quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

2016-2017 PASSAGEM DE ANO

Like a bridge over troubled water 1 - A passagem de ano é obrigatoriamente tempo de balanço do que finda e de bons augúrios para o que nasce, como se nascesse imaculado. Longe de mim a ideia de romper com a tradição, que convoca à solidariedade e à partilha de otimismo, em convívios e em mensagens, enviadas nos velhos cartões de papel ou nas redes sociais. Proponho-me atravessar a ponte de um ano a outro, em casa, ao som da inspiradora canção de Simon e Garfunkel "Like a bridge over troubled waters". Resisto, pois, à tentação de dizer à maneira de Pedro Passos Coelho: "vem aí o diabo!". De qualquer modo, devo precisar que os demónios que vejo. a agitar águas turvas, não são esses de que ele fala. Isto é, não são nacionais. Bem pelo contrário, temo é uma invasão de diabos alheios. 2 - De facto, 2016 deixa a 2017, essencialmente, um rasto de ameaças e incertezas, a nível planetário. A mesma força perversa da demagogia, da distorção da realidade, a que se usa agora chamar "pós verdade" (uma expressão que de algum modo "normaliza" as mentiras, por vezes delirantes, mas eficazes, que enchem, por exemplo, os novos "media"), fabricou o "Brexit", derrotou Hillary e Renzi, e continua a alavancar sinistras personagens como Farage, Beppe Grillo, Marine, Erdogan, Trump, Putin. Putin, o improvável "compagnon de route" do futuro presidente americano, que ele terá ajudado a eleger, tanto quanto o diretor do FBI, com aquela cirúrgica retoma e pronta retirada da "questão dos emails" de Clinton, quase à boca das urnas (ingerências que colocam em causa a própria democraticidade do processo eleitoral americano e podem inverter o slogan de Trump, que se arrisca a fazer, de facto, não os EUA mas a Russia "great again" - a Rússia capitalista, na qual tem os seus negócios privados, note-se). Assistimos, um século depois, ao ressurgimento, dos nacionalismos e dos fascismos, do ódio e da xenofobia que germinam, em velhas democracias, seja no "Tea Party", na "Alternative Right", no movimento "Cinco estrelas", seja nos movimentos da mesma raiz, que já estão no poder em alguns países do leste europeu. O caos do Médio Oriente, desencadeado pelo Presidente Bush com a guerra do Iraque, alastra, imparável, nessa e em outras regiões, provocando vagas dramáticas de refugiados - as primeiras vítimas do fanatismo religioso, que, contudo, ultrapassa todas as fronteiras e pode, a qualquer momento, levar a violência e a morte a qualquer recanto tranquilo das nossas terras. É, verdadeiramente, a globalização do terror, a par da globalização da mentira (a partir dos "media" digitais...) e da globalização de um capitalismo selvagem, regido pela lei dos mercados contra a Lei do Estado. Ou seja, o poder financeiro sobrelevando o poder político - uma "economia que mata" nas palavras do Papa Francisco... Os demónios do século XXI aí estão. Conhecemos os seus rostos, os seus propósitos. 2017 é ano eleitoral em muitos Estados da Europa e é absolutamente crucial que vençam os democratas, de esquerda ou de direita, tanto faz - caso de Angela Merkl, vista, cada vez mais, como paladina de uma tradição humanista europeia ameaçada. 3 - Em Portugal, 2016 foi, inesperadamente, um ano bem melhor do que o anunciado nas profecias da "inteligentzia" nacional, apesar da dívida, do desemprego, da emigração, do estado da economia, do estado da banca, que não mudaram, no essencial. Mudou, contudo, o estado de espírito coletivo. O novo Presidente da República chegou e trouxe consigo uma nova forma de estar em Belém (e um pouco por toda a parte) e de dar ânimo aos seus concidadãos, em nome dos afetos, da concórdia e da alegria (e energia!) de viver. O novo Primeiro - ministro (seu antigo aluno na Faculdade de Direito, e um excelente aluno) vai pelo mesmo caminho. É um espetáculo deveras cativante, vê-los a partilhar um guarda-chuva no 10 de junho, em Paris, ou, juntos e sorridentes, a plantar uma árvore em Lisboa. Primeiro, rendeu-se-lhes Portugal, que, nas sondagens, dá 97% a Marcelo Rebelo de Sousa e um pouco menos, mas bastante, a António Costa. Depois, rendeu-se-lhes a Europa, esfumado, definitivamente, o receio dos excessos "gauchistes". de um Executivo saído de uma fórmula parlamentarista inesperada e contra-corrente, se bem que legítima. E, subitamente, o mundo rendeu-se a Portugal no mais mediático dos desportos, com a conquista do campeonato europeu de futebol. Uma trajetória espantosa, jamais vista, de empate em empate até à vitória final, contra a França, anfitriã do evento e grande favorita. Uma seleção de uma vedeta única (Ronaldo, então em baixo de forma, mas, ainda assim, Ronaldo), intergeracional (do mais velho, o incomparável Ricardo Carvalho, ao mais novo, um irreverente Renato Sanches, passando pelo reaparecimento de Quaresma). Fernando Santos acaba de receber o troféu de melhor treinador do mundo! Ronaldo, idem, como jogador (sem ponto de exclamação, porque a isso já nos habituou). Por fim, nesta síntese de feitos para a História de 2016, o maior de todos: a eleição de António Guterres para Secretário-Geral das Nações Unidas. E não pela via de meros jogos de bastidores, como aconteceu com os seus antecessores, mas numa escolha pelo puro mérito individual, em processo transparente, pontuado por debates abertos, em que foi, destacadamente, o primeiro. Homem universal, a quem está agora entregue a missão de velar pela paz no mundo (missão quase impossível, em que, segundo Jorge Dias, nós, portugueses, somos melhores do que em tarefas fáceis e rotineiras). Importando uma linguagem corrente no futebol para este outro campo, podemos dizer que Guterres e Marcelo, colegas e especiais amigos, pertencem ainda à "geração de ouro", que devolveu ao País a liberdade, a democracia e a esperança de as transportar para o futuro. É bom podermos olhar para nós, sobretudo para os que dão a medida grande das nossas capacidades, e sentirmos que temos, naturalmente, muito a aprender com outros Povos, mas também muito a ensinar-lhes. 2016 foi, nesta perspectiva, um ano positivo de mudança, de auto-confiança e de auto- afirmação, que de individual se converteu, de algum modo, em coletiva. Assim seja, igualmente, 2017. Publicado em "A Defesa de Espinho", 29 de dezembro de 2016

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