segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

REPENSAR O NATAL

1 - O Natal da minha infância era a magia de muitos encontros, na casa grande da Avó Maria, no centro de Gondomar - três gerações de uma família enorme, alegre, expansiva, com muita mocidade à volta da figura matriarcal dessa Avó, que sempre recordamos, especialmente, nesta data. Um Natal cristão, de felicidade absoluta, de luzes, de música, de sabores - hoje de memórias muito vivas do passado distante. Essencialmente, uma festa de família, que evocava a família de Jesus, Maria e José, numa proximidade ou cumplicidade com o Deus menino, amigo de todos os meninos da Terra. O amigo que nos fazia chegar a casa, na madrugada de 25 de Dezembro, por meios assaz misteriosos, enquanto dormíamos, prendas magníficas, recompensa de bom comportamento, formalmente sugeridas numa carta que os nossos pais enviavam pelo correio, uns dias antes. Triciclos, bicicletas, ursos, bonecas, jogos, puzzles, livros, muitos livros... Só ficou mesmo a faltar-me, a mim, um vistoso automóvel de pedais, vermelho, pedido a Jesus, direta e sigilosamente, nas orações da noite, e, por isso, nunca mencionado na letra incerta dessas missivas tão genuinamente ingénuas - uma deceção e um segredo que só viria a contar, meio século mais tarde, num programa de televisão, quando me perguntaram qual fora a prenda mais desejada nos meus Natais de criança. Devo acrescentar que, antes desse programa (o "Portugal no coração") terminar, lá estava eu a receber, das mãos da Merche e do Malato. nos estúdios da RTP no Monte da Virgem, uma bela miniatura de um carro de corrida vermelho, exatamente da cor do original, o dos meus sonhos. Logo depois, outro bem disposto participante desse inesquecível momento televisivo, o José Lello, um amigo que lembro com saudade, recebia, também, por entre palmas e sorrisos, um presente simbólico. 2 - Natal é tudo isto - gestos de compreensão e generosidade, laços de afeto e de fraternidade. Começa no pequeno círculo da família restrita, à medida da nossa pouca idade e entendimento das coisas, mas não pode ficar-se por aí, antes deve alargar-se, numa vivência da matriz cristã da comemoração, ao círculo maior da família humana, para além das fronteiras das religiões ou da geografia, da raça, da língua, da cultura... Nesta perpetiva, a mensagem de Jesus - mensagem humanista, universal, até para os não crentes ou praticantes de outros credos - parece agora mais atual do que nunca. Todos estamos convocados a projetar o sentido da história que aconteceu há mais de 2000 anos na história que está a acontecer, dramaticamente, sob os nossos olhos, arrastando tantos milhões de refugiados através dessa mesma região do globo, o Médio Oriente, berço da nossa Civilização. É perfeita a semelhança do quadro de causas que os forçam à fuga e à clandestinidade, com a situação vivida por Maria e José. um casal de migrantes, vítimas de perseguição, em trânsito arriscado, aventuroso, mas, finalmente, venturoso, em terra estranha. Maria caminha, no último estádio da gravidez, à espera do filho, que nascerá num abrigo improvisado, num presépio ou estábulo, precisamente como tantas crianças, que são, atualmente, dadas à luz em lugares inóspitos, em tendas e acampamentos degradantes, quando não nos botes da morte no Mediterrâneo... Poderíamos, na verdade, representar o Natal com as imagens e os rostos da tragédia que nos trazem as reportagens dos "media", quotidianamente, para que se tome plena consciência da impossibilidade de se julgarem cristãos, civilizados, democratas, os mais altos responsáveis políticos ou as pessoas anónimas que negam a sua solidariedade aos refugiados, aos estrangeiros. Os que os tornam objeto de polémica e divisão nas sociedades contemporâneas. Os que se conseguem eleger com os votos do ódio e da intolerância, feitos armas de guerra contra os mais desprotegidos. 3 - Não é, afortunadamente, o caso de Portugal, quer enquanto Estado, quer enquanto Povo. Para mim, o melhor presente natalício de 2016 foi o saber que um estudo credível, divulgado há poucos dias, distingue os portugueses como os mais abertos dos europeus ao acolhimento de quantos procuram escapar aos horrores da destruição das suas casas e das suas cidades. Na segurança e no conforto das nossas, pensamos neles e estamos dispostos a partilhar aquilo que um país relativamente pobre lhes pode oferecer, em tempo de crise! É uma virtude que nos vem, certamente, de uma cultura de convívio, a âmbito planetário, através de séculos de infindáveis migrações. Não temos medo da alteridade e das particularidades dos outros, porque os conhecemos na experiência vivida, na Diáspora. O medo dos estrangeiros, das minorias, é sempre sinal de desconhecimento, de ignorância, de preconceito atávico. Nós somos, assim, individual e coletivamente capazes de viver o espírito do Natal, a letra das suas canções, a emoção das suas cores brilhantes, porque somos capazes de ver em todo e qualquer pequeno refugiado sírio ou afegão o menino Jesus, que veio ao mundo em missão de paz. Em "A DEFESA DE ESPINHO", 22 de Dezembro de 2016

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