segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Sá Carneiro - na minha memória...

(Transcrito do Blogguiar de Novembro 2010)

O Homem, como político e como líder partidário nunca foi consensual. Teve invariavelmente consigo a imensa maioria da "arraia miúda" do seu partido, mas nunca a maioria dos chamados "notáveis".
Comecei por fazer parte da imensa maioria da gente anónima que se revia no seu pensamento e na sua maneira de estar na política. Lia os seus escritos, as suas intervenções na Assembleia Nacional, desde 1969, os "Vistos" do Expresso, nas vésperas da revolução - e admirava-o, crescentemente.
Depois de 74, via-o na tv, ou, de longe, nos comícios. (Uma só vez estive perto dele, a poucos metros, em Espinho. A minha Mãe avançou, como é seu costume, por entre a multidão, e foi felicita-lo. Eu não ousei...)
Conheci-o pessoalmente apenas quando já era Primeiro-Ministro.
Telefonou-me para o Serviço do Provedor de Justiça e perguntou-me se podia encontrar-me com ele, no seu gabinete da Gomes Teixeira, às 17.00. Disse que sim, sem hesitação, adiando, logo de seguida, uma reunião marcada para essa hora. Sabia mais ou menos ao que ía, porque os jornais davam o meu nome como provável no governo AD, ainda em formação no que aos Secretários de Estado respeita - só não sabia em que pasta.
Sentia-me inquieta, porque, apesar de uma estreia de excelente memória (subjectivamente falando) no governo de Mota Pinto, não queria repetir a experiência (ou melhor, com "mixed feelings", queria e não queria...). E tinha, sobretudo, receio de não gostar da pessoa de Francisco Sá Carneiro: o meu "heroi" como figura pública - "mítico", se preferirem o termo, mas,como diria a personagem de telenovela, "mítico no bom sentido"...
Poderia a falta de empatia ou simpatia pelo homem concreto destruir a imagem arrebatadora da figura pública?
Receava que sim. Pelo telefone, numa breve troca de palavras pareceu-me seco, distante (eu detesto telefones, sobretudo se do outro lado não está alguém muito familiar...).
Cheguei à hora exacta, como é evidente. E, coisa rara em Portugal, fui imediatamente recebida - "a las cinco in punto de la tarde"!. Não ter de esperar nem um minuto, surpreendeu-me.
A porta abriu-se e ele veio em direcção à entrada e recebeu-me, com um sorriso. Os olhos claros brilhavam, acompanhavam o sorriso. Um momento mágico: o Homem, com todo o seu charme, com todo o seu carisma. Era ele mesmo, tão interessante como o seu pensamento. Absolutamente! Por isso, desde esse primeiro minuto, lhe falei como quem o conhece há muito tempo, como costumava falar, com uma familiaridade antiga, em mundos àparte da política, com Barbosa de Melo, Mota Pinto ou Rui Machete. E também ele me tratava desse modo "descontraído" . Da minha parte, não havia preocupação de medir as palavras, a boa disposição e o humor cobririam qualquer irreverência - atitude que, entre nós, portugueses, é coisa quase sempre perigosa, porque, primeiramente, nos levam à letra e, depois, por isso, não nos levam a sério...
A impressão ali, era a contrária: Sá Carneiro estava visivelmente divertido, respondia no mesmo tom, mais moderado, embora... Tive também a impressão de que estava amplamente informado sobre o meu entusiástico "sácarneirismo". Nunca averiguei quem lhe contou essas histórias - há vários canais possíveis, dado que eu não fazia segredo das minhas opções. Parti do princípio de que estav ciente de que eu era uma "fã" incondicional e confirmei o facto pela palavra, em vários momentos da conversa - recordo que, logo no início, disse qualquer coisa como: "do PSD quase só conheço dissidentes. Os meus amigos saíram todos do partido, os de Coimbra e os de Lisboa" (ele ria-se, mas o certo é que referiu, de imediato, contactos recentes havidos com Mota Pinto).
Assim começava, no início de Janeiro de 1980, o ano mais feliz da minha vida.
Não terei estado em mais do que duas ou três vezes no seu gabinete, e numa dezena de cerimónias públicas. Mas quantas vezes me telefonou, sobretudo no princípio, enquanto teve a clara percepção de que me sentia insegura!
Ligava directamente e, às vezes, enganava-se no número e falava com as minhas secretárias - que logo me passavam a chamada, emocionadíssimas.
Nenhum outro político, ao nível de 1º ministro, actua assim... Não têm tempo a perder com a segunda linha dos seus governos...
Será um pormenor, mas, na minha opinião, muito mais significativo do que parece à primeira vista. É assim que se faz o espírito de equipa, é assim que se cria motivação, é assim que se consegue coesão e eficácia...
Interessava-se pelos problemas concretos, queria vê-los bem resolvidos, depressa e bem. Quando me telefonava era sempre para uma abordagem pragmática das questões, ou para me me dizer uma palavra simpática de encorajamento...
Talvez por isso tudo correu tão bem para mim - e, certamente, para a maioria dos seus Ministros e Secretários de Estado (não todos, alguns, poucos, não teriam com ele um lugar no governo seguinte e sem ele tiveram...).
Para esse meu ano inesquecível, que terminou a 4 de Dezembro, muito contribuiu o facto de um entendimento perfeito, tanto entre Sá Carneiro e Freitas do Amaral, como, no que especialmente me respeita, com Sá Carneiro e Freitas do Amaral, o meu Ministro...
Publicada por Maria Manuela Aguiar

