terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

PREFÁCIO CAMINHOS DA POESIA

Prefácio
Prefaciar a nova coletânea galaico portuguesa de poemas e de lendas,
narradas numa toada poética, foi convite inesperado, que recebi como uma honra, e
aceitei como meio de me associar, em simples prosa, a um projeto tão conseguido
nos seus vários propósitos, confluindo harmonicamente na finalidade maior de
fazer futuro de duas comunidades geradas numa mesma língua antiga. Gente há quase
 um milénio separada pelos acasos da História, e por uma mera fronteira política,
sem que se haja desfeito a magma de uma unidade antecedente... Aqui, em cada folha, vem
impressa a voz livre e impetuosa dos Poetas, assumindo o papel de atores sociais
de uma reaproximação pela amizade, renascida e reforçada, de encontro em
encontro, pelos Caminhos da Poesia, assentes no mais recôndito, amplo e consensual
denominador comum, que é sempre a Cultura!
Mulheres e homens, portugueses e galegos, qualquer que seja lugar onde
nasceram ou habitam, as suas ocupações ou títulos académicos,estão juntos na
consciência de pertença a um mesmo universo cultural em expansão. Cada um se
apresenta de uma forma livre, alguns preferindo falar quase só pelos versos, outros
dando-nos a síntese de “curricula” profissionais, breves traços biográficos ou uma
simples saudação para irmãos. Partilham, essencialmente, a vontade de
intervenção num mesmo movimento de fraternidade, institucionalizado, ou não, numa
significativa pluralidade de grupos e tertúlias - movimento que das Letras, numa
amável luta, parte para os afetos, e neles redimensiona, afinal, a própria identidade.
Como diz a Poeta: “Veño dunha estirpe/guerreira, como a gran Boudice/levo no
sangue a loita/as minhas armas são pluma e tinta”
No “país lendário, que começou a norte e se estendeu a sul”, o caminho
do meu próprio sentimento de identidade galaico-portuguesa, fez-se em dois
andamentos, primeiro nas visitas à Galiza, onde tudo me parecia familiar, veredas
das aldeias, casas de pedra, a hospitalidade, a confraternização nas esplanadas,
 nos cafés e nas ruas da cidade, os rostos das pessoas e até a forma de falar, que entendia,
espontaneamente .
Mais tarde, rumando a sul, ao Algarve. encontrei, (Infinita surpresa...), pinceladas de
exotismo na cor ocre das falésias, nas casas brancas de barras azuis ou
amarelas, nos pátios mouriscos, nos modos de estar... E, assim, ainda menina, num
simples olhar em volta, me apercebi de que Portugal, tal como a Espanha, (e não ao
invés, como pretende uma certa corrente), é um todo multicultural, de tradições, de
reminiscências muito diversas (admirável diversidade!), que se constitui numa outra
unidade, singular e indestrutível, indelevelmente, no seu território e na sua
Diáspora. Todavia, de facto, mil anos de fronteiras, em que a Nação Portuguesa se forjou
 em Estado, não lograram esbater as eternas afinidades naturais do norte com a
Galiza, ou do Algarve com a Andaluzia...Sintonias que se somam sem antagonismo... E é
(e, nesta ordem de ideias porque não haveria de ser?) um poeta andaluz, Manuel
Machado, que vemos proclamar a Galiza como “Espanha madre de la Espanha
entera”... E nós acrescentamos: da Espanha, sim, e, ainda mais, de Portugal.
 Caminhamos tendo “por lema a poesia dunha mátria sen fronteiras”... Ou, como diz outro Poeta:
“que Galícia sexa luz en Lisboa”/Luz que ven dos fillos das terras nosas”
Um dos aspetos mais salientes e inovadoras desta terceira coletânea, é a
incursão nos domínios do nosso riquíssimo património lendário e mitológico, via
privilegiada de demanda identitária que anima o projeto poético coletivo. Aos Autores foi
proposto que recriassem as nossas lendas, em versão de autor e linguagem
de uma beleza e melopeia poética, e não admira que a ideia fosse tão apelativa
e alcançasse tão abundante e excelente materialização! E, com ela, o caminho se
inicia mais atrás, mais perto das origens, em diálogo com a ancestralidade profunda
da cultura popular, suas crenças, memórias, valores, enigmaticamente envoltos na
penumbra do fantástico e do mistério pressentidos e tangíveis.. Foram, assim,
convocados os Poetas na sua veste de mediadores da intelecção de uma vida
primordial, que nos oferece um cortejo de deusas, espíritos, sereias, mouras encantadas,
mágicas metamorfoses de homens e animais, trocando de pele ou de condição, o
sobrenatural enlace dos vivos e dos mortos... Vestígios de histórias intangíveis que,
sob a aparência do irracional e do absurdo, guardam a Verdade de outras idades. Há
Poetas que nesse relance retrospetivo se interrogam: “Como teria sido essa outra vida/
vida que foi a nossa em outro tempo?”... E há os nos dotam de certezas: “Somos o Povo
que fomos em tempos ancestrais”... Filhos da Suévia e do Miño co mar por
padrinho”.E, antes e suevos, nos redescobrimos celtas, lusitanos, “querreiras e
guerreiros, filhos da Deusa de que emana a vida”, no imaginário, entrevendo as
 “Xacias” que: “Lapexan na Auga/no Miño e nos regueiros/bañandose nas pozas
 frías/enxugandose ao vento”.
Tal como Navia, a Deusa lusitana, e astur- galega, que se acolhe nas
pontes, nas lagoas e rios... Presentes se fazem, vindos da Natureza, os espíritos:
“materializados em chovia arribam nos vales /multitudes de espíritos a conviver aos
