Recordar tempos idos... Falar do presente, também. E até, de quando em vez, arriscar vatícínios. Em vários domínios e não só no da política...
sexta-feira, 28 de novembro de 2025
O FEMINISMO NATURAL DE MARIA BARROSO
A vida de Maria Barroso foi uma longa e admirável caminhada cívica em que puro idealismo e sensibilidade ao sofrimento e às injustiças moldaram a humanista, e a determinação, o espírito prático, a competência fizeram a excecional mulher de ação em muitos e variados domínios. Foi atriz, pedagoga, diretora de um grande colégio, mulher apaixonada e mãe de família, oposicionista política, e, depois, construtora de uma democracia nascente, Deputada, “primeira dama” da República, primeira mulher presidente da Cruz Vermelha, líder de movimentos e organizações para o defesa dos Direitos Humanos, da paz, do aprofundamento dos laços no mundo lusófono. E foi, também - o que tende a ser mais esquecido... - uma genuína feminista que soube continuar, em novos tempos, a antiga tradição de luta pela liberdade e emancipação da mulher, que recusava a guerra de sexos e toda e qualquer forma de supremacismo de género.
Essa ausência de radicalismo constituiu uma singularidade da primeira vaga do feminismo português, certamente influenciada pelo contexto revolucionário em que emergiu, com homens e mulheres (famílias inteiras!) irmanados nos ideais republicanos. Na geração seguinte, Maria Barroso formou-se num quadro familiar e societal não muito diverso, conviveu desde a infância com a resistência dos seus pais à opressão do salazarismo, numa família solidária e tolerante, e iniciou o seu percurso político, sonhando com uma nova revolução, tal como a de 1910, portadora da esperança numa democracia capaz de erradicar todas os desequilíbrios e desigualdades sociais, inclusive as de género. Em tempo de ditadura, tornava-se praticamente inevitável a diluição do feminismo na resistência antifascista! Maria Barroso usou as armas ao seu alcance, as da cultura. Do palco do teatro fez palco de cidadania, pondo a fama e o talento ao serviço de uma causa, na forma como representava personagens e como declamava a palavra revolucionária dos poetas… O regime perseguiu-a implacavelmente, cortou cerce a sua fulgurante carreira de atriz no Teatro Nacional, interditou-lhe o exercício da profissão no ensino, vigiou os seus passos, mas nunca calou a sua voz. Sem transigência nem vacilação, a jovem Maria de Jesus enfrentou os interrogatórios da polícia política, a prisão do marido, como, antes, sofrera a de seu pai.
Após a Revolução de 1974 vimo-la envolvida na edificação da nova arquitetura democrática, em debates, em manifestações, no parlamento, como Deputada, no ensino, como pedagoga... Uma ativa participante na vida cultural e política do país, uma figura pública de referência, universalmente respeitada. E não perderia nunca a individualidade, ao acompanhar o marido, Mário Soares, nas suas funções de Primeiro-Ministro e de Presidente da República, onde se revelou, uma mais valia, uma perfeita diplomata, um ícone de elegância e distinção. Sobre essa missão, em que, afinal, mais arriscava a subalternização, face ao estatuto do marido, disse simplesmente: "Ganhei um novo espaço para me reinventar". E ganhou, sem dúvida, mais mundo, mais experiências, mais contactos de proximidade com tanta gente, dos poderosos, que governam Estados, aos marginalizados, que estão no centro de tantas das suas inúmeras declarações públicas - as crianças, as vítimas de guerras e violência, os timorenses, os refugiados, os imigrantes, as mulheres….
Sim, as mulheres e a sua situação na “res publica”, no regime democrático renascido em 1974! A igualdade jurídica fora rapidamente consagrada na Constituição e nas leis, mas, duas décadas depois da Revolução, tardavam as mudanças no mundo político e social, e esse impasse acordou o feminismo intrínseco de Maria Barroso. Ela própria o revelou numa entrevista dada por essa altura: “Não sou feminista à outrance, sou-o apenas por ter consciência das desigualdades que subsistem, na prática, entre homens e mulheres”.
Na sua visão das coisas, a igualdade é inerente à condição humana, já que "a humanidade está dividida em duas partes, uma masculina, outra feminina, com dons e virtualidades semelhantes". A “humanidade é uma família” proclamava, inspirada certamente no paradigma da sua própria família. Foi a resistência das estruturas (sobretudo das máquinas partidárias e das corporações económicas), assim como das mentalidades, à consecução da “paridade natural”, que a levou a agir, a denunciar a imperfeição da nossa democracia, por manter, no século XXI, “o modelo masculino do poder” e a reconhecer a importância do sistema de quotas para acelerar o processo de “empoderamento” das mulheres.
Ao "verdadeiro feminismo" de Ana de Castro Osório, (um “humanismo integral”, abrangente de ambos os sexos), ao “feminismo prático” de Carolina Beatriz Ângelo, ao “feminismo tácito” de Maria Lamas considero de toda a justiça equiparar o "feminismo natural" de Maria Barroso.
Foi, por sinal, nos caminhos do feminismo que nos encontramos, há quase meio século, numa sintonia espontânea, apesar de virmos de direções opostas, eu do feminismo “à outrance”, Maria Barroso da constatação de inesperadas resistências à igualdade de género. O seu envolvimento neste domínio foi convicto, profundo, e incessante. Entre 2005 e 2009, com mais de oitenta anos, aceitou “correr mundo”, presidir a múltiplos “Encontros para a cidadania”, ser o rosto de uma grande e eficaz campanha de chamamento das mulheres à participação na vida das nossas comunidades da Diáspora.
Ao comemorar o centenário de Maria Barroso, é assim que prefiro lembrá-la, com a sua mensagem fraterna, feminista, humanista.
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