comentários:

Maria Manuela Aguiar disse...

Um amigo que fiz nesses 11 meses inesquecíveis foi António Patrício Gouveia (o chefe de gabinete de Sá Carneiro). Era um jovem muito inteligente e muito bem preparado - nem de outro modo alguém como Sá Carneiro o teria escolhido para uma missão tão crucial... - e, além disso, simpático, simples, divertido!
Com ele, sobretudo nas primeiras semanas, falava pelo telefone quase todos os dias - sempre que tinha um problema ou uma dúvida ou um projecto interessante a discutir. Ajudou-me imenso. Não era diplomata, mas conhecia a "casa" perfeitamente... Teve sempre todo o tempo do mundo para mim, para as minhas questões, para as minhas propostas. Espero que o resto do governo lhe tenha dado um pouco menos de trabalho... Pagou o "preço" de eu confiar tanto nele e na sua opinião.
Ainda hoje me custa a acreditar que também tenha desaparecido naquele 4 de Dezembro. Sempre o vi seguro de si, acutilante, sorridente. Feliz!
Considerava-o o futuro, o Sá Carneiro da geração seguinte. Se quisesse... Mas nem sequer sei se quereria, se teria paciência para a vida partidáris. O partido foi coisa de que nunca falamos!

5 de Novembro de 2010 16:28
Maria Manuela Aguiar disse...
Com o resto do gabinete do 1º Ministro as relações não foram do mesmo tipo. De Pedro Santana Lopes, por exemplo, não me lembro. A Conceição Monteiro parecia-me menos comunicativa do que a outra secretária, a Nicha Moreira Rato - que era uma simpatia!. De qualquer modo, as minhas "mensagens" para Sá Carneiro passavam mais por Patrício Gouveia do que por elas. Só mais tarde, no Parlamento, viria a conhecê-las, ambas, mais de perto.

5 de Novembro de 2010 16:36
Maria Manuela Aguiar disse...
Com o próprio Sá Carneiro o relacionamente foi sempre fácil. Sempre achei que ali estava quem me compreendia!
E desde o princípio, como disse, tive a impressão que ele sabia bem que estava a conhecer uma das mais incondicionais "fãs", à face da terra...
Foi sempre a quinta essência da afabilidade.
Quando me dirigi a ele como "Senhor Primeiro Ministro", disse-me de imediato: "Não me trate por Primeiro Ministro!"
E eu, com o mesmo à vontade com que cruzava argumentos com os meus professores de Coimbra, respondi-lhe:
"Desculpe-me, mas eu tenho de o tratar assim , porque sempre sonhei com o dia em que fosse Primeiro Ministro de Portugal!"
E mantive a posição: sempre o tratei pelo título!

5 de Novembro de 2010 16:51
Maria Manuela Aguiar disse...
Em matéria de títulos oficiais, aconteceu-me coisa bem pior, no dia em que tomei posse do meu 1º governo, que foi o Governo do Prof. Mota Pinto, em 1978-79.
Era então Secretária de Estado do Trabalho. A cena passa-se na Praça de Londres. Entrei no carro que me estava destinado. Não guardo memória, nem da marca nem da cor, só do motorista, um homem pequeno, rosado, cerimonioso, que me perguntou, abrindo a porta traseira, com uma vénia: "Como é que Vossa Excelência deseja ser tratada? Por Senhor Secretário de Estado ou por Senhora Doutora?
"Senhora Doutora" - respondi sem sombra de hesitação, horrorizada com a alternativa!!!

