quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

PERCEÇÕES 1 - Nestes últimos dias do ano fala-se muito de guerras (a da Ucrânia, a de Gaza, que alastrou ao Líbano e, agora, a da Síria, todas de desfecho incerto - e que pena não podermos falar de paz neste Natal...), do novo aeroporto de Lisboa (que absurdo, fazer em Lisboa o maior investimento de sempre, como se, para o Estado, não houvesse o resto do país), das eleições presidenciais (um civil ou um militar?), das eleições na Madeira (que parecem ter entrado no calendário vulgar do Prof. Marcelo, cuja tarefa preferida é dissolver, dissolver – juntamente com as “selfies”, provavelmente, o que ficará para a história dos seus dois mandatos), de futebol (SCP E SLB dominando todos os programas semanais de rádio e TV– do FCP só ”faits divers” como a notícia da descida aos túneis do presidente AVB e da sua linguagem vicentina…) e de “perceções” (sobretudo, a propósito dos “sentimentos nacionais” de insegurança, ligando-os à realidade mal conhecida, ou propositadamente deturpada, da imigração. Estava eu hesitante em escolher, entre tantos temas da semana, um para tratar em mais detalhe, quando vi, nos noticiários do dia, em todas as estações, as reportagens sobre “a rusga de Martim Moniz” e "senti" que tinha de escrever sobre a sensação de horror (e de insegurança!) em mim provocada por aquelas imagens - uma fila infindável de pacatos indivíduos, com as mãos encostadas às paredes, a serem revistados por forças policiais. Há meio século, quando fervilhavam as pequenas querelas partidárias, em tempo de construção de um país livre, o muito jovem jornalista Marcelo entretinha-se a criar “factos políticos”, saídos da sua cabeça para as páginas do “Expresso” (e nós, às vezes, até achávamos graça). Agora é um Governo da República, que parece agir ao serviço de preconceitos e de “factos imaginados”, o que não tem graça nenhuma e pode desencadear sérias consequências para a perceção interna e externa da qualidade da nossa democracia, para além do susto e do vexame infligido a tantos cidadãos inocentes. Sim, inocentes! Na verdade, a gigantesca operação de 19 de dezembro de 2024, ao que vi e ouvi, saldou-se em dois detidos (um já a contas com a Justiça e outro por posse de droga - ambos portugueses) e pela apreensão de uma pequena quantidade de material de contrafação. A montanha pariu um rato… podemos até concluir que, de uma forma ínvia e cruel, a operação acabou por provar ser Lisboa, até nas zonas de duvidosa reputação, uma cidade mais segura do que aparenta. Já tenho assistido a rusgas policiais na feira semanal de Espinho, no ocasional combate à contrafação – talvez com mais apreensões de artigos à venda - felizmente, até ver, sem semelhante espalhafato. Dizer que esse alarde de prepotência nos transmite uma “sensação de tranquilidade”, é, simplesmente, incrível…a fazer recordar tempos de pandemia, quando nos vedaram o acesso à praia e aos bancos de jardim e erguerem barreiras policiais para impedir a circulação de carros entre concelhos vizinhos. Eu, na altura, desempenhava um cargo que me dava liberdade de trânsito até ao Porto, ao estádio do Dragão, e via-me fiscalizada, pelo menos, três vezes, antes de chegar ao destino, para assistir a jogos sem público. Nunca tais medidas obviamente excessivas me deram uma sensação de “tranquilidade” - só de insensatez, de desnorte, de incompetência. 2 – Confesso que me preocupa muito a “deriva securitária” (pomposa, embora realista formulação!), deste Governo, que, nos seus primeiros meses, mostrou uma face bem mais benigna e promissora, cultivando cuidadosamente o distanciamento face ao partido de Ventura. Mas eis que, num ápice, se aproxima do "inimigo" não só neste campo de fiscalização intrusiva das populações, como na denegação de acesso ao SNS de todos os imigrantes ainda não legalizados, nos termos de uma iniciativa do "Chega" (que estranho presente natalício...). A campanha começou, como sabemos, na denúncia do aproveitamento da abertura dos nossos serviços de saúde por turistas, que ao país se deslocavam apenas para beneficiarem de tratamentos dispendiosos ou para aqui terem os filhos nas nossas atrativas maternidades. Até aqui, tudo bem, ninguém discordará da urgência de pôr fim a tais abusos. Porém, estender o mesmo regime limitativo aos estrangeiros que vivem e trabalham no país entra no domínio da injustiça e da desumanidade e pode, em certos casos, constituir uma ameaça à saúde pública de estrangeiros legalizados e de portugueses, por igual (como é óbvio, pela via da propagação de doenças, não atempadamente diagnosticads e tratadas). . Não se julgue que estas posições estão na tradição do PSD e dos seus governos. Não estão! E já nem penso nos tempos de Sá Carneiro ou de Mota Pinto, verdadeiros sociais-democratas, mas, por exemplo, na década de Cavaco Silva, que também ainda mostrava preocupações sociais com os desfavorecidos. Disso posso dar testemunho, justamente no que respeita á imigração indocumentada. Embora o meu espaço de intervenção cívica e política tenha sido, fundamentalmente, o da emigração portuguesa, também me envolvi em ações de solidariedade com imigrantes, em movimentos para a sua legalização (brasileiros, guineenses, nos anos noventa, ucranianos no começo do século...). Quando do processo de realojamento de populações das barracas de Lisboa - um dos que marcaram aquela década positivamente - falei com o Primeiro Ministro Cavaco Silva, perguntando-lhe se os imigrantes clandestinos eram abrangidos na solução e ele respondeu que sim, e acrescentou que isso se devia à sua própria decisão! Nessa altura, note-se, a regulamentação interditava a atribuição de habitações sociais a estrangeiros e ele abriu uma exceção inteligente (que sucesso teria o programa de erradicação de barracas, se deixasse tanta gente de fora?). O mesmo, "in illo tempore", aconteceu, e por maioria de razão, em matéria de abrangência nos cuidados de saúde. Ouvir agora um deputado do PSD, prestigiado médico portuense, a defender, do alto da tribuna, na Assembleia da República, a exclusão de trabalhadores estrangeiros, em situação irregular (não meros turistas), do acesso a serviços gratuitos de saúde, é coisa de estarrecer! 3 - Tudo é sacrificado ao altar das perceções, do imaginário popular... Ora os Governos não podem ficar cativos de erróneas perceções. Têm, sim, a obrigação de as desconstruir pela revelação de factos e números autênticos e de adequar à realidade as políticas públicas. Não se pode confundir a situação de "turistas da saúde" com a de imigrantes (ditos) clandestinos ou ilegais, que, em tantos casos, são não só usados como explorados no nosso país. Não se pode alegar que abusam do SNS estrangeiros que são contribuintes líquidos do sistema, porque efetivamente pagam muito mais do que recebem, como os relatórios comprovam. Não se pode, num dos países mais seguros do mundo, lançar campanhas contraproducentes contra a insegurança. E, sobretudo, não se pode apontar o dedo acusatório aos imigrantes, no capítulo penal, quando, de facto, as suas taxas de criminalidade são inferiores às dos nacionais. Isso é a regra por todo o lado e quaisquer que sejam as nacionalidades. Os imigrantes de primeira geração vêm para trabalhar, honesta e duramente. Falo por experiência de vida. Quando comecei as visitas às nossas comunidades recentes, por exemplo, em França, havia cerca de um milhão de portugueses e praticamente nenhum na cadeia. Na geração seguinte, a percentagem de detidos já era próxima da média nacional francesa... Os problemas não surgem com os pais, mas com os filhos, quando lhes não dão condições de integração, de igualdade, de pertença. Os bairros de maioria imigrante precisam muito mais de boas escolas, de bons professores, de associativismo solidário do que de polícia. Depois de ter andado no terreno, no meio das pessoas, esta é a minha perceção. Vamos ser realistas e justos. Chega de "Chega"... Para todos, estrangeiros e nacionais, um Bom Natal!

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

MÁRIO SOARES, SEMPRE! Conheci a Dr.ª Maria Barroso e o Dr. Soares em receções de Embaixadas, quando pertencia ao Governo Mota Pinto, em 1978. Com a Dr.ª Maria de Jesus entendimento perfeito, desde a primeira hora! Já com o Dr. Soares não foi bem assim. Os tempos eram de proselitismo partidário e eu, PPD não filiada, estava em campo oposto, mas a atração por uma personalidade tão calorosa e interessante, contribuiu, decisivamente, para o princípio do fim do meu faciosismo político. Em todo o caso, distinguia entre “gostar de Mário Soares” (sim, imenso), e “gostar politicamente de Mário Soares” (não tanto). As minhas memórias de diálogos com ele são inúmeras e, na sua maioria, muito divertidas! Viajar com ele era uma festa, desde o momento em que se entrava no avião. A conversa fluía, animadamente, resvalava para uma vozearia excessiva. Uma vez, até mandei calar toda a gente, ao ver, na primeira fila, o Presidente já a descansar, depois de ter dado a volta completa à aeronave, cumprimentando toda a comitiva. Calámo-nos, por precaução, mas ele, imune ao ruído, dormia bem em qualquer ambiente. Só a viagem à URSS (Rússia, Arménia e Azerbaijão), em tempo de “perestroika”, dava um livro inteiro, com personagens como a família Sahkarov, Gorbatchev, o chique russo da vedeta Raisa e as tentativas do Dr. Soares de sair dos rígidos roteiros soviéticos, a fim de ver as pessoas, no seu quotidiano normal. Vou cingir-me a episódios que envolveram os Deputados da comitiva – um de cada partido, contrariando o critério proporcional, por uma boa razão: o Presidente queria dar lições de convivência e pluralismo partidário, e manifestar o seu apreço pela instituição parlamentar. Apreço sem paralelo no mundo soviético, e, por isso, o protocolo atribuía vistosos carros pretos a toda a gente, diplomatas, empresários, jornalistas, e desterrava para o fim do longo cortejo, o numeroso coletivo de parlamentares, compactados numa velha furgoneta. Nos atos cerimoniais, deposição de coroas de flores em monumentos, receções, discursatas, o Presidente exigia que os parlamentares estivessem à sua volta. E nós éramos os últimos a chegar, depois de uma correria, já com o Dr. Soares a acenar-nos, de longe, impacientemente... sem a nossa presença o evento não começava! E nós não explicávamos o porquê do atraso, para lhe poupar irritações. Aconteceu o mesmo nas três Repúblicas: só ao segundo dia, depois de veementes protestos, conseguimos carros pretos e a nossa precedência protocolar no cortejo. O último incidente protocolar aconteceu em Kiev, onde o avião oficial fez escala, para um encontro de Presidentes, o nosso e o da Ucrânia, seguido de um grande banquete. Tudo no aeroporto. A comitiva teve de ser dividida em dois salões VIP, um para as altas individualidade, outro para as de segunda linha. Ora, nesta categoria decaíram dois Deputados... Sempre atento às pessoas, o Dr. Soares apercebeu-se da sua ausência e quando a tentaram justificar, exasperado, exigiu que os chamassem, de imediato, para a sua mesa. Levantaram-se, prontamente, vários funcionários. Foi tremenda a confusão, as movimentações nervosas, até se acertar a troca, com os Representantes da Nação a ocuparem os devidos assentos. Uma última aula de democracia dada pelo nosso Presidente! Por mais incrível que pareça, cena idêntica sucederia no próprio Palácio de Belém, durante a audiência presidencial a uma Delegação da China. Eu estava, como Vice-presidente da Assembleia, incumbida de acompanhar as suas visitas ao PR e ao PM (Cavaco Silva). À entrada, do Palácio, o Protocolo veio dizer-nos que a sala de receção não comportava as duas largas comitivas, chinesa e portuguesa, sugerindo que alguns dos nossos esperassem lá fora. Os colegas concordaram que só eu estivesse na audiência, como já acontecera, em São Bento, sem objeção do Prof. Cavaco, mais preocupado em falar de uma sua recente visita à China, elogiosamente, em tom formal, como é seu timbre. Não foi assim em Belém. Mal nos tínhamos sentado, e já Presidente me perguntava: “Está sozinha com esta Delegação? Porque é que não vieram mais Deputados?" Ao ouvir as minhas explicações, bradou: "Os Deputados lá fora? Nem pensar! Eu sou um parlamentarista! Quero-os todos aqui connosco”. Foi um reboliço maior do que o de Kiev... Funcionários trazendo poltronas, o próprio Presidente dando instruções, arrastando cadeiras…. Eu só pensava: “Os chineses nunca viram coisa igual. O que acharão de tudo isto?" Na sala cheia, a conversa decorreu, descontraidamente, em modo de tertúlia. Á saída, esperava-nos uma multidão de jornalista, câmaras de televisão, microfones. Para meu espanto, o líder chinês falou, falou, empolgado, a felicitar o povo português por ter como presidente uma tão extraordinária personalidade, numa girândola de elogios, que terminou assim: "é um grande humanista"! Depois, os jornalistas quiseram saber impressões sobre o encontro com o Primeiro-ministro. A resposta foi pronta e lacónica. "Também correu bem". É pouco, lembrar o Presidente Soares nestas poucas nótulas de viagens e encontros. Porém, penso que, só por si, falam do Homem que amava liberdade, a democracia, a vida, as pessoas! A 7 de dezembro de 2024 celebramos o seu centenário, ou seja, seu lugar num século da História de Portugal, na resistência à ditadura de cinquenta anos, e na construção da democracia, nos outros cinquenta. É o tempo de reconhecer quanto “gostamos politicamente do Dr. Soares”. Afinal, o mesmo é dizer “25 de Abril, sempre!” ou “Mário Soares, sempre! “. Maria Manuela Aguiar in "AS ARTES ENTRE AS LETRAS"

