sábado, 24 de fevereiro de 2024

BALBINA - O LUGAR DAS MULHERES NAS ARTES

A PINTURA DE BALBINA MENDES – O LUGAR DAS MULHERES NAS ARTES Balbina Mendes ocupa um lugar de primeiro plano na Arte pictórica em Portugal, através de um trajetória feita de originalidade e de inovação, numa constante travessia de fronteiras artísticas - sempre em movimento, numa viagem de procura sem fim, pelo gosto de lançar a si própria desafios, um depois de outro, através da experimentação de ideias, de temáticas, de técnicas, de materiais, com a ousadia de sempre, a segurança dada pela maturidade, e a invariável insatisfação, essência de uma obra em que o talento inato se expressa, reinventando-se. Um percurso raro nos vários ângulos em que o podemos considerar, desde logo porque começou numa pintura de matriz etnológica, que recuperava arquétipos primordiais emergindo, revistos e recriados em toda a sua magia, em telas de grande dimensão e impacto. A Natureza, as vivências, os costumes da sua terra são, assim, transpostos, num universo de interlocução que foi crescendo, à medida que a própria Balbina ganhou notoriedade e reconhecimento, em exposições individuais nas mais prestigiadas Galerias. As suas espantosas “Máscaras Rituais do Douro e de Trás-os-Montes “ fizeram história, simultaneamente a do lugar da sua infância, a das suas gentes e tradições, perdidas e achadas no tempo, e a dela própria, inconfundível intérprete e narradora de memórias e rituais identitários. Não menos importante é sublinhar a sua capacidade de se impor em grande mostras individuais, o que é, por ora, entre nós, coisa que só está ao alcance de um escol de mulheres pintoras. Embora a perceção comum não o reconheça mantém-se, ao nível de mega exposições com um só nome no cartaz, um largo predomínio masculino, enquanto nas coletivas, ou nas que são exibidas, mais modestamente, em pequenos redutos, elas ultrapassam já os homens, num avançar gradual, como se estivessem, ainda, em difícil transição do espaço privado para o público… É um exemplo que poderemos extrapolar, em muitas outras áreas, a nível nacional e internacional, constatação eficazmente determinante na criação do movimento pela Arte no Feminino, que, no último quartel do século XX, teve uma das suas líderes mais insignes e arrojadas em Paula Rego, símbolo máximo da nossa pintura, cujo recente passamento foi ocasião de a enaltecer e entronizar no panteão dos imortais. Nas suas próprias palavras: "As minhas pinturas são pinturas feitas por uma artista mulher. As histórias que eu conto são histórias que as mulheres contam. O que é isso de uma arte sem género? Uma arte neutra?". [...] "Há histórias à espera de serem contadas, e que nunca o foram antes. Têm a ver com aquilo em que jamais se tocou-as experiências de mulheres". Uma tomada de consciência e um discurso com que a vanguarda feminista dessa época incorporou o plano da expressão artística na globalidade da sua luta - discurso que, diga-se, neste como em qualquer outro campo, é tudo menos pacífico. Mais consensual será, certamente, a exortação de Gisele Breitling em favor de "uma nova e verdadeira universalidade em que o feminino assuma o seu lugar de direito e o masculino as suas verdadeiras proporções". Guardo-me, aqui, de entrar na complexa questão do modo como o "género" se exprime, (com caraterísticas próprias ou comuns e indistintas), ficando-me pelo que não pode ser contestado: o masculino avulta, desde tempos imemoriais e permanece como autêntico "padrão", enquanto o feminino é visto como "alteridade". Por outro lado, o sucesso das "mulheres-exceção" não deve deixar no esquecimento a persistente desigualdade de uma maioria, que as estatísticas, na fria linguagem dos números, denunciam. Como escrevia Armando Bouçon, no catálogo da 1ª Exposição de “Mulheres d’ Artes”: "Uma análise correta de toda a história da Arte dá-nos uma perceção muito transparente de como o campo das artes plásticas foi ocupado durante muitos séculos pelo género masculino". Foi. E, se atentarmos nas diferenças de visibilidade, segundo o sexo, continuará a ser, ao menos na medida de uma persistente desproporção. É um desequilíbrio que pode debelar-se de muitas e diversas maneiras… No panorama português, Balbina Mendes tem, a meu ver, contribuído, poderosamente, para que as mulheres acedam, na vida cultural do país, ao seu "lugar de direito". Fá- lo, ocupando, simplesmente, esse lugar, com força anímica e qualidade de sobra, sem em nada se julgar discriminada, sem se sentir diferente, isto é, do lado de lá de uma linha de separação... É um caso a seguir, no campo das exceções, que, na minha ótica, tão devagar se vai alargando. Balbina faz parte das mulheres que, à partida, se sentem consideradas como iguais, e cuja atitude de despreocupação com disparidades de género, contém, implícita, a intransigente exigência de tratamento igualitário! À margem de manifestos reivindicativos, alcançaram, por si, as metas que o movimento se propôs e propõe, e, assim, afinal, o reforçam. E será que a proclamação da especificidade de género, pode, no limite, paradoxalmente, dar azo à persistência de formas larvadas de discriminação?. É uma dúvida pertinente. A "arte com género" de que fala Paula Rego, pode, ou não, abaixo