terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

II - A MINHA DÉCADA DE OITENTA

Nos governos de 1980 em diante, transitei do Trabalho para a Emigração. A sintonia com a Madeira estendeu-se, desde então, a todo o universo da Diáspora. Não havia aqui lugar a qualquer forma de dependência, era uma colaboração entre iguais, que, tal como a ensaiámos, não continuava relacionamentos do passado, escassos e descontínuos, mas os criava de raíz - para mim, da maior utilidade, porque muitos eram os emigrantes originários das Ilhas, sobretudo nas comunidades transoceanicas, com os quais começava a contactar, em visitas a instituições de uma dimensão e ação espantosas, que muito pouco deviam ao Estado Português. No Brasil, mais do que em qualquer outro país, onde continentais e insulares se distribuem por todo o país, com grandes zonas de colonização açoriana no sul e Casas dos Açores ou da Madeira em várias cidades. Na Venezuela e África do sul, a predominância é de madeirenses, na América do Norte de açorianos, como nas Bermudas, ou no Hawaí (aqui, depois de se ter iniciado com pioneiros madeirenses, em 1876). A aconselhar o relacionamento estreito entre governos, o facto de as Regiões terem políticas de emigração e serviços exemplares, em muitos aspetos superiores aos da República, mais próximos das pessoas, mais atentos aos seus problemas, mais eficazes. A meu ver, menos burocráticos,mais terra a terra. Na verdade, em Lisboa, os funcionários conheciam, quando muito, os casos da França e outros países europeus - geografia jogava poderosamente contra os mais distantes, que eram visitados, episódica e apressadamente, por Ministros ou Secretários de Estado, sem consequências de vulto, em termos de apoio ou acompanhamento. Das milhares de clubes e centros comunitários existentes por esse mundo fora, nem um só teria arrancado do chão, se para isso dependesse de um pequeno subsídio do Estado - um contraste radical com o contexto em que prolifera um sem número de congéneres que, dentro do país, não fazem nem tanto nem tão bem... A colaboração vinda de trás tinha agora terreno ainda mais vasto para prosseguir, com companheiros de caminhada animados do mesmo espírito (e, na altura, até do mesmo partido, embora isso não fosse factor de peso). Falei do "caso" da Madeira, em 1979, mas nos Açores também houve solenes assinaturas de protocolo de regionalização de serviços, (na Praça de Londres, não nas Ilhas de bruma) e precedidos e seguidos de muitos telefonemas informais. O meu homólogo regional era um jovem chamado Gentil Lagarto. A principal diferença face à Madeira foi o facto de todo o processo ter sido pacífico. Dizem que as pessoas felizes não fazem história. Os processos felizes também não. Contudo, embora tivesse perdido o rasto ao realmente gentil Dr Lagarto, o que não aconteceria com o amigo Bazenga Marques, prontamente estabeleci relações "à moda do Funchal" com Angra do Heroísmo. Durante os meus anos no governo. Lisboa- Angra- Funchal conversaram à volta da távola redonda sobre as grandes questões da globalidade das migrações portuguesas, acrescentando mais valias ao tratamento dessas questões, sem ninguém jamais ter interferido no área própria de cada um dos outros. O Diretor do Serviço das Comunidades Madeirenses era um emigrante famoso, o mais famoso do seu tempo, o ator de Hollywood, Virgílio Teixeira. O responsável por idênticos serviços na Terceira, Duarte Mendes, era um funcionário de excecional qualidade, alguém que conhecia todas as pessoas e instituições que faziam mover as comunidades açorianas. A triangulação entre a continente e as duas Autonomias, neste domínio, foi, suponho, absolutamente inédita e resultou na perfeição, numa relação de inteira confiança, solidariedade e amizade. Não me digam que o fator entendimento concreto entre pessoas não é o mais importante. É! O meu regionalismo levar-me-ia, em qualquer caso, a tentar o que tentei - a aproximação às Regiões. Mas tive a sorte de ser correspondida. O ter feito amigos depressa e para sempre, tornou fácil e eficaz o projeto de cooperação, que, cedo, atingiu um ponto alto dentro do Conselho das Comunidades Portuguesas. O CONSELHO DAS COMUNIDADES PORTUGUESAS (CCP) CONSULTA A TRÊS (GOVERNOS) O CCP estava destinado a ser a grande assembleia representativa dos cidadãos do estrangeiro, um fórum de encontro e reflexão sobre a realidade das migrações portuguesas e de co-participação nas políticas para a emigração e para a Diáspora - a ponte da passagem de um Portugal centralizador, ditatorial, segregacionista dos