sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

1- Em fins de 1968, conheci, em Paris, o Padre Mário Lajes, que, como eu, era um dos bolseiros residentes na "Casa de Portugal" da Cidade Universitária de Paris. É sobre a memória desse tempo que escreverei algumas linhas, apenas notas soltas, circunstanciais, lembrando episódios passados com o então jovem Padre tão erudito, mas tão despretensioso e comunicativo. E saliento estes seus atributos, em particular, porque foram, a meu ver, determinantes no ascendente, no papel central assumido no círculo de amigos que rapidamente iria traçar contornos naquela residência de estudantes, recriando uma espécie de fronteira intangível do nosso país, ali transposto por nós, uma geração de expatriados, uma geração nova, expectante e desejosa de mudanças.
Sabemos, todos, o trabalho que nas décadas seguintes preencheu a sua vida como sacerdote, professor, investigador, cidadão empenhado nas questões sociais, no mundo da cultura, capaz de conjugar a enorme multiplicidade de dons e qualidades em acções notáveis e em missões sempre marcadas pela generosidade. Esse futuro já então de algum modo se podia predizer…
O Padre Mário (como sempre, até hoje, lhe chamei) foi, de facto, aí, onde era mais natural e fraterna a aproximação entre “emigrados”, um dos principais suportes da pequena “comunidade” (mais uma, no infinito rol das comunidades portuguesas espalhadas, transitória ou duradouramente, pelo globo…) nascida, assim, de forma espontânea, sem precedência de qualquer manifesto propósito de agir no campo político ou social – em boa verdade, sem outra intenção inicial que não fosse a de um puro e simples convivência e entreajuda. Mas o convívio quotidiano logo deu lugar à amizade, à partilha de ideias, de experiências, de preocupações sociais, de planos e iniciativas, numa forma dinâmica de relacionamento, num grupo que as circunstâncias, de algum modo, fechavam ao exterior, reforçando-o no interior.
Muito por causa do Padre Mário e de outros sacerdotes, que, residindo ou não na “Cité”, connosco reuniam nos tempos livres, passamos a ser rotulados como “ católicos progressistas”… Na realidade, alguns eram e outros não eram católicos praticantes, e a maioria não tinha aquela forma de envolvimento político que a referência a "progressismo" fazia antever. Em todo o caso, acho que se pode ir ao ponto de afirmar que nos unia a crença nos valores do cristianismo e da democracia. Acho que as palavras e os conselhos do Padre Mário, sempre ponderados e nunca impostos dogmaticamente, muito contribuíram para aquele rótulo “fácil” ganhasse mais consistência e verdade…
A primeira fotografia do grupo foi tirada (quem o imaginaria?) à volta de enorme boneco de neve, no Parque Montsouris - do outro lado do Boulevard Jourdan, que é uma das fronteiras da "Cité”. Irresistível, pelo visto, assinalar a alegria de "gente do sul", contente com a queda do primeiro dos nórdicos nevões do inverno parisienses! E lá está, entre uma vintena de rostos sorridentes, o Padre Mário, que, se bem me lembro, foi dos que mais bolas de neve jogaram para os restantes retratados… A data: Novembro de 68. Éramos ainda, na quase totalidade, recém-chegados a Paris e, apesar disso, o “colectivo” já estava formado, com praticamente os mesmos componentes que o haviam de constituir, sem cisões nem conflitos, ao longo de dois anos académicos. O que, atribuo, sem dúvida, à capacidade de liderança não imposta, não declarada e nem sequer assumida, mas nem por isso menos influente, do núcleo central, onde se distinguia, não querendo distinguir-se, o Padre Mário. Cultura superior, simpatia, disponibilidade, bom conselho - tudo dado a todos, de uma forma discreta - transformaram-no num "líder" improvável, mas autêntico de um complexo muito heterogéneo de bolseiros (em grande parte, futuros académicos), especialistas nos mais variados domínios das ciências, letras e artes. A boa disposição e o sentido de humor não escolhiam domínio e abundavam… a começar pelo próprio Mário Lages. Na conversa que fluía, nas divagações de natureza intelectual, nas inquietações de ordem social ou moral ele era invariavelmente o mais importante dos interlocutores, mas os seus ensinamentos estendiam-se, também, a matérias mais comezinhas, como a indicação de livrarias onde os estudantes tinham bons descontos (para além dos livros a ler - devo-lhe a introdução do que viria a ser um dos meus autores favoritos, P.G. Wodehouse), dos filmes que valia a pena ver, ou a dos mais agradáveis (e económicos) restaurantes do "Quartier Latin" que, juntando muitas mesas, em comum, frequentávamos, … Ao fim-de-semana, não raras vezes, organizava passeios de "turismo cultural", por Paris e arredores - visitávamos catedrais, palácios, museus. Tudo se tornou mais fácil, à medida que alguns foram comprando carros e dando boleia aos outros. O Padre Mário decidiu-se por um"Austin mini". O que ninguém esperava era a sua transformação ao volante… Do ponderado e sereno Doutor Lages não se esperava que fosse um dos mais velozes e ousados, e também dos mais hábeis – hélas! – Automobilistas, daqueles que vertiginosamente serpenteavam pelas medonhos filas de transito da cidade. Mas era! Em numerosas ocasiões deixou à distância, quando não perdeu definitivamente, até ao destino final, quem o tentava seguir, conforme plano previamente bem delineado (et pour cause…) para as "excursões" dominicais" do grupo.