do patamar do génio universal a que ela subiu, transformar-se , de facto, não em sinal vanguardista de contracultura, mas em âncora de estereótipos de género, conotando o feminino com características convencionais que são, em sociedades ancestralmente misóginas, uma menos valia? O ponto de interrogação vale para qualquer setor... Recordo o crítico literário João Gaspar Simões, que, ao elogiar a força imanente da prosa de Maria Archer, o realismo puro e duro com que ela aborda temáticas ousadas, a qualificava não como uma grande escritora, mas como "um grande escritor" ... E não é verdade que a poetisas consagradas, como Sophia de Mello Breyner, ou Ana Luísa Amaral, preferimos chamar poetas? Ambíguo cumprimento, a que subjaz a conceção da masculinidade intrínseca do cânone... Certo é que, para esta escola de pensamento, Balbina é uma das grandes pintoras que merece, por inteiro o cumprimento, ainda que, pessoalmente, se não queira rever na categoria de "grande pintor". A sua arte não procura rivalizar com quem quer que seja, nem obedece a ditames ou limitações de qualquer espécie, segue numa trajetória ascensional de inovação da estética e policromia, do ensaio de técnicas, da fusão de materiais...É genuína e livremente Ela, transmutando para a pintura a experiência ganha nos muitos espaços geográficos e culturais que a sua vivência atravessa e o seu olhar penetra. É única e inconfundível. Se me é permitida uma outra adjetivação, direi: carismática! Uma palavra que tão perfeitamente se ajusta a Autora como à globalidade da sua obra. Balbina é uma admirável contadora de histórias de vários tempos, do tempo presente a tornar-se passado, ou do passado em dinâmicas e impulsos que o trouxeram até nós, num rasto longo de evocações de festividade populares, rituais, crenças, valores revividos e reconfigurados em toda a sua magia e em todo o seu mistério. No percurso imparável de Balbina, para mim, no princípio era o rio... porque a conheci na exposição em que nos oferecia uma verdadeira crónica pictural do Douro, deslizando entre margens, da nascente até à foz, incorporado na beleza encantatória de paisagens, onde as gentes apenas se pressentiam, sem se verem... . Reencontrei-a, depois, em outro e surpreendente ciclo temático, na exposição das Máscaras Rituais do Douro e Trás os Montes, em que os homens se faziam presentes, mas ainda sem se verem... Era o início de um tropo narrativo em torno da máscara, incursão às raízes ancestrais, entrelaçamento telúrico de emoções e saberes, recriados nos traços dos seus pincéis, em explosões de cor... Não resistindo a voltar a uma perspetiva feminista sobre o ineditismo das suas escolhas -perspetiva que, não sendo certemente a de Balbina, me permito ousar - noto a esplêndida audácia com que se apodera, para a eternizar em arte, da tradição masculina da máscara, símbolo, por excelência, da superioridade e camaradagem de sexo, da festa e do cerimonial rigorosamente interditos à mulher... É um prenúncio, um sinal da força subversiva e libertária da sua aventura artística. Logo depois, vai ultrapassar uma última barreira, no momento em que a fragmentação ou transparência das máscaras põe a descoberto... rostos femininos! Uma definitiva ruptura com o interdito. Transgressão, que Paula Rego, sem dúvida, saudaria com “o gozo pela inversão e pelo desalojar da ordem estabelecida". Por isso, Balbina Mendes poderia estar, se quisesse, entre as referências do movimento emancipatório de contracultura feminina nas Artes, na senda da emblemática Paula sobre quem Ana Gabriela Macedo afirma: [...] ela questiona continuamente os chamados "corolários naturais" da diferença de sexos, bem assim como a suposta "ordem natural das coisas", que se traduz na passividade, dependência e submissão, desmistificando o discurso estético e desmascarando o seu papel eminentemente ideológico e as relações do poder, que aí se encontram camufladas [...]. Na sua mais recente exposição, intitulada "Segunda pele", o engenho narrativo de Balbina não nos revela, antes adensa o segredo dos jogos entre as faces desocultada e as suas máscaras, mas revela-a, definitivamente, como assombrosa retratista, do rosto, das suas metamorfoses, do tangível e do intangível. Confirma o seu incessante questionamento sobre o ser, as suas mutações e aparências. É, agora, na Literatura que busca inspiração, glosando, em enigmáticas efígies, motes Pessoanos. As respostas que encontra na tela são sempre fonte de sucessivas interrogações, de demandas inspiradas na heteronímia do Poeta, ou até, talvez, simplesmente na duplicidade do “eu” de cada um de nós . Como dizia Maria Anderson; "Qualquer pessoa ficciona a sua própria identidade, Não nos ficcionamos sempre da mesma maneira. Vamos mudando o guião". Ou, secundando Maria Velho da Costa, nos poderemos interpelar: "Quem sou? Talvez seja quem vou sendo..." A pessoa. A persona… Para onde vai, Balbina Mendes? Para onde nos levará , no ímpeto de romper limites, a grande cultora de saberes arcanos e enigmas do espírito, em diálogo introspectivo com as Artes, com a Vida, connosco, nas suas cada vez mais fascinantes mensagens visuais? Maria Manuela Aguiar Espinho, junho de 2022

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