quarta-feira, 15 de junho de 2016

MEMÓRIAS DA AVENIDA

Em Espinho, o que chamávamos "a Avenida" era uma parte da Avenida 8, delimitada pelo casino. a norte, e pela Rua 23, a sul - um espaço mítico de convívio, estrategicamente situado entre a estação de caminho de ferro e o mar, os hotéis, os casinos, os "dancings", os cafés, as esplanadas... O largo retangular, convenientemente fechado ao trânsito, era percorrido por multidões coloridas, em movimento ordenado, em filas compactas, formadas por gente de todas as idades, como que em diálogo feito daqueles passos ritmados, para cá e para lá… Um desfile de vestidos e fatos bonitos, de cabelos bem penteados, de esmerada demanda de elegância e sofisticação. Uma forma de estar com os outros, na comunidade, na sociedade. Uma espécie de imensa "tertúlia andante", subdividida em pequenos grupos, conversando, tranquila, ao som da música, por entre as altas palmeiras, sob os olhares dos que descansavam sentados nas esplanadas Os comboios paravam, passavam, com ampla visão sobre tão exuberante espetáculo, e, por isso, os passageiros levavam consigo imagens que terão sido, ao longo de mais de um século, o melhor cartaz turístico de Espinho, do seu alegre viver... E muitos foram os que o caminho-de-ferro trouxe para cá, do interior do país e de Espanha, fazendo de um pequeno povoado de pescadores uma praia vanguardista e internacional, onde o génio dos homens soube criar uma admirável nova realidade, não só no seu desenvolvimento urbanístico, como na sua capacidade de relacionamento humano, de atracão, de abertura a uma pluralidade de círculos sociais e culturais, harmoniosamente coexistentes. Portugueses e estrangeiros, homens e mulheres, lado a lado, nas ruas e nos cafés, (que eram, à época, num país de tradição misógina, por todo o lado, coutada masculina). 2 - Sabemos "onde", mas não sabemos exatamente "quando" começou a fantástica "movida". É plausível a teoria da sua origem espanhola. Certo é que já em fins do século XIX, Ramalho Ortigão, um dos habituais membros das tertúlias do "celeste império", se lhe referia, jocosamente, (nas "Farpas"...): " [...] piscina consagrada dos magistrados, os quais, ao encontrarem-se uns com os outros - grupo que vai, grupo que vem - se saúdam reciprocamente, de parte a parte, em variadas vozes e em diversos tons de afabilidade: colega! colega! colega! colega! " Mais tarde, em 1930, Guedes de Amorim na "Ilustração", denomina Espinho "a praia ibérica", traçando um quadro deliciosamente sugestivo não só do ambiente geral, mas também, em especial, do que designa por "a grande avenida": “Os dias decorrem em Espinho como domingos, como dias de festa. O verão é o grande domingo do calendário. E Espinho, romaria à beira-mar, tem seduções para todas as horas, para todos os paladares, [...] só se ouvem frases na linguagem de Cervantes, só se ouvem gargalhadas espanholas [...] ao fim da tarde, na grande avenida ressuscita a vida, a folia, o sem número de diversões, onde Espinho vai passar a noite [...] retalhada a tangos, a golpes estridentes de jazz band, a noite de Espinho termina. Amanhã começa novo dia. Espinho acaba sempre a sua alegria na noite. O verão, porém, é extenso, o sol é quasi eterno, só desfalece no outono". Duas ou três décadas depois, a "Avenida" da minha infância e juventude mantinha, intacta, a sua excelência. Talvez já com menos magistrados, menos políticos e escritores famosos e até menos espanhóis, mas ainda uma festa que durava o verão inteiro, "com sedução”para todas as horas e todas as idades. De manhã, na volta do mar ou da piscina, podíamos aí deambular em traje desportivo, à tarde um fato ou airoso vestido já era de bom-tom, e à noite, para ir ao cinema (com uma vasta oferta de 60 filmes por mês), ao casino, aos bailes, aos cafés, ou para o simples calcorrear da "Avenida", o "dress code" era ainda mais exigente... A "movida" continuava em pleno - e nenhuma foto a captou tão bem como um trecho do precioso documentário "A praia da saudade", dos anos 50. É exatamente assim que recordo o meu peregrinar pelo seu chão mágico, no meio de uma imensa e animada mole humana. Fenómeno sociológico digno de estudo, um retrato de época! O mesmo se diga do ambiente dos cafés que bordejavam a Avenida...Todos diferentes, com o seu núcleo duro de frequentadores. O meu era o Palácio, o antigo Palácio, na esquina do hotel, com esse nome - de tarde, domínio das tertúlias femininas, grupos de amigas que ocupavam, invariavelmente, os assentos junto às janelas. Raridade, não é demais repeti-lo, esta presença descontraída e natural de senhoras no “café – clube”! Ali encontrava sempre as sobrinhas de Amadeo, Isabel Souza Cardoso e a filha, Maria da Graça, ambas muito simpáticas e ótimas conversadoras. Os homens ficavam-se mais pelo interior da sala, ou no sofá junto ao balcão. À noite, mais caminhadas na "Avenida", uma ida ao cinema, de longe a longe, uns passos de dança no salão do casino. Nos anos 50 e 60 e ainda por alguns anos, tal como em 1930 ou em fins de novecentos, não havia tempos mortos em Espinho. 3 - Depois de enterrada a linha-férrea, esperamos, impacientemente, há muito, que as obras de superfície nos restituam, não já a "grande avenida" das palmeiras. mas o seu equivalente, como "ex-libris" de Espinho no século XXI. Acredito que o renascimento de uma cidade originalmente convivial pode acontecer naquele lugar telúrico, com o mesmo espírito, em configurações muito diversas – um encontro com o futuro a construir no rasto saudoso das memórias. in "A DEFESA DE ESPINHO"

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