quinta-feira, 2 de março de 2017

MIGRAÇÕES EM DEBATE NO PALÁCIO DAS NECESSIDADES

Tema: Os Rostos da Emigração Portuguesa

1. Que evolução podemos traçar da emigração portuguesa nos últimos 50 anos?

Nestes últimos 50 anos de migrações portuguesas podemos distinguir três fases – a primeira que vai da meia década de sessenta à meia década de 70, caracterizada por um verdadeiro êxodo que começara na década anterior, e que levou cerca de dois milhões de portugueses para a Europa e para novos destinos transoceânicos (Canadá, Venezuela, África do Sul…) – o que constituiu uma ruptura com os pólos de atracção tradicionais (Brasil, EUA, Argentina…)
Os maiores contingentes dirigiram-se, maioritariamente para França e outros países do nosso continente e são esses que fazem a história deste período – uma história dramática, muito marcada pela clandestinidade, pelo engajamento de redes de tráfico de seres humanos, pelo controlo da Junta de Emigração e por perseguições da PIDE.. É a chamada “emigração a salto”. Os importantes movimentos transoceânicos paralelos tendem a ser esquecidos ou muito subavaliados pelos peritos e estudiosos nestas matérias, talvez porque se processem em condições mais ordeiras, por um lado, e, por outro, porque são, em alta proporção oriundos dos Açores (para a América do Norte) e da Madeira (para o sul da América e da África)
O perfil dos que partem da metrópole e das regiões insulares é muito semelhante. Deixam a pobreza do mundo rural, têm baixas qualificações escolares e profissionais, são sobretudo homens jovens -  parte deles para se livrarem do  serviço militar obrigatório e da guerra colonial. As mulheres, em regra, vão mais tarde, quando há condições de alojamento familiar. O crescimento das economias que apelam à “mão de obra” barata garante trabalho fácil para todos, mesmo para os ilegais, incluindo as mulheres.
A crise petrolífera, a recessão mundial, a partir de 1973/74, vem por abruptamente fim a estes fluxos desmesurados, que entre 1968 e 1971 envolvem cerca de um milhão e meio de portugueses. As saídas quase se limitam a mulheres e crianças, admitidas para reagrupamento familiar.
Na década seguinte, assistimos movimento maciços em sentido contrário – o que é, coisa absolutamente inédita numa história multissecular de expatriação incessante. O retorno de África, súbito e caótico trouxe cerca de 800.00 entre 1974/76, num tempo em que acontecia já, gradual, voluntário, ordenado -e, por isso praticamente invisível -  a volta da geração do “salto, que se prolongaria, à média de 30.000 ao ano ao longo de 80 – um total cerca de um milhão. Como foi possível integra-los tão bem numa economia tão conturbada e débil?
A meu ver, pelo perfil dos que chegavam, De África, pessoas com rasgo, capacidade de inovação, experiência empresarial, funcionários públicos, Da emigração, gente com reformas, rendimentos, projectos de investimento, que repovoavam as terras que tinha deixado Não voltaram como tinham ido - na situação de trabalhadores rurais, num sector agrícola decadente.
A adesão de Portugal à CEE criou uma aparência de prosperidade”, que deu origem ao discurso prematuro do fim da emigração em Portugal. O êxodo recomeçaria no início do século XX


2. Podemos estabelecer um perfil do emigrante atual? Ou a atual população emigrante apresenta características muito díspares?

O que há de diferente neste surto migratório, de uma dimensão já comparável à dos anos 60, é a sua grande heterogeneidade. Não é verdade que seja sobretudo uma saída de jovens altamente qualificados. O que é certo é que, pela primeira vez, há uma parte, ainda uma minoria, nesse sector, onde, regra geral se encontram as mulheres que emigrem autonomamente – outra distinção face ao passado, que lhes dá muita visibilidade. De facto, no conjunto, são uma “pequena minoria” significativa. O “brain drain” é uma realidade assustadora, embora a esmagadora proporção dos que saem sejam homens, pouco qualificados, envolvidos em processos de emigração temporária
Neste momento a falta de perspectivas no País, a falta de esperança, o discurso dos políticos – talvez mais até a imagem que dão de si, da sua gestão da coisa pública, do que o discurso… -  leva para fora os que se sentem frustrados, desesperados, desempregados – portugueses de todas as idades, de todas as formações, de todas as regiões. Nunca se viu coisa assim·