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

O HOMEM DO SÉCULO

O Centenário do Homem do Século A 7 de dezembro próximo têm início as comemorações do centenário de Mário Soares. Será a hora de olharmos um século da nossa História, através da História do "Homem do século" - o Político que teve papel principal durante uma Ditadura de quase meio século e, depois, na Democracia, nascida da Revolução cujo cinquentenário celebramos, ao longo de 2024. Uma feliz confluência de efemérides! Tempo de falarmos de Mário Soares, o Homem e o Político – assim, com letra grande. Grandeza de obra e mundividência, com que contribuiu, de uma forma tão decisiva, para a construção da democracia portuguesa. De facto, nenhum dos seus contemporâneos teve, igual longevidade e influência na política portuguesa ou igual prestígio, a nível internacional - Sá Carneiro, porque tão cedo o perdemos, Ramalho Eanes e outros co fundadores da Democracia atual, porque não puderam deixar marca semelhante naqueles dois regimes (1926/1974 e 1974/2024). Grandeza é, assim, uma qualidade que ninguém lhe poderá negar, nem sequer os menos simpatizantes. Nesta questão de afetos, ainda temos de distinguir entre “gostar de Mário Soares" e "gostar politicamente de Mário Soares”, mas, à medida que o tempo passa, a distinção vai-se esbatendo, com o depurar de pequenas querelas partidárias e a valorização do essencial. Atravessei as três fases, por mim falo! Nos primórdios da Revolução, “não gostava de Soares”, muito embora, durante o PREC, tivesse feito quilómetros, através das ruas de Lisboa, em marchas pela Liberdade, que ele corajosamente encabeçava. A partir do momento em que o conheci pessoalmente, em 1978 (era membro do Governo de Mota Pinto e já lá vão 46 anos!), passei a “gostar de Soares”, mantendo o distanciamento político, que entre sociais democratas nunca é abissal, (e eu sou social-democrata “à sueca”, como Sá Carneiro sempre se afirmou). Depois, na era dos seus mandatos presidenciais, comecei a “gostar politicamente de Soares", e cada vez mais. 2 – Não é, porém, sobre o seu legado político que vou escrever, mas sobre a individualidade, com quem tive, como referi, a sorte de conviver. Privilégio que não está ao alcance dos mais novos, a quem posso dizer que era sempre fantástico dialogar com o Dr. Soares, incomparável contador de histórias, versátil, culto, espirituoso! Tínhamos a consciência de estar face a face com uma personalidade que já entrara na História e, contudo, ao sentimento de reverência sobrepunha-se, invariavelmente, a pessoa, com a sua facilidade de trato, a atenção dada a cada interlocutor, a espontaneidade e a graça. Uma entrada (acidental e relutante) na política, deu-me a ocasião de trabalhar, diretamente, com os líderes dos maiores partidos democráticos, em diversos Governos. Sou testemunha de que eram bem mais amáveis e divertidos do que a sua imagem pública deixava imaginar. De todos, só o Dr. Soares, sobretudo a partir das “presidências abertas” , se foi mostrando em público tal como era em privado. As minhas memórias de conversas e episódios passados com ele são inúmeras e, na sua maioria, definitivamente lúdicas! Escolher é difícil, mas necessário…por isso, vou centrar-me em viagens e receções internacionais da sua Presidência. Viajar com o Dr. Soares era uma festa, desde que se transpunha a porta do avião. Lá dentro, as charlas fluíam, resvalaram para a vozearia ruidosa. Uma vez até tomei a iniciativa de mandar calar os companheiros de ruído, ao ver, na primeira fila, o Presidente já a descansar, depois de ter percorrido os corredores da aeronave, a cumprimentar toda a comitiva. Calamo-nos, por precaução, mas ele era imune ao barulho de algazarras, dormia em qualquer ambiente! A viagem à URSS – Rússia, Arménia, Arménia e Azerbaijão – dava um livro inteiro, com as múltiplas tentativas do Dr. Soares para sair dos rígidos roteiros soviéticos e ver gente no seu normal quotidiano, e com interlocutores como Sahkarov, Gorbatchev e Raisa, paradigma feminino da nova elegância soviética. Limitar-me-ei a destacar alguns casos que envolveram os Deputados, um de cada partido. Contrariando o princípio da proporcionalidade das Delegações, o Presidente quis dar aos soviéticos uma lição prática de convivência na alteridade, patenteado o nosso pluralismo democrático em perfeita confraternização. Assim destacava a importância da instituição parlamentar pluripartidária. Importância sem paralelo no sistema soviético e, por isso, o protocolo local atribuia vistosos carros pretos a toda a gente, diplomatas juniores, empresários ou imprensa, e desterrava para o fim do cortejo de viaturas oficiais, numa velha furgoneta, a Delegação Parlamentar! Sucediam-se os atos cerimoniais – visitas, receções, deposição de coroas de flores em monumentos - e o Presidente exigia a nossa presença, a seu lado. Ora, nós, vindos lá de trás, éramos sempre os últimos a chegar, e em esforçada correria, com a Dr. Soares a acenar-nos, de longe, muito impaciente. Sem os Deputados, não deixava começar o evento, e nós, para lhe poupar irritações, nunca explicamos a razão do atraso. Só ao 2º dia, depois de veementes protestos, vimos respeitada a nossa precedência protocolar, e fomos distribuídos em limousines iguais às outras … Sucedeu o mesmo nas três Repúblicas! O último incidente protocolar foi em Kiev, onde o avião fez escala para um encontro de Presidentes, o nosso e o da Ucrânia, seguido de um faustoso banquete. Tudo se passou no aeroporto, pelo que a comitiva teve de ser dividida por duas salas VIP, uma para as altas individualidades, outra para as de segunda linha. Nesta categoria decaíram dois Deputados…Só o Dr. Soares, sempre atento, se apercebeu da ausência e logo exigiu que os chamassem para a sua mesa. Levantaram-se, em simultâneo, vários funcionários, gerando uma tremenda confusão, em nervosas movimentações, até acertarem as trocas com os Representantes da Nação, por fim sentados nas suas cadeiras protocolares. Uma última lição de democracia magistralmente ensaiada pelo nosso Presidente! Por mais incrível que pareça, cena quase idêntica ocorreria no próprio Palácio de Belém, aquando da audiência a uma Delegação da República Popular da China. Na qualidade de Vice-Presidente da Assembleia, chefiei a comitiva que acompanhou os nossos convidados nas suas visitas de cortesia ao Primeiro Ministro Cavaco Silva e ao Presidente Soares. Em ambas as residências, o Protocolo informou que a sala de receção não estava preparada para tanta gente, e os Deputados portugueses concordaram que só eu estivesse presente nas reuniões. O Prof. Cavaco não levantou objeção, preocupado em pôr o foco no sucesso da sua recente visita à China, em tom formal, como é seu timbre. No Palácio de Belém, não foi, de todo, assim. Mal nos sentámos, o Presidente perguntou-me: “Está sozinha? Não vieram mais Deputados?” Ao ouvir as minhas explicações, bradou: “Os Deputados lá fora? Nem pensar! Eu sou um parlamentarista! “. Seguiu-se um rebuliço semelhante ao de Kiev! Os Deputados foram todos chamados à sala, enquanto entravam funcionários com as cadeiras na mão, e o Presidente dava instruções e ele próprio arrastava poltronas. E eu só pensava :”O que acharão os nossos visitantes orientais de tudo isto?” Nunca tinham visto nada igual, de certeza... Na sala cheia, a conversa decorria descontraidamente, em ambiente muito caloroso. À saída, esperava-nos a avalanche de jornalistas, microfones e câmaras. Para meu espanto, o líder chinês, empolgadíssimo, falou, falou…a felicitar o povo português por ter um Presidente tão extraordinário, numa girândola de elogios que terminou na síntese: ´É um grande Humanista!” Questionado, depois, sobre a audiência do Primeiro- Ministro, a resposta foi lacónica: “Também correu bem”. Lembrar o Dr. Soares, nestas breves nótulas de viagens e encontros, é, evidentemente, pouco, mas penso que nelas se vislumbra o Homem que amava a liberdade, a democracia, a vida e as pessoas. E as fascinava. Soares era fixe! in DEFESA DE ESPINHO
Parlamento saúda dedicação de décadas de Manuela Aguiar às comunidades portuguesas Lisboa, 11 out 2024 (Lusa) -- O parlamento aprovou hoje, por unanimidade, um voto apresentado pelo presidente da Assembleia da República de saudação à antiga secretária de Estado e deputada do PSD Manuela Aguiar pela sua dedicação às comunidades portuguesas. Natural de Gondomar, distrito do Porto, licenciada em Direito e que foi professora na Universidade Católica Portuguesa e na Universidade de Coimbra, Manuela Aguiar, no plano político, começou por exercer funções como Secretária de Estado do Trabalho no IV Governo Constitucional. "Porém, foi ao serviço das comunidades portuguesas que o seu trabalho mais se destacou. Tornou-se, entre 1980 e 1987, a primeira mulher a tutelar a diáspora como secretária de Estado. No desempenho dessas funções, bateu-se decisivamente pela criação do Conselho das Comunidades Portuguesas, órgão consultivo do Governo que ajuda a assegurar a representação e a provedoria dos interesses dos emigrantes", refere-se no voto proposto por José Pedro Aguiar-Branco. No voto, lembra-se também que Manuela Aguiar, no âmbito do Conselho da Europa, se envolveu "nas negociações que consolidaram dentro do espaço europeu o reconhecimento da dupla cidadania e a proteção jurídica dos emigrantes". "Manuela Aguiar foi eleita deputada em oito legislaturas, quase sempre pelo círculo eleitoral de Fora da Europa. No parlamento, foi uma voz livre e inconformada, comprometida com a defesa dos emigrantes e da sua plena participação política em Portugal", acrescenta-se.

terça-feira, 26 de novembro de 2024

PELO VOTO ELETRÓNICO

Legislativas: CNE identifica irregularidades que anularam maioria de votos postais de emigrantes Londres, 23 nov 2024 (Lusa) - Irregularidades na inclusão da cópia do cartão do cidadão resultaram na anulação da maioria dos votos postais dos portugueses no estrangeiro nas eleições legislativas de 10 de março, concluiu um estudo publicado pela Comissão Nacional de Eleições (CNE). O estudo foi encomendado pelo órgão para tentar perceber as razões do aumento de 256% do número de votos nulos entre as eleições para a Assembleia da República em 2022 (35.472) e 2024 (126.241). De acordo com as 300 atas de contagem dos votos analisadas, 82.66% dos votos nulos resultaram de "irregularidades nos envelopes", mas a percentagem passa para 98,9% quando se excluem os casos de invalidação não especificada, refere o estudo. Das 183 atas onde a informação ainda está mais detalhada, 97,11% dos votos nulos devem-se a falta de fotocópia do documento de identificação no respetivo envelope, obrigatória para o voto postal ser aceite. Os resultados do estudo foram apresentados pelo membro da CNE proposto pelo partido Livre, André Wemans, na conferência Portugal+ em Londres, organizada pelo jornal Bom Dia. "É um problema que temos de conseguir corrigir de alguma forma, porque o objetivo é ligar todos os portugueses a estes processos eleitorais", afirmou, num painel de discussão dedicado à participação política. O estudo, além de recomendar outra investigação sobre as razões pelas quais as cópias de documentos de identificação não são incluídas, sugere uma campanha de esclarecimento sobre o voto postal dirigida aos eleitores residentes no estrangeiro e um outro estudo sobre a introdução de um sistema de voto eletrónico pela Internet nos círculos da Europa e Fora da Europa. "A Comissão Nacional de Eleições não é legisladora, não faz nem sugere ela própria legislação, apenas pode reagir a legislação proposta", explicou Wemans. Estes dados coincidem com alguns dos resultados provisórios de um inquérito realizado pela associação Também Somos Portugueses aos emigrantes portugueses sobre as eleições legislativas na sequência do número elevado de votos nulos. O presidente, Paulo Costa, revelou, no mesmo evento, que vários admitiram ignorância ou distração. No entanto, alguns inquiridos indicaram que não incluíram a cópia do cartão do cidadão no seu voto postal propositadamente porque consideravam o método inseguro, demasiado complexo, porque é ilegal (na Austrália) ou porque na Suíça o voto postal não requere tal procedimento. Segundo Costa, 82% dos respondentes afirmou ser favorável ao voto eletrónico, 45% apoiam o voto postal, 40% o voto presencial e 8% o voto por procuração. A associação tem aberta uma petição pela introdução da modalidade de voto online não presencial para os cidadãos portugueses residentes no estrangeiro, juntamente com o voto postal e voto presencial em todas as eleições. Segundo Paulo Costa, o grande entusiasmo dos emigrantes pelo voto eletrónico mostra que "isto não é uma fixação só da "Também Somos Portugueses" é algo que a grande maioria dos portugueses no estrangeiro gostava de ter".

domingo, 3 de novembro de 2024

LEITURAS SOBRE A CONDIÇÃO FEMININA, DURANTE O “ESTADO NOVO” 1 – “Antes do 25 de Abril era proibido” de António Costa Santos Nas diversas iniciativas integradas nas comemorações da Revolução de 1974 em que participei, entre março e maio, numa data tão especial como é a do seu cinquentenário, a maioria colocava o enfoque na situação das mulheres portuguesas. No antes e no depois. Duas metades de um século. Não terá sido por acaso – é um ângulo ideal para compreender o espírito do “Estado Novo”. Do corporativismo, enquanto doutrina totalitária e enquanto movimento anti personalista, que combatia, por igual, o comunismo e o liberalismo, condenando radicalmente o individualismo. A sua primeira principal vítima sacrificial seria a mulher - a mulher, em geral, e a mulher casada, em particular, porque a sua individualidade se fundia no núcleo familiar, e ficava sujeita à autoridade do marido, a quem, tal como os seus próprios filhos, devia obediência. Nessa unidade orgânica, como nas empresas, na sociedade, na política, os papéis eram definidos pelo Estado, que zelava pela sua rígida conservação. O homem detinha a chefia da família, como Salazar a chefia do Governo. Cada marido era um micro ditador doméstico, à imagem e semelhança do Grande Ditador nacional. Cabia-lhes interpretar e decidir o "bem comum" do seu agregado, mandar, censurar, proibir… Muitas das proibições legais de então, hoje, causam espanto ou fazem hoje rir. Para quem queira, percorrer, ludicamente, a lista de alguns dos mais incríveis tabus do salazarismo, recomenda-se o livro referido em epígrafe. Faltará, aqui e ali, rigor científico, em alguns casos, especificidades verdadeiras nos anos trinta, já não o eram nos anos sessenta ou setenta, por força da alteração de mentalidades e costumes… De qualquer modo, dá-nos uma narrativa bem conseguida e engraçada do que “era proibido”. Vejamos: as senhoras andarem nas ruas sozinhas; as mulheres entrarem na igreja de cabeça descoberta; as mulheres casadas viajarem para o estrangeiro sem autorização do marido (nem que fosse apenas a Badajoz, ou a Vigo, comprar doçarias); as mulheres saírem à noite sozinhas; minissaias nos liceus; biquínis nas praias; o matrimónio às mulheres em certas profissões, professoras, enfermeiras, hospedeiras de bordo, (salvo se conseguissem autorização do Governo!): as mulheres ingressarem em profissões, como a magistratura e a diplomacia, e, genericamente, ocuparem posições de chefia... Embora em menor número, também havia, evidentemente, ditames aplicáveis a ambos os sexos, entre os quais: beber coca-cola, jogar cartas nos comboios; dar beijos em público, ler certos livros, ver certos filmes, ouvir certos discos; usar isqueiro ou andar de bicicleta, sem prévia licença, assim como participar em “ajuntamentos de mais de três pessoas”. 2 – A cada um o seu lugar – a política feminina do Estado Novo” de Irene Flunser Pimentel Este é um livro dirigido a um público muito diferente, uma obra de referência sobre o tema, um brilhante e premiado estudo académico, que nos elucida sobre o lugar que era alocado ás mulheres, na doutrina e nas leis da Ditadura, e que escalpeliza as estratégias que serviram os fins, acantonando o sexo feminino na esfera da domesticidade e bloqueando os canais de ascensão social e profissional, (segundo o sexo e a classe social), a começar pelo ensino e a acabar no afunilamento das oportunidades de trabalho e na discriminação salarial. O princípio da igualdade, consagrado na Constituição de 1933, exceciona, quanto às mulheres, as desigualdades justificadas pela sua “natureza” e pelo “interesse da família”. A “natureza” justificava a exclusão das mulheres no acesso às profissões mais prestigiadas, diplomacia, magistratura judicial, e quaisquer cargos de direção, assim como as assimetrias salariais, no professorado deliberadamente usadas para combater a crescente feminização do setor, que tanto afligia os Ministros da Educação, (alguns chegaram a impor “quotas” na entrada da profissão, a favor do sexo masculino!). Para pôr a mulher “no seu lugar”, o regime combateu o ensino misto, ensaiou a diferenciação dos currículos escolares, a desvalorização da escola feminina e a redução da escolaridade obrigatória. Em vão… As taxas de feminização do professorado iam em crescendo (no primário de 68%, em 1930, para 87%, em 1960, no liceal de 33% para a 56%, no mesmo período Ainda por cima, a taxa de feminização no acesso ao ensino seguia trajetória semelhante: no primário de 42%, em 1930, para 48,5 em 1960; no liceal (3º ciclo), de 33,2% para 50,1% - sendo superior a percentagem de aprovações: 53,2%, neste último ano. Quer isto dizer que as raparigas foram vencendo preconceitos, armadilhas e barreiras colocadas no caminho da sua formação académica e profissional, e, enquanto se mantivessem solteiras, tinham, ao menos teoricamente, o direito de dispor de si e decidir o seu destino. Com algumas limitações, como se viu, por exemplo, arriscando ser presas pela polícia se saíssem à noite sozinhas… Muito, muito pior era a situação das casadas, para quem o casamento era sinónimo de servidão. No altar, entregavam a sua liberdade, decaíam, nos termos da lei, para um estatuto de eterna menoridade, semelhante à dos seus próprios filhos, sobre os quais, como é óbvio, não podiam exercer o poder parental. Deviam obediência aos maridos, eram obrigadas a viver no domicílio conjugal por eles escolhido, e, se ousassem abandoná-lo, viam-se sujeitas a “depósito judicial de mulher casada”. Isto é, a detenção pelas autoridades policiais, seguida de “prisão domiciliária”. Careciam de autorização marital para tirar passaporte. Perdiam a capacidade de administrar os bens comuns e até os seus bens próprios. Tudo eram prerrogativas dos maridos, que podiam, ainda, proibi-las de exercer uma profissão, de publicarem um texto, violar a sua correspondência, e, em caso de adultério, assassina-las, sem consequência de maior (a pena era leve, um curto degredo de meses, a cumprir nas proximidades). Parece mentira, mas não é. Estatuto jurídico semelhante ainda hoje persiste, noutras geografias - no Irão, na Arábia Saudita, no Afeganistão talibã… Com uma pequena, mas relevante diferença: o desfasamento das leis com a realidade social portuguesa. Muitas esposas, não sendo juristas e tendo cônjuges amáveis e sensatos, nunca se terão sequer apercebido da sua “capitis diminutio”. 3 – “Ela é apenas mulher” de Maria Archer Contudo, a verdade é que, durante a ditadura, em todos os domínios e no conjunto, as portuguesas foram fortemente condicionadas nas suas escolhas de vida e ficaram aquém dos seus sonhos e reais possibilidades. Para as (e os) jovens de hoje é difícil imaginar as vivências do quotidiano, nos anos da ditadura, sobretudo nas primeiras décadas, mas facilmente encontram esse mundo nas páginas do grande mais famoso romance de Maria Archer, que acima referi. É um dos seus raros livros não esgotados, na reedição da Parceria A. M. Pereira, com prefácio de Maria Teresa Horta. Faço minhas as suas palavras quando diz que que Archer traçou na sua obra literária, “o único retrato autêntico de corpo inteiro” (da mulher portuguesa nessa época), Ninguém melhor do que Maria Archer soube recriar, de uma forma eficaz, crua e rigorosa, a atmosfera social e política que moldava o círculo fechado das mulheres. Ninguém soube melhor escrutinar e denunciar a violência velada das leis arcaicas e dos brandos costumes da sociedade portuguesa, do relacionamento de sexo ou de classe, homens e mulheres imersos na nebulosa de estereótipos, dogmas e falso moralismo, de prepotência e submissão... Ninguém melhor do que ela desconstruiu a imagem da "fada do lar", com os seus dotes de observadora de “quase etnóloga” e com a força subversiva da escrita ao serviço de uma causa, que era a de infirmar o mito salazarista da inferioridade intelectual da Mulher…Aqui fica o convite à descoberta da tão injustamente esquecida Maria Archer, e da sua arte de recriar o reino distópico do salazarismo, derrubado em 1974. É uma forma singular de celebramos o cinquentenário da Revolução e, por feliz coincidência, o 125º aniversário desta romancista extraordinária, que escreveu história do feminismo com a sua própria vida.

