adiamento "sine die" da reunião regional da Europa, Dito e feito - ao chegar a Lisboa lavrei o despacho. A reunião não chegou a acontecer, ao contrário das da América do Norte em Danbury e da América do Sul/África/Oceânia em Fortaleza (Brasil), que foram um sucesso. Entretanto, a lei fora publicada e o grupo de Paris processara judicialmente o governo português. Perderam o processo, é claro, com decisão dada um ou dois anos depois. A sentença aceitou plenamente a argumentação do Governo. Voltando aos nossos parceiros insulares: como os "radicais"ligados ao PCP eram todos continentais, nunca eles foram molestados por campanhas de imprensa, ou quaisquer outras... Todavia, em Toronto, coincidindo com o encontro do CCP, mas sem nada ter a ver com ele, pretextos houve que serviram para pôr em palco a questão regional - no caso, tratando-se dos Açores, nada de novo, só mais um episódio da "guerra de bandeiras" . Estava o Presidente Mota Amaral alojado num dos muito bons hotéis da cidade, que, para homenagear o seu mais ilustre hóspede, hasteou na frontaria a bandeira azul e branca, pontuada de açores alados (esteticamente uma beleza!). Levantou-se, de imediato, em Lisboa, um coro de protestos, insinuações de separatismo, o habitual... Não contaram comigo. Pareceu-me muito bem que um líder regional fosse saudado com a bandeira da Região... No CCP falámos de outros temas mais importantes.
O CONGRESSO DAS COMUNIDADES AÇORIANAS (Angra do Heroísmo) Em fins de 1986, estava eu em vias de sair de vez, do governo minoritário de Cavaco Silva, coisa que já adivinhava, sem saber a data precisa, quando fiz a que seria a minha última viagem a Angra e aos Açores, na qualidade de Secretária de Estado. Se não havia guerra de bandeiras, literaimente, havia, porém, guerras. A mais óbvia decorria, em episódios,vários, tendo por principais contendores o Ministro da República, General Rocha Vieira, e o Governo regional do Dr Mota Amaral. No continente as relações entre o Presidente Soares e o Primeiro Ministro Cavaco eram apenas marginalmente melhores. Todavia, por qualquer estranha razão, que para mim permanece misteriosa, tanto Mário Soares como Cavaco Silva tinham uma especial predileção pelo General! A de Cavaco ía ao extremo de obrigar todos os membros do seu governo a contactarem o Governo Regional sempre através do Ministro da República. Absolutamente inédito! Não tendo recebido a ordem direta de Cavaco, mas, com era natural, por intermédio do MNE, desconheço se foi bem transmitida ou se este, criativamente, a converteu em determinação rígida. Sei o que me foi imposto e considerei um "diktat" impossível de cumprir, Logo eu, que, há anos, tratava de qualquer assunto, facil e informalmente pelo telefone - com amigos, aliados, preciosos colaboradores, Assim continuei a fazer. A tal ponto esquecera a existência do Ministro da República que, quando convidada a participar no Congresso, aceitei prontamente e nem me ocorreu informar o General da minha visita à Ilha Terceira... Neste caso, deveria, como é evidente tê-lo feito - e nem foi por vontade de afrontamento, foi por distração No aeroporto, esperava-me o Costa Neves, que era o Secretário regional com o pelouro das Comunidades e o Duarte Mendes. Com eles andei até ao fim do dia, à hora da abertura do Congresso. Só aí encontrei o General, que me me cumprimentou e perguntou, de imediato: - "Então, como veio?..." Ao que, pressentindo a ironia, respondi; - "No avião da TAP, naturalmente". A partir daí, tudo correu muito bem. Nos trabalhos, participei de princípio a fim, sem mais presença do Senhor General, contra o qual, devo dizê-lo nada me movia, Um prestigiado e competente militar de alta patente, sem dúvida. Não gosto é da figura constitucional de Ministro da República . um misto de Governador Civil e Vice-rei das Índias. Os da Madeira sempre me pareceram mais aquela primeira e mais modesta componente, e os dos Açores, o desta última, mais majestática (com algumas exceções, entre as quais se não conta Rocha Vieira). Grandes intervenções neste grande fórum. Lembro a investigadora brasileira de Santa Catarina, que dizia: "Estou aqui a matar saudades, 300 anos depois!". E as conversa com o Prof Ramiro Dutra ... e os debates sobre a eventual votação dos emigrantes nas eleições regionais - questão ainda hoje por resolver... Todavia, em Lisboa, o eco dos acontecimentos da Terceira, chegou algo distorcido. Soube-o no discurso direto, muito direto, do Presidente Soares. Estávamos num amplo espaço,um numeroso grupo de entidades oficiais, à espera de entrar na Aula Magna da Faculdade de Direito, no Campo Grande, para uma sessão comemorativa - talvez, não tenho a certeza, os 10 anos das primeiras eleições autárquicas - e o Presidente dirigiu-se a mim. Como eu tinha, dependurado ao pescoço um vistoso rolo de raposas, o Doutor Soares, puxando as extremidades das raposas, a medida que ia falando, com pretensa severidade, indagou: - "O que andou a fazer nos Açores, num congresso separatista?" E eu, logo imaginando de onde viera tão estranha informação, afirmei, com a mais genuína das convicções - " Estive nos Açores, sim, mas num magnífico congresso entre muito bons portugueses. Alguém lhe fez um relato errado, Senhor Presidente" Não o convenci: - ":De modo nenhum, Senhora Doutora! Até porque não há comunidades açorianas, só há comunidades portuguesas". Enquanto, distraidamente, continuava a puxar as pontas do longo e lustroso rolo de raposa, eu mantive as minhas certezas e permiti-me discordar (achei sempre fácil quer discordar, quer concordar com o Dr Soares porque ele gostava de ouvir opiniões, eventualmente contrárias): - "Mas claro que há comunidades açorianas, minhotas, algarvias, madeirenses, etc etc... Portugal é um país unido, e simultâneamente multicultural e o que pode, realmente, fomentar o separatismo é negar esta realidade". Não sei se aceitou a minha argumentação. Em qualquer caso, mostrava-se muito bem disposto. A conversa ficou por ali, porque fomos chamados a entrar na sala - e nunca mais falámos no assunto. Creio que quis, sobretudo, ouvir a minha versão dos acontecimentos. Não assim Cavaco Silva, que nunca abordou o assunto comigo - era em tudo o oposto de Mário Soares, e, alem disso, para ele, os Secretários de Estado haviam sido reduzidos à condição de meros "ajudantes de ministros" (certamente, só pedia explicações a ministros!).. Convicta de que quem tinha encaminhado as novas sobre o Congresso de Angra ao Presidente também as teriam dado ao chefe do Executivo, aproveitei para contar a história, na primeira oportunidade, que foi uma ida a Paris na comitiva do Primeiro- ministro - a história pormenorizada da conversa com o Presidente, não do congresso propriamente dito, que assim, por via indireta, ilibava de suspeitas de independentismo. O único comentário do Prof Cavaco Silva não dizia respeita ao fundo da questão. Foi uma simples e inesperada pergunta: "O presidente puxou pelas raposas? Em público?" . Mais me surpreendeu o espanto do Professor que o facto do Dr Soares ter engraçado com as raposas, o que me pareceu um gesto divertido, que, aliás, aligeirava a pesada acusação de "separatismo"...

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