segunda-feira, 20 de abril de 2015

HISTÓRIAS DA PRAÇA DE LONDRES

1  -  Praça de Londres - local de trabalho

A Praça de Londres é a minha Lisboa favorita desde que, em janeiro de 1967, tive de deixar o Porto e de ir trabalhar para a capital (que era, ainda, a capital do império, embora de um império a caminho do fim).
Não posso dizer que a Praça mudou a minha vida, mas sim que a minha vida mudou nessa Praça - e por mais de uma vez. Foi o cenário onde me aconteceram coisas surpreendentes e determinantes de um futuro nada planeado, antes aceite pela incapacidade de dizer não ou pela curiosidade de dizer sim ao que se me ia oferecendo, em cada novo dia. Mudança, movimento...
A Praça  foi o cenário do meu primeiro emprego num centro de estudos jurídicos (do Ministério das Corporações e Previdência Social), e, uma década depois, de uma acidental entrada num governo da República. Governo atípico, de independentes, de iniciativa do presidente Ramalho Eanes (o IV Governo Constitucional). Ou seja, do meu tirocínio na política, como Secretária de Estado do Trabalho do Executivo de Mota Pinto - a última coisa que podia antever. Mas o Prof Mota Pinto era alguém com quem valia a pena trabalhar. Homem inteligentíssimo, um professor de Coimbra, que todos os alunos admiravam, como jurista e como pessoa. Mais inteligente, mais sério e mais generoso, não é possível ser. E quem assim pensa do Primeiro Ministro, num tempo tão conturbado como aquele, sendo chamada, por mais estranhável que seja a chamada, não vai recusar.
Gostei de ambas as experiências - da profissional, que durou 7 anos felizes, e da política, nos seus efémeros e intensos 9 meses.
E gostava do fim do dia, de sair para a Praça, atravessar a Avenida de Roma e ir tomar um café ao Londres, ou, mais adiante, à Mexicana (tudo nomes cosmopolitas...). Como era simpático o seu pequeno jardim, a vista das largas vidraças dos meus gabinetes (o de assistente do Centro no 1º andar, o de governante no 16º), a assimetria das ruas que aí acabam ou começam - nenhuma delas particularmente fadada pela originalidade ou monumentalidade arquitetónica, mas tranquilas e discretas, como a média burguesia que as habitava! Tinham sido as "avenidas novas", nma época, politicamente infausta, mas  convivial nas relações de vizinhança. De espectacular, nessa Praça, apenas o prédio sede das minhas funções, o "arranha - céus" do Ministério das Corporações (no ancien régime) ou Ministério do Trabalho (em democracia). Obra do Arquiteto Sérgio Botelho Andrade Gomes, que vim a conhecer muitos anos depois. Um artista e um encanto, como pessoa! O edifício, sóbrio e elegante, por algum tempo o mais alto de Lisboa, concebido de raíz para hotel de luxo, acabou reconvertido para serviço da República, Funcionários e não turistas estavam destinados a usufruir. dos seus grandes e luminosos espaços. Ladeavam-no, de um lado, a Igreja branca, (que é o melhor que se pode dizer em seu favor), do outro lado, cafés, lojas, que subiam de nível e de preço na Avenida Guerra Junqueiro. Ali perto, havia cinemas, o tradicional Roma, e outros que foram surgindo e prosperando, com audiências fieis, que eu sempre contribui para aumentar.
Naquele "arranha.céus" vivi uma infinidadde de dias e acontecimentos agradáveis dos meus anoss de assistente, mas, não sei porquê, do dia inicial recordo apenas a simpatia do Diretor do Centro de Estudos, o seu gabinete enorme, e uma visita á Biblioteca, guiada pela responsável máxima, muito bem vestida de roxo (que, como pude constatar, usava todos os dias, embora. às vezes, em imaginativas combinações com outras cores fortes e contrastantes). Deve ter corrido tudo, como dizem os brasileiros, "bem demais", com os gestos e palavras certos e, por isso, sem história...
O contrário posso dizer do me primeiro dia de governo... Fui para a Praça de londres, logo depois da tomada de posse, de boleia no carro dos meus amigos do SPJ, onde era, então, assessora do Provedor...O que me ficou gravado, indelevelmente, na memória não foi todavia a primeira reunião de trabalho, foi a saída, não da reunião, mas da porta de entrada do edifício. Nesse exato lugar, à vista do café Londres, me esperava o carro, o inevitável carro oficial. Não faço a menor ideia da marca do carro, nem do modelo, nem da cor...Só me lembro mesmo do motorista, pequeno de estatura, cara redonda e muito corada, o mais cerimonioso que imaginar se possa. Mantinha aberta a porta traseira e mal entrei, sentou-se ao volante e perguntou-me: "Como é que Vossa Excelência deseja ser chamada? Senhor Secretário de Estado ou Senhora Doutora?.
Abismada, respondi, sem hesitação: "Senhora Doutora, se faz favor!"
A nossa memória é assim, seletiva, com critérios que não são os nossos. O imprevisto de uma pergunta deixou marca mais funda do que todas as questões tão relevantes que preencheram a tarde.