terça-feira, 29 de outubro de 2024

PORTUGAL, A EMIGRAÇÃO “A SALTO” E OS CLANDESTINOS DE SUCESSO 1 – Portugal devia ser o último país do mundo e o seu Governo o último Governo do mundo a olhar com uma certa desconfiança ou descaso a emigração clandestina, e a colocar entraves burocráticos à legalização daqueles estrangeiros que, tendo entrado no seu território com visto de turistas, entretanto arranjaram emprego e fizeram os vultosos descontos com que a Segurança Social equilibra o seu orçamento. Na verdade, Portugal é um antigo país de emigração "a salto" para o Brasil colonial, depois, para o Brasil independente, (destino maioritariamente procurado pelos portugueses, que fugiam à pobreza) e, em muito menor escala, para as Américas, e para África. O Estado tentava estancar o êxodo com leis e regulamentos restritivos, e os homens arranjavam maneira de os contornar (digo homens, porque as mulheres ficavam por cá, ou, quando muito, iam ter com eles, numa segunda fase). Estima-se que a percentagem de clandestinos terá rondado os 30%, constantemente, ao longo dos últimos três séculos. O termo "a salto" aplicava-se, inicialmente, àqueles que se escondiam nos barcos baleeiros que aportavam nos Açores, e os levavam em direção ao sonho americano. Muitos deles continuariam a dedicar-se à pesca da baleia, do atum e de outras espécies. Na década de oitenta, ainda fui ao encontro de importantes comunidades piscatórias, no oeste dos EUA, e visitei os maiores atuneiros do mundo, o "Mary C Jane" e o "Elizabeth C Jane", propriedade de açorianos de San Diego. Os portugueses estavam não só à frente da indústria da pesca, como dos estaleiros de barcos, no que respeita a capital, tecnologia e "design". Tendo boa parte desses pioneiros açorianos chegado a New Bedford (onde atualmente ainda marcam fortíssima presença) ou à Califórnia, na situação de "indocumentados", nem por isso foram menos produtivos, ordeiros e empreendedores do que os "legais". Entre uns e outros não há diferença! Assim era, e é, entre portugueses, como entre imigrantes de qualquer outra nacionalidade, credo ou etnia. 2 – Na segunda metade do século XX, razões socioeconómicas e políticas levaram ao desvio das correntes migratórias do sul da América (Brasil, Argentina, Uruguai) para novas geografias, mais a Norte nas Américas (Venezuela, Canadá) e mais perto, na Europa (com a França a tornar-se um “novo Brasil”). Não se pense, porém, que isso significou a diminuição da emigração clandestina. Pelo contrário, aumentaram as saídas “a salto”, expressão recuperada e popularizada, então, para descrever o dramático percurso de centenas de milhares de homens, através das fronteiras terrestres, nas mãos de “passadores” e traficantes. Em finais da década de sessenta, a percentagem de da nossa emigração indocumentada excedia os 50%! O movimento só cessou com a crise mundial de 73, a falta de oferta de emprego, a proibição de entrada, um pouco por todo o lado. A porta de entrada dos países ricos, apenas se entreabria, por razões humanitárias, à reunificação familiar, ou seja, às mulheres. Um estatuto que lhes vedava o acesso ao mercado de trabalho, mas que, na prática, não as impediu de procurar e conseguir emprego, expeditamente. Face a esta enorme massa de imigrantes clandestinos (pobres, rurais, sem qualificação profissional, alguns mesmo analfabetos), o que fizeram os Governos, nomeadamente o francês? Denunciaram o excesso? Expulsaram-nos? Não! Precisavam deles e trataram de os legalizar, sistematicamente, e sem espalhafato, à medida que se iam inserindo no meio laboral. E o resultado não podia ser melhor! O papel das mulheres foi absolutamente crucial na boa inserção de famílias inteiras e os portugueses converteram-se em inesperado paradigma de sucesso. Hoje, os seus filhos e netos estão por todo o lado, nas empresas, nas universidades, até na política! Nos anos 90, durante os Governos de Cavaco Silva, entrou na linguagem corrente a referência aos nossos “emigrantes de sucesso”. Eu proponho uma precisão, chamando à "geração do salto" os nossos “clandestinos de sucesso”! 3 –Num tempo em que o tema imigração domina as reportagens dos “media”, e em que o Governo anuncia novos rumos nas políticas públicas, pareceu-me importante olhar retrospetivamente, neste domínio, o nosso trajeto coletivo e nele buscar inspiração para nortear as políticas, as medidas concretas a tomar, e, o que não é de somenos, a forma de as comunicar à opinião pública e aos interessados. Eu gostava de ouvir os Ministros, os Deputados, os Autarcas a elogiarem os imigrantes, (incluindo os que desempenham tarefas mais modestas), a destacarem, antes do mais, o seu contributo positivo, e a manifestarem preocupação pela defesa dos seus direitos, em vez de receio de "invasão" do nosso espaço... (Isaltino de Morais é, certamente, um singular exemplo a seguir…) Todas as palavras que revelem relutância ou desconforto em relação aos imigrantes, dificulta o seu sentimento de pertença, a sua inserção. Exemplifico: falar de "temos as portas abertas, mas não escancaradas" é uma forma de lhes dizer "sim, mas...". É pouco! O discurso governamental salienta o interesse em atrair talentos, jovens muito qualificados, assim dando à sua vinda um sinal inteiramente favorável. Ótimo! No bom sentido, vai, igualmente, o apelo à emigração familiar, porque é, sem dúvida, um convite ao seu enraizamento, a revelar uma vontade de partilha de horizontes comuns. O que me parece faltar, nesta abordagem, é reconhecer (por palavras e atos) a mesma prioridade e distribuir a mesma simpatia pelos trabalhadores menos qualificados, os que chegam para ocupar os trabalhos mal pagos, rejeitados por nacionais. Afinal, são tão imprescindíveis, ou mais, do que os "talentos"! Sem eles, vários setores da economia entrariam em colapso, da agricultura ao turismo (grande responsável pela surpresa do comportamento económico, acima do esperado). Sem eles, este país estaria condenado a um irreversível envelhecimento. Neste quadro realista, é de elementar bom senso e de inteira justiça, desburocratizar e facilitar a legalização de todos os trabalhadores imigrantes que se prontificam a viver connosco. Estava já criado um regime que permitia aos estrangeiros, com visto de turistas, procurar emprego e, se o conseguissem, regularizar sua situação de trabalhadores e contribuintes para a segurança social, através de uma simples "manifestação de interesse" junto dos serviços. Perfeito - todos ficavam a ganhar, eles, os empregadores, a segurança social, a economia, a sociedade... Em 2024, havia, é verdade, um "contra": a herança caótica do Governo anterior, que levou para angustiantes filas de espera dezenas e dezenas de milhares de estrangeiros, face à incapacidade da Administração de dar sequência e de concluir os seus processos (um resultado da apressada extinção do SEF e da atribulada constituição da AIMA). E talvez isso justificasse a suspensão temporária das "manifestações de interesse". Porém, uma vez superada a crise de sucessão do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, (que não é culpa dos imigrantes, mas do Estado), a que propósito impor medidas restritivas (ou persecutórias) a pessoas já com provas dadas, meios de subsistência e vontade de integração? Qual a vantagem de as obrigar a saírem para, eventualmente, regressarem, depois de enormes transtornos e despesas, com mais um pequeno papel na mão, o novo visto? 4 – No século passado, os clandestinos portugueses, nos países para onde foram, sem “visto de trabalho” viram, quase sempre, regularizada a sua situação, de uma forma casuística. Mas nem sempre… eu própria negociei, muito discretamente, há quarenta e tal anos, por exemplo, a regularização do estatuto de milhares de portugueses na Venezuela. E há aqueles portugueses, que foram à aventura, há anos, com um visto de turismo, e que, ainda hoje, não têm o seu problema resolvido, nomeadamente nos EUA. E se Trump vencer as eleições de novembro (como é provável, num país onde, à direita, campeia a mais desenfreada misoginia, a par do “discurso de ódio” contra os imigrantes) milhares de portugueses, alguns dos quais jovens que nem a nossa língua falam, podem vir a ser expulsos. O risco é real, e mostra que o sucesso ou insucesso dos clandestinos pode estar dependente das políticas públicas de legalização e de acolhimento. É a hora de nós estarmos do lado certo.

