sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Comunicação ao Congresso "A VEZ E VOZ DAS MULHERES"

POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A EMIGRAÇÃO FEMININA O caso português - uma perspectiva diacrónica Portugal é um país de emigração multissecular, cujas políticas tradicionalmente descuraram a proteção dos cidadãos fora de fronteiras e se caracterizaram pela prioridade de regular os fluxos de saída, com a quase constante imposição de restrições ao êxodo masculino e de proibição ou de limitação sistemática das migrações femininas, primeiro para Oriente, depois para o Brasil e outros destinos. As primeiras políticas públicas destinadas às mulheres são marcadas por uma misoginia sem paralelo na Península Ibérica e na Europa. A revolução de 1974 trouxe a todos os cidadãos portugueses a liberdade de emigrar e o desenvolvimento de medidas de apoio cultural e social, sem que, todavia, a situação específica das emigrantes fosse objeto de particular atenção. Em 1981, o recém criado Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP), Órgão representativo da emigração e instância consultiva do Governo,era composto por cerca de 60 membros, eleitos no âmbito associativo, todos do sexo masculino. Em 1983, nova eleição em colégio associativo trouxe à instituição as duas primeiras mulheres conselheiras, uma das quais, Maria Alice Ribeiro, de Toronto, avançou com a proposta da convocação de um encontro mundial das mulheres emigrantes portuguesas. O 1º Encontro Mundial veio a realizar-se em 1985, com o alto patrocínio da UNESCO, dando ao país um improvável lugar de pioneirismo europeu e mundial. No entanto, a sequência a dar às suas principais conclusões só viria a concretizar-se a partir de 2005, pela via dos " Encontros para a Cidadania - a igualdade entre homens e Mulheres", uma iniciativa desenvolvida através de uma parceria entre a Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas e ONG's, como a Associação Mulher Migrante e a Fundação Pro Dignitate. A descontinuidade dos "Encontros para a cidadania", (do "congressismo" como instrumento de luta pela igualdade) e a sub-representação feminina no interior do Conselho das Comunidades, eleito por sufrágio direto e universal, marcam o estado atual das políticas públicas com a componente de género nas nossas comunidades do estrangeiro. Palavras chave: emigração feminina, políticas públicas, igualdade, sub-representação feminina, congressismo --------------------- POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A IGUALDADE Nas políticas públicas para as migrações femininas distinguiremos três fases: as políticas de proibição, no tempo longo que se inicia com a Expansão e vai até à Revolução de 1974; as políticas de indiferença, a partir da proclamação da igualdade entre mulheres e homens pela Constituição de 1976, sem acompanhamento pelos Governos das situações concretas de discriminação; as políticas para a igualdade, que datam do início do século XX. I – Sobre as políticas proibitivas ou limitativas da emigração de mulheres direi apenas breves palavras, abarcando séculos de marginalização. A Coroa portuguesa, com raras exceções, promoveu uma colonização de homens sós, com a contrapartida da tolerância ou do incentivo à miscigenação. A castelhana, pelo contrário, sempre privilegiou a emigração familiar, obrigando os maridos a levarem consigo as mulheres, ou a regressarem a casa, para cumprirem os deveres conjugais. Charles Boxer, historiador que estudou, globalmente, a colonização dos Estados peninsulares e, em particular, a presença feminina na Expansão ibérica, considera as práticas de rigorosa interdição da saída das mulheres portuguesas como o mais acabado exemplo de misoginia, sem paralelo em outros países europeus. As medidas de interdição da saída de mulheres eram rigorosamente cumpridas a Oriente, na carreira das Índias, devido aos custos e aos perigos da viagem, mas não a Ocidente, quando o Brasil se tornou o destino prevalente. Autorizado, ou não, o contingente feminino ia atravessando os mares, e aumentou, enormemente, desde o início do século XX, com a navegação a vapor, e o embaratecimento do transporte marítimo. O inesperado êxodo feminino desperta a unânime condenação de académicos e de decisores políticos. Emygdio da Silva falava de “tremenda constatação” e Affonso Costa de “depreciação do fenómeno migratório”. Emigração, era, para eles, sinónimo de emigração de homens jovens, que partiam para trabalhar duramente, enviar vultosas remessas para sustento das famílias e regressar, por fim, já velhos e cansados. Com as preciosas divisas dessa servidão o Estado equilibrava as contas externas e combatia a fome e a miséria do mundo rural. A presença da mulher revelava-se disruptiva, porque transformava o projeto migratório, no sentido de uma melhor integração e do provável não retorno, temido como autêntica “desnacionalização”. A estas contas escapava, porém, um ganho insuspeitado: a emergência de comunidades portuguesas de língua, cultura e afeto, que são indissociáveis de uma forte componente feminina. Componente que se consolidou, na década de setenta. Com a crise económica mundial, as fronteiras fecharam-se, repentinamente, aos trabalhadores ativos, mas permaneceram abertas, por razões humanitárias , para fins de reunificação familiar. De um ponto de vista estatístico, o equilíbrio de sexos parece, desde então, definitivamente adquirido nas nossas comunidades europeias e transoceânicas. II - Com a Revolução do 25 de Abril e a liberdade de emigrar, rompeu-se de vez com a tradição de controlo arbitrário dos fluxos migratórios, que atravessara todos os regimes (monarquia, República e Ditadura). A Constituição de 1976 proclama os direitos de cidadania dos expatriados e a plena igualdade entre mulheres e homens e vai, além da proclamação formal, no art.