emigrantes, para um Portugal democrático e aberto a todos. Logo na elaboração do anteprojeto de lei do Conselho das Comunidades Portuguesas, a que foi dada a maior prioridade e urgência no meu gabinete, foi pensado e equacionado o papel das Regiões. A Lei fundadora (um decreto-lei com que se pretendia tornar o processo mais expedito) torna o Conselho um órgão de consulta não apenas do Governo da República, mas também dos Governos Regionais. Curiosamente, através das múltiplas transfigurações que o CCP, não obstante manter precisamente o mesmo nome, veio a sofrer, desde 1980 até hoje, a presença das "Autonomias" nunca foi contestada, mas a sua importância foi quase completamente esvaziada, após 1996. Deixaram de estar nas salas de reunião. ainda que permaneçam, de pedra e cal, na letra da lei. Têm, evidentemente, como já tinham, nos anos 80, os seus próprios mecanismos de convívio dos emigrantes e das Diásporas madeirenses e açorianas - diversos entre si, aliás, e nos quais, como é óbvio, o Governo da República não tem lugar, exceto, eventualmente, como convidado. Eu era invariavelmente convidada. Será que o foram os meus sucessores?. Talvez um deles, que era madeirense, tenha estado em iniciativas regionais no Funchal. Os seguintes, duvido... De qualquer modo, aquém e além desses congressos, o que constatámos foi um gradual apartar de caminhos. Participei "ex officio", como deputada da emigração no CCP, na sua "segunda vida", entre 1996 e 2005, e não me recordo de ver os representantes das Autonomias no palco das aberturas e encerramentos solenes, à mesa de conversações, ou nas receções sociais do Palácio das Necessidades ou de Belém. O meu trabalho conjunto com os responsáveis pela política de emigração das regiões não se limitava, porém, ao CCP. Era uma relação do dia a dia, concreta e discreta, que assumia mediatismo apenas de longe a longe - por exemplo na composição da delegação de Portugal a nível internacional. Aconteceu, pela última vez, na III Conferência de Ministros do Conselho da Europa para as migrações, a que presidi no Porto. Lá estavam, como membros oficiais da nossa delegação, Virgílio Teixeira e Duarte Mendes. Duvido que os anais de um sem número de conferências internacionais registem composição semelhante em outra delegação nacional, no campo das migrações, mas espero estar enganada. Nesse primeiro CCP até os Presidentes dos Governos Regionais participaram: Alberto João Jardim no Encontro Mundial que, em 1985, se realizou em Porto Santo e no Funchal, e Mota Amaral na Reunião Regional da América do Norte (Toronto), em 1986. PORTO SANTO Em Porto Santo, coube ao Dr Alberto João, como anfitrião, fazer a intervenção de abertura. Mal acabou de falar, um dos habituais contestatários do grupo de Paris (uma ruidosa minoria), José Machado levantou-se, avançou pelo corredor central do auditório e interrompeu os trabalhos, pedindo, intempestivamente, a palavra. Machado era, então, animador cultural dos serviços franceses para a imigração portuguesa, com quem viria a ter, muito depois, uma longa e frutuosa cooperação. Contudo, então, estávamos ainda a anos disso acontecer. AJJ, do alto do seu microfone, ordenou: - "Cale-se! (ele recuou, instintivamente, um passo). - " Aqui há democracia, com ordem e responsabilidade!" (Machado retrocedeu mais uns passos) - "Só fala quando eu lhe der a palavra." (nessa altura já o Conselheiro tinha voltado mais ou menos ao ponto de partida, lá atrás). Foi apenas o começo! Os confrontos nas sessões de trabalho, já sem o Presidente do Governo Regional mas com a Presidente do CCP, (eu própria, por delegação de competência do Ministro dos Negócios Estrangeiros), sucederam-se numa espiral de turbulência. Nada que me causasse desconforto. O problema maior era convencer os conselheiros do Brasil, os meus mais acérrimos defensores, a não se interporem nas discussões, porque eu gostava de responder frente a frente. Por fim, grupo de Paris veio comunicar-me que deixaria de participar na assembleia dos seus pares, para reunir à parte. Respondi prontamente: - Tudo bem! Como é óbvio, têm plena liberdade de fazer o que muito bem entenderem, aonde e quando quiserem, mas à vossa custa. O governo só pode suportar as despesas com os trabalhos do Conselho: gastar verbas do orçamento Estado em atividades privadas seria um desvio de fundos - está fora de questão!. E deixei-os a discutir entre eles, como pretendiam. O hotel era caro... Nessa noite, de malas na mão, tomaram o voo para Lisboa, onde pernoitaram, seguramente, por preços mais em conta... E, no dia