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

EMIGRAR OU NÃO EMIGRAR, EIS A QUESTÃO 1 – Uma maioria de portugueses, a avaliar por uma recente sondagem, gostaria de ver o Governo a proibir a emigração dos seus concidadãos! Ou seja: um regresso às leis e às práticas da ditadura, à repressão policial e à saída “a salto”. Custa a acreditar, mesmo num contexto em que o fenómeno do crescimento da emigração de jovens altamente qualificados está, preocupantemente, na “ordem do dia” e em que irrompem na cena política forças de extrema-direita. Os democratas têm de saber lidar com estas pulsões autoritárias e demagógicas, desmontando o puzzle de mentiras em que assenta a sua expansão. O problema existe e deve ser encarado com realismo e bom senso. A única via a excluir é, precisamente, a supressão dos direitos fundamentais, a liberdade de circulação das pessoas, que está consagrada na Constituição Portuguesa e é um dos princípios fundadores da União Europeia. O Governo não pode fechar fronteiras, mas pode dar aos portugueses perspetivas e oportunidades de viverem bem no seu país. É exatamente o que o atual Governo, olhando prioritariamente os jovens, se prepara para fazer, embora através de uma fórmula que está a levantar enorme polémica. Sobre esta, centrando-me na vertente migratória, direi o que penso, mas não sem antes referir algumas lições da nossa longa história de políticas públicas de emigração, a começar pelas políticas de proibição ou condicionamento de fluxos de saída. 2- Mostra-nos a história que quando o Estado abria portas à emigração, os portugueses partiam, gostosamente, em massa, e, quando a obstaculizava com leis, sanções penais e perseguição policial, partiam, em massa, sem medo de transgredir… Ditames do Poder nunca os impediram de procurar uma vida melhor, lá longe, se necessário, pelos caminhos da clandestinidade… Em mais de quinhentos anos de êxodo imparável, em sucessivos ciclos, que se entrelaçavam, foram milhões os que saíram “a salto” por mar ou terra, a tal obrigados porque, de facto, nunca, antes da Revolução de 1974, houve, em Portugal, inteira liberdade de emigrar. A permissão era concedida aos contingentes considerados suportáveis, ou vantajosos, não de um ponto de vista personalista ou humanista, mas na perspetiva do Estado, omnipotente “intérprete” do “interesse geral”. 3 – Assim sintetizada a vã tentativa de controlar, durante cinco séculos, migrações (quase sempre) consideradas excessivas, vejamos o ocorrido nas últimas cinco décadas de democracia, com políticas respeitadoras da liberdade individual de emigrar e regressar. Houve de tudo, sucessos e “flops”. O sucesso dependeu sempre do realismo de propostas que iam ao encontro do que as pessoas precisavam e queriam. Dou alguns exemplos, principiando, cronologicamente, pelos Governos Provisórios e a sua generosa, mas utópica chamada ao novo Portugal da Liberdade de todos, (todos!) os expatriados. Para além de personalidades exiladas (como Soares ou Cunhal), o apelo não terá atraído nenhum dos emigrados por razões económicas. Cautamente, esperaram o fim do PREC e a estabilização da economia… Em desordem e maciçamente, chegaram, sim, os retornados de África. Quase um milhão de portugueses, que recomeçaram a vida do zero, e se integraram, globalmente, muitíssimo melhor do que o previsto. Não obstante isso, o dramático retorno criou, tanto na opinião pública como na da “classe política”, o mal disfarçado pavor do súbito e vultoso regresso dos emigrantes da Europa... Os governantes não ousaram eliminar medidas anteriormente estabelecidas para o apoio ao regresso e a captação de poupanças (como isenções fiscais e alfandegárias e concessão de créditos, a juro bonificado, para habitação ou para investimentos), mas alteraram o discurso oficial, proclamando não haver condições económicas para acolhimento e reintegração de emigrantes. Mais uma vez se enganaram… As mesmas pessoas que, nos anos sessenta, partiram sem serem vistas, nos anos oitenta (mais exatamente desde fins de setenta), iniciaram, também sem serem vistas, o seu regresso a casa - gradual, seguro e imparável. Com o que dinamizaram as suas terras de origem, desertificadas pela emigração, aproveitando, regra geral bem, o conjunto de benefícios ao seu dispor. Por sorte, acompanhei, de perto, este processo, em quatro mandatos governamentais, sempre otimista (contra corrente, é claro...), certa de que as pessoas, as famílias sabiam, melhor do que os governantes, escolher o momento de voltar ou de tomar a decisão definitiva de permanecer no estrangeiro (as duas metades do todo, as duas opções igualmente respeitáveis). Debalde, entre 1980 e 1987, enumerei, mil e uma vezes, os evidentes benefícios do regresso bem planeado, que, aliás, já estava a ocorrer, nomeadamente, no interior, repovoando regiões que a emigração desertificara. Com exceção de alguns peritos e investigadores universitários e dos próprios emigrantes, o meu otimismo não era largamente partilhado… Entre nós, há sempre tendência a acreditar, mais depressa, em “profetas da desgraça” … No período áureo do Cavaquismo, colhendo os frutos da adesão à CEE, o discurso oficial mudou radicalmente, anunciando que Portugal já não era um país de “emigração”, mas de “imigração”. O ufanismo era, no mínimo, prematuro. Dezenas de milhares de portugueses (maioritariamente trabalhadores sazonais), continuavam a sair para onde quer que houvesse um emprego. E a “mão de obra” estrangeira só haveria de chegar, em número considerável, no final de século, atingindo, em anos mais recentes, um peso muito maior. Porém, contrariando a previsão dos governantes da década de noventa, o aumento da entrada de estrangeiros não coincidiu com a diminuição dos fluxos de saída de nacionais. Pelo contrário: à nossa emigração tradicional, pouco qualificada, juntou-se o êxodo de cérebros (o “brain drain”), fenómeno inteiramente novo…jovens com formação académica, enfermeiros, médicos, engenheiros... Insensível à gravidade do problema, o Primeiro Ministro Passos Coelho, na era da “troika”, incitou essa juventude a sair da “zona de conforto”, a expatriar-se!! O conselho era supérfluo era um mau conselho. Supérfluo, porque, na verdade, os portugueses nunca precisaram de incitamento para partir, e mau, porque, ultrapassada a conjuntura, eles fariam, previsivelmente, muita falta Seguiu-se o Primeiro-Ministro António Costa, que tentou recuperar esses tais jovens para o país, com medidas de natureza fiscal (nomeadamente, o alívio do IRS durante os primeiros anos após a chegada). O programa foi muito publicitado, mas, ao que parece, pouco eficaz. Os supostos candidatos não se deixaram tentar, em número significativo, pela prebenda fiscal… 4 – E eis-nos, no presente, com o Primeiro-Ministro Luís Montenegro, nosso estimado conterrâneo. Também ele tem uma sua oferenda fiscal como via de solução do problema. A ideia é conceder aos jovens até aos 35 anos, uma substancial redução do IRS, para os dissuadir da aventura da emigração. O intento é louvável e, neste campo, coloca-o nas antípodas de Passos Coelho, (o que para mim, é coisa excelente!), mas…. Há vários “mas”, entre eles, o custo, (estimado em cerca de mil milhões de euros), a constitucionalidade duvidosa desta discriminação idadista, e, sobretudo, a mais do que duvidosa eficácia desta medida no combate à "emigração jovem". Abater o IRS equivale a aumentar o salário, no escalão etário que vai até aos 35 anos, com a certeza de um corte brutal, a partir dos 36… O horizonte é curto! A emigração promete mais: um longo futuro, não só em termos de remuneração, mas de segurança de carreira, condições de trabalho, promoções, valorização profissional ... O mais provável é a benesse fiscal ser aproveitada pelos que já optaram por não emigrar. A baixa temporária no IRS não será fator de peso na decisão final – tal como nos anos oitenta, o pacote de apoio ao regresso não determinou o regresso, embora o possa ter antecipado, em alguns casos, e o tenha, sempre, facilitado. Este dispendioso e controverso IRS “idadista”, a meu ver, não impedirá o êxodo! Os jovens que se sentem mal pagos e injustiçados, vão, do mesmo modo, fazer a mala e zarpar. Ficam os demais: de um lado, os resignados e, do outro, os privilegiados da faixa dos 4000 a 6000 euros… Certo, certo é que Portugal continuará a ser “o país das migrações sem fim”, enquanto não atingir os níveis de desenvolvimento da vanguarda europeia. O que os portugueses de todas as idades querem é isso. A prosperidade que lhes garanta “o direito de não emigrarem”.

domingo, 8 de setembro de 2024

O MEMORÁVEL AGOSTO DE KAMALA (Harris) e KÉPLER (Pepe) 1 - Para a maioria dos portugueses, agosto é o mês sonhado ao longo do ano inteiro, mês de libertação de penosas rotinas. Não para mim! Oferecia-me como "voluntária" de serviço, a substituir os colegas, quando não os chefes. Durante os anos em que estive ligada à emigração, o meu agosto era agradavelmente passado em colóquios, sessões de esclarecimento (então muito em voga!), convívios, e festivais de emigrantes. Um ano houve, em que fiquei à frente dos destinos do Ministério dos Negócios Estrangeiros e me coube decidir a reação ao reconhecimento oficial, pela Austrália, da anexação de Timor-Leste pelo invasor indonésio. Talvez o Ministro não tivesse ido tão longe, mas eu não hesitei em protestar, recorrendo à medida extrema de retirar, temporariamente, o nosso Embaixador de Camberra, chamando-o a Lisboa (nunca simpatizei com potências invasoras…) Apesar de, em regra, poucos eventos relevantes acontecerem no oitavo mês do calendário, há bastantes exceções, boas e más, como se viu neste 2024. Deixando as piores, para outras crónicas, direi que não nos faltaram grandiosos espetáculos e emoções fortes, no desporto e na política (na política internacional – por cá, apenas o habitual, a “rentrée” dos partidos, tudo sob controlo, com a extrema direita a deitar foguetes), Desportivamente, mal esmoreciam os ecos do “Europeu” de futebol, começavam os jogos olímpicos de Paris, onde, (“hélas”!), sofremos as desilusões habituais, com o ciclismo a salvar a face Pátria (há sempre alguém que resiste à mediocridade!). Nos domínios da política, assistimos à estrondosa demissão de Biden, à Convenção do Partido Democrático e à meteórica ascensão de Kamala Harris. 2 – O “fenómeno Kamala” entrou na história da América, na história do feminismo (universal), e vai entrar, também, nos manuais de ciência política. O acaso catapultou para o centro do palco, uma Vice-presidente que fora deixada na sombra, a cumprir tudo o que era tarefa menor ou de mau prognóstico (sina muito comum a vice-presidentes seja do que for…). Uma vez aí chegada, encantou a América, finalmente vista na sua verdadeira dimensão, e tal como é: pessoa amável, competente e corajosa, com uma impressionante folha de serviço público, a aplicar o Direito e a fazer Justiça, no quotidiano. Uma jurista brilhante, que pode proclamar, com orgulho, só ter tido um “patrão” e um “cliente”: o Povo! No seu primeiro dia de trabalho, entrou num tribunal e disse: Kamala Harris for the People”. E nunca mais quis outra missão, antes e depois de ter sido a primeira mulher eleita Procuradora Geral do Estado da Califórnia, antes e depois da Convenção que a sagrou candidata às presidenciais por um Partido Democrático, hoje mais unido do que nunca. A apagada Vice-presidente, figura encoberta, (talvez deliberadamente encoberta…), viu-se descoberta, da noite para o dia, como nº 1,, revelando.se uma personalidade carismática e mobilizadora, a viva imagem de alegria, com a seu sorriso espontâneo e o seu ímpeto de solidariedade e tolerância. The joyful warrior”, “A guerreira alegre”. Numa síntese perfeita, que podia virar pregão de campanha, Barak Obama refez o seu próprio slogan (Yes, we can!), no feminino: “Yes, she can!”. Para a metade feminina, ainda genericamente subestimada e marginalizada nos caminhos que levam ao Poder, Kamela é um exemplo do que pode ser o destino de tantas mulheres mantidas no anonimato, e a quem só falta uma oportunidade para mostrarem o que são e o que valem. O complexo sistema americano favorece os votantes da “América profunda” (e, em geral, profundamente retrógrada), em alguns dos chamados “swing states”, pelo que o resultado final é incerto. Pode Kamala, como Hillary, ganhar amplamente o voto popular e perder nos meandros do colégio eleitoral. Contudo, a partir de agora, ao contrário de Hillary, se quiser, ainda tem idade, apoios, horizonte político, para tentar de novo. O futuro da Europa e do mundo está irremediavelmente ligado ao da América e por isso devemos olhar estas eleições cruciais como se fossem nossas, e ter o "nosso" candidato. O meu é Kamala! Por todas as razões e mais uma, pensando em Portugal, na Europa, na NATO, na Ucrânia, nos aliados do Próximo Oriente, do Extremo Oriente. Decisão fácil…. O contraste com o seu adversário não podia ser maior, como num jogo de luz e de trevas! De um lado, os “alegres guerreiros”, com o seu apelo ao diálogo democrático, ao respeito das diferenças, à união. Do outro, os “angry men”, inventores de “fake news” e profetas do ódio e da calúnia… De um lado, a defesa do Estado de Direito e dos nossos valores civilizacionais, por pessoas de bem, com “curriculum” limpo. Do outro, o“fora de lei” enraivecido, (que orquestrou o “assalto ao Capitólio” em fim de mandato, e já foi condenado por 34 crimes!), o amigo de déspotas sanguinários (Putin, Kim Jong un), ou de perigosos extremistas de direita, como Netanyahu e Viktor Orban… Donald Trump é um homem de passado desbragado e negócios duvidosos (com um curriculum longo de falências fraudulentas e de casos de assédio sexual…). Mentiroso compulsivo, misógino, racista, mais parece personagem saída de um filme de terror! Recordo que, não há muitos meses, veio ameaçar a Europa com um eventual pedido seu a Putin para que invada os países que não atingiram as metas do investimento para a defesa comum (um dos quais é, como se sabe, Portugal…), Por cá, o “trumpismo” é representado, em tom de comédia, pelo Chega de Ventura. Isso não oferece dúvidas, bate certo, é compreensível. Absolutamente incompreensível é a apregoada “neutralidade” do PSD, em declarações do líder da bancada parlamentar, perante o silêncio cúmplice dos responsáveis máximos do partido e do Governo. Se não é, parece “trumpismo” envergonhado! Entre os “notáveis” das várias alas “laranja”, para já, só Marques Mendes levantou a voz, numa censura branda (branda, mas inequívoca) àqueles seus correligionários. 3 – O meu outro grande destaque deste agosto de 2024, vai para um fulgurante fim de carreira, numa outra área. É uma simples, mas sincera homenagem a Képler Laveran Lima Ferreira, que o mundo do futebol eternizará como “Pepe”. O nome já lendário de um dos melhores jogadores de todos os tempos e de todas as geografias, que mostrou a sua classe ao serviço de grandes clubes e ganhou tudo o que havia para ganhar: 29 títulos, entre os mais prestigiados. 141 internacionalizações pela Seleção (o 3º desse ranking). O mais velho jogador de sempre a competir num Europeu, em grande forma, em grande estilo! Pepe é um fenómeno de longevidade e de classe pura, um superdotado que se tornou exemplar, não só pela qualidade de jogo, como pela qualidade humana, por ter vivido uma longuíssima carreira sempre em crescendo, sempre a transcender-se! Com mais de 41 anos, fez o último jogo, no auge, numa corrida épica, vindo de trás, já quase no 120º minuto da partida, para ganhar um lance decisivo, em velocidade e em técnica, a um “craque” francês, com idade para ser seu filho! Desta derradeira campanha, em que a seleção nacional (batida pela França nos "penalties"), não esteve à sua altura, saiu em lágrimas, mas saiu como um herói. Convocado para o “Europeu”, após algum tempo de afastamento por lesão, alguns críticos, de início, duvidavam da sua capacidade de ser útil à equipa, mas todos acabaram por reconhecer a excelência do seu desempenho! Rendidos, os críticos escreviam que ele tinha tudo: “leitura de jogo, antecipação, posicionamento, acerto no tempo, voz de liderança”. Adjetivos como “assombroso” ou “imperial” colaram-se às fantásticas exibições com que Pepe disse adeus aos estádios. O público juntou-se aos comentadores e consagrou-o com os seus aplausos. Festejavam cada ação defensiva sua “como se de um golo se tratasse”. As crónicas jornalísticas testemunharam: “Claque vibra com Pepe”; “Adeptos fizeram vénias ao central, quando foi substituído”. A certa altura, o atleta, que tinha tanto de talentoso como de modesto, confessou-se muito surpreendido: “Estou sem palavras…” Neste mês de agosto, comunicou o seu final de carreira, num emotivo e belíssimo vídeo, em que aparece sozinho, rodeado de troféus conquistados. Imprescindível na Seleção nacional, Pepe tornara-se prescindível no seu clube, e não quis jogar em qualquer outro. Sobre isso, faço minhas as palavras duras de Miguel Sousa Tavares.... Sobre o adeus apenas sublinho que o ser tão prematuro acrescenta à lenda de um jogador absolutamente fantástico, que não envelheceu no campo, e se despediu em glória, com a camisola de Portugal.