2- Os porquês de um convite para o Governo da República

De uns, sei. De outros não, avento suposições, ou nem isso...
Mas, quando me questionam sobre as razões porque me envolvi na política - uma daquelas questões tão previsíveis e sem graça, que continuam a fazer-me, intermitentemente - tenho dado a mesma resposta, ao longo de algumas décadas. Não resisto a repetir-me. Cito-me textualmente: "Pela razão errada, porque não tinha filiação partidária, não queria fazer política e apenas aceitava participar num governo de independentes do qual, a curto prazo, esperava voltar para a minha rotina profissional".
Não tinha vocação, não tinha jeito, não sentia atração. Não queria comandar hostes, nunca tinha chefiados nada nem ninguém, ao menos desde os tempos de criança ou de estudante do liceu, em que me fartei de mandar em gente da mesma idade e nem sempre do mesmo sexo - em atividades lúdicas, quase sempre à volta de uma bola de futebol.
Mas fascinava-me discutir política, claro - vinha de uma família onde isso fazia parte do convívio e onde as fações eram múltiplas,  mais para a direita do que para a esquerda ( o que na relatividade destas coisas, me fazia esquerdista, ou mesmo muito esquerdista). Era feminista, regionalista, portista... democrata, europeista, social democrata à sueca... Tinha opiniões, quadrante partidário, paixões políticas (quase comparáveis às paixões desportivas, a primeira das quais foi por Yustrich, Monteiro da Costa, Jaburú e outros seus contemporâneos ). Também tinha - fator decisivo - amigos na política do pós 25 de abril, de ideologias várias, incluindo a minha.
Por coincidência, precisamente quando o velho regime caia, acabava eu de tomar posse como assistente da Faculdade de Economia de Coimbra (por "precisamente" quero dizer umas horas antes).
Enquanto Salgueiro Maia preparava a saída de Santarém para Lisboa, estava eu em Coimbra, depois de quase uma década de ausência, e assinava o auto de posse... (E, poucas semanas depois, transferia-me para a minha Faculdade de Direito).
Coimbra foi, pois, o ponto de reencontro com antigos, professores, antigos amigos, que estavam convertidos em novos e influentes protagonistas no processo de democratização "em curso".
Em 1978, já eu estava de volta a Lisboa, a tempo inteiro, mas mantinha contacto com alguns deles.

Ora, nesse ano, um governo de independentes, precisava obviamente de independentes,- mas não de quaisquer uns, de preferência individualidades unidas por sintonia ideológica com o chefe do governo. Foi isso que Mota Pinto conseguiu - tornando mais coesa e dinâmica a sua equipa do que tudo o que se vira antes. Quase todos eram de uma área social democrata, com um ou outro mais à direita ou mais à esquerda, sem destoar demais. Muitos vinham de meios académicos. Houve até um jornalista, já não me lembro qual, que achava que o Governo Mota Pinto mais parecia um Senado universitário. Um bocadinho exagerado, mas il y avait du vrai... (a mim, por exceção, calhou-me em sorte um ministro que vinha direto do Conselho da Administração das cervejas).
Suponho que o Professor se lembrou do meu nome para aquele pelouro, porque era oriunda do ministério, trabalhava há anos naquelas matérias, não tinha filiação partidária, tinha, sim, posicionamento político e reclamava, fervorosamente, mais participação de mulheres na "res publica". Fui, pois, sem dúvida, vítima dessa reivindicação, geral e abstrata, na qual eu pessoalmente não entrava, como voluntária. Vi-me confrontada concretamente com a necessidade de preencher a vaga que reclamava para o género feminino, E dei o passo em frente.