seguinte, convocaram uma conferência de imprensa para provocarem o escândalo da praxe. O que corre bem não faz notícia, ou faz sem privilégio de primeira página, mas, na verdade, em Porto Santo, as condições de debate melhoraram substancialmente. Posições diferentes havia, naturalmente, mas acabara o afrontamento partidário. Os dissidentes não tinham seguidores fora da Europa e nem mesmo conseguiram todo o contingente europeu - longe disso. Só num aspeto tiveram mais sorte do que os outros - escaparam a uma viagem de susto, contra ventos (quase) ciclónicos entre o Porto Santo e o Funchal! No último dia, um grande temporal atingiu as ilhas e interrompeu as ligações marítimas entre elas, mas os aviões operaram normalmente, os mais pequenos, como os de maior porte. Eu ainda pensei optar por um dos "mini aviões" porque teriam mais pista para o poiso... Todavia, pensando bem, o risco de turbulência seria bem pior. Nunca vivi nada semelhante à entrada no Boeing - tão forte era o vento que pouco faltou para termos de rastejar até à porta. como num exercício militar. Em compensação, o trajeto foi tranquilo. 20 valores para a tripulação da TAP! Vim a saber que o comandante era, de facto, do melhor que a companhia desse tempo tinha - e, nesse tempo, no que respeita a perícia dos pilotos, a nossa TAP era insuperável. TORONTO No ano seguinte, realizou-se o que sempre considerei como a reunião mundial no formato "plenário por regiões", que alternava com o "plenário por secções". O plenário do CCP era, nos termos da lei, convocado, uma vez por ano. Todavia, em 1983, os conselheiros, por consenso geral, dirigiram ao governo uma recomendação em que propunham a realização alternada de uma reunião no país, e de uma sessão quadripartida geograficamente por grandes regiões.. A recomendação foi, naturalmente aceite.E m 1985 e 1087 realizaram.se as reuniões em Portugal (na Madeira e nos Algarve) e, em 1984, decorreram nas comunidades, assim como em 1086. Depois, eu saí go governo e, com Correia de Jesus, o CCP hibernou, até ser reanimado por iniciativa de José Lello. em 1996. O reunião dos conselheiros da América do Norte efetuou-se em Toronto, em ambiente muito cordial, mas, mesmo assim, pretextos houve que serviram para pôr em palco a questão regional. No caso, tratando-se dos Açores, nada de novo, só mais um episódio de "guerra de bandeiras" . O Presidente Mota Amaral estava alojado num dos bons hotéis da cidade, que, para homenagear o seu ilustre hóspede, hasteou na frontaria a bandeira azul e branca, pontuada de açores em voo (esteticamente uma beleza!). Levantou-se, de imediato, em Lisboa, um coro de protestos, insinuações de separatismo, o habitual... Não contaram comigo. Pareceu-me muito bem que um líder regional fosse saudado com a bandeira da Região... No CCP falámos de outros temas mais importantes, numa reunião que, como dizem no Brasil, correu "bem demais". A reunião em si e "a latere" a parte social também, O Ministro da Imigração do Ontário, Tony Ruprecht, que era amigo do Cônsul António Tânger, fora, pouco antes, meu convidado em Portugal (Lisboa, Porto, Amarante - com visita ao Museu Sousa Cardozo e à casa de Pascoaes), Retribuiu-nos em Toronto, por altura dessa realização do CCP-América do Norte, com um grande banquete oferecido a todos os conselheiros. O CONGRESSO DAS COMUNIDADES AÇORIANAS (Angra do Heroísmo) Em fins de 1986, estava eu em vias de sair de vez, do governo minoritário de Cavaco Silva, coisa que já adivinhava, sem saber a data precisa, quando fiz a que seria a minha última viagem a Angra e aos Açores, na qualidade de Secretária de Estado. Se não havia guerra de bandeiras, literaimente, havia, porém, guerras. A mais óbvia decorria, em episódios,vários, tendo por principais contendores o Ministro da República, General Rocha Vieira, e o Governo regional do Dr Mota Amaral. No continente as relações entre o Presidente Soares e o Primeiro Ministro Cavaco eram apenas marginalmente melhores. Todavia, por qualquer estranha razão, que para mim permanece misteriosa, tanto Mário Soares como Cavaco Silva tinham uma especial predileção pelo General! A de Cavaco ía ao extremo de obrigar todos os membros do seu governo a contactarem o Governo Regional sempre através do Ministro da República. Absolutamente inédito! Não tendo recebido a ordem direta de Cavaco, mas, com era natural, por intermédio do MNE, desconheço se foi bem transmitida ou se este, criativamente, a converteu em determinação rígida. Sei o que me foi imposto e considerei um "diktat" impossível de cumprir, Logo eu, que, há