domingo, 4 de outubro de 2020

O FUTEBOL LONGE DA MULTIDÃO

O FUTEBOL LONGE DA MULTIDÃO 1 - Uma das marcas que o ano 2020 deixará para a história é, certamente, o "jamais vu", e agora normalizado, espetáculo do futebol sem espectadores, com os estádios cercados de arame farpado e carros de polícia, em cenário artificialmente bélico sem oponentes nem desordeiros, a não ser os supostos desordeiros nados e criados no imaginário da intelectualidade que diaboliza o futebol. Ao longo dos últimos meses, temos contemplado o estranho fenómeno nos ecrãs de televisão. Não menos estranho é, devo dizê-lo, assistir ao fenómeno dentro do estádio. Aconteceu-me, como tantas outras coisas improváveis de que é feita a minha vida, na 1ª jornada da "Liga", num FC Porto-SC Braga. Tentei, naturalmente, abordar o Estádio do Dragão pelo trajeto habitual - Ponte do Freixo/Mercado Abastecedor - mas fui barrada por carros da PSP imobilizados na via. Desviei para Campanhã, por ruas sem vivalma, a caminho da Alameda das Antas. Aí, nova barreira policial desfez dúvidas: o recinto desportivo estava sitiado no meio de um largo círculo. Desta vez, dirigi-me à autoridade: "Senhor Agente, por mais improvável que pareça, eu vou mesmo ao futebol". Simpático, preparou-se, obviamente, para me dar "luz verde", com ar divertido, a rir. Perguntei-lhe porquê. E ele, muito bem-disposto, respondeu: "A senhora devia ver a cara com que diz isso. Vê-se mesmo que ainda nem acredita que vai assistir ao jogo". Para além de boa pessoa, um bom psicólogo... Lá dentro, as bancadas desertas, depois das avenidas desertas, que acabava de atravessar, acentuavam um quadro de irrealidade, a sensação de que a cidade do Porto fora atingida pela bomba de neutrões, só se tendo salvo do cataclismo uma dúzia de polícias, a diminuta assistência da tribuna onde eu estava e as equipas que entravam em campo, ao som da música dos altifalantes. Quando os cânticos se calaram e a bola começou a rolar, a surpresa maior foi a dos sons que se seguiram - tudo o que no relvado se gritava, como que ampliado por microfones colocados na camisola de cada jogador, chegava até nós, distintamente, como se estivéssemos no banco e não no cimo da bancada. Eram as únicas vozes que cortavam o silêncio da noite. Todavia, os três golos portistas, mais um anulado pelo vídeo árbitro, puderam ser festejados pelos altifalantes, em gravação de falantes de jornada pré-pandemia. Lembrei-me logo de uma partida de hóquei sobre o gelo, a que assisti em Toronto, num estádio cheio, que pouco se manifestava porque a peleja decorria civilizadamente, sem lances insurretos que por lá, naquela modalidade, não justificam cartão vermelho. Para reanimar as hostes, os grandes ecrãs pendentes do teto começaram a transmitir imagens de recontros anteriores, de uma violência espantosa. Pensei: "Se isto, por cá, continuar assim, qualquer dia, acabamos a projetar, à volta das quatro linhas, em telas gigantes, imagens do animado público de jogos pretéritos... Na verdade, naquele sábado à noite, o que faltava no Dragão, era a moldura humana, não a qualidade do jogo jogado, que, para princípio de época, foi de excelente qualidade, por parte de ambas as equipas. Um início atípico, uma espécie de reinício, após férias encurtadas... Ainda mais atípica foi a saída do estádio. De novo me encontrei na solidão da cidade adormecida. Onde estava a habitual multidão de cachecóis azuis e brancos, circulando em todas as direções, no seu rejubilante regresso a casa? E o trânsito vagaroso, que é um ritual de fim de festa, deixando-nos tempo para ouvir os comentários da rádio e para acrescentar os nossos? A vitória fora fantástica, e, contudo, inacabada, pelas razões que, melhor do que eu e com mais autoridade, um "Manifesto" de notáveis do desporto veio explicitar: "Sem adeptos, não há futebol". Um deles, numa entrevista, foi claro e sintético, por outras palavras, ao exclamar: "Não é verdadeiramente futebol". Há que dizê-lo, bem alto, ao governo, aos seus subordinados da DGS, e às oposições mudas e quedas, da esquerda à direita. O "Manifesto" chegou na 25ª hora, mas nem por isso merece menos aplauso. Aliás, temos de reconhecer que os portugueses são assim, gente com excessiva paciência ou com hábitos velhos de obediência ou tolerância face ao Poder, mesmo quando este se revela inculto, injusto e discriminatório. No que respeita ao futebol, os três adjetivos assentam na perfeição a este Executivo. 