sábado, 3 de agosto de 2024

2024 - EFEMÉRIDES

EFEMÉRIDES 2024 - NO CINQUENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO, O CENTENÁRIO DE SOARES E OS 90 ANOS DE SÁ CARNEIRO 1 - Francisco Sá Carneiro nasceu no Porto, em 1934. Teria completado 90 anos no passado dia 19 de julho. Era dez anos mais novo do que Mário Soares, cujo centenário será celebrado, a partir do próximo dia 7 de dezembro. Sá Carneiro e Mário Soares, os fundadores dos maiores partidos da democracia nascente! Cinco décadas depois, PSD e PS, ainda repartem o centro político, moderado e reformista, com o voto largamente maioritário dos portugueses. Pelo contrário, à sua esquerda e direita, PCP e CDS iam minguando, enfraquecidos pela concorrência eficiente de formações que foram apareceram (e, algumas, desaparecendo), nas margens do “centrão”. Foi, pois, num contexto de maior equilíbrio de forças que os quatro principais partidos portugueses fizeram história por caminhos abertos pela Revolução, com lideranças de tal modo carismáticas e mobilizadoras, que não poderemos compreender inteiramente as metamorfoses da sociedade e da política portuguesa de então, sem refletir o seu pensamento e a sua ação.... 2 - A dia 25 de Abril de 1974, Sá Carneiro estava prestes a completar quarenta anos, Soares ia a caminho dos cinquenta, Álvaro Cunhal era já era sexagenário e Freitas do Amaral ainda não tinha feito trinta e três anos. Este curioso escalonamento de idades é, porém, menos relevante do que outras diferenças, de origem familiar e regional, de perfil, de ideologia e visão estratégica, de empatia com um povo ansioso pela mudança. Diferenças, mas também semelhanças - e não penso na formação académica (eram todos juristas da Universidade de Lisboa), mas na marca das suas qualidades pessoais e políticas na refundação de um regime. Todos eles homens com sentido de missão, norteados por valores, por muito contraditórios que fossem (e eram) as suas mundivisões. 3 – Nas inesquecíveis comemorações do cinquentenário de Abril/74, o foco não esteve nestas quatro personalidades, isto é, na componente civilista da Revolução, mas acho que deveria estar no período restante de programação, até ao seu fecho simbólico em 1976, (no cinquentenário da Constituição da República Portuguesa). Isso não significa desvalorizar a cota parte dos militares, mas antes abranger, num olhar envolvente, as duas metades do todo. Suponho que a Comissão das Comemorações, constituída, com pompa e circunstância, para oficiar o ritual festivo não o fará - e, de qualquer modo, o que quer quer que faça não se nota muito - e os poderes públicos provavelmente também não. Ponho a minha esperança no dinamismo da "sociedade civil", em ONG e em “fora” de debates, quer tenham, ou não, afinidades com formações partidárias. O momento é asado, com a confluência das três efemérides, que dão título a esta crónica. 4 - No caso do Dr. Soares, mais do que esperança, há certezas. A preparação das comemorações do seu centenário está em curso, por iniciativa da Fundação com seu nome (e, agora, também, o de sua Mulher) e que assinalará, entre dezembro de 2024 e 2025, um século na vida do País e do Homem, que esteve na resistência a uma ditadura de quase cinquenta anos, e na construção da democracia, que se estendeu pelos outros cinquenta. A “Fundação Mário Soares e Maria Barroso” vem desempenhando um papel exemplar na preservação de um precioso arquivo (o do fundador e não só), e no debate de ideias – no quadrante político que era o dele, fiel ao seu espírito de abertura ao exterior, ao meio académico, ao mundo da lusofonia. Um paradigma difícil de seguir... 5 – Sá Carneiro, nos 90 anos do nascimento de Sá Carneiro, merece, obviamente, igual reconhecimento pelo muito que lhe cabe na arquitetura da nossa democracia, igual preocupação na preservação do seu legado. Do Instituto Francisco Sá Carneiro (o antigo "Instituto Progresso Social e Democracia", rebatizado após a sua morte), se esperaria motivação bastante para o homenagear nesta data, já que na sua folha de apresentação destaca a “aposta” na "valorização da memória do político singular que nos deu o nome". Muito estranha é, por isso, esta omissão. Invocar o seu nome na Universidade de verão e similares, ou dar à estampa, de vinte em vinte anos, edições de curtos depoimentos sobre a sua pessoa e percurso político (em 2000, uma coletânea intitulada "Francisco Sá Carneiro - um olhar próximo", em 2020, com a chancela da JSD, uma segunda coletânea "40 anos, 40 testemunhos sobre Sá Carneiro") e reedições de escritos pouco cuidadas ou acrescentadas, não me parece esforço bastante... 6 - Nada contra as coletâneas, são textos interessantes de ler e reler, mas não substituem a investigação científica aprofundada, a edição de ensaios críticos, o debate académico, em que se deveria alicerçar a divulgação da sua mensagem. E que dizer do tratamento dos arquivos de Sá Carneiro, da recolha de arquivos de velhos militantes, que, por incúria, se vão perdendo? (nem todos, sei que alguns dos mais importantes foram oferecidos, não ao Instituto, mas à "Ephemera", e é fácil perceber o porquê da preferência...). 7 – Contudo, apesar da inércia das estruturas partidárias, Sá Carneiro teve na sua cidade, na noite de 19 de julho passado, o merecido tributo, por iniciativa de um grupo de militantes portuenses do PSD, reunidos no fórum "Porto Laranja". O fórum organizou um jantar - conferência, com José Pacheco Pereira como orador e com mais de uma centena de participantes (tantos quantos o restaurante comportava). O conferencista começou a sua brilhante intervenção pela mostra de documentos inéditos sobre Sá Carneiro e sobre o PPD nos dias agitados da Revolução, mobilizou ânimos, dialogou com os presentes até muito depois da meia-noite. Só espero que haja mais diálogo com quem possa, assim, esclarecer-nos e entusiasmar-nos. Num país que, cronicamente, descura o seu património acervos, a todos os níveis, e em todos os domínios, Pacheco Pereira, com a sua já famosa "Biblioteca e Arquivos Ephemera", está convertido num verdadeiro "herói da resistência" à indiferença que, em linha reta, leva à destruição de documentos, registos de factos, memórias, a que não escapam algumas das mais altas figuras da Pátria... 8 - Uma das surpreendentes revelações de Pacheco Pereira foi a existência de muitas e sucessivas emendas dos textos de Sá Carneiro, (feitas por sua própria mão), que não têm sido respeitadas, nomeadamente, nas recentes reedições dos "Escritos". E mais ainda: a existência de inúmeros textos inéditos, que permanecem fechados nas gavetas e deveriam ser publicados.. Passo importante para aproximar as novas gerações de um Sá Carneiro, demasiadamente ignorado, apesar de tão citado (geralmente de uma forma sintética ou ligeira), e de tão elogiado, (a traços largos e, tantas vezes, com ambiguidade, por antigos opositores, de fora e, sobretudo, de dentro do partido). Um retrato de luzes e de sombras, delineado em algumas das suas mais ambiciosas biografias, na pena dos autores que me parece ser guiada mais por testemunhos hostis do que positivos. É o caso da obra de Miguel Pinheiro, anunciada como fruto de "cinco anos de trabalho exaustivo", abrangendo 76 entrevistas a familiares, companheiros e adversários. Muito esforço, sem dúvida, prejudicado pela falta de equilíbrio na avaliação ou dosagem de testemunhos, (muitos mais contra do que a favor)… 9 - Assim pensa quem sempre foi "Sacarneirista". Um dia darei sobre ele o meu subjetivo testemunho. Aqui e agora, direi apenas que acompanhei o seu percurso, desde a "ala liberal" ao dia 4 de dezembro de 1980, de longe, como cidadã atenta aos seus escritos e intervenções. E, quando o conheci, de perto, num ano incompleto, como membro do seu Governo, confirmei as sintonias, em toda a sua extensão! Em Sá Carneiro, apreciava as qualidades, e, acima de tudo, dos defeitos que lhe apontavam, um dos quais era ter razão "antes do tempo". Por exemplo, ter razão quando, já em 1974, confiava, em absoluto, na capacidade dos portugueses para viverem a democracia plena, sem paternalismos nem tutelas militares. Portugal foi sempre a sua aposta de alto risco!

segunda-feira, 1 de julho de 2024

FUTEBOL MASCULINO, FUTEBOL FEMININO

FUTEBOL MASCULINO, FUTEBOL FEMININO Os "Apaixonados" e as "Navegadoras" O futebol anima este início de verão, com o Euro 2024, porque Portugal promete. "First we take Leipzig, then we take Berlin". Veremos se cumpre, chegando a Berlim, numa transposição (puramente desportiva) da música de Cohen, ao ritmo imposto aos "apaixonados" pelo génio de Vitinha. "Apaixonados"?... Que ideia, a de Martinez, de chamar isso aos rapazes! No ano do 5º centenário de Camões, é incrível não se lembrarem do óbvio cognome de "Lusíadas". Em tempo de ínfimas comemorações nacionais, seria bonito darem ao Poeta, depois de um aeroporto de incerto futuro, uma real e talentosa equipa de futebol masculino. Há que especificar o género, desde que deixou de ser um desporto "intrinsecamente masculino". De facto, até na nossa tão misógina sociedade, mulheres e homens acompanham os jogos com idêntica "paixão". A igualdade está, mais ou menos, conseguida nas bancadas dos estádios e nas "fun zones", não ainda dentro do retângulo, apesar dos maiores clubes já terem equipas femininas competitivas, base de uma seleção que, no último Mundial, deu um ar da sua graça. A exceção é o FC Porto, que, neste aspeto, permanece abaixo dos clubes da Arábia Saudita e do Qatar, embora já com o seu debute anunciado (promessa eleitoral comum às duas listas principais). Longa se adivinha a caminhada, visto que milagre semelhante ao do campeoníssimo voleibol feminino portista não parece estar no horizonte da década! Portugal não é, porém, nem histórica, nem atualmente, um caso isolado de discriminação de sexo no desporto-rei. Sabiam que chegou a ser não só proibida, mas também criminalizada, a sua prática pelas mulheres, por exemplo, no Brasil ou na França, em pleno século XX? Por ditaduras, dir-se-à - Getúlio Vargas, governo colaboracionista de Vichy, (no início de quarenta). Engano! Até na democrática Grã-Bretanha, onde há notícias de "football" ensaiado por mulheres desde o século XVIII, isso lhes foi interdito, durante quase meio século (de 1921 a 1967). Em França o banimento foi levantado em 1970, no Brasil só tiveram licença para competir em 1983. Um argumento pretensamente científico sustentava o proibicionismo de legisladores, governos ou federações: tratava-se de um jogo violento, inadequado à natureza, à estrutura física da mulher, prejudicando a sua saúde e fertilidade. (o futebol a prejudicar a reprodução da espécie - que ameaça!). A viragem dá-se na década de 80, não por "mea culpa" dos cientistas, mas, suponho, pela evidência da prática de outras modalidades desportivas que se iam abrindo a mulheres. O 1º Campeonato da Europa de Futebol Feminino é realizado em 1984, o 1ª Campeonato do Mundo em 1991 (após "ensaio geral" da FIFA num torneio internacional disputado na China, em 1988, com bastante sucesso popular). No masculino, a FIFA tentara, sem êxito, lançar o Mundial quase noventa anos antes, em 1904. Optou, em 1908, pelo facilitismo de considerar a competição olímpica um Mundial de Futebol (amador). Jules Rimet afasta-se desse rumo, e, em 1930 consegue organizar o 1º Campeonato Mundial, no Uruguai. Escolha natural, porque era a equipa campeã olímpica de 2024 e 2028. E, por sinal, venceu, também, essa primeira edição. O futebol europeu estava em segundo plano... A UEFA foi criada em 1954 e realizou o seu 1º torneio, em 1960, com o título de "Campeonato das Nações Europeias" e uma vitória da URSS. A designação atual foi adotada em 1966/68. Há, assim, no século XX, uma diferença de quase nove décadas entre o início da competição masculina (nas Olimpíadas "apropriadas" pela FIFA) e da feminina. Na Europa, em menos de meio século, o atraso cifra-se em nada menos do que 24 anos.... O Caso Português Estranhamente, Salazar, ao contrário dos seus “compagnons de route”, nomeadamente franceses e brasileiros, não terá sancionado, nas leis penais, a prática do "foot" feminino. Procurei traços de legiferação, neste capítulo, e não encontrei - admito que posso ter falhado a pesquisa. Não é, de todo, caso para dar mérito ao ditador, antes para reconhecer o demérito de uma sociedade arcaica, onde nem sequer havia potenciais jogadoras - ou infratoras. O ditador não podia saber do meu mau exemplo de menina que jogava futebol de rua, no meio dos meninos, e organizava torneios femininos clandestinos no Colégio do Sardão. Tudo isto, em fins da década de 40 e inícios de 50, na esteira de Nettie Honeyball, a feminista contemporânea de minhas avós, que fundou o pioneiro "Ladies Fottball Club". (Ao contrário da "british" Nettie, não fui mais do que uma exceção absolutamente irrelevante, mas diverti-me imenso e fartei-me de marcar golos). No calendário oficial, em termos europeus, Portugal começou bem, com a organização da Taça Nacional de Futebol Feminino, em 1985, mas com Silva Resende no comando federativo cai num impasse. Em 1993, por iniciativa de Carlos Queiroz, a FPF recomeçou do zero, convidando para o cargo de selecionador nacional um grande senhor do futebol, António Simões, vindo dos EUA, onde o "soccer" feminino estava no topo do "ranking" mundial. Nas suas próprias palavras: "confrontei-me com uma sociedade muito conservadora, que não queria que as mulheres jogassem: o futebol era só para homens [...] hoje sou um homem feliz, porque se ultrapassaram uma série de preconceitos. Levou 30 anos. Não interessa". Simões orgulha-se, justamente, do seu pioneirismo! A partir de 2012, com a visão do Presidente Fernando Gomes, assiste-se a um salto qualitativo, e logo em 2017, elas têm presença honrosa no Europeu, com uma vitória sobre a Escócia, em 2022, alcançam uma primeira qualificação para o mundial, onde se bateram, de igual para igual, contra potências como os Países-Baixos e os EUA (com um empate, depois de vencerem, sem dificuldade, o Vietnam). Comparativamente, a trajetória ascendente do outro sexo, nos mundiais, foi mais vagarosa - trinta e tal anos para alcançar a primeira qualificação, em 1966. Uma estreia com um sensacional 3º lugar (havia Eusébio, havia o referido Simões)! De seguida, falhamos a qualificação, em 1970 e 1982. Voltamos em 1986 e não passamos da fase de grupos. Novas ausências entre 1990 a 1998. A partir de 2002, sim, marcamos presença ininterrupta, ainda que a melhor classificação seja o 4º lugar de 2006. No Euro, também nos quedamos fora da grande competição por mais de duas décadas e só em 2002 entramos no círculo dos "grandes". Sem mais ausências, sagramo-nos vice-campeões em 2004 e campeões em 2016. A pior classificação do século foi a de 2020 - caímos nos oitavos de final, pelo que está na hora de nos redimirmos... 3 – Progressos e Preconceitos (de Sexo e de Idade) Sendo este o panorama global do futebol português, a palavra “progresso” parece, ajustada a ambos os sexos, ainda que as "Navegadoras" tenham pela frente um longo combate contra discriminações e mal disfarçada oposição de muitos, sobretudo no mundo do futebol, o "futebol empresa", a imperar sobre o "futebol desporto". Melhores aliados se revelam as instâncias internacionais, FIFA e UEFA, e, sobretudo, o público, que vai aderindo à espetacularidade de um jogo mais aberto e espontâneo, ainda mais desporto do que negócio. Em matéria de preconceitos, os homens, na prática, só têm de se confrontar com o “idadismo”, (do qual elas também não estão isentas.). A velhice, neste universo, chega aos trinta e tal anos, a partir dos quais a longevidade, em alta competição, é coisa rara. Portugal tem neste Euro duas fantásticas "raridades", Pepe e Ronaldo. Não se limitam a estar lá, em igualdade de mérito e competência e a serem os mais velhos em competição. Enchem os estádios com a sua magia! Tal como Modric da Croácia. (que pena, a seleção não ter passado a fase de grupos no seu derradeiro Euro!). RONALDO é, por si só, uma bandeira do desporto e do País. Arrasta multidões, de dentro para fora e de fora para dentro do campo. Em Dortmund, até um menino turco invadiu o campo para uma “selfie” com o seu herói e não faltavam adeptos turcos, envergando a camisola das quinas, nº 7, a confundirem-se com os portugueses. PEPE, a caminho dos 42 anos, bate um recorde "impossível", a jogar como sempre, ou como nunca. Por várias vezes, na 2ª parte, se viu o público a aplaudir os seus cortes cirúrgicos de bola, como se fossem golos. E ainda teve fôlego, para ir à frente, tentar a sorte. Terminar a carreira? Não, por favor! No Botafogo, no Al Nassr, onde quer que seja, eu quero continuar torcendo por Pepe! Que o FC Porto estava fora desta corrida, depois do “imbróglio Conceição” (Conceição pai), era, infelizmente, constatação óbvia. A confirmação do novo líder (ou líder novo), foi supérflua, extemporânea e, em início de Europeu, podia ter sido nociva. Não foi, talvez tenha mesmo constituído um motivo extra, para Pepe se transcender. No desporto, assim se responde, quando a classe abunda e conta mais do que a idade! Maria Manuela Aguiar

quinta-feira, 30 de maio de 2024

AS MULHERES NOS TEMPOS DO “ESTADO NOVO”