A rodagem do automóvel (coisa que os mais novos já nem sabem para que servia...) era quase sempre concluída numa viagem aos Países Baixos. Amesterdão ficava à distância ideal, por boa estrada. Assim fez o Padre Mário. À chegada, deparou com um local muito pitoresco, atravessado por um pequeno braço de água. Achou que não teria dificuldade em o situar e ali estacionou o “mini”, saindo logo, apressado, para ver a cidade a pé com os companheiros de jornada. É certo que foram atravessando mais e mais lugares pitorescos, muito semelhantes ao primeiro, mas não se preocuparam com o facto. Depois, na hora de voltar, é que surgiu o problema: em qual dos infindáveis canais de Amesterdão, aparentemente idênticos, estaria o "Mini"? A busca levou horas!
Esta sua faceta de "sábio distraído" foi uma das que depressa aprendemos a reconhecer. Não é defeito que se lhe aponte, mas pode causar algum incómodo…
Outro domínio onde foi, para muitos de nós, um verdadeiro mestre: a fotografia, incluindo a revelação da película, em "laboratório" . A "Cité" oferecia instalações, um e estúdio modesto mas funcional, que passamos a utilizar. E tão bem com ele aprendemos a arte, que muitas das provas, reveladas por mão de aprendizes, ainda hoje conservam a nitidez original. Até Nadir Afonso beneficiou do talento de “ Mário Lages– fotógrafo de arte”, que lhe compôs a iconografia para um belo livro de pinturas suas!
Inesquecível também o café arménio, que fazia de acordo com a fórmula tradicional, numa cafeteira étnica, de metal, base alargada, onde se deposita o pó, que um ligeiro agitar com colher deixa em suspenso para se bebido em simultâneo com o líquido, ao qual dá uma espessura exótica. Com os colegas de estudos arménios aprendera a aplicar a receita, na perfeição. E o café tornou-se imprescindível no final das refeições partilhadas na "Casa de Portugal".
No fim das manhãs de domingo, chamava-nos o campo de jogos que ficava justamente em frente da portaria da Casa. Era só sair e estávamos no estádio para umas saudáveis corridas. Também aí o Padre Mário era dos mais rápidos…
E aquele 14 de Julho de 1969, que se tornou o dia mais perigoso das nossas vidas em Paris? Relato, sinteticamente: estávamos em paz e sossego, como era nosso timbre, tomando um simples café numa esplanada do “Quartier Latin”, sem ver nem ouvir o que quer que fosse de suspeito, quando a polícia irrompeu do cimo da rua estreita, "varrendo" à bastonada as esplanadas de alto a baixo. Engrossou, num ápice, a multidão em fuga, em que nos vimos envolvidos, correndo - não por mero desporto, dessa vez, e não sem que alguns fossem vítimas da inexplicável e gratuita violência, de vitupérios racistas e da desordem geral, promovida, unilateralmente, pelas forças da ordem. Uma espécie de Maio 68, com os actores trocando de papel... Por sorte, os mais desafortunados sofreram apenas ligeiros hematomas na cabeça - ou "galos" na linguagem popular. Era Paris depois da “revolução” de Maio…
Na televisão, vimos, por exemplo, o homem marchar sobre a lua, Eddi Merkxs ganhar o “Tour”, o General De Gaulle fazer o seu último discurso, Amilcar Cabral e o General Spínola falarem, sempre separadamente, em monólogos, sobre a guerra da Guiné - Spínola impressionando os franceses com o seu monóculo… Mas não víamos demasiadamente a tv - não nos monopolizava, certamente. Depois do jantar na cantina, ou dos nossos jantares-convívio, a regra era ficarmos à conversa, não necessariamente sobre política, embora seguíssemos a situação em Portugal e na França, em particular. Ali, no centro da Europa, a que queríamos pertencer por bons motivos para além dos da geografia e da história antiga, procurávamos para além da valorização académica, a compreensão de sociedades, tão cheias de contradições e de impasses. Mas era mais tempo de reflexão, de espera, de preparação.
O regresso a Portugal significou a inevitável dispersão. Em 4 décadas, poucas foram as oportunidades de reencontro. Mas a amizade perdura. E esta é a hora de dizer ao Padre Mário que o primeiro ensinamento que nos ficou de Paris foi o seu modelo de relacionamento com os outros, para seguirmos a nossa caminhada procurando – não necessariamente conseguindo… - agir com o mesmo espírito tolerância, a mesma sensibilidade para os problemas de cada sociedade e de cada tempo. Bem-haja!

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