2 - Meses atrás, aquando do recomeço da I Liga de futebol, deixando, embora, em hibernação outros campeonatos e modalidades, Portugal esteve na linha da frente de uma "abertura experimental", cujo sucesso parecia muito incerto. Era de recear a multiplicação de focos de contágio, a impor nova e definitiva interrupção do campeonato, porventura já com outro clube a liderar. Ficou em alguns espíritos a dúvida sobre se diversa não teria sido a solução, caso à frente da classificação não estivesse o FCP, pela margem mínima.... Afinal, correu tudo otimamente. E o FCP aumentou a vantagem. Testes e mais testes permitiram evitar no futebol o desastre que a ziguezagueante orientação da DGS não conseguiu com a mortandade dos lares de idosos e o nível de infeções dentro do próprio SNS (ainda hoje tendem a testar, nesses setores prioritários, só depois de consumado o contágio). Entretanto, a vida foi retomando a normalidade possível. Ou seja, quase tudo nos é permitido, condicionalmente e em moldes interpretativos por vezes enigmáticos. Parece valer sobremaneira o grau de confiança que as instituições inspiram à senhora DGS. No escalão de topo figuram, por exemplo, o PCP e a Igreja Católica e no de baixo, contra as evidências, o futebol! De facto, a eficácia e o pragmatismo dos clubes da I Liga não tem igual, nem no Estado, nem nos partidos políticos, nem na Igreja portuguesa. O PCP começou por reclamar um número megalómano de 100.000 espectadores para o seu festival de verão (e terá sido "salvo" pela limitação imposta de 16.000, e, depois, pelo povo receoso, que nem essa quota preencheu), enquanto a Igreja falhou em Fátima, clamorosamente, na peregrinação de setembro. O futebol, pelo contrário, cumpriu a sua parte e faz jus a pedir, pura e simplesmente, tratamento igualitário. Nos seus estádios ao ar livre, com bancadas ou cadeiras, onde é fácil manter distâncias e exercer o policiamento, oferece mais garantias do que o Campo Pequeno em espetáculos de 2.500 pessoas, as salas de cinema, os auditórios de música, a "tenda de casamentos", onde um partido foi autorizado a realizar a sua convenção, os aeroportos de Faro e de Lisboa, quando, periodicamente, se instala a caos nas chegadas, os transportes públicos quotidianos em horas de ponta, os arraiais de praia, as fronteiras sem controlos para quem chega de Espanha, França e Inglaterra. De momento, a ameaça, centra-se, sobretudo, na reabertura das escolas - feita, lá dentro com regras e disciplina norte-coreana, cá fora em clima de verdadeiro regabofe, à moda de Trump e Bolsonaro. São, agora, protagonistas da 2ª vaga COVID os jovens, que os repetidos discursos da senhora DGS convenceram de que são imunes e imortais. O perigo está nas ruas, nos espaços por onde eles se passeiam, sem vigilância. No futebol, a ameaça diminuirá porque vigilância é coisa que aí não falha nunca. 3 - Portugal não será pioneiro na abertura (limitada) das portas dos estádios. A televisão já nos mostrou, na disputa de uma Supertaça europeia e dos campeonatos principais de alguns países, o que é um jogo com público durante a pandemia. Entre nós, só houve uma modestíssima mostra açoreana, que decorreu em boa ordem e com o uso de máscara, o que não se verificou no paradigma húngaro ou holandês. E um dos maiores especialistas do país, o Prof. Simas, que os "media" converteram em rosto familiar, (cientista que, ao invés do Dr. Pacheco Pereira, gosta de futebol), foi a um programa desportivo defender a assistência aos jogos, no contexto das regras gerais. É o que o abaixo-assinado de Sérgio Conceição, Jorge Jesus, Deco, Futre e outros ilustres desportistas propõe, no essencial. Tem, obviamente ínsita, a que, nas aulas de Direito, aprendemos a chamar cláusula "rebus sic stantibus", vale enquanto as condições não sofrerem alteração, porque, é claro, a saúde está primeiro. Se isso acontecesse, as restrições deveriam, evidentemente, abranger todos os lugares bem menos seguros do que um arejado recinto desportivo. Futebol à porta fechada só como castigo!

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