mortais” E os mortos, por instantes, reunidos aos seus, na súbita diafania das
dimensões ocultas ou espectrais: “abrense as portas entre o Alén e este mundo/e veñen as
ánimas dos devanceiros/ camiñar entre os vivos… E, tão temidas e malignas, a norte
e a sul do Minho, eis as bruxas, com seus “talismáns diabólicos”: “Chegarón as
bruxas vellas/ nas suas vassoiras rápidas como lóstregos/os gatos negros, as curuxas,
os sapos”.
Quando não o diabo em pessoa, o “picaro diaño”, um dia aparecido nas
terras de Becerreá...
Nas ingénuas estórias do ilógico e do improvável pode assomar o lobo bom
que fala à menina assustada, a jovem que é transmutada numa “serva
branca”.e só na morte recuperará forma humana, a moura capaz de comer, todos os dias,
um boi inteiro, e a outra mulher que, com o filho ao colo, transporta, uma
pedra colossal, a “pedra má”…Ou a xacía, que “ergue castelos na area”, e aquela outra
“loira e fermosa, que vive nas augas do Miño”...
Muitos dos nossos “Poetas-contadores-de-lendas” buscaram inspiração no
legado mitológico das suas terras: Teixido, de onde trarás, com o amuleto, a “maxia
por sempre contigo”, Béade e a sua moura Mariña, que ali toma marido, a
Feira, e o castelo da Princesa Lia, enamorada de um gentil alcaide mouro,
Serradelo e o seu São Caetano, pronto a castigar os ímpios com a desgraça dos temporais,
Tabuado, onde se lembra como San Cristovo perdeu a capela votiva, Silvalde e a
Bicha das sete cabeças, pelo povo cortadas, uma a uma, ou ali perto, em Esmojães,
o vilão Catafula,herói improvável, morrendo em glória, na resistência ao invasor
gaulês. Do mesmo modo, mais remotamente, o domínio romano em terras galaico-
portuguesas permaneceu viveiro de Imortais, os bravos de Castro de Medeiros, o
insubmisso Viriato. a merecer alturas de epopeia, a ardilosa donzela de Monsanto
sitiado, qual outra Deu-la-Deu, a derrubar a força pela astúcia. Na luta hábil contra
um Poder maior e perverso, o mesmo alcançam as duas padeirinhas, no fogo do seu
“forno sagrado” sacrificando o vil alcaide... No sulco histórico de uma
religiosidade bárbara se insere a Lenda do Ferro em brasa, e, também, numa trama de contornos
singulares, a Lenda do Galo de Barcelos, em ambas as ordálias, a justiça divina
sobrevindo pelo milagre. Mais milagres revisitamos numa variante da saga arturiana da
procura do Santo Graal, acontecida na capela de Cebreiro, onde se guarda “o cáliz e
o relicário/ dentro de duas ampolas/ feitas de vidro e de prata”. E o suave “milagre
das rosas” da Rainha Santa, que por ele, é mais venerada do que por feitos muito
concretos, justificativos da mesma consagração de uma grande mulher política
epaladina da Igreja dos pobres e dos puros de coração.
Do espaço lendário desta coletiva, referência ainda à singeliza e à
força narrativa da vida e da morte da “Vella Maruxa” , que vai em demanda do mar: “Marucha
silente no seu camiñar/passiño a passiño achega-se al mar”...
Tantas mulheres viventes neste outro universo!...Bem se podem dizer que, no
feminino, sobejam as figuras mais extraordinárias em crónicas mitificadas, e, mais
latamente, no imaginário poético, que faltam, afinal, nos anais da História, de
onde andam desaparecidas...
Numa antologia tão original, onde a Verdade, os mitos, o fantástico, os
anseios e os medos se abraçam em versos, que percorrem séculos ou milénios, num
virar de páginas, a actualidade sofrida no planeta inteiro, o ano
fatídico de 2020, é assinalada com a curiosa introdução da palavra COVID, no léxico poético: a
peste do século que leva os homens como “bolboretas” deixadas no
«almacén dos mortos»), o apocalipse: «feche-se a gente e todos os eventos serão
cancelados»... «Vinte dias do ano vinte vinte/Vinte dias sem abraços...».quedando-se
«os amantes em quarentena»... 
Dividem-se estes Poetas da distopia entre sentimentos de finitude
(«Suspende-se a vida. Vive-se a morte»), e a sua denegação:(«Confinado
fisicamente/ mas livre como uma ave»)...
De semelhantes contrastes se vai compondo o roteiro de uma variada viagem,
entre paisagens, que podem ser do mundo exterior ou interior - paisagens
de alma...
Há os que conseguem «atravessar o mundo inteiro/nesta, mais uma, página
do diário da vida» e os não encontram o seu rumo: «Perdi-me num ir e vir de
sentimentos, vividos, sufridos». E aqueles que vão além dos limites da perda porque a
sua lhes  deixa «tão pouco que torna o nada enorme»...Os que à noite pedem: «abreme a
friesta/que quero ver as estrela», Os que nela se quedam: solitários «O
silêncio tomou conta da noite»... E os que tomam conta do quietude: «Não quero
ruído que destrua a voz deste meu silêncio»
Falam a muitas vozes os poetas...ouçamo-los!.
Os Poetas do Mar...
Mar, fonte inesgotável de inspiração no «mundo de marinheiros», que é o
nosso... «E o mar! Miña querida/ Noiva de sal e espuma (...) Cántate
cual sereia/ en rocha firme retida», assim começa o dolente poema dedicado "aos que no mar
ficaram".. E em mar se volver é anseio de grandeza que em verso se
permite: “Eu nacín sendo regato/Soñando com ser u mar/Dormir contando as estrelas/ E
vendo a lúa brillar” (...) ninguém podera parar/os soños e a fantasia/ e ainda
muito menos/ se istos son poesia». Mais triste é o mar sem horizontes, no
claro-escuro de areia e bruma: «macera este mar...a areia e a bruma que encerra noites longas».
São muitas as formas de o cantar...