3 Senhora Secretário de Estado?.
Questão de género e questão da gramática.

Foi no gabinete do Dr Cortez Pinto, o diretor do Centro de Estudos, que muito ativamente me envolvi numa primeira polémica sobre os nomes de cargos desde sempre masculinos, quando finalmente se quebrava o monopólio desse sexo no seu exercício. Teresa Lobo acabava de tomar posse de uma Subsecretaria de Estado, precisamente naquele Ministério.
 Mais um símbolo da primavera marcelista.
Só a vi de longe, em raras ocasiões, atravessando o átrio do Ministério, passo rápido, elegante, fato de bom corte, impecável penteado alto e arredondado, como o que que a Drª Manuela Eanes voltou a pôr em moda, depois da revolução. Precedida por contínuos que, diligentemente, chamavam o elevador, seguida por outros servidores públicos que lhe levavam a pasta, os dossiers. A sua passagem provocava sempre interesse e comoção, maiores do que a de colegas masculinos...
Para mim, era um mais um capítulo da história viva do feminismo português, muito embora, suponho, aquela Mulher, que fazia história, não fosse feminista, nem mesmo à maneira da Pintasilgo, então Procuradora ( "Procurador", para a maioria dos meus colegas) à Câmara Corporativa.
Quanto a Teresa Lobo, as nossas opiniões dividiam-se - para o Diretor, para muitod dos assistentes, era a Senhora "Subsecretário de Estado", para mim, não. Impunha-se adequar o título ao sexo feminino, mas, em vão, argumentava com o exemplo daqueles cargos, onde as mulheres ja eram numerosas - notárias, conservadoras dos registos, advogadas... Não convenci ninguém.
Vendo bem as coisas, o meu motorista, no ano de 78, estava, afinal, completamente sintonizado com aqueles ilustres juristas - e, mais e melhor do que eles, resolvia, pelo menos, o problema da consonância gramatical (já que o de género, para eles, nem se punha...).
A revolução democrática mudara muita coisa, mas ainda não o sexismo das denominações ministeriais. Pintasilgo foi, na terminologia oficial, "Ministro dos Assuntos Sociais" e "Primeiro Ministro", sem levantar objeção.
No 8 de março de 2015, numa breve entrevista à televisão, Leonor Beleza contava que tinha sido a primeira mulher a integrar como "Secretária de Estado" (da Segurança Social?) o organigrama de um governo constitucional. Deve ter tido a influêmcia necessária para operar essa pequena grande revolução terminológica.
Se foi em 1983, disso beneficiei diretamente, como Secretária de Estado da Emigração. Mas confesso que não dei pela mudança. À revelia das qualificações oficiais, sempre me auto intitulei no feminino, respeitando a gramática da língua portuguesa.
Dilma, que tinha o poder de se fazer chamar como entendesse, oficialmente, escolheu ser a Presidenta da República Federativa do Brasil. Soa mal, mas é politicamente correto e gramaticalmentetem tem apoiantes. Fui verificar no dicionário da Texto Editora de 1999, e lá está: presidenta, feminino de presidente, mulher que preside...
Aqui no país, nem a Leonor, nem eu nos intitulámos "vice -  presidentas da AR", cargo que ocupamos sucessivamente, ainda no século passado... E nem a atual presidente da AR reclama uma tal feminização da terminologia...
4 - Eu e a minha nova "circunstância"
Na minha vida, mudaram as circunstâncias. E eu? Será as circunstâncias me mudaram?...
Deixarei a pergunta sem resposta - é a coisa mais fácil. Na verdade, não sei a resposta. No que me respeitava, não, evidentemente, no que concernia a história da minha vida. porque essa foi mais construída pelas circunstâncias do que por mim. Ou não? Mais duvidas...
Houve surpresas. Surpreendi.me! Aos outros, não faço ideia. Nunca quis averiguar.
Como dizia Idi Amim Dadá aos seus ministros, num filme.documentário inesquecível, que passou em Lisboa no verão quente de 75, (o único em que me ri mais do que nos melhores "Woody Allen"): "um ministro tem de decidir". Um Secretário de Estado, também, no domínio das delegações de competências ministeriais que nele recaem...
A maior surpresa foi a de verificar que não tinha a mais pequena dificuldade em decidir! Vista a situação à distância de 30 anos, acho que isso me tornava potencialmente mais perigosa. E se nem sempre o potencial de risco se concretizou, deveu-se a boa sorte, com certeza, e a uma extremamente cauta atitude quanto à escolha de colaboradores próximos. O meu "inner circle" era uma muralha de aço, para usar linguagem de época. Ou melhor, em tom menos bélico, um grupo de sábios, que tinha a dobrar toda a sageza e experiência que me faltavam... Aqui fica a receita, para quem quer que se veja em tais trabalhos.
