segunda-feira, 2 de maio de 2016

A COMUNIDADE LUSO-BRASILEIRA

1 - O relacionamento entre o Brasil e Portugal, enquanto Estados do mundo da lusofonia, tem conhecido momentos altos, separados por algumas crises passageiras - crises que, aliás, raramente conseguem afetar o bom entendimento entre as pessoas. O que nos une ao Brasil são, de facto, laços tecidos por séculos de migrações, quase sempre consideradas excessivas e objeto de políticas nacionais proibitivas ou limitadoras da liberdade de movimentos através do atlântico. Êxodo multissecular, que contribuiu poderosamente para construir uma nação quase continental, cerca de cem vezes maior do que Portugal, e para lhe dar uma língua unificadora (e a língua, note-se, não se impõe por decreto - vive-se no diálogo quotidiano de gente concreta). Foi por isso inteligente e justo o gesto do legislador brasileiro, em 1967, ao instituir o Dia da Comunidade Luso-Brasileira, a 22 de abril, data em que, em 1500, Cabral e os homens da sua expedição avistaram a terra a que puseram o nome de "Vera cruz". É o momento simbólico de um primeiro encontro entre povos, que haveriam de construir o Brasil futuro. Portugal aceitou a ideia, naturalmente. Todavia, a lei é letra morta nos dois países... a comunidade não! E a comemoração faz-se, sobretudo, por iniciativa das associações de imigrantes portugueses, em colóquios e debates, chamando personalidades do poder político dos dois países às grandiosas instalações dos seus Gabinetes de Leitura, Grémios Literários, Casas de Portugal... Entre nós, as comemorações andam esquecidas, tanto a nível oficial, como na sociedade civil... Espinho constituiu-se, este ano, em exceção à regra geral do olvido, graças à proposta de uma associação de mulheres migrantes, acolhida pela Câmara Municipal no auditório da Biblioteca José Marmelo e Silva. Uma exposição de pintura inspirada em festas populares, semelhantemente organizadas no espaço luso-brasileiro, e três admiráveis conferências sobre literatura e história do Brasil (proferidas pelos Professores Arnaldo Saraiva e Eugénio dos Santos, e pelo escritor e jornalista Danyel Guerra), transformaram a sessão numa "viagem de achamento" de factos, de personagens e de emoções! O Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, José Luís Carneiro, trouxe de uma recente visita ao Brasil o testemunho das significativas celebrações em que participou (e que haviam sido antecipadas, para contar com a sua presença). Um dia inesquecível, em que, de algum modo, se "remou contra a maré", num país onde a história do Brasil não é aprendida nas escolas e desapareceu, insolitamente, dos "curricula" das Faculdades de Letras (veja-se o caso da Universidade do Porto, onde Eugénio dos Santos a ensinava, de forma superlativa). Os responsáveis pela "res publica", em particular no domínio da Educação e da Cultura, deviam reler Joaquim Nabuco, o grande intelectual, político, diplomata, que afirmava : "Os Lusíadas" e o Brasil são as duas maiores obras de Portugal. 2 - A comunidade, a fraternidade luso brasileira não é, como pretendem alguns, pura expressão retórica. Leis e práticas do Brasil contemporâneo provam o contrário e pena é que sejam, quase completamente, ignoradas por cá... Dois exemplos admiráveis, da segunda metade do século XX: a solidariedade para com os retornados de África e o reconhecimento da "cidadania luso-brasileira. Em 1974/75, o Brasil foi o único Estado a abrir incondicionalmente as fronteiras aos portugueses, que abandonavam Angola e Moçambique, aquando de uma descolonização súbita, que os deixou em situação de refugiados de facto. Para lá foram todos os que quiseram ir, novos ou velhos, saudáveis ou doentes, mais ou menos qualificados, mais ou menos pobres... Nos aeroportos instalaram-se serviços especiais de receção, que, sem burocracias nem delongas, carimbavam nos passaportes destes portugueses uma autorização de residência definitiva! Os que atravessavam o oceano em pequenas embarcações de pesca, eram igualmente recebidos, de braços abertos. Vinham sem haveres, alguns até sem papéis, e logo viam a documentação reconstituída, com base na prova testemunhal dos próprios companheiros de aventura. (Que diferença com o que se vê, hoje, no mediterrâneo, ou nas fronteiras terrestres de uma Europa, que, tão desumanamente, ergue muros de arame farpado contra quem foge da guerra, do terror. Ou paga a sua "deportação" para um destino inseguro, quando não fatal!) Já alguns anos antes, em 1969, com a mesma compreensão da ideia de pertença a uma comunidade singular, o Brasil estabelecera o estatuto de direitos civis e políticos para imigrantes portugueses (a que Portugal corresponderia em 1971). Enquanto, ainda hoje, a chamada "cidadania europeia" , decorrente do Tratado de Maastricht, em matéria de direitos políticos, não vai além do nível local, a cidadania luso-brasileira, fundada no Tratado de Igualdade de Direitos e Deveres entre Portugueses e Brasileiros, alarga-se à eleição para órgãos de soberania e ao acesso à magistratura judicial. Em 1988, a Constituição Brasileira foi ainda mais longe e atribuiu aos residentes portugueses, em votação unânime, unilateralmente, mas sob condição de reciprocidade, todos os direitos dos nacionais - capacidade eleitoral passiva e ativa nas eleições, autárquicas estaduais e nacionais, acesso a altos cargos públicos, ao governo local, estadual e federal, à magistratura e ao exército (praticamente excecionando apenas a Presidência da República e sua linha de sucessão, como previsto para brasileiros naturalizados). Portugal só veio a dar plena reciprocidade na revisão constitucional de 2001. Desde então, está em vigor este Estatuto de Cidadania nos dois Estados - o mais avançado que se conhece no século XXI. Sobra entre nós, brasileiros e portugueses, a fraternidade que falta entre europeus... 3 - Em 1974, com a revolução do 25 de abril, desfez-se o Império, que era obra do Estado, mas resiste a obra das pessoas, dos emigrantes, as relações privilegiadas entre povos da mesma fala, a diáspora. Ganhamos a liberdade de sermos portugueses, lusófonos, europeus, com uma identidade que temos de saber afirmar em cada um dos círculos em que partilhamos um longo percurso, continuando-o em cada novo tempo, com cada nova geração. Comunidade Luso-Brasileira, CPLP, Europa… Por esta ordem de prioridades? Eu diria que sim, embora saiba que não tem sido essa, desde há muito, a opção estratégica dos nossos políticos. Maria Manuela Aguiar Publicado em "Defesa de Espinho", 5ª feira, 28 de abril

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