5 de Novembro de 2010 17:03
Maria Manuela Aguiar disse...
Tenho muitas coisas a registar sobre esse 1º governo, que considero absolutamente decisivo para a democracia em Portugal, porque foi um governo de viragem, o primeiro de tendência não socialista. Ou seja, o primeiro de alternância, após 1974...
Mas isso fica para depois.

5 de Novembro de 2010 17:08
Maria Manuela Aguiar disse...
Voltando ao dia em que conheci Sá Carneiro:
A "convocatória" para o encontro fora tão súbita, que não tive tempo de ir a casa mudar de fato. E estava, como de costume, muito mal vestida, com um velho casaco de fazenda grossa, gola larga, desactualizada, xadrês preto e branco. Um horror!
A Branca Amaral, minha colega de gabinete na Provedoria da Justiça, muito frequentadora de meios políticos, irmã de Rui Pena e cunhada de Rui Machete, chamou-me a atenção para o facto.
E acrescentou que o Dr. Sá Carneiro era um homem muito observador, que não deixaria de reparar no casacão "demodé".
Solução encontrada por ela: emprestou-me o seu elegante casaco de peles!
Só um "senão": ela era mais pequena do que eu e isso notava-se um pouco no comprimento das mangas... Mas não demais!
E assim marchei, insegura por muitas e variadas razões, para a Rua Gomes Teixeira.

5 de Novembro de 2010 17:22
Maria Manuela Aguiar disse...
Antes de formular o convite para aquela particular Secretaria de Estado, Sá Carneiro perguntou-me se falava francês e inglês.
Não pude negar que sim, que falava...
Muito me lembrei dessa prudente cautela em governos posteriores, nos quais a mesma pasta foi ocupada por homens incapazes de dizer uma frase completa em qualquer dessas línguas...

5 de Novembro de 2010 17:26
Maria Manuela Aguiar disse...
A conversa decorreu sob o signo do insólito. Aquele Primeiro Ministro, com todo o seu carisma, não deixava ninguém indiferente: o interlocutor ou ficava intimidado ou eufórico.
Eu pertencia a esta segunda categoria.
As respostas que lhe fui dando não tiveram nada de convencional.
Quando me perguntou:"O que lhe parece ser Secretária de Estado da Emigração?" a reacção instintiva e franca foi esta: "Eu no Ministério dos Negócios Estrangeiros? Nem pensar! Ando sempre mal vestida e mal penteada."
Ele ria e eu ria. Ambos estavamos muito divertidos e o diálogo fluia.
O pior foi quando o Dr. Sá Carneiro chamou o Professor Freitas do Amaral, MNE, para vir participar na conversa. Eu já não conseguia mudar de estilo e imaginava que o cerimonioso líder do CDS estaria a pensar que o outro partido convidava estranhas criaturas para integrar o Executivo e que uma delas estaria a seu lado no Palácio das Necessidades. Não sei se era ou não o que ele achava - nunca procurei indagar. Nesse dia, ele também sorria imenso. O certo é que nos viríamos aentender maravilhosamente, sem a mais pequena sombra de divergência, durante 11 meses empolgantes...

5 de Novembro de 2010 17:45
Maria Manuela Aguiar disse...
Acabei a conversa a dizer a Sá Carneiro que Secretária de Estado da Emigração não queria ser, mas que por ele faria qualquer outra coisa, por exemplo, colar o seu retrato nas paredes ou ir, de balde e pá, pintar a sigla AD nas ruas...

5 de Novembro de 2010 17:49
Maria Manuela Aguiar disse...
Deu-me um curto prazo de 24 horas para repensar e dar a resposta definitiva.
O 1º conselho pedi-o ao meu anterior primeiro ministro e amigo de sempre, o Prof. Mota Pinto ( que foi quem me levou para a política...).
Foi a favor.
Depois jantei num restaurante de Alvalade com a Branca e o Rui Machete, cujo 1º cargo governamental fora, precisamente, a emigração.
Igualmente a favor.
No dia seguinte dei o meu "sim" ao Primeiro Ministro. Pelo telefone, conforme o combinado.
Contei-lhe que tinha sido muito influenciada pelas conversas com Mota Pinto e Rui Machete. Ele atalhou, bem ao estilo da reunião do dia anterior:
"Ah, sim? Pensava que tinha sido eu a convencê-la!"
Ao que respondi logo, e convictamente:
"E claro que foi! Aceito "intuito personae". O mais possível! Mas acho que não vou ser capaz de dar conta da missão... Não me responsabilizo pelo resultado".
"Responsabilizo-me eu!" - disse Sá Carneiro.
Creio bem que ele entendeu perfeitamente a parte de humor e a parte de verdade que havia na minha apreciação subjectiva de capacidades. Essa terá sido uma das razões para me dar, por sua iniciativa, tanto apoio nas primeiras semanas - até sentir que eu estava completamente integrada e feliz na equipa do MNE...