Um velho plítico, que eu considero o expoente da sua geração - a anterior à minha - ensinou-me, um dia, um ditado com uma perfeita adequação às realidades a que se reportava (os políticos que, desde há já alguns governos, temos pela frente): DESCONFIAI DE PAREDES VELHAS E AUTORIDADES NOVAS - CAEM-NOS SEMPRE EM CIMA ....
Contra mim, tinha, então, o facto de ser a quinta essência da "autoridade nova" - em idade e em experiência, agravadas pelo temperamento (faceta de que ainda não falei, mas que, desde já, afirmo, que não ajudava nada) e pela singularidade, partilhada por muitos membros da equipa de Mota Pinto, de não recear as consequências de decisões polémicas numa carreira política futura, porque não via o meu futuro em semelhante carreira.
A favor, jogaram vários dados, alguns dos quais talvez tenham motivado tão insólito convite, mas outros não, apenas acresceram, afortunadamente: estava no "meu" ministério, no meu domínio preferido do Direito, conhecia pessoas, serviços, mecanismos. Tinha um elevado conceito da sua qualidade, mesmo nos tempos do velho regime. Acreditava que os funcionários públicos eram tão bons ou melhores do que os talentos do setor privado... Tinha trabalhado ao lado de grandes juristas, grandes peritos, em comparação com os quais eu era uma modesta aprendiz.O ambiente de cooperação e convívio era tão bom que, em mais de 7 anos, não recordo o mais pequeno incidente ou disputa (a não competitividade por lugares ou promoções traz ao de cima o melhor da natureza humana? Não sei será se será esta uma das explicações para os paraísos laborais que foram o Centro de Estudos de 67 a 74 e a Provedoria de Justiça de 76 a 80. - com os mais simpáticos colegas e os mais amáveis chefes que alguém poderia desejar).
Ou seja, tudo me tinha preparado para acreditar firmemente que precisava de encontrar, de imediato,  conselheiros que soubessem do ofício mais do que eu! Como me dei bem com essa estratégia, desde 78, nos meus cinco gabinetes, nunca houve nem "boys" nem "girls", provenientes de escolas de juventude dos partidos. Sempre preferi gente que fazia o favor de colaborar com o governo, do que rapaziada que estivesse ali por favor partidário,
Além de muito boa, a minha equipa era quase 100% função pública, pequena e muito fratterna.
Comecei pelo Chefe de Gabinete - para uma mulher Secretária de Estado, a regra da paridade aconselhava um homem para nº 2.  De preferência, um especialista de direito administrativo. Havia um, excelente, na Provedoria de Justiça. De Coimbra, antigo aluno de Mota Pinto, meu colega e amigo, não conseguiu dizer que não. Foi a minha salvação . papel que ele lesse e aprovasse , era papel que eu podia assinar com segurança...
Seguiram-se os dois adjuntos: uma jurista e um jurista, ambos dos quadros do Ministério, com larga experiência. Paridade perfeita...
Duas secretárias, competentíssimas, vindas de anteriores gabinetes, formadas pelo ISLA, colegas de curso (pura e feliz coincidência, como veremos...),
E os motoristas, funcionários do Ministério, naturalmente.
Duas categorias, que desafiaram o objetivo do equlíbrio de género, que eu perseguia dentro do horizonte do possível. Mulheres motoristas, não havia, de todo. E secretários, com aquele nível de eficiência, também não eram do conhecimento de ninguém.
Problemas internos, só houve mesmo com os motoristas. O primeiro resistiu pouco tempo, depois, um segundo também. Não cumpriam horários, davam desculpas fracas, eu sei lá.... Até que consegui aliciar o motorista da Secretaria-Geral. Uma grande transferência. Chamava-se Caravana.
 Eu gostava imenso do Senhor Caravana - era pontualíssimo, nunca falhava, sempre alegre, a contar histórias engraçadíssimas, dos tempos da revolução, do Alentejo da reforma agrária. Guiava muito bem, muito rápido. À vezes, passava um pequeno sinal vermelho - o que os franceses chamam "bruler les rouges", considerando isso, quando feito habilmente, coisa menor (exatamente o meu ponto de vista). Guardava uma arma de fogo debaixo do assento (eu sou alérgica a pistolas, salvo no grande écran dos "westerns", mas condescendi, com aquela otimista certeza de que ele não ia precisar nunca de fazer de Lucky Luke, para me defender de um assalto, por absoluta falta de assaltantes para o anónimo alvo, que eu era).
Depois que o Senhor Caravana completou o meu elenco, ele foi absolutamente perfeito.  Alguns conflitos e imbróglios vieram de fora e foram combatidas, por nós, com espírito mosqueteiro:  "um por todos e todos por um um".

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