AS MULHERES NOS TEMPOS DO “ESTADO NOVO” 1 – “Antes do 25 de Abril era proibido” de António Costa Santos Nas diversas iniciativas integradas nas comemorações da Revolução de 1974 em que participei, entre março e maio, numa data tão especial como é a do seu cinquentenário, a maioria colocava o enfoque na situação das mulheres portuguesas. No antes e no depois. Duas metades de um século. Não terá sido por acaso – é um ângulo ideal para compreender o espírito do “Estado Novo”. Do corporativismo, enquanto doutrina totalitária e enquanto movimento anti personalista, que combatia, por igual, o comunismo e o liberalismo, condenando radicalmente o individualismo. A sua primeira principal vítima sacrificial seria a mulher - a mulher, em geral, e a mulher casada, em particular, porque a sua individualidade se fundia no núcleo familiar, e ficava sujeita à autoridade do marido, a quem, tal como os seus próprios filhos, devia obediência. Nessa unidade orgânica, como nas empresas, na sociedade, na política, os papéis eram definidos pelo Estado, que zelava pela sua rígida conservação. O homem detinha a chefia da família, como Salazar a chefia do Governo. Cada marido era um micro ditador doméstico, à imagem e semelhança do Grande Ditador nacional. Cabia-lhes interpretar e decidir o "bem comum" do seu agregado, mandar, censurar, proibir… Muitas das proibições legais de então, hoje, causam espanto ou fazem hoje rir. Para quem queira, percorrer, ludicamente, a lista de alguns dos mais incríveis tabus do salazarismo, recomenda-se o livro referido em epígrafe. Faltará, aqui e ali, rigor científico, em alguns casos, especificidades verdadeiras nos anos trinta, já não o eram nos anos sessenta ou setenta, por força da alteração de mentalidades e costumes… De qualquer modo, dá-nos uma narrativa bem conseguida e engraçada do que “era proibido”. Vejamos: as senhoras andarem nas ruas sozinhas; as mulheres entrarem na igreja de cabeça descoberta; as mulheres casadas viajarem para o estrangeiro sem autorização do marido (nem que fosse apenas a Badajoz, ou a Vigo, comprar doçarias); as mulheres saírem à noite sozinhas; minissaias nos liceus; biquínis nas praias; o matrimónio às mulheres em certas profissões, professoras, enfermeiras, hospedeiras de bordo, (salvo se conseguissem autorização do Governo!): as mulheres ingressarem em profissões, como a magistratura e a diplomacia, e, genericamente, ocuparem posições de chefia... Embora em menor número, também havia, evidentemente, ditames aplicáveis a ambos os sexos, entre os quais: beber coca-cola, jogar cartas nos comboios; dar beijos em público, ler certos livros, ver certos filmes, ouvir certos discos; usar isqueiro ou andar de bicicleta, sem prévia licença, assim como participar em “ajuntamentos de mais de três pessoas”. 2 – A cada um o seu lugar – a política feminina do Estado Novo” de Irene Flunser Pimentel Este é um livro dirigido a um público muito diferente, uma obra de referência sobre o tema, um brilhante e premiado estudo académico, que nos elucida sobre o lugar que era alocado ás mulheres, na doutrina e nas leis da Ditadura, e que escalpeliza as estratégias que serviram os fins, acantonando o sexo feminino na esfera da domesticidade e bloqueando os canais de ascensão social e profissional, (segundo o sexo e a classe social), a começar pelo ensino e a acabar no afunilamento das oportunidades de trabalho e na discriminação salarial. O princípio da igualdade, consagrado na Constituição de 1933, exceciona, quanto às mulheres, as desigualdades justificadas pela sua “natureza” e pelo “interesse da família”. A “natureza” justificava a exclusão das mulheres no acesso às profissões mais prestigiadas, diplomacia, magistratura judicial, e quaisquer cargos de direção, assim como as assimetrias salariais, no professorado deliberadamente usadas para combater a crescente feminização do setor, que tanto afligia os Ministros da Educação, (alguns chegaram a impor “quotas” na entrada da profissão, a favor do sexo masculino!). Para pôr a mulher “no seu lugar”, o regime combateu o ensino misto, ensaiou a diferenciação dos currículos escolares, a desvalorização da escola feminina e a redução da escolaridade obrigatória. Em vão… As taxas de feminização do professorado iam em crescendo (no primário de 68%, em 1930, para 87%, em 1960, no liceal de 33% para a 56%, no mesmo período Ainda por cima, a taxa de feminização no acesso ao ensino seguia trajetória semelhante: no primário de 42%, em 1930, para 48,5 em 1960; no liceal (3º ciclo), de 33,2% para 50,1% - sendo superior a percentagem de aprovações: 53,2%, neste último ano. Quer isto dizer que as raparigas foram vencendo preconceitos, armadilhas e barreiras colocadas no caminho da sua formação académica e profissional, e, enquanto se mantivessem solteiras, tinham, ao menos teoricamente, o direito de dispor de si e decidir o seu destino. Com algumas limitações, como se viu, por exemplo, arriscando ser presas pela polícia se saíssem à noite sozinhas… Muito, muito pior era a situação das casadas, para quem o casamento era sinónimo de servidão. No altar, entregavam a sua liberdade, decaíam, nos termos da lei, para um estatuto de eterna menoridade, semelhante à dos seus próprios filhos, sobre os quais, como é óbvio, não podiam exercer o poder parental. Deviam obediência aos maridos, eram obrigadas a viver no domicílio conjugal por eles escolhido, e, se ousassem abandoná-lo, viam-se sujeitas a “depósito judicial de mulher casada”. Isto é, a detenção pelas autoridades policiais, seguida de “prisão domiciliária”. Careciam de autorização marital para tirar passaporte. Perdiam a capacidade de administrar os bens comuns e até os seus bens próprios. Tudo eram prerrogativas dos maridos, que podiam, ainda, proibi-las de exercer uma profissão, de publicarem um texto, violar a sua correspondência, e, em caso de adultério, assassina-las, sem consequência de maior (a pena era leve, um curto degredo de meses, a cumprir nas proximidades). Parece mentira, mas não é. Estatuto jurídico semelhante ainda hoje persiste, noutras geografias - no Irão, na Arábia Saudita, no Afeganistão talibã… Com uma pequena, mas relevante diferença: o desfasamento das leis com a realidade social portuguesa. Muitas esposas, não sendo juristas e tendo cônjuges amáveis e sensatos, nunca se terão sequer apercebido da sua “capitis diminutio”. 3 – “Ela é apenas mulher” de Maria Archer Contudo, a verdade é que, durante a ditadura, em todos os domínios e no conjunto, as portuguesas foram fortemente condicionadas nas suas escolhas de vida e ficaram aquém dos seus sonhos e reais possibilidades. Para as (e os) jovens de hoje é difícil imaginar as vivências do quotidiano, nos anos da ditadura, sobretudo nas primeiras décadas, mas facilmente encontram esse mundo nas páginas do grande mais famoso romance de Maria Archer, que acima referi. É um dos seus raros livros não esgotados, na reedição da Parceria A. M. Pereira, com prefácio de Maria Teresa Horta. Faço minhas as suas palavras quando diz que que Archer traçou na sua obra literária, “o único retrato autêntico de corpo inteiro” (da mulher portuguesa nessa época), Ninguém melhor do que Maria Archer soube recriar, de uma forma eficaz, crua e rigorosa, a atmosfera social e política que moldava, então, o círculo fechado das mulheres. Ninguém soube melhor escrutinar e denunciar a violência velada das leis arcaicas e dos brandos costumes da sociedade portuguesa, do relacionamento de sexo ou de classe, homens e mulheres imersos na nebulosa de estereótipos, dogmas e falso moralismo, de prepotência e sujeição... Ninguém melhor do que ela soube desconstruir a imagem da "fada do lar", com os seus dotes de observadora, de “quase etnóloga”, e com a força subversiva da escrita posta ao serviço de uma causa, que era a de infirmar o mito salazarista da inferioridade intelectual da Mulher… Aqui fica o convite à descoberta da tão injustamente esquecida Maria Archer, e da sua arte de recriar o reino distópico do "Estado Novo", derrubado em 1974. É uma forma especial de celebrarmos o cinquentenário da Revolução e, por feliz coincidência, também, o 125º aniversário desta extraordinária mulher e romancista, que escreveu história do feminismo com a sua própria vida.

sexta-feira, 3 de maio de 2024

ESPINHO CIDADE - Um olhar retrospetivo e prospetivo

ESPINHO CIDADE - Um olhar retrospetivo e prospetivo 1 - A celebração dos 50 anos da elevação de Espinho a cidade, a 16 de junho, foi uma festa bonita, que começou numa sessão de homenagem a 50 espinhenses, passou, entre outros eventos, pela inauguração da sede da Associação Mulher Migrante no FACE (mais uma coletividade cuja sede "imigrou" para Espinho!) e terminou com o magnífico concerto de Xutos e Pontapés, a encher, por completo, o espaço que vai do Museu até ao mar.. Numa noite de verdadeiro verão, a música intemporal uniu todas as gerações. Inesquecível! Ideia especialmente feliz foi convidar os 50 cidadãos distinguidos a responder a um questionário sobre as suas memórias deste meio século e o prognóstico em relação ao seguinte, que agora se inicia. As respostas estão agora expostas, sob a forma de cartazes, ao longo da rua 8, entre a 23 e a 15, onde, uns apenas metros abaixo, se situava a "Avenida", percorrido por gente bem vestida e bem disposta, que se entregava a uma forma singular de conviver, passeando devagar, entre palmeiras e esplanadas. Refiz, ontem, essa curta trilha, entretendo-me a analisar, um a um, os cartazes, tão bem concebidos, na cor e no grafismo e, por isso, fáceis de ler. Cada um nos dá um retrato individual e subjetivo de vivências muito diversas, que, multiplicadas por cinquenta, se transformam num grande fresco coletivo, e contam, na primeira pessoa, a história da cidade e da gente, dos seus afetos e dos seus sonhos. 2 - Na minha leitura abrangente, embora apressada, procurei, sobretudo, as recorrências, as afinidades de lembranças e o balanço entre o que se perdeu, e já só existe na memória, e o que perdura e progride, e é esperança e desafio. Há subjacente ao conjunto de testemunhos, um imenso orgulho na terra, nas facetas que a tornam única - a cidade/comunidade, a cidade moderna, cosmopolita, elegante, geométrica e quase plana, a toponímia (de inspiração nova iorquina?), a dimensão, que permite ter tudo ao alcance de um passeio a pé, em menos de 15 minutos, a praia, a marginal, o mar, o pôr do sol... Há frases que o sintetizam lapidarmente: "Espinho tem a beleza do mar". "Toda a vida o mar foi meu companheiro"... As referências à identidade marítima de Espinho são inúmeras: a pesca artesanal, os barcos, a arte xávega, o peixe, rei na gastronomia, "as ondas do mar, mar de abrasão", a piscina, outro exemplo de pioneirismo, nascida como a maior da península ibérica. Piscina cujo muro, todos os anos a força invernosa do oceano destruía - isso antes da construção dos esporões, quando as invasões do mar em fúria levavam as casas, a terra, o areal... A feira semanal, considerada a maior de quantas há no país, é também destacada em vários depoimentos, enquanto outros traços importantes do antigo Espinho se recuperam em menções dispersas: o primeiro cinema, o rinque de patinagem, o aeródromo, o campo de golfe (pioneiro na Península), a Fotografia Evaristo, os girassóis ao longo da Avenida 8, as festas do Rio Largo, as reuniões da tertúlia dos médicos no Verde Gaio, as cantigas ao desafio na cave do Palácio, o Café Moderno, o Nosso Café, os bailes da piscina, os do salão dos bombeiros e os do casino, (sem esquecer, igualmente no casino, as "matinés"!), as festas de Nossa Senhora da Ajuda, com a feira das cebolas, a ponte com escadas de madeira, sobre o caminho de ferro, junto à estação, os quiosques, os comboios a correrem, no dia a dia, paralelamente à movida da Avenida 8... A Avenida é, justamente, destinatária da imensa maioria das rememorações nostálgicas, a unir todas as gerações que ainda a viveram plenamente. Há os que a elevam a ex-libris ou "símbolo da terra", ou a elegem como o lugar "onde todo o Espinho se encontrava nos diferentes cafés" (o Espinho/ comunidade, o Espinho/tertúlia), ou a descrevem, com as suas palmeiras, as esplanadas dos cafés e bares, a música de vinil o dia inteiro. E há os que lhe dão um toque mais pitoresco: "andava toda a gente a mostrar os vestidos"; "andar para a frente e para trás, era uma mostra das meninas, os pais sentavam-se nas esplanadas"; "os nossos vestidos de decote em barco e godés, a dar a volta aos olhos dos rapazes".... Numa síntese perfeita em que todos os demais decerto se revêem, afirma um dos 50: "Nunca encontrei no mundo um lugar tão aprazível". A segunda posição na lista da nossa saudade vai para o Teatro São Pedro: "a perda do Teatro São Pedro, uma obra de arquitetura notável"; o "magnífico Teatro São Pedro". Lembram-se dos filmes, do ritual festivo na companhia das famílias ("íamos todos ao cinema São Pedro"), ou dos amigos ("íamos lá ver umas cowboyadas"). Alguns dos mais velhos não resistem a desabafar o seu sentimento de perda: "Quando éramos jovens, Espinho tinha muita vida. Agora as coisas estão diferentes"; "Sou do tempo da música na Avenida e na esplanada"; "É com saudades que lembro a linha do comboio, a senhora da passagem de nível, que tão cuidadosamente olhava pela segurança de todos"; "a Senhora da Ajuda era um mar de gente"... E o enterramento da linha, sendo matéria diretamente pouco comentada, não deixa ninguém indiferente: para uns, significou o fim de uma era dourada, para outros um marco de crescimento. 3 - O Espinho do presente é saudado por quantos não encontram rival para a cidade onde vivem! Orgulham-se da sua tradição de modernidade, com novos e audaciosos equipamentos, como o Multimeios, o Museu, a Biblioteca, e com a esplêndida marginal, assim como dos clubes, do dinâmico associativismo, do nível das escolas, da Academia de Música, dos festivais... O futuro é sonhado por quase todos com progressos que não descaracterizem os traços identitários. O acento tónico é posto, naturalmente, no turismo. O que não é contraditório, já que Espinho sempre soube compatibilizar o acolhimento dos visitantes com uma incomparável qualidade de vida, enquanto terra de residência, "cidade para as pessoas". Muitos são os que apostam na evolução urbana com respeito pelo ambiente, manifestando preocupações ecológicas, assim como sociais (inclusão, intergeracionalidade, mais emprego, habitação mais acessível). Para muitos, o amanhã de Espinho passa pela atração dos jovens, pelo estilo de vida saudável, pelo desporto (os desportos de sempre, como o voleibol, o hóquei em patins, a ginástica, e os novos, como o surf), pela renovação do tecido empresarial, pela Cultura. A vertente cultural destaca-se, claramente, nos prognósticos de expansão e prestígio da cidade futura! Estas são as minhas primeiras impressões sobre a inédita exposição ao ar livre, com a qual Espinho, através da Câmara Municipal veio, uma vez mais, dar provas da imaginação e criatividade, que fazem parte da sua matriz. .

