segunda-feira, 18 de abril de 2022

BALBINA MENDES - A SEGUNDA PELE

BALBINA MENDES está de volta a Espinho,12 anos depois, para preencher as longilíneas paredes de um branco neutral e expectante da Galeria Amadeo Souza Cardoso com a miríade de cores e a luz, de que se faz a intensidade da sua narrativa pictórica. Em 10 de julho de 2010, Balbina era uma pintora já com um já fulgurante percurso artístico de duas décadas, e o Fórum de Arte e Cultura de Espinho, inaugurado a 16 de junho de 2009, dava os primeiros passos na sua trajetória de afirmação. Na verdade, tal como um ser humano, no tempo e na geografia da sua passagem pela terra, os museus e galerias de arte ganham nome e prestígio com a vivência do lugar, com a marca das pessoas que, sucessivamente, convidam para o habitar, cruzando o seu "curriculum" com a deles, numa apropriação desejada e consentida. Balbina cedo entrou na História deste espaço, singular a tantos títulos. Foi a primeira Mulher a ocupá-lo, por inteiro, numa exposição individual e a primeira a trazer, com a temática das `'Máscaras Rituais do Douro e Trás-os Montes", numa pintura de raízes etnológicaa, toda a magia de tradições primordiais aflorando, repensadas e dispostas em telas de grande dimensão e impacto. Nesse verão de 2010, Balbina tornou-se a primeira numa outra vertente, ao abrir um precedente desafiante, promovendo um espetáculo cultural inédito no ato de inauguração, trazeendo às Galerias metamorfoseadas pelas suas telas, as danças dos caretos vindos de Podence. A "Festa dos Rapazes" foi acontecendo por toda a cidade, nas ruas, entre um sem número de passantes que, ou se manifestavam em gestos de aplauso, ou espontaneamente, se juntavam com eles, partilhavam o espírito dos folguedos e que, por fim, contagiou os presentes nos corredores e salões do Museu... onde os intérpretes de ritos, enigmas, ritmos nordestinos como que teatralizavam a realidade transfigurada nos quadros, cirandando nas duas galerias que correm, paralelamente, para a janela rasgada sobre o mar atlântico... Assombrosa experiência, olharmos os caretos, por minutos, parados frente à sua própria figuração pictórica, vendo-se ao espelho, entre gestos lúdicos de espanto e de contentamento... No ano seguinte, a 1ª Bienal, em que Balbina Mendes esteve presente, antecipou, em cerca de uma década, a memorável exposição de pintura no feminino da iniciativa da Fundação Calouste Gulbenkian, em cujo escopo adivinhamos semelhanças com o que animou o Museu de Espinho - e que não foi, como é evidente, o de "excluir, segundo o sexo", ou o de erguer as barreiras entre dois guetos murados, mas bem pelo contrário o de uma descoberta e valorização da metade ancestralmente invisível, no sentido do alargamento e universalização das Artes. Já quanto ao modo, estilo, correntes, temáticas, como o "género" se expressa, com uma criatividade própria ou comum e indistinta, não há consenso à vista, no domínio das Artes, ou em qualquer outro, das Letras, às Ciências, da Política a uma infinidade de misteres, outrora masculinos. Nas Bienais de Espinho, a organização guardou-se de tomar partido em querelas que prometem eternizar-se, reconhecendo, por um lado, que o masculino avulta, desde sempre e ainda, como "padrão", enquanto o feminino é "alteridade", e, por outro, admitindo a tese de que o sucesso das "mulheres-exceção" (que estão entre os maiores nomes da pintura portuguesa na atualidade), não deve deixar no esquecimento a persistente desigualdade que os números globais friamente denunciam, no que concerne a todas as outras. Em 2011, a partir de uma mostra coletiva de mulheres, em preparação, foi um homem, o Diretor da Museu, Armando Bouçon, quem teve a ideia de lhe dar um caráter recorrente, bienalmente. Acompanhamo-lo na sua citação de Michelle Perrot: "escrever foi difícil. Pintar, esculpir, compor música foi ainda mais difícil", assim como na sua avaliação de um estado de coisas, traçado no catálogo da 1ª Bienal: "Uma análise correta de toda a história da Arte dá-nos uma perceção muito transparente de como o campo das artes plásticas foi ocupado durante muitos séculos pelo género masculino". Foi. E ainda é. De facto, até um Museu tão aberto a esse questionamento pode servir-nos para comprovar, como, se considerarmos mega exposições individuais, se mantém o largo predomínio masculino. Pelo contrário, nas exposições abertas nos pequenos recantos em que o Museu abunda, ou nas exibições coletivas, as mulheres começam a ultrapassar os homens. São presença crescente, porém, ainda muito aquém do arrojo, da dimensão da obra que a Galeria Amadeo Souza Cardoso reclama - quase como se estivessem em transição gradual do espaço privado para o público. É um exemplo que podemos, sem grande receio de erro, extrapolar a nível nacional e internacional. Na verdade, foi essa constatação que deu origem e força ao movimento de afirmação da Arte no feminino, que tem em Paula Rego uma das líderes de fama universal. Nas suas próprias palavras: "As minhas pinturas são pinturas feitas por uma artista mulher, As histórias que eu conto são histórias que as mulheres contam. O que é isso de uma arte sem género? Uma arte neutra?". [...] "Há histórias à espera de serem contadas, e que nunca o foram antes, Tem a ver com aquilo em que jamais se tocou - as experiências de mulheres". Um discurso com que este particular domínio se integra na nova vaga feminista do último quartel do século XX, mas que não tem, necessariamente, uma leitura única. Qualquer que seja a área considerada, a da expressão artística, o da intervenção cívica e política, ou outro - o enfoque esencial, capaz de reunir correntes que vão em diferente direções, será o de propugnar, como Gisele Breitling: "uma nova e verdadeira universalidade em que o feminino assuma o seu lugar de direito e o masculino as suas verdadeiras proporções". 