5 de Novembro de 2010 17:55

Maria Manuela Aguiar disse...

Esse foi o 1º encontro com Sá Carneiro. O último seria 11 meses depois, já em Dezembro de 1980, no Hotel Sheraton, em Lisboa.
Uma magna reunião de dirigentes partidários da AD, de autarcas, de responsáveis pela campanha do General Soares Carneiro. Centenas! Salão cheio!
O General vinha na companhia do Prof. Mota Pinto (dos Açores?)e o avião chegou com um atraso enorme, mais de uma hora, talvez mesmo duas... Foi o nosso anfitrião Sá Carneiro que preencheu todo esse longo tempo extra. História atrás de história, muitos episódios das lutas pela "civilização" do regime, dos confrontos com militares, maxime, com o Presidente da República... Incluindo aquele do registo dos encontros com o PR em Belém, que, naturalmente depois de relatado ali, perante tanta gente, se tornou do domínio público, embora nem sempre fiel ao relato de que me lembro. Disse-nos Sà Carneiro que, quando o PR se dispunha já a aceitar a existência de actas, após as reuniões entre os dois, ele lhe respondeu: "Agora, Senhor Presidente, nem com acta nem sem acta!"
Foi com pena que vimos, por fim, entrar na sala o General, visto que isso significava o fim daquele longo e esplêndido monólogo, em que ele parecia falar directamente só para cada um de nós, com enorme familiaridade e à vontade. Não sabíamos que, para a maioria de nós, era também uma despedida...
Finda a cerimónia, vi Sá carneiro a caminho da porta de saída e não me aproximei - achava que,apesar do seu ar bem disposto, deveria estar muito cansado e não quis ser mais uma pessoa a retê-lo, com o meu cumprimento. A meu lado, estava o Zé Gama, deputado da Emigração do CDS (e, já então, meu grande amigo). Tal como eu, pensava que devíamos "poupar" o nosso 1º Ministro, não engrossando a fila de cumprimentos.
Mas Sá Carneiro, que parecia ver tudo, descortinou-nos no canto onde aguardavamos a vez de sair, e atravessou,rápido, uns metros de sala, na diogonal, para nos vir, ele próprio, saudar, com aquelas palavras de estímulo que sempre lhe ouvi. Foi mesmo uma despedida!

11 de Dezembro de 2010 2.15

Maria Manuela Aguiar disse...

É por isso que estranho as versões de que Sá Carneiro se mostrava tenso e enervado, à vista dos olhares dos jornalistas, nesses últimos dias de campanha, como escreve, por exemplo, Avilez e creio que também Pinheiro. Nunca o vi assim! Mesmo na sua intervenção final - a que já não foi para o ar, e eu achava, ao tempo, que poderia ter ido... e que agora conhecemos - mostra-o sereno, a usar palavras duras. Bem ao seu estilo!
Embora Avilez seja mais interessante do que Pinheiro, escreva um português mais fluído e atractivo (e tenha ganho um merecido prémio com uma reportagem sobre uns dias de campanha eleitoral com SC e Snu no Portugal profundo) creio que imaginam "estados de alma" - o que está àquem do rosto de um lutador, que gostava da luta, independentemente do resultado, embora lutasse sempre para ganhar...
11 de Dezembro de 2010 2.25

(Transcrito do BLOGGUIAR de Dez 2010)


Um artigo que tem quase três décadas. Mais exactamente, data do 1º aniversário da sua morte. Um tempo em que ainda havia Sacarneiristas e anti-Sacarneiristas.

Hoje fala-se do "mito" que esconde a verdade humana (e, de algum modo, também a política...) de Sá Carneiro. E ao mito aderem até os mais implacáveis dos seus antigos críticos - em especial os seus detractores dentro do PSD.