UM JORNAL DE CAUSAS - O LUSO PRESSE

UM JORNAL DE CAUSAS O LUSO PRESSE na história da emigração feminina e da igualdade de género 1 - A história da metade feminina da emigração portuguesa está largamente por fazer. Vários fatores terão contribuído para o descaso no estudo da sua especificidade, por parte de investigadores, de políticos, de líderes das próprias comunidades do estrangeiro, sendo um deles a reconhecida predominância masculina, ao longo de séculos de incessante êxodo migratório. O Estado abria fronteiras à partida de homens sós, que abandonava à sua sorte. De facto, até meados do século XX, as únicas políticas, neste domínio, foram as medidas de controle dos fluxos de saída, no sentido de os favorecer ou restringir, conforme o interesse público conjuntural. Às mulheres era, com raras exceções, proibido abandonar o país, alegadamente, para sua própria proteção. Neste quadro global, a emigração clandestina constituiu, sempre, uma significativa parte do todo. E, no que respeita a mulheres, aumentou, enormemente, a partir do início do século passado, até atingir a quase paridade, no nosso tempo. Contudo, mesmo em movimentos recentes, ao menos na emigração menos qualificada e ainda maioritária, os homens, regra geral, partem primeiro, as mulheres, os filhos reúnem-se com eles, ao abrigo do direito ao reagrupamento familiar - o que reforça a imagem de uma dependência e subalternidade feminina, muito desfasada da realidade. De facto, nas novas sociedades, as mulheres acedem, quase sempre, ao mercado de trabalho, conquistam a sua autonomia económica, e contribuem, de forma decisiva, para o orçamento, o bem-estar e a integração do todo familiar. Em suma, sucesso do projeto migratório! Por outro lado, são, também, as grandes construtoras das comunidades portuguesas, em sentido orgânico, ou seja, enquanto espaço extraterritorial de vivência da língua e dos costumes. Um fenómeno de extra-territorialidade nascido da capacidade de entreajuda e da vontade coletiva de preservação da língua, e de formas próprias de convivialidade. Os portugueses uniram-se, espontaneamente, um pouco por todo o lado, num poderoso movimento associativo, com que se substituíram, setor a setor, do social ao cultural, à ausência do Governos nacionais, distantes e indiferentes. Assim criaram um universo coeso e solidário, que é pura sociedade civil. A Nação sem Estado! Porém, nessas admiráveis comunidades, ou pequenas “repúblicas”, de que é feito o Portugal no estrangeiro, as mulheres, apesar da crucial importância da sua presença e do seu trabalho, deparam, ainda hoje, com enormes obstáculos à participação igualitária, à ascensão ao dirigismo – obstáculos, em muito casos superiores aos que encontram na sociedade local. O tema da igualdade de género na emigração entrou, embora tardiamente, na agenda dos Governos nacionais, conscientes de que se impõe a conjugação de esforços com as instituições das próprias comunidades, para mobilizar as pessoas, individualmente, mulheres e homens, em particular as e os jovens. Num quadro em que a sociedade civil é a força dominante, como motivá-la para esse projeto humanista, regenerador e transformador do tecido comunitário? Uma das respostas mais inspiradoras tem sido dada, a partir de Montreal, pelo Luso Presse, que há mais de duas décadas, faz história, através de conferências, colóquios, debates, dando visibilidade à obra realizada por mulheres migrantes, em todos os domínios, a fim de abrir horizontes a muitas outras. A nosso ver, esta caminhada pela igualdade, singular e pioneira iniciativa de Norberto Aguiar, à frente do Luso Presse, merece reflexão, público reconhecimento e apoio, porque é "serviço público" e deve continuar até que seja transposta a última meta. O que nos propomos, na nossa intervenção, é dialogar sobre meios e alianças para prosseguir o projeto e atingir metas. Com o seu paradigma de “congressismo” pela igualdade, que antecedeu, em alguns anos, as primeiras políticas públicas neste domínio, e centrado em estratégia, semelhante, o Luso Presse fez História. Mas isso não basta: ainda é preciso fazer futuro, ser mais do que exemplo de escola, ser sempre exemplo vivo.

