quarta-feira, 8 de novembro de 2023

NATÁLIA ETERNAMENTE NATÁLIA Neste ano do centenário de Natália Correia, não lhe faltam merecidas homenagens, desde as ilhas açorianas onde nasceu e do retângulo continental, onde morou quase a vida toda, até à Diáspora, a que pertence pela Cultura. A Cultura de que essencialmente se tecem os laços com Pátria - ou Mátria, como ela própria preferia dizer. Mulher de Letras foi, no mesmo tempo e movida pelo mesmo ímpeto, Mulher- Cidadã, agente de futuro pelo pensamento e pela ação, na esfera pública e privada. Na verdade, tão fascinante é a sua obra como a sua vida, a personagem, com a deslumbrante beleza da juventude, os quatro casamentos, as paixões, e uma invariável irreverência e genialidade em todas as idades! A RTP retratou-a numa excelente série, em que a vemos interagir com amigas (Vera Lagoa e Snu Abecassis), também elas notáveis mulheres, todas, em vésperas da Revolução de 1974, na vanguarda luta contra a tacanhez anacrónica de uma ditadura. Mais recentemente, a RTP traçou, em nova minissérie, com alto nível de rigor e qualidade humana, o seu perfil, a partir de múltiplos testemunhos - uma história feita de estórias. E, a marcar o início deste ciclo comemorativo de 2023, foi dada à estampa uma extensa, muito bem documentada e bem escrita, biografia de Natália, da autoria de Filipa Martins, com um título saído a pena da própria biografada: “O dever de deslumbrar”. É uma publicação ambiciosa, que, com as limitações que a interpretação subjetiva de factos e idiossincrasias sempre comporta, nos desvenda Natália, a mulher arrebatada, a temida polemista, a literata (poetisa, contista, dramaturga, ensaísta), a jornalista, a convivial animadora de tertúlias e debates, a política, a deputada… Apesar de reconhecer a valia e qualidade de “O dever de deslumbrar”, doravante, título de referência obrigatória no estudo da glamorosa, multifacetada personagem que a Autora, na sinopse, descreve como “Mulher deslumbrante e carismática, equiparada às maiores pensadoras europeias e às estrelas de Hollywood”, apesar de me rever, plenamente, nessa síntese feliz, guardo distância em relação a algumas das suas inferências ou conclusões. A Natália que recordo é mais a de Fernando Dacosta no seu “Botequim da Liberdade”, um despretensioso e esplêndido livro, regido por outro desígnio, quase caderno de memórias intimista e espontâneo, contudo, que ganhar em sensibilidade, em graça, e, antes de mais, no afeto, que ela tão facilmente despertava nos que lhe eram próximos. E não serão eles os seus melhores juízes? … Eu conheci Natália, quando ambas estávamos envolvidas no projeto político de Sá Carneiro, eu no Governo, como Secretária de Estado da Emigração e Comunidades Portuguesas, ela no Parlamento, como Deputada, onde cumpria, exuberantemente, o seu "dever de deslumbrar" e estava destinada a ser uma das duas únicas deputadas que têm busto de mármore no Palácio de São Bento. Lindo, esculpido por Cutileiro! A Assembleia da República conserva, nas páginas do Diário das Sessões, a magia da sua palavra, porventura a mais fulgurante, e, não raro, a mais agreste que algum dia se ouviu no hemiciclo (e, talvez lhe conceda, num futuro não muito distante, o privilégio de editar as suas intervenções dispersas em coletânea - até hoje, praticamente, exclusivo masculino…). O meu primeiro encontro com ela aconteceu nos "Passos Perdidos". Conversámos apenas sobre leis - sobre uma em particular, já nem sei qual, que passara pelo meu gabinete, e que ela defenderia, em sede parlamentar, no dia seguinte. Combinámos que, para análise de todos os detalhes, lhe enviaria a casa um distinto jurista. De lá voltou o perito mais impressionado do que se tivesse privado com figuras históricas, como Catarina da Rússia, ou a Marquesa de Alorna! Ainda por cima, Natália elogiara aquele modo de colaboração - que deveria ser a regra, mas não era - entre o Executivo e a bancada parlamentar. Talvez tenha visto nisso uma das diferenças que podem fazer as mulheres na república dos homens… Reencontramo-nos, algumas