Por isso deixei, por muito tempo, de falar e escrever sobre ele. Nunca de o lembrar no meu dia a dia. A sua fotografia ficou sempre no meu gabinete nos 3 Executivos seguintes a que pertenci... Continua na parede do meu escritório privado, naturalmente. Em Espinho e em Lisboa.

Infelizmente, por razões de família, não pude estar lá, na missa e, depois, na Universidade Católica, na homenagem conjunta a Sá Carneiro e a Amaro da Costa, promovida pelos Institutos que levam os seus nomes. Comprei a imprensa que lhe (ou lhes) dedicava suplementos. Passei a noite diante da tv, fazendo "zapping" entre programas que, melhor ou pior, o (ou os) recordavam.

O melhor era mesmo vê-lo e ouvi-lo, como, em tantos casos, aconteceu em directo há mais de 30 anos... A meu ver, a televisão suplantou a imprensa. Porque ele próprio lá esteve, nos grandes comícios da nossa esperança, ou no parlamento, ou em comunicações e debates. Sorrindo para nós com aqueles olhos que viam mais longe, inexcedívelmente carismático entre multidões fascinadas de seguidores, sereníssimo como Primeiro Ministro do Portugal.

Muito mais "true to life" do que os comentários escritos - quase todos desajustados, desfazados de um tempo cada vez mais distante e incompreendido, assim como da essência da sua personalidade e do seu pensamento e, consequentemente, do significado da sua participação cívica e política. Sobretudo, mais interessados nas "estórias", nas peripécias, nos traços de temperamento, nos "faits divers" , na vida privada, na faceta mundana do que na coerência das suas ideias e do seu projecto para o país. Querem, eles, sim, construir um "mito" (de preferência, colocando-lhe "pés de barro", que na realidade, do ponto de vista político, não tinha, nem tem...). É incrível que cedam à tentação de menorizar o conteúdo das suas intervenções públicas, dos seus abundantes escritos e discursos, do fio condutor da sua acção, privilegiando o "blá-blá" social e a pura intriga partidária (que não deve ser varrida para debaixo de um tapete, mas que teve a importância que teve - não tanta assim, porque o trajectória de Sá Carneiro foi imparável apesar desses acidentes de percurso). Enfim, quero com isto dizer: há nos relatos que se multiplicam, muita coisa acessória que submerge o essencial. Não são escritos de historiadores, de politólogos - são ensaios de jornalistas e outros "amadores" em terreno alheio. Nota-se... As grandes biografias de Sá Carneiro, o político, o Homem de Estado, o construtor da democracia portuguesa, estão por fazer... Nem mesmo os seus companheiros de projecto, o quiseram fazer, como em relação a Kennedy começou por ser brilhantemente levado a cabo por Arthur M. Schlesinger Jr. com o seu "A Thousend Days - John F. Kennedy in the White House".(dois anos apenas o assassinato de JFK). Dos nossos, até ver, não se poderá fazer um comentário semelhante, por ex,. ao "The Guardian": "Very much more than a gossipy bid for best-seller... a book of real distinction".

(É certo que ainda não consegui comprar o livro de J Miguel Júdice -"O meu Sá Carneiro" e acredito e espero que possa colmatar esta imensa lacuna...).

De facto, do governo de Sá Carneiro mais não há ainda do que alguns escritos ou apontamentos sobre políticas sectoriais, de um ou outro dos seus ministros, e as superficiais referências, "en passant" em publicações onde se fala mais da sua primeira e da sua segunda mulher do que do Vice-Primeiro Ministro ou do Ministro das Finanças ...

Apesar de tudo, um pouco mais glosada é a sua intervenção cívica e política no período da chamada "ala liberal" - talvez apenas porque não tinha, então, a concorrência de temas da vida privada...

(Aliás, tomemos o ex. das reportagens do 4 de Dezembro: quantos dos intervenientes da jornada televisiva foram ao ponto de citar Sá Carneiro, com as suas próprias palavras? O mais comum foi lembrarem a sua própria relação pessoal com Sá Carneiro - mais adequada a um ambiente de tertúlia ou a um simples blogue do que a análise que pretende ser de políticos ou politólogos sobre um fenómeno da cena política portuguesa - com algumas excepções, como a de Freitas do Amaral).