Os Poetas da Terra...
Os Poetas da Terra, de Natureza fecunda e graciosa, estão hoje mais a
norte do que a sul do Minho - labregos, filhos de labregos (no sentido nobre da
palavra, que se desvirtuou num Portugal a abandonar, na miragem da cidade ou na dura
aventura da emigração, os seus campos e as suas aldeias). Na Galiza muito do que
viram os olhos da Poeta, que é a maior de todos, ainda hoje nós poderemos ver e
sentir ::
«Cheira a ti, Rosalia/Cheira a tua presença/ á tua vida, ao teu leito/ É
tudo teu, é tudo nosso!» 
São aldeias ainda vividas, não apenas conservadas na memória : “terra,
terra/eco da vida que nos guarda a auga/que âncora as nosas árbores/e
que espera a fin dos nossos corpos/ terra/lugar/orige/pátria/terra/terra/terra” .
“Aldeia/de choros e risas”. Campos onde a vista se espraia em contemplação: “baixo 
un arbore cansado/ de corroída corteza/sintome enamorado/de toda a Natureza”. A Galiza,
para sempre “chea de sacras ribeiras regadas pela auga dos deuses/ a reverter de
arte, de música e de grandes festas”. Desta vida não se apartam: «non me leves/ ao teu
mundo/ que nel/ non quero ficar»,
À mulher se pede : «nunca marches da terra/porque tu eres a terra/
da nossa amada terra Galega».Mulher, Mãe:: “Serás madre, emerxente de
súa raiz/ ncherás os espaços ocos, os movementos /de sempre, as formas, o recanto
no fogar