vezes, no Botequim, que, não sendo eu notívaga, frequentava com pouca assiduidade, e, depois, no quotidiano, entre 81 e 83, na bancada da AD, a aliança partidária, que, desaparecido Sá Carneiro, entrara já no seu ocaso. Como é lidar com o mito no quotidiano? É inevitável a sua "normalização"? No caso dela, não, de modo algum! Tinha as qualidades que "humanizavam" a sua grandeza, sem a diminuírem. No convívio, era amável, solidária, incrivelmente divertida e sempre formidável, sem intimidar. Antes da minha primeira intervenção formal, nervosíssima, não ousando improvisar, escrevi umas linhas, que submeti ao seu parecer crítico. “Claro que está bem – a menina sabe que está bem”! Eu não tinha assim tanto a certeza, e aquele "nihil obstat" levou-me a subir à tribuna com alma nova! Na verdade, gostava imenso que ela me chamasse “a menina”, embora isso só acontecesse em forma de branda e simpática reprimenda ou discordância… Porém, como opositora, num frente a frente, siderava qualquer um, sem exceção, com secos e contundentes argumentos ou com tiradas ribombantes, não menos contundentes - ordália a que os amigos não tinham de se submeter… A sua tirada mais mediática foi a que incendiou o debate sobre o aborto - a resposta, em verso, a um deputado do CDS, de apelido Morgado, que se atrevera a legitimar o sexo exclusivamente para a reprodução da espécie. A diatribe poética ficou conhecida como o "truca-truca do Morgado”, pacato homem casado e procriador de uma prole de apenas dois descendentes. Tive a sorte de assistir à cena muito perto da Oradora... Depois de fazer parte de dois governos sucessivos, regressei, em 1987, ao Palácio de São Bento e às conversas com Natália, então já no PRD. Nada que nos afastasse - afinal, partilhava o seu gosto pelo distanciamento dos aparelhos partidários e até a sua admiração pelo General Ramalho Eanes. Em agosto de 1987, eu acabava de me tornar a primeira mulher eleita vice-presidente da Assembleia. Ao fim de poucos dias, aconteceu a inevitabilidade de ser chamada a dirigir a sessão – por acaso, sem pompa nem anúncio, a meio de um discurso de Basílio Horta, apenas para o Presidente Crespo fumar um cigarro nos bastidores. Tanto melhor para mim, que queria passar despercebida... Mas eis que Natália se levanta em aplausos, logo seguida por Helena Roseta e pelos demais deputados e, finalmente, por Basílio, que continuara a intervenção, muito perplexo, sem saber por que motivo a Câmara inteira aplaudia de pé. Foi uma estreia, a abertura de um precedente, um minuto feminista para a história parlamentar! Não menos feminista foi outro momento, que, igualmente, se lhe ficou a dever: a original ideia de homenagear as pioneiras do movimento sufragista português, no "Dia Internacional da Mulher", a 8 de março de 1988. E, assim, oitenta anos depois da criação da Liga da Mulheres Republicanas, elas gozaram, enfim, do direito de serem ouvidas, ali, na casa da democracia, em longas citações dos seus discursos, através da voz de deputadas da geração das suas netas. Em 1991, o Partido Renovador perdeu representação parlamentar e, com isso, a Assembleia da República perdeu Natália, a Mulher que acordava a Câmara da hibernação na mediocridade em que estava caída. A Mulher capaz de transformar, por exemplo, um simples jantar de portistas em S. Bento em tertúlia erudita, discorrendo brilhantemente sobre desporto, deuses e mitos, para concluir que a serpente símbolo da antiga Lusitânia e os dragões da "cidade invicta" pertenciam a uma mesma matriz. Nesses tempos, quantas vezes, da terceira fila do hemiciclo, onde habitualmente me sentava, e Natália também, olhei em redor, pensando: "Daqui a cem anos estamos todos mortos - todos, menos a Natália". Lembro-me de lho ter dito uma vez, perante o seu silêncio complacente e o esboço de um sorriso. A profeta de futuros longínquos era ela, eu apenas ousava uma incursão em terreno proibido ao comum dos mortais. "Begginer's luck", sorte de principiante: a minha profecia vai a caminho de se cumprir!

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