º 9º, (após a revisão de 1989 reforçado pelo disposto no art.º 109º), impondo ao Estado a tarefa fundamental de promover a igualdade entre homens e mulheres no que respeita à participação cívica e política. Nada na letra ou no espírito da lei permite, por interpretação restritiva, limitar a incumbência do Estado ao território nacional. Contudo, foi ao território que os Governos circunscreveram a sua ação, nomeadamente através da criação da Comissão para a Igualdade (com esse ou outro título). As mulheres das comunidades do estrangeiro ficaram esquecidas. Na verdade, nem a Comissão para a Igualdade foi mandatada para intervir no estrangeiro, nem a Secretária de Estado da Emigração curou da sua situação específica, apesar das emigrantes serem consideradas mais vulneráveis, e, quando acediam ao mercado de trabalho, duplamente discriminadas, como mulheres e como estrangeiras. Entregues a si próprias, as mulheres escreveram uma história muito diferente. Os primeiros estudos sobre as famílias portuguesas, levados a cabo na região de Paris, nos anos noventa, por Engrácia Leandro, constituíram uma revelação. As emigrantes da geração do “salto”, vindas, maioritariamente de pequenas aldeias pobres e atrasadas, de uma agricultura de subsistência, para grandes urbes modernas, haviam ganho aí a sua autonomia pelo trabalho remunerado e assumido inesperada preponderância dentro da família, com a redefinição dos papéis tradicionais, vivendo, com à vontade os usos e costumes mais igualitários de sociedades avançadas, onde, contra todos os prognósticos, se integraram, quase sempre, mais depressa e melhor do que os homens. A emigração europeia e transoceânica foi para muitas das nossas concidadãs, uma via de emancipação. Era, sobretudo, no “mundo português”, assente numa dinâmica associativa, inspirada nos paradigmas institucionais da aldeia revivida, que (elas) se viam acantonadas pela força de tabus ancestrais. A sua influência podia ser significativa, mas não era para ser vista e recompensada. Naquelas “casas coletivas” a divisão de trabalho masculino e feminino era a perfeita réplica de um lar antigo da terra natal. 3 - Neste contexto, o VI Governo Constitucional, em 1980, veio reconhecer a importância do fenómeno associativo na autoconstrução das comunidades portuguesas, e elegeu-o associativismo como principal parceiro de diálogo e coparticipação nas políticas públicas, incluindo as questões de género. Com essa finalidade, foi criado pelo DL nº 372/80 de 12 de setembro, o Conselho das Comunidades Portuguesas, fórum representativo dos portugueses do estrangeiro e órgão de consulta governamental. Com seis anos de atraso, o espírito da revolução de 1974 chegava à Diáspora. Todavia, no tocante à mobilização das emigrantes para a intervenção na “res publica”, a 1ª reunião mundial do CCP, em 1981, foi dececionante.Não havia, entre os eleitos, uma única mulher! O grau zero de representação feminina espelhava, sem dúvida, a situação real de desequilíbrio de poder na vida das comunidades do estrangeiro. O que fazer, num tempo português em que era impensável a imposição do sistema de quotas, em que a proporção de mulheres na AR era diminuta, nas autarquias insignificante e nos Governos, a nível ministerial, inexistente, com a exceção de Maria de Lurdes Pintasilgo? No imediato, nada de radical... Nas segundas eleições, em 1983, apenas duas mulheres acederam ao Conselho, ambas jornalistas, Maria Alice Ribeiro, de Toronto, e Custódia Domingues, de Paris. Em outubro de 1984, na Reunião do Conselho Regional da América do Norte, em Connecticut, a a Conselheira Maria Alice Ribeiro fez aprovar uma recomendação de convocatória do primeiro encontro mundial de mulheres da Diáspora e, com isso, abriu um capítulo novo neste campo de intervenção, convertendo o mais improvável dos países, pelo registo misógino de políticas multisseculares, em pioneiro no que respeita ao empoderamento de mulheres emigrantes, antecipando em dez anos as decisões da Conferência de Pequim, como afirma Maria do Céu Cunha Rego. Com o 1º Encontro de Mulheres Portuguesas no Associativismo e no Jornalismo, realizado em junho de 1985, na cidade de Viana do Castelo, se dá verdadeiramente, início às políticas públicas para a igualdade no espaço extraterritorial. O Encontro foi um outro e melhor Conselho das Comunidades, e, pelo nível de análise e aprofundamento das questões, demonstrou quanto a falta de uma metade feminina diminuía o CCP. A solução achada, em 1987, pela SEE, perante a persistente sub-representação feminina neste Órgão, foi a criação de uma “Conferência para a Promoção e Participação das Mulheres Portuguesas do Estrangeiro", a funcionar, anualmente, na sua órbita (a par de outras Conferências – Juventude, Ensino, Questões Económicas). Nenhuma das Conferências chegou a ser convocada. No verão desse ano, caiu o Executivo minoritário do PSD e o novo Governo, por sinal maioritário e do mesmo partido, mudou radicalmente de orientação, extinguindo o Conselho e, com ele, as iniciativas de promoção da igualdade. Seguiu-se um longo impasse de quase duas décadas. Em 2005, no 20º aniversário do Encontro de Viana, a “Mulher Migrante, Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade” propôs ao Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas a comemoração da efeméride, chamando as mulheres da Diáspora a uma maior intervenção pública. A imediata adesão do Secretário de Estado António Braga à proposta desta ONG , que se considera herdeira do espírito do mítico congresso de Viana, permitiu evoluir para um novo modelo de desenvolvimento das políticas públicas neste setor, caraterizado por uma estreita cooperação entre Estado e sociedade civil, que se revelaria duradoura, resistindo a alternâncias de governos, coisa, infelizmente, incomum em Portugal . Entre 2005 e 2009 foram realizados, em diversas regiões do mundo, os “Encontros para a Cidadania – a igualdade entre Homens e Mulheres”, sob a presidência memorável de Maria Barroso. No 1º desses congressos, em Buenos Aires, António Braga falava do “desígnio de retomar da questão de género, que tem andado esquecida ao longo dos anos”, e admitia que "Portugal não tem tratado do papel da mulher nas comunidades de acolhimento à luz dos seus direitos de participação cívica, cultural e política". No mesmo sentido, em Toronto, em 2007, Jorge Lacão, reconheceu que a obrigação do Estado “de promoção da igualdade se não pode limitar à ação junto das portuguesas e dos portugueses residentes no território”, e sublinhou, citando o Programa do XVII Governo Constitucional “a importância das políticas da igualdade não só para as próprias mulheres, mas para as comunidades e para a estratégia de aproximação destas com o país”. Visão fundamentalmente semelhante norteou a ação do Secretário de Estado José Cesário. O seu mandato, de 2011 a 2015, pode considerar-se o período áureo do “congressismo” para a Igualdade, com dois Encontros Mundiais, (em 2011, no Fórum da Maia, em 2013, e em Lisboa, no Palácio das Necessidade), completados por cerca de uma trintena de sucessivos colóquios e debates, em diversos países e regiões, com parcerias locais, envolvendo o meio associativo e o meio científico, a vertente académica e a militância ativa, numa triangulação com o poder político. 40 anos depois do regresso à democracia, também José Cesário lamentava a persistência nas comunidades do estrangeiro de um “grande défice de participação política” e afirmava: “o papel da Mulher é absolutamente decisivo para a mudança”. De 2015 a 2019, com José Luís Carneiro, as políticas de género são prosseguidas, sem hiatos, não através de uma sequência de grandes congressos e colóquios (inviabilizados por condicionantes de ordem financeira e burocrática, decorrentes de novo modo de funcionamento da DGACCP), mas mantendo a temática no topo da agenda de todos os seus encontros nas comunidades e enveredando por novas meios de cooperação com os mesmo parceiros, a AMM, as ONG’s das comunidades, e, sobretudo, com o CCP. Pela primeira vez, na Reunião Mundial do Conselho, onde as mulheres se mantinham (e se mantêm…) sub-representadas, houve uma sessão dedicada às questões de género, um aprofundado debate com os Conselheiros, no qual fui convidada pelo Secretário de Estado para intervir, enquanto sua antecessora e dirigente da AMM, juntamente com a Secretária de Estado da Igualdade. A partir de 2020, a coincidir com a pandemia, constatamos uma súbita interrupção deste percurso consistente, que, tanto quanto sabemos, ainda não foi retomado. É a hora de lembrar ao Governo o seu dever constitucional de agir, escolhendo os métodos, os meios e as parcerias que julgue adequados. A opção pelo “congressismo”, que assinalou, fulgurantemente, a década de 2005/2015, parece hoje menos viável, por implicar um considerável investimento governamental. Será retomada a aposta no papel do Conselho das Comunidades, que considero ter sido a alternativa estratégica de José Luís Carneiro, na senda original dos Governos da década de oitenta? É a interrogação que aqui deixo. A resposta poderá ser dada a muito breve prazo. 2024, tempo de eleições para o CCP, (que já tardam há anos), poderá tornar-se um ano decisivo, tanto para a instituição, como para o recomeço das políticas públicas nela centradas, na sua dupla veste consultiva e representativa, ou seja, de parceria institucional com o Governo e de porta voz das portuguesas e dos portugueses da Diáspora. Uma efetiva abertura às mulheres é condição, cada vez mais evidente, da credibilidade democrática do Conselho. Porque não pedir às Mulheres que avancem, que se envolvam no processo eleitoral, encabeçando listas de candidatura. Em suma, que modernizem o CCP pela sua presença paritária.

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