Schlesinger, ou Sorensen, dão-nos o quadro de trabalho de todo um gabinete, as temáticas principais, os conflitos diplomáticos, as campanhas cívicas, a luta pela igualdade racial numa América em transformação - não os problemas conjugais de Jack e Jacqueline...

Com toda a franqueza: o que me interessa é Sá Carneiro, o Político - não particularmente a sua vida de família, ou o seu quadro clínico em 1975/76 ou mesmo em 1980 - salvo na estrita medida em que ditou o seu afastamento paísou em que nos dá a imagem do homem que supera a adversidade. ( é ridículo ver, no livro de Pinheiro, detalhada a lista das prescrições de medicamentos que tomava, em vez da lista das medidas discutidas e aprovadas nos seus Conselhos de Ministros!).

Como muitos dos Portugueses que vieram a aderir ao PPd/PSD, comecei a acompanhar o percurso de Sá Carneiro em 1969, desde o momento daquele primeiro discurso, em Matosinhos. A minha adesão foi imediata. Como reformista que era e sou, achei interessante a experiência da Ala Liberal, na tentativa aventurosa de abrir o regime por dentro. Não sei se acreditei no sucesso da tentativa, em si, mas sei que acreditei sempre nos seus protagonistas e na importância de pedagogia democrática da sua intervenção. Por isso, conhecia muito bem e admirava muito Francisco Sá Carneiro, como político. Achava-o um modelo de coerência e, obviamente, muito mais previsível do que agora os seus "biógrafos" pretendem apresentá-lo... Estive invariavelmente de acordo com ele. Dizia, e mantenho, que nele o que mais apreciava eram os defeitos que os inimigos lhe apontavam, ainda mais do que as qualidades que todos lhe reconheciam...

(As questões da vida privada, quando surgiram, no fim dos anos 70, nunca me interessaram particularmente - fui ouvindo os boatos sobre separação e novo romance, sem lhes dar especial atenção. Quando houve confirmação do seu relacionamente com Snu, não tive nada a objectar - pelo contrário, pois a sua conduta regeu-se pela verdade e pela seriedade. Estou à vontade para o afirmar, justamente na qualidade de divorciada de um colega de curso, a quem, em circunstâncias parecidas, facilitei, de imediato o divórcio para que ele casasse com quem queria).

Não o conheci pessoalmente até ao momento em que me convidou para o seu Governo, em Janeiro de 1980. Momento inesquecível de encontro com a personalidade do mundo político que mais me fascinava!

Nada para mim foi mais significativo do que fazer parte da sua equipa governativa, na Secretaria de Estado da Emigração - do meu ponto de vista o melhor Governo que houve em Portugal no século passado - não havendo neste século nada de comparável. Sei que estou praticamente sozinha nesta minha convicção - à curta duração dessa experiência não atibuo relevância. É uma avaliação qualitativa, não quantitativa. Hei-de explicar as razões que a fundamentam.

Para já uma palavra sobre o "MITO":

Se falam do mito nascido depois da sua morte, por causa da sua morte trágica, retirem dessa lista todos os inúmeros Sacarneiristas que o seguiram desde antes da fundação do PPD! O que pensava do Dr. Sá Carneiro vivo é precisamente o que penso dele depois de 4-12-1980... Estou com tantos portugueses, da minha geração, que o "descobriram" em vida e o consideravam um líder único e insubstituível - tendo a perfeita consciência de que ele marcaria, como nenhum outro, a História do sec. XX.



Comentários

Maria Manuela Aguiar disse...

Em suma, como deixei claro, prefiro biografias de políticos mais centradas no pensamento e na acção política.
Na vida pessoal eles são mais iguais a toda a gente... Daí que nada melhor para diminuir o Homem de Estado do que o "devolver" à esfera da vida privada! Como tantos tentam, agora, sobretudo neste 30º aniversário da sua morte...
Admito que a vida privada seja objecto de interesse - desde que se distingam os planos e sejam claras as intenções. Mas a mim, interessa-me muito mais o Político. As razões da política!
Quanto ao resto, acho que não nos cabe julgar as razões do coração.
O ideal é que, também no plano sentimental, haja seriedade e compostura (e Sá Carneiro não nos desiludiu em nenhum desses aspectos).
Isto não significa ter de tomar partido, ter de encontrar culpas e culpados na relação conjugal.
Nunca conheci Isabel Sá Carneiro e com Snu não troquei mais do que palavras de circunstância. Para dizer a verdade, creio que se houvesse tido ocasião de conviver com uma e outra, maiores seriam as afinidades com Isabel do que com Snu - porque é do Porto e bem portuense, porque suponho que tem muitas das qualidades que Agustina atribui à figura feminina de "Os meninos de ouro". (não reconheço é Sá Carneiro no figura masculina central dessa obra menor de uma escritora incomparável...).