quinta-feira, 2 de maio de 2024

ENTREVISTA A "DEFESA DE ESPINHO" - natal 2021

O Natal está a aproximar-se e a o coronavírus não se vai embora. Tem vivências de outros tempos tão difíceis e delicados? - Estamos a viver nesta quadra do Natal uma realidade de que não existe memória - nem mesmo há um século, durante a "gripe espanhola", no que respeita à mobilidade e paralisia da vida societária. Parece-nos irreal, como se estivéssemos dentro de um filme de ficção científica, não é? E o filme ainda vai a meio, não temos saída para breve e não podemos fazer, a meio, um pequeno intervalo, para conviver à volta de uma mesa. Se o fizéssemos, para gozar o Natal do costume em família alargada, as consequências seriam terríveis. Os responsáveis têm de dizer isto, sem titubear, em vez do discurso facilitista que faz de nós patetas ou crianças grandes - acenando com a miragem de livres celebrações natalícias se nos "portarmos bem" e baixarmos o número de contágios até ao fim da semana anterior. Melhor seria pensar no que vai acontecer na semana ou semanas seguintes, com mais um provável pico de contaminação! É preciso falar claro aos Portugueses, que têm sabido, bem melhor do que as autoridades, tomar as medidas que o bom senso recomenda. Acho que se pode confiar neles, que não é preciso impor as limitações pela força e controle policial, mas que se deve alertar para os perigos. Se me permite, aqui deixo votos de Feliz Natal para todos os espinhenses, este ano vivido mais em espírito do que em abraços... Ano velho, ano novo! O ano de 2020 será o fantasma de 2021? A pandemia (com maior ou menor dificuldade) será superada? Ou não será assim tão linear… - Infelizmente, já podemos ter uma certeza: uma parte significativa de 2021 será igual a 2020, com máscaras e distanciamento físico. A vacinação em massa é motivo de esperança, se correr pelo melhor. Um "se" complexo... De qualquer modo, como agora todos estamos convertidos em virologistas amadores, eu permito-me avançar a minha previsão: 2021 será dividido a meio, o primeiro semestre igual a este 2020 e o segundo a anunciar a normalização total de 2022! Que bom poder ir a estádios cheios de gente, a lançamento de livros e a exposições, ao cinema Trindade e aos alfarrabistas do Porto, andar sem máscara na rua e sem álcool-gel na carteira, pegar em criancinhas ao colo e viajar para Lisboa, Londres ou Toronto... A "grande vida", a liberdade! A culpa é do vírus ou é das pessoas? - Olhando o que se passou ao longo destes últimos 10 meses, eu diria que há culpas repartidas. Não somos culpados pelo súbito aparecimento do vírus (ao menos fora do país onde nasceu e cresceu), mas sê-lo-emos, em parte, pela sua persistência. Para já, ele está aí. Veio para ficar. Quando erguemos barreiras, não consegue espalhar-se. Quando baixamos a guarda , multiplica-se vertiginosamente. Culpa dos governos, em primeira linha, por terem tomado medidas ziguezagueantes e dado sinais confusos, como aconteceu em toda a Europa, e não só cá, mas também dos cidadãos, quando se descuidam, por cansaço e impaciência. As chamadas "vagas" da pandemia não se devem ao vaivém do vírus (que permanece, sem mutações de vulto), mas à alternância dos "confinamentos" e "desconfinamentos" apressados... Nada justificou a excessiva abertura no verão, porque o número de casos continuava muito alto. Tem saudades dos contactos com os emigrantes? A diáspora lusa ainda é o que era? É verdade que tenho muitas saudades. Desde o início do meu trabalho na emigração, iniciado há exatamente 40 anos, por dever de ofício, no governo e no parlamento, e continuado, até hoje, em "voluntariado", este foi o primeiro ano em que não pude fazer uma só visita a comunidades da emigração! Ia partir, em março, para participar no Dia Internacional da Mulher, organizado pelo jornal "Luso-presse" de Montreal e tive de cancelar a viagem, no último momento. Vou mantendo contactos em debates e entrevistas por "zoom", "facebook", "skype"... São estas novas tecnologias que nos vão valendo! O que é “ganhou” enquanto secretária de Estado das Comunidades Portuguesas? E o que é ficou por fazer? - Ganhei uma outra visão do nosso País, da nossa gente, do modo como recria espaços de vivência e cultura nos cinco continentes do mundo. Quando dizemos que somos uma "Nação de comunidades", mais Povo do que território, estamos a fazer o retrato de uma realidade, que anda muito esquecida no nosso dia-a-dia, dentro de fronteiras. Raras vezes olhamos esta dimensão, o que ela nos acrescenta e engrandece. Os emigrantes, pelo contrário, são de uma dedicação e solidariedade sem limites para com a terra de origem, e é por isso que a transportam consigo e a recriam, visivelmente, no meio associativo, em manifestações coletivas ... A Diáspora não é uma estatística. Pouco importa, de facto, a quantidade, a mera soma de portugueses radicados numa determinada cidade ou região, o que mais conta é a capacidade de criar estruturas, instituições, e, através delas, assegurar o convívio, as festas, os rituais, os valores identitários, legados aos mais novos. Uma comunidade em sentido sociológico é isto. Não são números, são sentimentos e gestos concretos. Ficou muito por fazer nas ajudas concretas (os meios foram sempre poucos), na mobilização, no estabelecimento de redes de contacto e convívio entre comunidades que se ergueram por si, sem apoio do Estado... Este ano comemora-se o 40º aniversário da criação do Conselho das Comunidades (um projeto de Sá Carneiro, que me coube executar no seu Governo), que prossegue esse objetivo fundamental - promover o reencontro dos emigrantes entre si e com o País. Ser “portuga” por esse mundo fora enche a alma e dá alento para quem vai à procura de uma vida melhor? - Sim, dá, quase sempre, uma vida melhor! O sucesso dos que partiram incita os outros, família, vizinhos, a seguirem o seu exemplo. Esta é, em síntese, a história da nossa emigração! Os portugueses, aos milhões, ganharam essa aposta, individualmente, o País ganhou uma inesperada e espantosa componente extra-territorial, para além das esperadas e astronómicas remessas, mas continua na cauda da Europa, ao menos no que respeita a desigualdades, baixos salários, trabalho precário, inferiores expetativas de carreira - desfasamentos que são a causa mais eficaz da expatriação secular, imparável, até hoje... Já tenho dito, e repetido, que a revolução de 74 foi a única verdadeira revolução da Liberdade, aquela que veio , enfim, conceder o direito de emigrar, incondicionalmente, e, todavia, mais de quatro décadas depois, os governos ainda não conseguiram dar aos cidadãos o "direito de não emigrar", ou seja, de viver confortavelmente na sua terra... Já ninguém parte com uma mala de cartão… E nem todos cantam… - Não sei se estou inteiramente de acordo com a afirmação. De facto, embora o que mais chame a atenção seja a chamada "nova emigração" de jovens altamente qualificados (um autêntico "brain drain", que devia arrepiar os nossos governantes...), a maioria ainda é muito parecida à do passado longínquo, a tal da "mala de cartão", símbolo de pobreza e falta de bagagem académica e profissional. Em muitos casos, é apenas um movimento sazonal, como revelam as estatísticas oficiais. A presente crise vai ter consequências neste setor, mas não é fácil prever quais. Pode, suponho, travar, conjunturalmente, novos movimentos, sobretudo nas migrações de perfil tradicional, mas, depois, vai depender do ritmo de recuperação no nosso e nos outros países. Certo é, sim, que os candidatos mais qualificados, os médicos e enfermeiros que agora faltam no SNS, os engenheiros, ou os cientistas, encontrarão sempre menos obstáculos... Foi também um privilégio ter sido vereadora da Cultura de Espinho? Cidade que lhe diz tanto e que adotou para viver… - Foi uma experiência surpreendente. E eu gosto de surpresas - das boas surpresas, é claro... Nunca imaginei que o "governo local" revelasse potencialidades, que não ficavam atrás do governo central - mesmo para quem, como eu, vinha de um pelouro com ação "planetária", sem fronteiras. Não esperava encontrar tanta competência e tanto entusiasmo nos meus colaboradores - os melhores que tive, depois de ter estado em funções em cinco governos da República. Fiquei, contudo, com a ideia de que não será nada fácil encontrar funcionários de tanta qualidade humana e profissional em serviços municipais similares, de norte a sul do País... Aqui em Espinho, sei que me saiu a sorte grande! Era um verdadeiro prazer reunir com as chefias e pensar, em conjunto, o desenvolvimento dos programas culturais, dando continuidade ao que vinha de trás (não eliminei nada, era tudo válido e de qualidade) e preparando novos projetos, exigidos, desde logo, pela comemoração do centenário da República. Não tínhamos dinheiro para nada, mas não nos faltavam ideias e boa vontade . É incrível o que se conseguiu levar a cabo nessas condições, em 18 meses... Sentávamo-nos à volta da mesa redonda, o debate fluía, quando chegávamos ao fim, os projetos estavam totalmente reformulados e eram de todos -já nem sabíamos quem tinha proposto o quê... Dramático foi, porém, neste ambiente tão caloroso, a morte da Drª Isabel e, depois, da Drª Beatriz, duas grandes senhoras - inesquecíveis! Desse quarteto admirável, só a Drª Idalina e o Dr Bouçon continuam em plena atividade na Câmara. Naquele belo edifício da antiga conserveira, que eu sonhava ocupar com uma diversidade de núcleos de animação, como um museu do violino (o Engª Capela propunha-se montar ali uma autêntica oficina de "luthier"), um clube de jazz (com um grande nome à frente), um café, com vista para o mar... Falo do que não aconteceu. O que aconteceu é sabido. Gostei particularmente de dar uma contribuição para pôr "nomes às coisas", às Galerias Souza Cardoso, à Biblioteca José Marmelo e Silva... Se tivesse estado na Junta de Freguesia, lá teria sugerido que a bela galeria do 1º andar, se chamasse "Conde de Ferreira". Nada mais justo, pois o edifício foi doado por ele (para a escola primária) à cidade de Espinho... Compreende-se a reconversão dos edifícios a outras finalidades, mas não o esquecimento dos beneméritos, que em Portugal é a regra, não a exceção. Mas também tem orgulho em ser da dita terra do nabo e das nozes? Ainda lá estão as origens… - É verdade que sim. Até nisso me sinto identificada com os emigrantes, no duplo sentimento de pertença à terra de origem, Gondomar (onde morei apenas dez anos, mas onde a família materna remonta, nuns ramos, ao século XVI e, noutros, ao século XVIII), e a Espinho, que foi o meu paraíso de férias, desde a infância, e que escolhi para viver há mais de 45 anos. No verão de 1950, meus pais prolongaram a estadia na pequena casa de férias da Rua 7, que, há muito, pertencia aos meus bisavós, e eu cheguei a frequentar, ao longo do 1º trimestre, a Escola da Rua 23 . Em Gondomar não andaria tanto... e tanto a pé como em Espinho… Tem rio mas não tem mar. E o mar de Espinho o que é que lhe diz? - Em Gondomar, nem sequer tinha o Douro à vista, porque sou do centro de São Cosme... Mas nasci e vivi com os meus Pais em casa da Avó materna, um casarão, cercado de dezenas de árvores, de todas as formas e feitios, e com um extenso terreno nas traseiras, onde podíamos correr e brincar à vontade. Éramos terríveis, trepavamos às árvores, como se estivéssemos na nossa "selva" privativa, saltávamos das janelas do 1º andar, por cima de roseiras altas... Milagrosamente, nunca nos magoamos. Mas confesso que o mar me fazia falta. Era sempre uma alegria vir para Espinho no verão, os mergulhos nas ondas altas da praia azul, a natação na piscina, o vaivém na Avenida, os cinemas (60 filmes por mês, com a programação do S. Pedro e do Casino)... Que saudades! 11 – Sendo uma fervorosa adepta do Futebol Clube do Porto, já alguma vez sentiu uma indómita vontade de descer da bancada do antigo estádio das Antas ou do novo estádio do Dragão para entrar no relvado e mudar o “o jogo” ou rematar à baliza? Como me compreende!... Fui uma fanática do futebol, desde pequena. De todos os desportos, mas mais do futebol e do ciclismo, por sinal, os mais populares. Agora, sou mais do género "treinador de bancada" e, em vez de querer entrar em campo, o que me apetecia era mandar para lá alguns dos "imortais" que não têm sucessor, como Baía na baliza, Gomes nos remates certeiros, ou Deco a jogar e a fazer jogar... Ou, se fosse um pouco mais atrás, Pedroto, depois Pavão, a darem jogo, e Jaburu a marcar golos. Jaburu, brasileiro de Minas Gerais, como Yustrich, era uma espécie de cruzamento entre Hulk e Jardel - mais Hulk, porque corria, velozmente, o campo todo... Jogava à bola quando era mais nova? Era tecnicista ou era bola para a frente? - A partir da 3ª classe, tornei-me aluna do Colégio do Sardão, que parecia um colégio inglês, cheio de recintos desportivos, ginásio,"court" de ténis, campos de basquete, volei, andebol. Pertenci às equipas de todas as modalidades (embora sem atingir o escalão da Graça Guedes que viria, depois, a ser campeã nacional de voleibol em Espinho). Só o futebol era proibido às meninas, mas eu organizava jogos clandestinos. Uma ve, fui apanhada e chamada à Mestra.Geral, com muito receio de apanhar o castigo máximo. Mas não, com muita graça, a normalmente severa e temida senhora disse-me;" Não é jogo próprio de meninas, mas como eu sei que és uma apaixonada, vou abrir uma exceção: tu podes jogar futebol, as outras não".. Como organizadora dos torneios proibidos, eu escolhia a minha posição de "avançado-centro" e marcava muitos golos, As minhas colegas ainda hoje dizem que era ótima, mas eu sei que não. Muita energia e velocidade,tinha!. Técnica ou visão do jogo em campo, não... Era, como diz, "bola para a frente". Às vezes, até me perdia e saía com bola pelo retângulo fora.. Note: não me limitava a adiantar a bola, saia, eu também, com a bola no pé... No andebol, o nosso treinador, Edgar Tamegão (o único homem, para além dos padres, admitido, em funções naquele colégio de Doroteias) fez um teste para guarda-redes, e mandou-me logo para a baliza. Aí, era surpreendentemente eficaz, tinha nascido para aquilo, mas não gostava nada... Sentia-me "confinada", na minha área. Para além de jogar, também fazia relatos imaginários, que entusiasmavam as minhas companheiras nos recreios. Nesses relatos, o FCP ganhava sempre, com inúmeros golos, tão gritados, que a pretensa locutora ficava rouca... E é tão feminista?! - Continuo igual ao que fui, sempre. Sabe, a minha avó materna, Maria Aguiar, cidadã e paroquiana muito interventiva e influente, mas extremamente conservadora, passava o tempo a interditar atividades: "uma menina não faz isso!". Não trepa às árvores, não joga a bola na rua, não anda pendurada nos elétricos... E eu pensava: "Mas porque não? Sou tão capaz como os primos, em qualquer dessas brincadeiras". Assim nasceu o meu feminismo. Não é nada contra os homens, é contra os preconceitos. Pela igualdade. A igualdade do género ainda conversa de treta nos tempos de hoje? - Para mim, é uma causa pela qual vale a pena lutar, num tempo em que não só tantas discriminações permanecem, como até se começa a negar a sua existência, ou, ainda pior, num verdadeiro retrocesso civilizacional, a justificá-las como sendo boas. Esse discurso de uma extrema direita agressiva e brutal, que grassa nos EUA de Trump e em outras partes do mundo, e já chegou cá, ainda em miniatura, constitui a maior ameaça ao futuro da democracia. Hoje, na Europa, o perigo vem da extrema direita. Antifeminismo, racismo e xenofobia andam a par, como se constata pelo discurso dessa extrema-direita. E têm de ser combatidos com as mesmas respostas, com os mesmos valores humanistas. O feminismo, como eu o vejo, é uma componente do humanismo perfeito, não é um machismo ao contrário. Apela ao bom entendimento e solidariedade entre os sexos, como entre nacionais e estrangeiros. Com esta visão das coisas, depressa compreendi os problemas centrais da emigração, porque defender os excluídos, os marginalizados, sejam as mulheres, os estrangeiros ou os negros, é missão da mesma natureza. A violência doméstica é sinal primitivo ou da sociedade que vive de aparências, silenciosa e inativa quando o problema é dos outros e de quem sofre? - Certamente que é um sinal primitivo, embora subsista em sociedades que se consideram avançadas. É sempre um sinal de cobardia exercer a violência sobre os fisicamente mais fracos. E é um comportamento inqualificável, qualquer forma de descaso ou a condescendência da parte de quem pode e deve intervir - o Poder. Quer se trate de mulheres ou homens, crianças ou velhos. O mais chocante e recente caso, em Portugal, foi o assassinato de Ihor, um indefeso estrangeiro por agentes do SEF. Chocante, o silêncio das autoridades neste caso, e a demissão da Diretora Geral só agora, dez meses depois. Não foi violência doméstica, mas foi um crime infame no interior de uma sala escondida e fechada, como são os espaços em que, quase sempre, se exerce a violência doméstica. A política faz parte da sua vida, ou a sua vida é que faz parte da política? - Vou mais pela primeira, no sentido de que a política pode e deve fazer parte da vida de todos nós - a política enquanto atividade cívica, exercício da cidadania... Tenho uma especial admiração pelos que se envolvem na sua comunidade, quer através de partidos, quer pelo trabalho nas instituições da chamada sociedade civil - dirigentes associativos, bombeiros, voluntários das mais diversas formas de solidariedade, seja na emigração, seja dentro do País. Era uma deputada respeitada por todas as bancadas na Assembleia da República, fosse à direita, ao centro ou à esquerda. E também havia “fait-divers” e momentos de convivência com outros quadrantes partidários? - Fui educada assim, na minha família, onde sempre conviveram os opostos, primeiro monárquicos e republicanos, depois, democratas e salazaristas, anglófilos e germanófilos durante a guerra, filiados ou simpatizantes de vários partidos, após o 25 de Abril. Depois, estudei em Coimbra, onde era normal a convivência entre colegas de esquerda e direita. Eu tinha quadrante ideológico, era Social democrata "à sueca", como Sá Carneiro, e PPD, desde 74, mas independente, sem filiação partidária. E foi isso que, paradoxalmente, em 1978, me levou a um governo de "independentes", chefiado pelo Doutor Mota Pinto. Por isso, depois de aderir ao PSD, em 1980, mantive, esontaneamente, esse tipo de comportamento, quer no governo, quer na Assembleia da República. Sei que não era muito comum, por exemplo, ser mais amiga de Miguel Urbano Rodrigues, do PCP, ou de Carlos Luíz, do PS-emigração, de Paulo Portas e Anacoreta Correia, do CDS, ou de Natália, do PRD, do que da maioria dos colegas de bancada. No hemiciclo de São Bento, em 1981, os meus primeiros debates foram com um especialista de emigração do PCP, Custódio Gingão, que era extremamente aguerrido. Eu respondia no mesmo tom e os nossos despiques eram tremendos! Até que um dia me lembrei de lhe agradecer, a meio de uma intervenção, dizendo que ele me estava a ajudar imenso no meu "tirocínio parlamentar". Era verdade... A partir daí, ficamos amigos, as discordâncias de fundo mantiveram-se, é óbvio, mas o tom esmoreceu bastante, de parte a parte... Histórias não faltam, falta-me o tempo para as contar... O filme “Snu” trouxe-lhe gratas recordações? - Vi-o mais do que uma vez, na sala de cinema e, depois, na televisão, Como filme é "assim-assim", não fica na história do cinema português, mas a intenção foi boa, é uma merecida homenagem a Snu, bem interpretada por uma excelente atriz e bem retratada (tanto quanto sei, só estive com ela em encontros breves). Já o Dr. Sá Carneiro é, no capítulo político, sem culpas para o ator, muito mal apresentado... Homem firme, capaz de rupturas, como se sabe, reagia, invariavelmente, como mandava uma esmerada educação: sem levantar a voz, com um perfeito controle de si, em qualquer situação. O tom podia ser frio e cortante, mas era, sobretudo, muito civilizado. Ver no ecrã um Sá Carneiro aos gritos, ou a bater com as portas, é inverossímil, é um disparate! Dele é, assim, dada uma imagem completamente distorcida, e ao gosto dos seus maiores inimigos. Estranhei que ninguém do PSD oficial o dissesse. Para além de Sá Carneiro, também nutria simpatia pessoal por Mário Soares e por Mota Pinto… E era uma das “mães” de Paulo Portas… - Sim, e, para completar o quadro, pode acrescentar o General Ramalho Eanes. Sei que todos estes grandes políticos, que tanto admiro, não se admiravam, necessariamente, entre si... Todos democratas, mas trilhando caminhos diferentes, com diferentes programas, estratégias e "timings" para atingir o mesmo fim - frequentemente, em oposição frontal, uns aos outros. Sá Carneiro tinha mais o sentido da urgência, queria uma democracia "à europeia", no imediato, acreditava na capacidade do Povo para a viver livremente, sem a tutela militar do "Conselho da Revolução". O General Eanes, como Presidente, estava à frente do Estado, das Forças Armadas e do Conselho da Revolução, cuja ação via como fundamental na construção progressiva da arquitetura democrática. Estive convictamente com Sá Carneiro e considero que a História lhe deu razão, porque o Povo estava preparado para a democracia, então tanto como hoje... Mas a História, quatro décadas depois, também mostra o General Eanes como um Português exemplar, que, afinal, queria tudo para o País, não para ele próprio. Não agia com um projeto de poder pessoal. Tivemos muita sorte com a qualidade destes "pais fundadores" da nossa democracia (não esquecendo Freitas do Amaral e Amaro da Costa, no quadrante da democracia cristã, centrista e soidária). Já não há políticos com essa estatura! E talvez nunca mais haja tantos, num mesmo cenário temporal. Foi um autêntico "milagre português". Pessoalmente, sentia por Sá Carneiro verdadeira fascinação, considerava Mota Pinto um homem de inteligência fulgurante e de uma imensa generosidade, e Mário Soares um político perfeito. E todos, incluindo o General, tinham uma virtude, para mim muito importante: o sentido de humor! Muito pessoal, em cambiantes muito diversos, mas no mesmo grau elevadíssimo! Com todos mantive um relacionamento amigo e tão descontraído quanto possível, tratando-se de altas figuras da Pátria e sendo todos mais velhos do que eu... Paulo Portas é outro caso, no sentido de que não é um pai, mas sim um filho, muito precoce, da democracia. Conheci-o, em reuniões do PSD, com 14 ou 15 anos, e logo o achei-o um rapaz super inteligente, vivíssimo, encantador. Não era a única das militantes do partido a pensar assim, e, por isso e, quando fui apresentada à Mãe, a Drª Helena Sacadura, não fiquei admirada com essa frase tão divertida: "Sei muito bem quem é. É uma das mães do Paulo!". Tal como o filho, é encantadora. Qual era o presente que gostaria de receber no Natal? - No Natal confesso que prefiro dar presentes a recebê-los. Este ano, espero oferecer a toda a família e a alguns amigos um livro que está a ser ultimado na gráfica - um blogue, com histórias soltas de várias gerações de Aguiares. Um blogue transposto da internet para o papel... Figuras nacionais que mais admirou e/ou admira? E estrangeiras? - No campo político, as personalidades estrangeiras que mais me marcaram foram John Kennedy, Mandela, Trudeau (o pai do atual). Mais recentemente, Hillary Clinton... Portugueses, os que conheci de perto e de que já falei. Fora da política, onde é mais fácil encontrar grandes mulheres, Agustina, Amália, Natália Correia, Maria Barroso (que foi política também, mas não só). E as nossas feministas de novecentos, como Ana de Castro Osório, Maria Archer, Maria Lamas e as "sufragettes" inglesas, lideradas por Mrs Pankhurst (que nunca conseguiu ser eleita deputada, mas tem a sua estátua em frente ao Parlamento mais famoso da Europa). Quais são os livros preferidos? E os autores que mais aprecia ou quem melhor se identifica? - Tenho muita dificuldade em responder a esta questão, porque não há, para mim, uma predileção por um género literário que exclua os outros... Gosto de biografias e autobiografias, políticas ou não (li há pouco a de Woody Allen, vou começar a de Obama, sobre a sua presidência, e tenho em lista de espera a de Virginia Woolf, 1927/41). Também sou fã de livros policiais - Agatha Christie, Ruth Rendell, Sara Paretsky e outras -falo, assim, no feminino, porque é uma área hoje, surpreendentemente, dominada pelas mulheres... E de romancistas, os do passado, mais Eça do que Camilo, mais Marmelo e Silva do que Vergílio Ferreira, e os mais recentes, como Mário Cláudio ou a incomparável Agustina. Brasileiros como Luís Montello e Érico Veríssimo, e os da língua inglesa, a minha língua estrangeira favorita. São tantos! Ultimamente, ando entretida a ler Alice Munro, Julian Barnes, Philip Roth... Desde que abriu a Bertrand em Espinho, tenho os cantos da casa cheia de livros novos, em fila, à espera de vez... Comprar também é um prazer! E quais são os filmes da sua vida? E ainda vai ao cinema, mas sem pipocas… - A minha geração, como a dos meus pais e avós, ainda tem a paixão pelo cinema (e sem pipocas ...). Sou, aqui em Espinho, uma das pessoas mais assíduas nas sessões da tarde do Multimeios. Para dar uma resposta breve, direi que vejo tudo, só evito ficção científica e terror. Tenho muitos"filmes da minha vida"... de Orson Welles, de Ingmar Bergman, da "Nouvelle Vague" da minha juventude, Godard, Truffaut, Agnès Varda... Italianos, também. Revi agora, há pouco, os de Fellini na televisão. Mas o meu género preferido é, definitivamente, a comédia e o realizador Woody Allen... Quem é ou foi (ou é) o melhor treinador e o melhor futebolista? - Esta é uma pergunta de resposta mais fácil no que respeita a treinador do que a jogadores. Treinador: Yustrich! Venceu o primeiro campeonato da minha vida, em 1956, contra tudo e contra todos, e ficou para sempre no coração dos portistas dessa geração. Eu estava nas Antas, com o meu Pai (éramos ambos sócios), no jogo final e decisivo contra a Académica, que "pôs o autocarro em frente da baliza"! Tinha quase 14 anos... Sofri muitos desgostos, na fase anterior a Pinto da Costa. Jogadores fantásticos, são tantos! Se tenho de indicar um , só pode ser o DECO, o nosso Maradona. Genial Maria Manuela Aguiar