Os Poetas do Amor
O amor em que se gerou a lírica galaico-portuguesa: “Non me pídas a lúa
a que non chego/ Pídeme amor, amor sinxelo”. Amor que se quer reviver: “Tenho
saudade do amor que era/ Mas quem sabe possa ainda ser” ..Ou de que se morre:
“cando vexo que se morre/ por a pessoa querida/xa sei que é poesia”.Amor sem
limites:.”Amar, só amar-te a construir/amor e mais amor no amor já feito”. E amor
universal: “querer amar os outros, com o amor que nos temos”.

Os Poetas do Caminho
“Posso mostrar-te o instante para além do instante?” A caminhada não
terá fim: “A ponte que me leva/ é infinita/ando correndo nela/mais non chego”: A
ideia do longe que não se alcança é força que nos leva em frente: “vagabundo de
sonhos/quanto mais os estreito/mais deles me aparto”..E é, sobretudo, preciso é dar ao
caminho o sentido das nossas causas: “O Poeta olha-se ao espelho e vê o
mundo/Veste-o com os sonhos replicados dos seus”. Causas crenças, ambições,
 utopias: : «creo firmemente que a poesia transforma o mundo e faino muito mellor»...

Citações colhidas um pouco ao acaso, que mais não pretendem do que
salientar  riqueza, a originalidade e a pluralidade de leituras a que a coletânea
nos chama - não apenas a puramente literária, que não pretendeu estar no centro
destas breves considerações, também a etnográfica, a política, (na sua sede eminentemente
cultural), a feminista (ou humanista, na integralidade), a histórica - no seu duplo
olhar retrospetivo e prospetivo - no que acompanhamos os que pensam que a
história que mais importa é a do futuro. E, por isso, queremos sublinhar
o papel que vem assumindo, a publicação anual das coletâneas, sempre lançadas, com a
mesma periodicidade, em magnas assembleia de Poetas, realizadas,
alternadamente, na Galiza e em Portugal. Para dizer que existimos,em todo o espaço de
uma língua genesíaca, espaço sem fronteiras, que cresce na poesia, («mar de letras,
sonho de ideias) e na amizade. É um projeto que vai em frente, no caminho que
se faz, juntando a força matriz da Galiza e, (como diria Pessoa), um Ímpeto de
Portugal.

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