Devo, porém, acrescentar que não conseguiria imaginar, em Sá Carneiro, duplicidade e hipocrisia. Ainda que no âmbito exterior à política, o não assumir a coerência neste domínio privado seria, no seu caso, "contra natura" - e por isso teria dificuldade em aceitar o facto.
Na primeira recepção oficial para a qual fui convocada fiquei muito surpreendida com os dizeres do convite dirigido pelo "Primeiro Ministro Francisco Sá Carneiro e Senhora". Senhora? Como não estava por dentro dos compromissos alcançados entre PR e Governo, e da corajosa imposição de Sá Carneiro, não me passou pela cabeça que a "Senhora Sá Carneiro" fosse Snu. E não compreendia que o 1º Ministro tivesse chamado a mulher, Isabel, só para satisfazer a ortodoxia protocolar (e que ela tivesse vindo...). Sentia-me desiludida pelo inesperado oportunismo da "cedência". Era um comportamento eminentemente anti- sacarneirista!

Quando entrei no Palácio de Sintra deparei com dois casais a receber conjuntamente os convidados: Sá Carneiro e Snu, Freitas do Amaral e Mª José. Muito sorridentes, elas deslumbrantemente vestidas (era ainda o tempo das recepções de saias compridos!).
Uff! Que alívio! Afinal não havia ponta de duplicidade - só um sã cumplicidade entre os dois principais responsáveis pelo governo. Sá Carneiro igual a si próprio!

9 de Dezembro de 2010 18.18...
Maria Manuela Aguiar disse...

O frio que passei nesse sumptuoso banquete no Palácio da Vila em Sintra! Era inverno rigoroso. Tinha perguntado ao jovem diplomata do protocolo de Estado se o palácio era aquecido e ele respondeu que sim. Por isso optei por um vestido de chiffon azul com desenhos pretos, sem mangas, fresco e vaporoso (comprado dias antes na Boutique Ayer). Erro crasso! A temperatura era glacial. Aqui e ali apenas apenas uns pífios aquecedores que destoavam no ambiente palaciano e não aqueciam coisa nenhuma...
Já não me lembro quem era o visitante estrangeiro ali homenageado. Para recordação ficaram a surpresa daquela recepção pelos dois casais, o requinte de todo o "décor", excepto os anacrónicos aquecedores, e a sensação de desconforto por falta de agasalho...

10 de Dezembro de 2010 22.10
Maria Manuela Aguiar disse...

Uma só vez estive à conversa com o casal durante largos minutos. Foi durante a visita do Presidente Carter. Na altura ainda não me tinha apercebido do "incidente" protocolar que impedira Snu de acompanhar a Senhora Carter numa excursão em Lisboa - todas essas questões me escapavam, porque, para além de não serem da minha conta, andava metade do tempo em terra estrangeira, de comunidade em comunidade portuguesa. Após um almoço, os convidados circulavam no salão de um dos palácios (já não sei qual - talvez o da Ajuda...) e, de repente, ao fazer um movimento circular, quase choquei com eles.
Muito me espantei por os ver sem "entourage", falando um com o outro, longe do concorrido local onde estavam os Carter!
E aí fiquei eu, a contar-lhes as histórias de uma recente visita à Venezuela, envolta nas guerras costumeiras com o Conselho da Revolução, na pessoa do Conselheiro Victor Alves, que nós então chamávamos o "Ministro da Emigração do Senhor Presidente", denunciando a "diplomacia paralela" que FS Carneiro tenazmente combatia - e nós com ele no Ministério do Negócios Estrangeiros. "O MNE do Senhor Presidente" era evidentemente Melo Antunes...)
Curiosamente, na publicação em que se faz o balanço do Governo AD, antes das eleições de Outubro, afirma-se que "O Governo recuperou para a sua esfera o domínio do Negócios Estrangeiros e o da Emigração e Comunidades Portuguesas" (cito de memória, até encontrar o livrinho inconfundível na capa com as cores da AD sobre fundo branco, que está bem guardado, mas não sei exactamente aonde).
Na perpectiva do Primeiro Ministro, e de todo o Executivo, não foi pequeno feito...

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