anos, tratava de qualquer assunto, facil e informalmente pelo telefone - com amigos, aliados, preciosos colaboradores, Assim continuei a fazer. A tal ponto esquecera a existência do Ministro da República que, quando convidada a participar no Congresso, aceitei prontamente e nem me ocorreu informar o General da minha visita à Ilha Terceira... Neste caso, deveria, como é evidente tê-lo feito - e nem foi por vontade de afrontamento, foi por distração No aeroporto, esperava-me o Costa Neves, que era o Secretário regional com o pelouro das Comunidades e o Duarte Mendes. Com eles andei até ao fim do dia, à hora da abertura do Congresso. Só aí encontrei o General, que me me cumprimentou e perguntou, de imediato: - "Então, como veio?..." Ao que, pressentindo a ironia, respondi; - "No avião da TAP, naturalmente". A partir daí, tudo correu muito bem. Nos trabalhos, participei de princípio a fim, sem mais presença do Senhor General, contra o qual, devo dizê-lo nada me movia, Um prestigiado e competente militar de alta patente, sem dúvida. Não gosto é da figura constitucional de Ministro da República . um misto de Governador Civil e Vice-rei das Índias. Os da Madeira sempre me pareceram mais aquela primeira e mais modesta componente, e os dos Açores, o desta última, mais majestática (com algumas exceções, entre as quais se não conta Rocha Vieira). Grandes intervenções neste grande fórum. Lembro a investigadora brasileira de Santa Catarina, que dizia: "Estou aqui a matar saudades, 300 anos depois!". E as conversa com o Prof Ramiro Dutra ... e os debates sobre a eventual votação dos emigrantes nas eleições regionais - questão ainda hoje por resolver... Todavia, em Lisboa, o eco dos acontecimentos da Terceira, chegou algo distorcido. Soube-o no discurso direto, muito direto, do Presidente Soares. Estávamos num amplo espaço,um numeroso grupo de entidades oficiais, à espera de entrar na Aula Magna da Faculdade de Direito, no Campo Grande, para uma sessão comemorativa - talvez, não tenho a certeza, os 10 anos das primeiras eleições autárquicas - e o Presidente dirigiu-se a mim. Como eu tinha, dependurado ao pescoço um vistoso rolo de raposas, o Doutor Soares, puxando as extremidades das raposas, a medida que ia falando, com pretensa severidade, indagou: - "O que andou a fazer nos Açores, num congresso separatista?" E eu, logo imaginando de onde viera tão estranha informação, afirmei, com a mais genuína das convicções - " Estive nos Açores, sim, mas num magnífico congresso entre muito bons portugueses. Alguém lhe fez um relato errado, Senhor Presidente" Não o convenci: - ":De modo nenhum, Senhora Doutora! Até porque não há comunidades açorianas, só há comunidades portuguesas". Enquanto, distraidamente, continuava a puxar as pontas do longo e lustroso rolo de raposa, eu mantive as minhas certezas e permiti-me discordar (achei sempre fácil quer discordar, quer concordar com o Dr Soares porque ele gostava de ouvir opiniões, eventualmente contrárias): - "Mas claro que há comunidades açorianas, minhotas, algarvias, madeirenses, etc etc... Portugal é um país unido, e simultâneamente multicultural e o que pode, realmente, fomentar o separatismo é negar esta realidade". Não sei se aceitou a minha argumentação. Em qualquer caso, mostrava-se muito bem disposto. A conversa ficou por ali, porque fomos chamados a entrar na sala - e nunca mais falámos no assunto. Creio que quis, sobretudo, ouvir a minha versão dos acontecimentos. Não assim Cavaco Silva, que nunca abordou o assunto comigo - era em tudo o oposto de Mário Soares, e, alem disso, para ele, os Secretários de Estado haviam sido reduzidos à condição de meros "ajudantes de ministros" (certamente, só pedia explicações a ministros!).. Convicta de que quem tinha encaminhado as novas sobre o Congresso de Angra ao Presidente também as teriam dado ao chefe do Executivo, aproveitei para contar a história, na primeira oportunidade, que foi uma ida a Paris na comitiva do Primeiro- ministro - a história pormenorizada da conversa com o Presidente, não do congresso propriamente dito, que assim, por via indireta, ilibava de suspeitas de independentismo. O único comentário do Prof Cavaco Silva não dizia respeita ao fundo da questão. Foi uma simples e inesperada pergunta: "O presidente puxou pelas raposas? Em público?" . Mais me surpreendeu o espanto do Professor que o facto do Dr Soares ter engraçado com as raposas, o que me pareceu um gesto divertido, que, aliás, aligeirava a pesada acusação de "separatismo"...

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