3 - Balbina Mendes tem, a meu ver, contribuído, poderosamente, para que as mulheres portuguesas assumam, na vida cultural do país, o seu "lugar de direito". Fá- lo, ocupando, simplesmente, esse lugar, com força anímica e talento de sobra, sem em nada se julgar discriminada, sem se sentir do lado de de lá de uma linha de fronteira... É um caso a a seguir no espaço, que se vai alargando, das exceções à regra. Mulheres que, à partida, se sentem consideradas como iguais, e cuja atitude de despreocupação com disparidades de género, contém, implícita, a exigência desse tratamento igualitário. À margem do discurso reivindicativo, alcançam as metas que ele se propõe. E será que a proclamação dogmática da especificidade de género, pode, no limite, paradoxalmente, dar azo a formas larvadas de discriminação?. É uma pergunta pertinente. A "arte com género" de que fala Paula Rego, pode, ou não, abaixo do patamar do génio a que ela subiu, transformar-se "de per si" não em sinal vanguardista de contracultura, mas em âncora de estereótipos de género, conotando o feminino com características convencionais que são, finalmente, uma menos valia? O ponto de interrogação vale para qualquer domínio... Recordo o crítico literário João Gaspar Simões, que, ao elogiar a força imanente da prosa de Maria Archer, o realismo puro e duro com que ela aborda temáticas ousadas, a qualificava não apenas como uma grande escritora, mas como "um grande escritor". E às poetisas consagradas, como Sophia, ou Ana Luísa Amaral, ainda hoje preferimos chamar Poetas. Ambíguo cumprimento, a que subjaz a conceção da masculinidade intrínseca do cânone... Certo é que para esta escola de pensamento, Balbina é uma das mulheres que merece o cumprimento, ainda que não se reveja na categoria de "um grande pintor". A sua arte não procura rivalizar com quem quer que seja, nem obedece a ditames ou limitações, numa trajetória imparável de inovação, de temáticas, de estética e policromia, de ensaio de técnicas ou de fusão de materiais É genuína e livremente Ela, transpondo para a pintura a experiência dos muitos mundos que a sua vivência atravessa e o seu olhar penetra! Original e inconfundível. Se me é permitida uma outra adjetivação, direi que tão carismática é a obra como a Autora... Uma admirável contadora de histórias, de vários tempos, do tempo presente a tornar-se passado, ou do passado no movimento e nas significações que o trouxeram até nós, em memórias, rituais, crenças que se reinventam no convívio com a natureza e as pessoas, figuradas em toda a sua magia, todo os seus segredos. No percurso narrativo de Balbina, para mim, no princípio era o rio... porque a conheci na exposição em que nos oferecia a história do Douro, correndo entre margens, da nascente até à foz, incorporado na beleza encantatória de paisagens, onde as gentes apenas se pressentiam, sem se verem... . Reencontrei, depois, Balbina num muito diverso e surpreendente ciclo temático, sobre as Máscaras Rituais do Douro e Trás os Montes, em que os homens se faziam presentes, mas ainda sem se verem... O início de uma incursão etnográfica em torno da máscara, num entrelaçamento telúrico de emoções e saberes, reinventados na tela, em explosões de cor... Voltando a uma leitura feminista, que não sendo a da Artista, nos é aqui permitida, nota-se a audácia com que se apodera, para a eternizar em arte, de uma tradição masculina, símbolo por excelência, da superioridade e camaradagem de sexo, da festa e do cerimonial rigorosamente interditos à mulher... É já um sinal da força subversiva e libertária da sua aventura artística. Logo depois, ultrapassa a última fronteira, no momento em que a fragmentação ou transparência da máscara põe o rosto a descoberto... o rosto feminino! Definitiva rutura do interdito, que Paula Rego saudaria com " o gozo pela inversão e desalojar da ordem estabelecida"... Com o que Balbina Mendes poderia estar, se quisesse, entre as maiores referências do movimento emancipatório de contracultura feminina nas artes, como a emblemática Paula sobre quem Ana Gabriela Macedo escreve: [...] ela questiona continuamente os chamados "corolários naturais" da diferença de sexos, bem assim como a suposta "ordem natural das coisas", que se traduz na passividade, dependência e submissão, desmistificando o discurso estético e desmascarando o seu papel eminentemente ideológico e as relações do poder, que aí se encontram camufladas [...]. Nesta mostra intitulada "Segunda pele" o tropo narrativo da Pintora, não nos revela, antes adensa o mistério dos jogos entre a face desocultada e as suas máscaras, mas revela-a, definitivamente, como assombrosa retratista do rosto, das suas metamorfoses, do tangível e do intangível. E confirma o seu incessante questionamento sobre o ser e o parecer. É, agora, também, na literatura que busca inspiração, glosando em linguagem pictórica o mote pessoano. Não há resposta qque não seja fonte de novas interrogações... Como diz Maria Velho da Costa: "Quem sou? Talvez seja quem vou sendo..." A pessoa, as personae Quo vadis, Balbina Mendes? Para onde nos levará, num ímpeto de transcender limites, a grande cultora de mistérios? .

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