3. Os destinos da emigração portuguesa atual divergem dos destinos escolhidos na década de 60/70?

Em larga medida, sim, divergem. Há a novidade da procura de países como Angola , onde se fala em mais de 100.00, ou, em menor escala, o Brasil – para onde os movimentos tinham cessado, quase por completo, em meados do século XX. E há um sem número de países onde se dispersam, individualmente, ou em pequenos grupos, no Médio Oriente, na América do Sul, em países asiáticos, na Oceânia – nos sítio mais inesperados e improváveis.
Mas também há muitos para quem recomeçou o ciclo europeu, ao abrigo do direito de livre circulação e de estabelecimento. Não podemos saber precisamente quantos se fixam em países da U E – sabemos que só não são mais porque também aí é cada vez mais difícil encontrar trabalho…

4. Que papel entende caber ao Estado português, no apoio a esses emigrantes?

Desde o 25 de Abril de 1974 que os emigrantes gozam, face à Constituição, não só de direitos políticos, mas, genericamente do direito à protecção do Estado – contra a tradição de circunscrever a acção dos poderes públicos em favor dos seus nacionais apenas dentro do seu próprio território, ou, quando muito ao acompanhamento do acto de saída – condições do contrato de trabalho, apoio na viagem de ida. A revolução de 74 estabeleceu, assim, um novo paradigma “personalista” centrado no estatuto de direitos dos expatriados, à semelhança do que já acontecia e acontece em outros países europeus, sobretudo, do sul da Europa.
Sucessivos governos delinearam, a partir de 1974, e até à década de 90, toda uma arquitectura institucional de suporte a políticas de informação, de apoio no domínio social e cultural, de negociação de acordos bilaterais, de parceria com o movimento associativo das comunidades. Logo em 1974 foi criada a Secretaria de Estado da Emigração, sedeada primeiro no Ministério do Trabalho, depois no Ministério dos Negócios Estrangeiros, que desenvolveu serviços próprios, incluindo um Instituto dotado de autonomia administrativa e financeira, delegações externas, em articulação com a rede consular, com os conselheiros sociais das Embaixadas. Ou seja, meios adequados, ainda que com orçamentos sempre modestos para acção cultural externa e para o ensino da língua aos filhos dos emigrantes (um dever do Estado, expressamente consagrado na Constituição desde a revisão de 1982). O enfoque prioritário era na emigração recente, europeia, em questões sociais e laborais, ainda que, pelo menos desde os anos 80, se procurasse a ligação à diáspora, em todo o mundo, nomeadamente através do Conselho das Comunidades Portuguesas
. Porém, desde a última década do século XX, com a ideia de que os movimentos migratórios tinham cessado de vez (o já então não era exacto, embora tivessem diminuído relativamente a 60/70 e assumido mais um carácter temporário) assistimos ao desmantelamento das estruturas existentes, com o desaparecimento de um instituto autónomo e a diluição do que restava dos antigos serviços na Direcção Geral de Assuntos Consulares. Mais recentemente, foram extintos os lugares de adidos e conselheiros sociais junto das Embaixadas, funcionários altamente especializados, que tão bons serviços prestaram no passado, na detecção de problemas e na assessoria de negociações bilaterais.
Hoje, há, é certo, novas formas de contacto, as redes sociais, a RTPI, uma rede consular informatizada, um Secretário de Estado experiente e atento. Mas estas fortíssimas correntes migratórias, reclamam acompanhamento, conhecimento das situações concretas, informação, assistência, onde for precisa. No dia a dia. O que me parece exigir reforço de meios materiais e humanos e, onde for possível, um reforço das parcerias com o associativismo da emigração

5. Para Portugal, a saída de nacionais implica sempre perda de população ativa. Que consequências, do ponto de vista económico e demográfico, se podem esperar, num futuro próximo, desta saída?

Também deste ponto de vista a situação é assustadora. Os números são tremendos – o Secretário de Estado fala, com conhecimento de causa, em mais de 120.000 saídas por ano… Há o fundado receio de que os mais qualificados tenham partido definitivamente. Se assim for, isso é uma perda irremediável para a economia nacional, que deles necessitava para se reconverter (embora Portugal possa recupera-los na diáspora – do que, porém, não há certezas…. A larga predominância de uma emigração temporária, actualmente, faz do regresso dessa maioria uma questão de criação de oportunidades de emprego. Mas quando se iniciará esse volte face em Portugal, no interior desta Europa, enredada na teia das políticas de austeridade anti-desenvolvimentistas, sem visão estratégica, sem espírito de solidariedade, num afrontamento norte/sul, que nós somos, entre os países do sul, os únicos que aparentemente estamos no campo errado ? Neste momento, o que mais há são interrogações…   

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